Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 07

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de pedir força para acompanhal-o.
O carcereiro recebeu respeitosamente o prêso, e alojou-o n'um dos
quartos melhores do carcere; mas nú e desprovido de tudo o carcere.
Um outro prêso emprestou-lhe uma cadeira de pau. Simão sentou-se, cruzou
os braços, e meditou.
Pouco depois, um criado de seu pae conduziu-lhe o almoço, dizendo-lhe
que sua mãe lh'o mandava a occultas, e entregando-lhe uma carta d'ella,
cujo conteúdo importa saber. Simão, antes de tocar no almoço, cujo cabaz
estava-no pavimento, leu o seguinte:
«Desgraçado, que estás perdido!
Eu não te posso valer, porque teu pae está inexoravel. A occultas d'elle
é que te mando o almoço, e não sei se poderei mandar-te o jantar!
Que destino o teu! Oxalá que tivesses morrido ao nascer!
Morto me disseram que tinhas nascido; mas o teu fatal destino não quiz
largar a victima [3].
Para que sahiste de Coimbra? a que vieste, infeliz? Agora sei que tens
vivido fóra de Coimbra ha quinze dias, e nunca tiveste uma palavra que
dissesses a tua mãe!...»
Simão suspendeu a leitura, e disse entre si:
--Como se intende isto?! Pois minha mãe não mandou chamar João da Cruz!
E não foi ella quem me mandou o dinheiro?
--Olhe que o almoço arrefece, menino!--disse o criado.
Simão continuou a ler, sem ouvir o criado:
«Deves estar sem dinheiro; e eu desgraçadamente não posso hoje enviar-te
um pinto. Teu irmão Manoel, desde que fugiu para Hespanha, absorve-me
todas as economias. Veremos, passado algum tempo, o que posso fazer; mas
receio bem que teu pae saia de Vizeu, e nos leve para Villa Real, para
abandonar de todo o teu julgamento á severidade das leis.
Meu pobre Simão! Onde estarias tu escondido quinze dias?! Hoje mesmo é
que teu pae teve carta d'um lente, participando-lhe a tua falta nas
aulas, e sahida para o Porto, segundo dizia o arreeiro que te
acompanhou.
Não posso mais. Teu pae já espancou a Ritinha, por ella querer ir á
cadêa.
Conta com o pouco valor de tua pobre mãe ao pé d'um homem infurecido
como está teu pae.»
Simão Botelho reflectiu alguns minutos, e convenceu-se de que o dinheiro
recebido era de João da Cruz. Quando sahiu com o espirito d'esta
meditação, tinha os olhos marejados de lagrimas.
--Não chore, menino;--disse o criado--os trabalhos são para os homens, e
Deus ha de fazer tudo pelo melhor. Almoce, senhor Simão.
--Leva o almoço--disse elle.
--Pois não quer almoçar?!
--Não. Nem voltes aqui. Eu não tenho familia. Não quero absolutamente
nada da casa de meus paes. Diz a minha mãe que eu estou socegado, bem
alojado, e feliz, e orgulhoso da minha sorte. Vai-te embora já.
O criado sahiu, e disse ao carcereiro que o seu infeliz amo estava
doudo. D. Rita achou provavel a suspeita do servo e viu a evidencia da
loucura nas palavras do filho.
Quando o o carcereiro voltou ao quarto de Simão, entrou acompanhado
d'uma rapariga camponeza: era Marianna. A filha de João da Cruz que, até
áquelle momento não apertava sequer a mão do hospede, correu a elle com
os braços abertos, e o rosto banhado de lagrimas. O carcereiro
retirou-se, dizendo comsigo: «Esta é bem mais bonita que a fidalga!»
--Não quero ver lagrimas, Marianna--disse Simão--Aqui, se alguem deve
chorar sou eu; mas lagrimas dignas de mim, lagrimas de gratidão aos
favores que tenho recebido de si e de seu pae. Acabo de saber que minha
mãe nunca me mandou dinheiro algum. Era de seu pae aquelle dinheiro, que
recebi.
