Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 06

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--Eu vou vêr se arranjo uma grade: espera ahi.
O padre tinha sahido do pateo, e Marianna, em quanto esperava, examinou,
uma a uma, as janellas do mosteiro. N'uma das janellas, através das
rexas de ferro, viu ella uma senhora sem habito.
--Será aquella?--perguntou Marianna ao seu coração, que palpitava--Se eu
fosse amada como ella!...
--Sobe aquellas escadinhas, Marianna, e entra na primeira porta do
corredor, que eu lá vou--disse Joaquina.
Marianna deu alguns passos, olhou novamente para a janella onde vira a
senhora sem habito, e repetiu ainda:
--Se eu fosse amada como ella!...
Mal entrou na grade, disse á sua amiga:
--Olha lá, Joaquina, quem é uma menina muito branca, alva como leite,
que estava alli agora n'uma janella?
--Seria alguma noviça, que ha duas cá muito lindas.
--Mas ella não tinha vestimenta nenhuma de freira.
--Ah! já sei: é a D. Therezinha Albuquerque.
--Então não me enganei--disse Marianna, pensativa.
--Pois tu conhecel-a?
--Não; mas por amor d'ella é que eu cá vim fallar comtigo.
--Então que é?! Que tens tu com a fidalga?
--Eu, cá por mim, nada; mas conheço uma pessoa que lhe quer muito.
--O filho do corregedor?
--Esse mesmo.
--Mas esse está em Coimbra.
--Não sei se está, nem se não. Fazes-me tu um favor?
--Se eu poder...
--Pódes... Eu queria fallar com ella.
--Ó dianho! isso não sei se poderá ser, porque a trazem as freiras
debaixo d'olho, e ella vai-se embora ámanhã.
--Para onde vai?
--Vai para outro convento, não sei se de Lisboa, se do Porto. Os bahus
já estão preparados, e ella está morta por sahir. E tu que lhe queres?
--Não t'o posso dizer, porque não sei... Queria dar-lhe um papel... Faz
com que ella cá venha, que eu dou-te chita para um vestido.
--Como tu estás rica, Marianna!...--atalhou, rindo, Joaquina--Eu não
quero a tua chita, rapariga. Se eu podér dizer-lhe que venha, sem que
alguem me ouça, digo-lh'o. E agora é boa maré, porque tocou ao côro....
Deixa-me lá ir.
Joaquina sahiu-se bem da difficil commissão. Thereza estava sósinha,
absorvida a scismar com os olhos fitos no ponto onde vira Marianna.
--A menina faz favor de vir comigo depressinha?--disse-lhe a criada.
Seguiu-a Thereza, e entrou na grade, que Joaquina fechou, dizendo:
--O mais breve que possa bata por dentro para eu lhe abrir a porta. Se
perguntarem por v. ex.^a, digo-lhe que a menina está no mirante.
A voz de Marianna tremia, quando D. Thereza lhe perguntou quem era.
--Sou uma portadora d'esta carta para v. ex.^a
--É de Simão!--exclamou Thereza.
--Sim, minha senhora.
--A reclusa leu convulsiva a carta duas vezes, e disse:
--Eu não posso escrever-lhe, que me roubaram o meu tinteiro, e ninguem
me empresta um. Diga-lhe que vou de madrugada para o convento de
Monchique do Porto. Que se não afflija, porque eu sou sempre a mesma.
Que não venha cá, porque seria inutil, e muito perigoso. Que vá vêr-me
ao Porto, que eu hei de arranjar modo de lhe fallar. Diga-lhe isto, sim?
--Sim, minha senhora.
--Não se esqueça, não? Vir cá por modo nenhum. É impossivel fugir, e vou
muito acompanhada. Vai o primo Balthazar e as minhas primas, e meu pae,
e não sei quantos criados de bagagem e das liteiras. Tirar-me no caminho
é uma loucura com resultados funestos. Diga-lhe tudo, sim?