Marianna escondeu o rosto no avental com que enxugava o pranto.
--Seu pae teve algum perigo?--tornou Simão em voz só perceptivel d'ella.
--Não, senhor.
--Está em casa?
--Está; e parece furioso. Queria vir aqui; mas eu não o deixei.
--Perseguiu-o alguem?
--Não, senhor.
--Diga-lhe que não se assuste, e vá depressa socegal-o.
--Eu não posso ir sem fazer o que elle me disse. Eu vou sahir, e volto
d'aqui a pouco.
--Mande-me comprar uma banca, uma cadeira, e um tinteiro e papel--disse
Simão, dando-lhe dinheiro.
--Ha de vir logo tudo; já cá podia estar; mas o pae disse-me que não
comprasse nada sem saber se sua familia lhe mandava o necessario.
--Eu não tenho familia, Marianna. Tome o dinheiro.
--Não recebo dinheiro, sem licença de meu pae. Para essas compras trouxe
eu de mais. E a sua ferida como estará?
--Ainda agora me lembro que tenho uma ferida!--disse Simão,
sorrindo--Deve estar boa, que não me dóe.... Soube alguma coisa da D.
Thereza?
--Soube que foi para o Porto. Estavam alli a contar que o pae a mandára
metter sem sentidos na liteira, e está muito povo á porta do fidalgo.
--Está bom, Marianna... Não ha desgraçado sem amparo. Vá, pense no seu
hospede, seja o seu anjo de misericordia.
Saltaram de novo as lagrimas dos olhos da moça; e por entre soluços,
estas palavras:
--Tenha paciencia. Não ha de morrer ao desamparo. Faça de conta que lhe
appareceu hoje uma irmã.
E, dizendo, tirou das amplas algibeiras um embrulho de biscoutos e uma
garrafa de licor de canella, que depôz sobre a cadeira.
--Mau almoço é; mas não achei outra coisa prompta--disse ella, e sahiu
apressada, como para poupar ao infeliz palavras de gratidão.


II.

O corregedor, n'esse mesmo dia, ordenou que se preparassem mulher e
filhas para no dia immediato sahirem de Vizeu, com tudo que podesse ser
transportado em cavalgaduras.
Vou transcrever a singela e dorida reminiscencia d'uma senhora d'aquella
familia, como a tenho em carta, recebida ha mezes:
«Já lá vão cincoenta e sete annos, e ainda me lembro, como se fossem
hontem passados os tristes acontecimentos da minha mocidade. Não sei
como é que tenho hoje mais clara a memoria das coisas da infancia.
Parece-me que, há trinta annos, me não lembravam com tantas
circumstancias e promenores.
Quando a mãe disse a mim e a minhas irmãs que preparassemos os nossos
bahus, rompemos todas n'um chôro, que irritou a ira do pae. As manas,
como mais velhas ou mais affeitas ao castigo, calaram-se logo: eu,
porém, que só uma vez e unicamente por causa de Simão, tinha sido
castigada, continuei a chorar, e tive o innocente valor de pedir ao pae
que me deixasse ir vêr o mano á cadêa antes de sahirmos de Vizeu.
Então fui castigada pela segunda vez e asperamente.
O criado, que levou o jantar á cadêa, voltou com elle e contou-nos que
Simão já tinha alguns moveis no seu quarto, e estava jantando com
exterior socegado. Áquella hora todos os sinos de Vizeu estavam dobrando
a finados por alma de Balthazar.
Ao pé d'elle, disse o criado que estava uma formosa rapariga da aldeia,
triste e coberta de lagrimas. Apontando-a ao criado que a observava,
disse Simão:--A minha família é esta.
No dia seguinte, ao romper da manhã, partimos para Villa Real. A mãe
chorava sempre; o pae, encolerisado por isso, sahiu da liteira em que
vinha com ella, fez que eu passasse para o seu logar, e fez toda a
jornada na minha cavalgadura.
Logo que chegamos a Villa Real, eram tão frequentes as desordens em
casa, á conta do Simão, que meu pae abandonou a familia, e foi sósinho
para a quinta de Montezellos. A mãe quiz tambem abandonar-nos, e ir para
os primos de Lisboa, a fim de solicitar o livramento do mano. Mas o pae,
que fizera uma espantosa mudança de genio, quando tal soube, ameaçou
minha mãe de a obrigar judicialmente a não sahir da casa de seu marido e
filhas.
Escrevia a mãe a Simão, e não recebia resposta. Pensava ella que o filho
não respondia: annos depois vimos entre os papeis de meu pae todas as
cartas que ella escrevêra. Ja se vê que o pae as fazia tirar no correio.
Uma senhora de Vizeu escreveu á mãe, louvando-a pelo muito amor e
caridade com que ella acudia ás necessidades de seu infeliz filho. Esta
carta foi-lhe entregue por um almocreve, senão teria o destino das
outras. Espantou-se minha mãe do conceito em que a tinha a sua amiga, e
confessou lhe que não o tinha soccorrido, porque o filho rejeitára o
pouco que ella quizera fazer em seu bem. A isto respondeu a senhora de
Vizeu que uma rapariga, filha d'um ferrador, estava vivendo nas
visinhanças da cadêa, e cuidava do prêso com abundancia e limpeza, e a
todos dizia que ali estava por ordem e á custa da senhora D. Rita
Preciosa. Accrescentava a amiga de minha mãe, que algumas vezes mandára
chamar a bella moça e lhe quizera dar alguns cosinhados mais exquisitos
para Simão, os quaes ella rejeitava, dizendo que o senhor Simão não
aceitava nada.
De tempos a tempos recebiamos estas novas, sempre tristes, porque, na
ausencia de meu pae, conspiraram, como era de esperar, quasi todas as
pessoas distinctas de Vizeu contra o meu desgraçado irmão.
A mãe escrevia aos seus parentes da capital, implorando graça regia para
o filho; mas aquellas cartas não sahiam do correio, e iam dar todas á
mão de meu pae.
E que fazia este, entretanto, na quinta, sem familia, sem gloria, nem
recompensa alguma a tantas faltas? Rodeado de jornaleiros, cultivava
aquelle grande montado, onde ainda hoje por entre os tojos e urzes que
voltaram com o abandono, se podem vêr reliquias das cêpas plantadas por
elle. A mãe escrevia-lhe lastimando o filho; meu pae apenas respondia
que a justiça não era uma brincadeira, e que na antiguidade os proprios
paes condemnavam os filhos criminosos.
Teve minha mãe a affoiteza de se lhe apresentar um dia, pedindo licença
para ir a Vizeu. Meu inexoravel pae negou-lh'a, e invectivou-a
furiosamente.
Passados sete mezes, soubemos que Simão tinha sido condemnado a morrer
na forca, levantada no local onde fizera a morte. Fecharam-se as
janellas por oito dias; vestimos todas de lucto, e minha mãe cahiu
doente.
Quando se isto soube em Villa Real, todas as pessoas illustres da terra
foram a Montezellos, a fim de obrigarem brandamente o pae a empregar o
seu valimento na salvação do filho condemnado. De Lisboa vieram alguns
parentes protestar contra a infamia que tamanha ignominia faria recahir
sobre a familia. Meu pae a todos respondia com estas palavras: «A forca
não foi inventada somente para os que não sabem o nome do seu avô. A
ignominia das familias são as más acções. A justiça não infama senão
aquelle que castiga.»
Tinhamos nós um tio-avô muito velho e venerando, chamado Antonio da
Veiga. Foi este quem fez o milagre, e foi assim. Apresentou-se a meu pae
e disse-lhe: Guardou-me Deus a vida até aos oitenta e tres annos.