Joaquina disse fóra da porta:
--Menina! olhe que a prioreza anda lá por dentro a procural-a.
--Adeus, adeus--disse Thereza sobresaltada.--Tome lá esta lembrança como
prova da minha gratidão.
E tirou do dedo um annel de ouro, que offereceu a Marianna.
--Não aceito, minha senhora.
--Porque não aceita?
--Porque não fiz algum favor a v. ex.^a. A receber alguma paga ha de ser
de quem me cá mandou. Fique com Deus, minha senhora, e oxalá que seja
feliz.
Sahiu Thereza, e Joaquina entrou na grade.
--Já te vaes embora, Marianna?
--Vou, que é pressa; um dia virei conversar comtigo muito. Adeus,
Joaquina.
--Pois não me contas o que isto é? O amor da fidalga está perto d'aqui?
Conta, que eu não digo nada, rapariga!...
--Outra vez, outra vez; obrigada, Joaquininha.
Marianna, durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado da fidalga,
e, se alguma vez se distrahia d'este exercicio de memoria, era para
pensar nas feições da amada do seu hospede, e dizer, como em segredo, ao
seu coração: «Não lhe bastava ser fidalga e rica; e, além de tudo, linda
como nunca vi outra!» E o coração da pobre moça, avergando ao que a
consciencia lhe ia dizendo, chorava.
Simão, de uma fresta do postigo do seu quarto, espreitava ao longo do
caminho, ou escutava a estropeada da cavalgadura.
Ao descobrir Marianna, desceu ao quinteiro, despresando cautelas, e
esquecido já do ferimento cuja crise de perigo peorára n'aquelle dia,
que era o oitavo depois do tiro.
A filha do ferrador deu o recado, sem alteração de palavra. Simão
escutára-a placidamente até ao ponto em que lhe ella disse que o primo
Balthazar a acompanhava ao Porto.
--O primo Balthazar!...--murmurou elle com um sorriso sinistro--sempre
este primo Balthazar cavando a sua sepultura e a minha!...
--A sua, fidalgo?!--exclamou João da Cruz--morra elle, que o levem
trinta milhões de diabos! mas v. s.^a ha de viver em quanto eu fôr João.
Deixe-a ir para o Porto, que não tem perigo no convento. D'hora a hora
Deus melhora. O senhor doutor vai para Coimbra, está por lá algum tempo,
e ás duas por tres, quando o velho mal se precatar, a fidalguinha
engrampa-o, e é sua como dois e dois serem quatro.
--Eu hei de vêl-a antes de partir para Coimbra--disse Simão.
--Olhe que ella recommendou-me muito que não fosse lá--acudiu Marianna.
--Por causa do primo?--tornou o academico ironicamente.
--Acho que sim, e por talvez não servir de nada lá ir v. s.^a--respondeu
timidamente a moça.
--Lá se quer--bradou mestre João--a mulher vai-se-lhe tirar ao caminho.
Não tem mais que dizer.
--Meu pae! não metta este senhor em maiores trabalhos!--disse Marianna.
--Não tem duvida, menina--atalhou Simão--eu é que não quero metter
ninguem em trabalhos. Com a minha desgraça, por maior que ella seja, hei
de eu luctar sósinho.