Poderei viver mais dous ou tres? Isto nem já é vida; mas foi-o, e
honrada, e sem mancha até agora, e já agora ha de assim acabar; meus
olhos não hão de vêr a deshonra de sua familia. Domingos Botelho, ou tu
me promettes aqui de salvar teu filho da forca, ou eu na tua presença me
mato.--E dizendo isto, apontava ao pescoço uma navalha de barba. Meu pae
teve-lhe mão do braço, e disse que Simão não seria enforcado.
No dia seguinte, foi meu pae para o Porto, onde tinha muitos amigos na
Relação, e de lá para Lisboa[4].
Em principio de Março de 1805 soube minha mãe com grande prazer que
Simão fôra removido para as cadêas da Relação do Porto, vencendo os
grandes obstaculos que oppozera a essa mudança dos queixosos, que eram
Thadeu de Albuquerque, e as irmãs do morto.
Depois......»
Suspendemos aqui o extracto da carta, para não anticiparmos a narrativa
de successos, que importa, em respeito á arte, atar no fio cortado.
Simão Botelho vira imperturbavel chegar o dia do julgamento. Sentou-se
no banco dos homicidas sem patrono, nem testemunhas de defeza. Ás
perguntas respondeu com o mesmo animo frio d'aquellas respostas ao
interrogatorio do juiz. Obrigado a explicar a causa do crime, deu-a com
toda a lealdade sem articular o nome de Thereza Clementina de
Albuquerque. Quando o advogado da accusação proferiu aquelle nome, Simão
Botelho ergueu-se de golpe, e exclamou:
--Que vem aqui fazer o nome de uma senhora a este antro de infamia e
sangue? Que miseravel accusador está ahi, que não sabe com a confissão
do réo provar a necessidade do carrasco sem enlamear a reputação d'uma
mulher? A minha accusação está feita: eu a fiz: agora a lei que falle, e
cale-se o villão que não sabe accusar sem infamar.
O juiz impôz-lhe silencio. Simão sentou-se, murmurando:
--Miseraveis todos!
Ouviu o réo a sentença de morte natural para sempre na forca arvorada no
local do delicto. E ao mesmo tempo sahiram d'entre a multidão uns gritos
dilacerantes. Simão voltou a face para as turbas, e disse:
--Ides ter um bello espectaculo, senhores! A forca é a unica festa do
povo! Levai d'ahi essa pobre mulher que chora: essa é a creatura unica
para quem o meu supplicio não será um passatempo.
Marianna foi transportada em braços á sua casinha, na visinhança da
cadêa. Os robustos braços que a levaram eram os de seu pae.
Simão Botelho, quando, em toda a agilidade e força dos dezoito annos, ia
do tribunal ao carcere, ouviu algumas vozes que se alternavam d'este
modo:
--Quando vai elle a padecer?
--É bem feito! vai pagar pelos innocentes que o pae mandou enforcar.
--Queria apanhar a morgada á força de balas!
--Não que estes fidalgos cuidam que não é mais senão matar!...
--Matasse elle um pobre, e tu verias como elle estava em casa!
--Tambem é verdade!
--E como elle vai de cara no ar!
--Deixa ir, que não tarda quem lh'a faça cahir ao chão!...
--Dizem que o carrasco já vem pelo caminho.
--Já chegou de noite, e trazia dous cutélos n'uma coifa.
--Tu viste-o?
--Não; mas disse a minha comadre que lh'o dissera a visinha do cunhado
da irmã, e que o carrasco está escondido n'uma enxovia.
--Tu has de levar os teus pequenos a vêr o padecente?
--Podéra não! Estes exemplos não se devem perder.
--Eu cá de mim já vi enforcar tres, que me lembre, todos por matadores.
--Por isso tu ha dois annos não atiraste com a vida do Amaro Lampreia a
casa do diabo!...
--Assim foi; mas, se eu o não matasse, matava-me elle.
--Então de que voga o exemplo?!