João da Cruz, assumindo uma gravidade de que a sua figura raras vezes se
ennobrecia, disse:
--Senhor Simão, v. s.^a não sabe nada do mundo. Não metta sósinho a
cabeça aos trabalhos, que elles, como o outro que diz, quando pegam de
ensarilhar um homem, não lhe deixam tomar fôlego. Eu sou um rustico;
mas, a bem dizer, estou n'aquella d'aquelle que dizia que o mal dos seus
burrinhos o fizera alveitar. Paixões, que as leve o diabo, e mais quem
com ellas engorda. Por causa de uma mulher, ainda que ella seja filha do
rei, não se ha de um homem botar a perder. Mulheres ha tantas como a
praga, e são como as rãs no charco, que mergulha uma, e apparecem quatro
á tona d'agua. Um homem rico e fidalgo como v. s.^a, onde quer topa uma
com um palmo de cara como se quer, e um dote de encher o olho. Deixe-a
ir com Deus ou com a breca, que ella, se tiver de ser sua, á mão lhe ha
de vir dar, e tanto faz andar p'ra traz como p'ra diante, é dictado dos
antigos. Olhe que isto não é mêdo, fidalgo; tome sentido, que João da
Cruz sabe o que é pôr dois homens d'uma feita a olhar o sete-estrello,
mas não sabe o que é mêdo. Se o senhor quer sahir á estrada e tirar a
tal pessoa ao pae, ao primo, e a um regimento, se fôr necessario, eu vou
montar na egua, e d'aqui a tres horas estou de volta com quatro homens,
que são quatro dragões.
Simão fitára os olhos chammejantes nos do ferrador, e Marianna
exclamára, ajuntando as mãos sobre o seio:
--Meu pae! não lhe dê esses conselhos!...
--Cala-te ahí, rapariga!--disse mestre João--vai tirar o albardão á
egua, amanta-a, e bota-lhe sêcco. Não és aqui chamada.
--Não vá afflicta, senhora Marianna--disse Simão á moça, que se retirava
amargurada.--Eu não aproveito algum dos conselhos de seu pae. Ouço-o com
boa vontade, porque sei que quer o meu bem; mas hei de fazer o que a
honra e o coração me aconselhar.
Ao anoitecer, Simão, como estivesse sósinho, escreveu uma longa carta,
da qual extractamos os seguintes periodos:
«Considero-te perdida, Thereza. O sol de ámanhã póde ser que eu o não
veja. Tudo, em volta de mim, tem uma côr de morte. Parece que o frio da
minha sepultura me está passando o sangue e os ossos.
Não posso ser o que tu querias que eu fosse. A minha paixão não se
conforma com a desgraça. Eras a minha vida: tinha a certeza de que as
contrariedades me não privavam de ti. Só o receio de perder-te me mata.
O que me resta do passado é a coragem de ir buscar uma morte digna de
mim e de ti. Se tens força para uma agonia lenta, eu não posso com ella.
Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um
inferno. Não hei de dar barata a vida, não. Ficarás sem mim, Thereza;
mas não haverá ahi um infame que te persiga depois da minha morte. Tenho
ciumes de todas as tuas horas. Has de pensar com muita saudade no teu
esposo do ceu, e nunca tirarás de mim os olhos da tua alma para vêres ao
pé de ti o miseravel que nos matou a realidade de tantas esperanças
formosas.
Tu verás esta carta quando eu já estiver n'um outro mundo, esperando as
orações das tuas lagrimas. As orações! Admiro-me d'esta faisca de fé que
me alumia nas minhas trévas!... Tu déras-me com o amor a religião,
Thereza. Ainda creio; não se apaga a luz que é tua; mas a providencia
divina desamparou-me.
Lembra-te de mim. Vive, para explicares ao mundo, com a tua lealdade a
uma sombra, a razão por que me attrahiste a um abysmo. Escutarás com
gloria a voz do mundo, dizendo que eras digna de mim.
Á hora em que leres esta carta............»
Não o deixaram continuar as lagrimas, nem depois a presença de Marianna.
Vinha ella pôr a mesa para a ceia, e quando desdobrava a toalha, disse
em voz abafada, como se a si mesma sómente o dissesse:
--É a ultima vez que ponho a mesa ao senhor Simão em minha casa!
--Porque diz isso, Marianna?
--Porque m'o diz o coração.
D'esta vez o academico ponderou supersticiosamente os dictames do
coração da moça, e com o silencio meditativo deu-lhe a ella a evidencia
anticipada do vaticinio.
Quando voltou com a travessa da gallinha, vinha chorando a filha de João
da Cruz.
--Chora com pena de mim, Marianna?--disse Simão enternecido.
--Choro, porque me parece que o não tornarei a vêr; ou, se o vir, será
de modo que oxalá que eu morresse antes de o vêr.
--Não será, talvez, assim, minha amiga...
--V. s.^a não me faz-uma coisa que eu lhe peço?...
--Veremos o que pede, menina.
--Não saia esta noite, nem ámanhã.
--Pede o impossivel, Marianna. Hei de sahir, porque me mataria se não
sahisse.
--Então perdôe a minha ousadia. Deus o tenha de sua mão.
A rapariga foi contar ao pae as intenções do academico. Acudiu logo
mestre João combatendo a ideia da sahida, com encarecer os perigos do
ferimento. Depois, como não conseguisse dissuadil-o, resolveu
acompanhal-o. Simão agradeceu a companhia, mas rejeitou-a com decisão. O
ferrador não cedia do proposito, e estava já preparando a clavina, e
arreçoando com medida dobrada a egua--para o que désse e viesse--dizia
elle, quando o estudante lhe disse que, melhor avisado, resolvêra não ir
a Vizeu, e seguir Thereza ao Porto, passados os dias da convalescença.
Facilmente o acreditou João da Cruz; mas Marianna, submissa sempre ao
que o seu coração lhe bacorejava, duvidou da mudança, e disse ao pae que
vigiasse o fidalgo.
Ás onze horas da noite ergueu-se o academico, e escutou o movimento
interior da casa: não ouviu o mais ligeiro ruido, a não ser o rangido da
egua na manjedoura. Escorvou de polvora nova as duas pistolas. Escreveu
um bilhete subscriptado a João da Cruz, e ajuntou-o á carta que
escrevêra a Thereza. Abriu as portadas da janella do seu quarto, e
passou d'alli para a varanda de pau, da qual o salto á estrada era sem
risco. Saltou, e tinha dado alguns passos, quando a fresta, lateral á
porta da varanda, se abriu, e a voz de Marianna lhe disse:
--Então adeus, senhor Simão. Eu fico pedindo a Nossa Senhora que vá na
sua companhia.
O academico parou, e ouviu voz intima que lhe dizia: «O teu anjo da
guarda falla pela bôca d'aquella mulher, que não tem mais intelligencia
que a do coração alumiado pelo seu amor.»
--Dê um abraço em seu pae, Marianna--disse-lhe Simão--e adeus... até
logo, ou....
--Até ao juizo final...--atalhou ella.
--O destino ha de cumprir-se... Seja o que o ceu quizer.
Tinha Simão desapparecido nas trevas, quando Marianna accendeu a lampada
do sanctuario, e ajoelhou orando com o fervor das lagrimas.
Era uma hora, e estava Simão defronte do convento, contemplando uma a
uma as janellas. Em nenhuma vira clarão de luz; luz só a do lampadario
do Sacramento se coava baça e pallida na vidraça d'uma fresta do templo.
Sentou-se nas escaleiras da igreja, e ouviu, ali immovel, as quatro
horas. Das mil visões, que lhe relancearam no atribulado espirito, a que
mais a miudo se repetia era a de Marianna supplicante com as mãos
postas; mas, ao mesmo tempo, cria elle ouvir os gemidos de Thereza,
torturada pela saudade, pedindo ao ceu que a salvasse das mãos de seus
algozes. O vulto de Thadeu de Albuquerque, arrastando a filha a um
convento, não lhe afogueava a sêde de vingança; mas cada vez que lhe
acudia á mente a imagem odiosa de Balthazar Coutinho, instinctivamente
as mãos do academico se asseguravam da existencia das pistolas.
Ás quatro horas e um quarto acordou a natureza toda em hymnos e
acclamações ao radiar da alva. Os passarinhos trinavam na cerca do
mosteiro melodias interrompidas pelo toque solemne das Ave-Marias na
torre. O horisonte passára, de escarlate a alvacento. A purpura da
aurora, como lavareda enorme, desfizera-se em particulas de luz, que
ondeavam no declive das montanhas, e se distendiam nas planicies e nas
varzeas, como se o anjo do Senhor, á voz de Deus, viesse desenrolando
aos olhos da creatura as maravilhas do repontar d'um dia estivo.