--Eu sei cá de que voga? O frei Anselmo dos franciscanos é que préga aos
paes que levem os filhos a vêrem os enforcados.
--Isso ha de ser para o não esfolarem a elle, quando elle nos esfola com
os peditorios.
Tão desassombrado ia o espirito de Simão, que algumas vezes lhe esvoaçou
nos labios ura sorriso, desafiado pela philosophia do povo, ácerca da
forca.
Recolhido ao seu quarto, foi intimado para appellar dentro do prazo
legal. Respondeu que não appellava, que estava contente da sua sorte, e
de boas avenças com a justiça.
Perguntou por Marianna, e o carcereiro lhe disse que a mandava chamar.
Veio João da Cruz, e a chorar se lastimou de perder a filha, porque a
via delirante a fallar em forca, e a pedir que a matassem primeiro.
Agudissima foi então a dôr do academico ao comprehender, como se
instantaneamente lhe fulgurasse a verdade, que Marianna o amava até
morrer. Por momentos se lhe esvaiu do coração a imagem de Thereza, se é
possivel assim pensal-o. Vêl-a-ia por ventura como um anjo redemido em
serena contemplação do seu creador; e veria Marianna como o symbolo da
tortura, morrendo a pedaços, sem instantes de amor remunerado que lhe
dessem a gloria do martyrio. Uma, morrendo amada; outra, agonisando, sem
ter ouvido a palavra «amor» dos labios que escassamente balbuciavam
frias palavras de gratidão.
E chorou então aquelle homem de ferro. Chorou lagrimas que valiam bem as
amarguras de Marianna.
--Cuide de sua filha, senhor Cruz!--disse Simão com fervente supplica ao
ferrador.--Deixe-me a mim, que estou vigoroso e bom. Vá consolar essa
creatura, que nasceu debaixo da minha má estrella. Tire-a de Vizeu:
leve-a para sua casa. Salve-a, para que n'este mundo fiquem duas irmãs
que me chorem. Os favores que me tem feito, já agora dispensa-os a
brevidade da minha vida. D'aqui a dias mandam-me recolher ao oratorio:
bom será que sua filha ignore.
De volta, João da Cruz achou a filha prostrada no pavimento, ferida no
rosto, chorando e rindo, demente em summa. Levou-a amarrada para sua
casa, e deixou a cargo d'outra pessoa a sustentação do condemnado.
Terribilissimas foram então as horas solitarias do infeliz. Até áquelle
dia, Marianna, bem quista do carcereiro e protegida pela amiga de D.
Rita Preciosa, tinha franca entrada no carcere a toda a hora do dia, e
raras horas deixava sósinho o prêso. Costurava, em quanto elle escrevia,
ou cuidava do amanho e limpeza do quarto. Se Simão estava no leito
doente ou prostrado, Marianna, que tivera alguns principios de escripta,
sentava-se á banca, e escrevia cem vezes o nome _Simão_, que muitas
vezes as lagrimas diliam. E isto assim, durante sete mezes, sem nunca
proferir nem ouvir a palavra amor. Isto assim, depois das vigilias
nocturnas, ora em preces, ora em trabalho, ora no caminho de sua casa,
onde ia visitar o pae a deshoras.
Nunca mais o prêso, na perspectiva da forca, viu entrar aquella doce
creatura o limiar da ferrada porta, que lhe graduava o ar medido e
calculado para que as honras da asphyxia as gozasse o cordel do
patibulo. Nunca mais!
E, quando elle avocava a imagem de Thereza, um capricho dos olhos
quebrantados lhe affigurava a visão de Marianna ao par da outra. E
lagrimosas via as duas. Saltava então do leito, fincava os dedos nos
espêssos ferros da janella, e pensava em partir o craneo contra as
grades.
Não o sostinha a esperança na terra nem no ceu. Raio de luz divina
jámais penetrou no seu ergastulo. O anjo da piedade incarnára n'aquella
creatura celestial, que enlouquecêra, ou voltara para o ceu com o
espirito d'ella. O que o salvava do suicidio não era, pois, esperança em
Deus, nem nos homens: era este pensamento: «A final, _covarde_! Que
bravura é morrer quando não ha esperança de vida!? A forca é um
triumpho, quando se encontra ao cabo do caminho da honra!»


III.

E Thereza?

Perguntam a tempo, minhas senhoras, e não me hei de queixar se me
arguirem de a ter esquecido e sacrificado a incidentes de menos porte.
Esquecido, não. Muito ha que me reluz e voeja, alada como o ideal
cherubim dos santos, n'esta minha quasi escuridade[5], aquella ave do
ceu, como a pedir-me que lhe cubra de flores o rastilho de sangue que
ella deixou na terra. Mais lagrimas que sangue deixaste, ó filha da
amargura! Flores são tuas lagrimas, e do ceu me diz se os perfumes
d'ellas não valem mais aos pés do teu Deus que as preces de muita
devota, que morre canonisada, e cujo cheiro de santidade não passa do
olfacto hypocrita ou estupido dos mortaes.
Thereza Clementina bem a viram transportada da escadaria do templo, onde
cabira, á liteira que a conduziu ao Porto. Recobrando o alento, viu
defronte de si uma criada, que lhe dizia banaes e frias expressões de
allivio. Se alguma criada de seu pae lhe era amiga, de certo não
aquella, acintemente escolhida pelo velho. Nem ao menos a confiança para
a expansão em gritos restava á affligida menina.
Perguntava-se a si mesma Thereza se aquella horrorosa situação, seria um
sonho! Sentia-se de novo fallecer de forças, e voltava á vida, sacudida
pela consciencia da sua desgraça. Condoeu-se a criada, e incitou-a a
respirar, chorando com ella, e dizendo-lhe:
--Póde fallar, menina, que ninguem nos segue.
--Ninguem?!
--As suas primas ficaram: apenas vem os dois lacaios.
--E meu pae não?
--Não, fidalga... Póde chorar e fallar á sua vontade.
--E eu vou para o Porto?
--Vamos, sim, minha senhora.
--E tu viste tudo como foi, Constança?
--Desgraçadamente vi....
--Como foi? conta-me tudo.
--A menina bem sabe que seu primo morreu.
--Morreu?! Vi-o cahir quasi aos meus pés; mas....
--Morreu logo, e depois quizeram os criados, á voz de seu pae, prender o
senhor Simão; mas elle com outra pistola....
--E fugiu?--atalhou Thereza com vehemencia e alegria.
--A final foi elle que se deu á prisão.
--Está prêso?!
E suffocada pelos soluços, com o rosto no lenço, não ouvia as palavras
confortadoras de Constança.
Serenado algum tanto o violento accesso de gemidos e choro, Thereza
suggeriu á criada o louco plano de a deixar fugir da primeira estalagem
onde pousassem, para ella ir a Vizeu dar o ultimo adeus a Simão.
A criada a custo a despersuadiu do intento, pintando-lhe os novos
perigos que ia accumular á desgraça do seu amante, e animando-a com a
esperança de livrar-se Simão do crime, com a influencia do pae, apesar
da perseguição do fidalgo.
Calaram lentamente estas razões no espirito de Thereza, apesar dos
estorvos do coração.
Chorosa, doente, a revezes desfallecida, foi Thereza vencendo a
distancia que a separava de Monchique, onde chegou ao quinto dia de
jornada.
A prelada já estava sabedora dos successos, por emissarios que se
adiantaram ao moroso caminhar da liteira.
Foi Thereza recebida com brandura por sua tia, posto que as
recommendações de Thadeu de Albuquerque eram clausura rigorosa, e
absoluta privação de meios de escrever a quem quer que fosse.
Ouviu a prelada da bôca de sua sobrinha a fiel historia dos
acontecimentos, e mostrou-lhe uma a uma as cartas de Simão Botelho.