E nenhuma d'estas galas do ceu e da terra enlevava os olhos do moço
poeta!
Ás quatro horas e meia ouviu Simão o tinido de liteiras, dirigindo-se
áquelle ponto. Mudou de local, tomando por uma rua estreita, fronteira
ao convento.
Pararam as liteiras vasias na portaria, e logo depois chegaram tres
senhoras vestidas de jornada, que deviam ser as irmãs de Balthazar,
acompanhadas de dois mochilas com as mulas á rédea. As damas foram
sentar-se nos bancos de pedra, lateraes á portaria. Em seguida abriu-se
a grossa porta, rangendo nos gonzos, e as tres senhoras entraram.
Momentos depois viu Simão chegar á portaria Thadeu de Albuquerque
encostado ao braço de Balthazar Coutinho. O velho denotava quebranto e
desfallecimento a espaços. O de Castro-d'Aire, bem composto de figura e
caprichosamente vestido á castelhana, gesticulava com o aprumo de quem
dá as suas irrefutaveis razões, e consola tomando a riso a dôr alheia.
--Nada de lamurias, meu tio!--dizia elle--Desgraça seria vêl-a casada!
Eu prometto-lhe antes de um anno restituir-lh'a curada. Um anno de
convento é um optimo vomitorio do coração. Não ha nada como isso para
limpar o sarro do vicio em corações de meninas creadas á discrição. Se
meu tio a obrigasse, desde menina, a uma obediencia cega, têl-a-ia agora
submissa, e ella não se julgaria authorisada a escolher marido.
--Era uma filha unica, Balthazar!--dizia o velho, soluçando.
--Pois por isso mesmo--replicou o sobrinho--Se tivesse outra, ser-lhe-ia
menos sensivel a perda, e menos funesta a desobediencia. Faria a sua
casa na filha mais querida, embora tivesse de impetrar uma licença regia
para desherdar a primogenita. Assim, agora não lhe vejo outro remedio
senão empregar o cauterio á chaga; com emplastros é que não se faz nada.
Abriu-se novamente a portaria, e sahiram as tres senhoras, e após ellas
Thereza.
Thadeu enchugou as lagrimas, e deu alguns passos a saudar a filha, que
não ergueu do chão os olhos.
--Thereza...--disse o velho.
--Aqui estou, senhor--respondeu a filha, sem o encarar.
--Ainda é tempo--tornou Albuquerque.
--Tempo de quê?
--Tempo de seres boa filha.
--Não me accusa a consciencia de o não ser.
--Ainda mais?!... Queres ir para tua casa, e esqueceres o maldito que
nos faz a todos desgraçados?
--Não, meu pae. O meu destino é o convento. Esquecêl-o nem por morte.
Serei filha desobediente, mas mentirosa é que nunca.
Thereza, circumvagando os olhos, viu Balthazar, e estremeceu,
exclamando:
--Nem aqui!
--Falla comigo, prima Thereza?--disse Balthazar, risonho.
--Comsigo fallo! Nem aqui me deixa a sua odiosa presença?
--Sou um dos criados que minha prima leva em sua companhia. Dois tinha
eu ha dias, dignos de acompanharem a minha prima; mas esses houve ahi um
assassino que m'os matou. Á falta d'elles, sou eu que me offereço.
--Dispenso-o da delicadeza--atalhou Thereza com vehemencia.
--Eu é que me não dispenso de a servir, á falta dos meus dois fieis
criados, que um scelerado me matou.
--Assim devia ser--tornou ella tambem ironica--porque os covardes
escondem-se nas costas dos criados, que se deixam matar.
--Ainda se não fizeram as contas finaes..., minha querida
prima--redarguiu o morgado.
Este dialogo correu rapidamente, em quanto Thadeu de Albuquerque
cortejava a prioreza e outras religiosas. As quatro senhoras, seguidas
de Balthazar, tinham sahido do atrio do convento, e deram de rosto em
Simão Botelho, encostado á esquina da rua fronteira.
Thereza viu-o.... adivinhou-o, primeira de todas, e exclamou:
--Simão!...
O filho do corregedor não se moveu.
Balthazar, espavorido do encontro, fitando os olhos n'elle, duvidava
ainda.
--É crivel que esse infame aqui viesse!--exclamou o de Castro-d'Aire.
Simão deu alguns passos, e disse placidamente:
--_Infame..._ eu! e porquê?
--Infame, e infame assassino!--replicou Balthazar--Já fóra da minha
presença!
--É parvo este homem!--disse o academico--Eu não discuto com s. s.^a...
Minha senhora--disse elle a Thereza com a voz commovida e o semblante
alterado unicamente dos affectos do coração--Soffra com resignação, da
qual eu lhe estou dando um exemplo. Leve a sua cruz, sem amaldiçoar a
violencia, e bem póde ser que a meio caminho do seu calvario a
misericordia divina lhe redobre as forças.
--Que diz este patife?!--exclamou Thadeu.
--Vem aqui insultal-o, meu tio!--respondeu Balthazar--Tem a petulancia
de se apresentar a sua filha a confortal-a na sua malvadez! Isto é de
mais! Olhe que eu esmago-o aqui, su villão!
--Villão é o desgraçado, que me ameaça, sem ousar avançar para mim um
passo--redarguiu o filho do corregedor.
--Eu não o tenho feito--exclamou enfurecidamente Balthazar--por entender
que me avilto, castigando-o, na presença de criados de meu tio, que tu
pódes suppôr meus defensores, canalha!
--Se assim é--tornou Simão, sorrindo--espero nunca me encontrar de rosto
com s. s.^a. Reputo-o tão covarde, tão sem dignidade, que o hei de
mandar azorragar pelo primeiro ganha-pão das esquinas.
Balthazar Coutinho lançou-se de impeto a Simão. Chegou a apertar-lhe a
garganta nas mãos; mas depressa perdeu o vigor dos dedos. Quando as
damas chegaram a interpôr-se entre os dois, Balthazar tinha o alto do
craneo aberto por uma bala, que lhe entrára na fronte. Vacillou um
segundo, e cahiu desamparado aos pés de Thereza.
Thadeu de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros e criados
rodearam Simão, que conservava o dedo no gatilho da outra pistola.
Animados uns pelos outros e pelos brados do velho, iam lançar-se ao
homicida, com risco de vida, quando um homem, com um lenço pela cara,
correu da rua fronteira, e se collocou, de bacamarte aperrado, á beira
de Simão. Estacaram os homens.
--Fuja, que a égua está ao cabo da rua--disse o ferrador ao seu hospede.
--Não fujo... Salve-se, e depressa--respondeu Simão.
--Fuja, que se ajunta o povo, e não tardam ahi soldados.
--Já lhe disse que não fujo--replicou o amante de Thereza, com os olhos
postos n'ella, que cahira desfallecida sobre as escadas da igreja.
--Está perdido!--tornou João da Cruz.
--Já o estava. Vá-se embora, meu amigo, por sua filha lh'o rogo. Olhe
que póde ser-me util; fuja...
Abriam-se todas as portas e janellas, quando o ferrador se lançou na
fuga, até cavalgar a egua.
Um dos visinhos do mosteiro, que, em razão de seu officio, primeiro
sahiu á rua, era o meirinho geral.
--Prendam-no, prendam-no, que é um matador!--exclamava Thadeu de
Albuquerque.
--Qual?--perguntou o meirinho geral.
--Sou eu--respondeu o filho do corregedor.
--V. s.^a!--disse o meirinho espantado; e, approximando-se, accrescentou
a meia voz--venha, que eu deixo-o fugir.
--Eu não fujo--tornou Simão.--Estou prêso. Aqui tem as minhas armas.
E entregou as pistolas.
Thadeu de Albuquerque, quando se recobrou do spasmo, fez transportar a
filha a uma das liteiras, e ordenou que dois criados a acompanhassem ao
Porto.
As irmãs de Balthazar seguiram o cadaver de seu irmão para casa do tio.


SEGUNDA PARTE.


I.

O corregedor acordara com o grande reboliço que ia na casa, e perguntou
á esposa, que elle suppunha tambem desperta na camara immediata, que
bulha era aquella. Como ninguem lhe respondesse, sacudiu freneticamente
a campainha, e berrou ao mesmo tempo, aterrado pela hypothese de
incendio na casa. Quando D. Rita acudiu, já elle estava enfiando os
calções ás avessas.
--Que estrondo é este? quem é que grita?--exclamou Domingos Botelho.
--Quem grita mais é o senhor--respondeu D. Rita.
--Sou eu!? Mas quem é que chora?
--São suas filhas.
--E porquê? Diga n'uma palavra.
--Pois sim, direi: o Simão matou um homem.
--Em Coimbra?... E fazem tanta bulha por isso!
--Não foi em Coimbra, foi em Vizeu--tornou D. Rita.
--A senhora manga comigo?! Pois o rapaz está em Coimbra, e mata em
Vizeu! Ahi está um caso para que as ordenações do reino não
providenciaram.
--Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada de hoje
Balthazar Coutinho, sobrinho do Thadeu de Albuquerque.
Domingos Botelho mudou inteiramente de aspecto.
--Foi prêso?--perguntou o corregedor.
--Está em casa do juiz de fóra.
--Mande-me chamar o meirinho geral. Sabe como foi e porque foi essa
morte?!... Mande-me chamar o meirinho, sem demora.
--Porque se não veste o senhor, e vai a casa do juiz?
--Que vou eu fazer a casa do juiz?
--Saber de seu filho como isto foi.
--Eu não sou pae: sou corregedor. Não me incumbe a mim interrogal-o,
Senhora D. Rita, eu não quero ouvir choradeiras; diga ás meninas que se
calem, ou que vão chorar no quintal.
O meirinho chamado relatou miudamente o que sabia, e disse ter-se
verificado que o amor á filha do Albuquerque fôra causa d'aquelle
desastre.
Domingos Botelho, ouvida a historia, disse ao meirinho:
--O juiz de fóra que cumpra as leis. Se elle não fôr rigoroso, eu o
obrigarei a sêl-o.
Ausente o meirinho, disse D. Rita Preciosa ao marido:
--Que significa esse modo de fallar de seu filho?
--Significa que sou corregedor d'esta comarca, e que não protejo
assassinos por ciumes, e ciumes da filha de um homem, que eu detesto. Eu
antes queria vêr mil vezes morto Simão, que ligado a essa familia.
Escrevi-lhe muitas vezes dizendo-lhe que o expulsava de minha casa, se
alguem me désse a certeza de que elle tinha correspondencia com tal
mulher. Não ha de querer a senhora que eu vá sacrificar a minha
integridade a um filho desobediente, e de mais a mais homicida.
D. Rita, algum tanto por affecto maternal e bastante por espirito de
contradicção, contendeu largo espaço; mas desistiu, obrigada pela
insolita pertinacia e cólera do marido. Tão iracundo e aspero em
palavras nunca o ella vira. Quando lhe elle disse: «Senhora, em coisas
de pouca monta o seu dominio era toleravel; em questões de honra, o seu
dominio acabou: Deixe-me!»--D. Rita, quando tal ouviu, e reparou na
physionomia de Domingos Botelho, sentiu-se mulher, e retirou-se.
A ponto foi isto de entrar o juiz de fóra na sala de espera. O
corregedor foi recebel-o, não com o semblante affectuoso de quem vai
agradecer a delicadeza e implorar indulgencia, senão que de carrancudo
que ia, mais parecêra ir elle reprehender o juiz por vir n'aquella
visita dar a crer que a balança da justiça na sua mão tremia algumas
vezes.
--Começo por dar a v. s.^a os pezames--disse o juiz de fóra--da desgraça
de seu filho.
--Obrigado a v. s.^a Sei tudo. Está instaurado o processo?
--Não podia deixar eu de acceitar a querella.
--Se a não acceitasse, obrigal-o-ia eu ao cumprimento dos seus deveres.
--A situação do senhor Simão Botelho é pessima. Confessa tudo. Diz que
matou o algoz da mulher que elle amava...
--Fez muito bem--interrompeu o corregedor, soltando uma casquinada secca
e rouca.
--Perguntei-lhe se foi em defeza, e fiz-lhe signal que respondesse
affirmativamente. Respondeu que não; que, a defender-se, o faria com a
ponta da bota, e não com um tiro. Busquei todos os modos honestos de o
levar a dar algumas respostas, que denotassem allucinação ou demencia;
elle, porém, responde e replíca com tanta egualdade e presença de
espirito, que é impossivel suppor que o assassinio não foi perpetrado
muito intencionalmente e de claro juizo. Aqui tem v. s.^a uma
especialissima e triste posição. Queria valer-lhe, e não posso.
--E eu não posso nem quero, senhor doutor juiz de fóra. Está na cadêa?
--Ainda não: está em minha casa. Venho saber se v. s.^a determina que
lhe seja preparada com decencia a prisão.
--Eu não determino nada. Faça de conta que o prêso Simão não tem aqui
parente algum.
--Mas, senhor doutor corregedor--disse o juiz de fóra com tristeza e
compuncção--v. s.^a é pae.
--Sou um magistrado.
--É demasiada a severidade, perdôe-me a reflexão que é amiga. Lá está a
lei para o castigar; não o castigue v. ex.^a com o seu odio. A desgraça
quebranta o odio de estranhos, quanto mais o affectuoso resentimento de
um pae!
--Eu não odeio, senhor doutor; desconheço esse homem em que me falla.
Cumpra os seus deveres, que lh'o ordena o corregedor, e o amigo mais
tarde lhe agradecerá a delicadeza.
Sahiu o juiz de fóra, e foi encontrar Simão na mesma serenidade em que o
deixára.
--Venho de fallar com seu pae;--disse o juiz--encontrei-o mais irado do
que era natural calcular. Penso que por em quanto naaa póde esperar da
influencia ou patrocinio d'elle.
--Isso que importa?--respondeu socegadamente Simão.
--Importa muito, senhor Botelho. Se seu pae quizesse, haveria meios de
mais tarde lhe adoçar a sentença.
--Que me importa a mim a sentença?--replicou o filho do corregedor.
--Pelo que vejo não lhe importa ao senhor ir a uma forca?
--Não, senhor.
--Que diz, senhor Simão!--redarguiu espantado o interrogador.
--Digo que o meu coração é indifferente ao destino da minha cabeça.
--E sabe que seu pae não lhe dá mesmo protecção, a protecção das
primeiras necessidades na cadêa?
--Não sabia; que tem isso? Que importa morrer de fome, ou morrer no
patibulo?
--Porque não escreve a sua mãe? Peça-lhe que...
--Que hei de eu pedir a minha mãe?--atalhou Simão.
--Peca-lhe, que amacie a cólera de seu pae, senão o senhor Botelho não
tem quem o alimente.
--V. s.^a está-me julgando um miseravel, a quem dá cuidado saber onde ha
de almoçar hoje. Penso que não incumbem ao senhor juiz de fóra essas
miudezas de estomago.
--De certo não--redarguiu irritado o juiz---Faça o que quizer.
E, chamando o meirinho geral, entregou-lhe o réo, dispensando o aguazil
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