Choraram abraçadas; mas a prelada, enxugadas as lagrimas de mulher ao
fogo da austeridade religiosa, fallou e aconselhou como freira, e freira
que ciliciava o corpo com as rozetas, e o coração com as privações
tormentosas de quarenta annos.
Thereza carecia de forças para a rebellião. Deixou a sua tia a santa
vaidade de exorcismar o demonio das paixões, e deu um sorriso ao anjo da
morte, que, de permeio ao seu amor e á esperança, lhe interpunha a aza
negra, que tão de luz refulgente rebrilha ás vezes em corações
infelizes.
Quiz Thereza escrever.
--A quem, minha filha?--perguntou a prelada.
Não respondeu Thereza.
--Escrever-lhe para que?--tornou a religiosa--Cuidas tu, menina, que as
tuas cartas lhe chegam á mão? Que vaes tu fazer senão redobrar a ira de
teu pae contra ti e contra o infeliz prêso! Se o amas, como creio,
apesar de tudo, cuida em salval-o. Se não ouves a minha razão, finge-te
esquecida. Se pódes violentar a tua dôr, dissimula, faz muito por que a
teu pae chegue a noticia de que lhe serás obediente em tudo, se elle
tiver piedade do teu pobre amigo.
Não recalcitrou Thereza. Deu outro sorriso ao anjo da morte, e pediu-lhe
que a envolvesse a ella, e ao seu amor, e á sua esperança, de todo, na
negrura de suas azas.
De mez a mez recebia a abbadessa de Monchique uma carta de seu primo.
Eram estas cartas um respiradouro da vingança. Em todas dizia o velho
que o assassino iria ao patibulo irremediavelmente. A sobrinha não via
as cartas; mas reparava nas lagrimas da compassiva freira.
A debil compleição de Thereza deprecia acceleradamente. A sciencia
condemnou-a a morte breve. D'isto foi informado Thadeu de Albuquerque, e
respondeu: «Que a não desejava morta; mas, se Deus a levasse, morreria
mais tranquillo, e com a sua honra sem mancha.» Era assim immaculada a
honra do fidalgo de Vizeu!... a HONRA, que dizem proceder em linha recta
da virtude de Socrates, da virtude de Jesus Christo, e da virtude de
milhões de martyres, que se deram ás garras das feras, quando predicavam
a caridade e o perdão aos homens!
Quantas caricias inventou a sympathia e a piedade, todos, por ministerio
das religiosas exemplares de Monchique, aporfiaram em refrigerar o
ardor, que consumia rapidamente a reclusa. Inutil tudo. Thereza
reconhecia com lagrimas a compaixão, e ao mesmo tempo alegrava-se,
tirando das caricias a certeza de que os médicos a julgavam incuravel.
Alguma freira inadvertida lhe disse um dia que uma sua amiga do convento
dos Remedios de Lamego lhe dissera que Simão tinha sido condemnado á
morte.
Thereza estremeceu e murmurou, sem forças já para a exclamação:
--E eu vivo ainda!
Depois orou, e chorou; mas os habitos da sua vida em paroxismos
continuaram inalteraveis.
Perguntou á senhora, que lhe dera a noticia, se a sua amiga do convento
dos Remedios lhe faria a esmola de fazer chegar ás mãos de Simão uma
carta. Promptificou-se a freira, depois que ouviu o parecer da prelada.
Entendeu esta religiosa que o derradeiro colloquio entre dous moribundos
não podia damnifical-os na vida temporal nem na vida eterna.
Esta é a carta, que leu Simão, quinze dias depois do seu julgamento:
«Simão, meu esposo. Sei tudo... Está comnosco a morte. Olha que te
escrevo sem lagrimas. A minha agonia começou ha sete mezes. Deus é bom,
que me poupou ao crime. Ouvi a noticia da tua proxima morte, e então
soube por que estou morrendo hora a hora. Aqui está o nosso fim,
Simão!.. Olha as nossas esperanças! Quando tu me dizias os teus sonhos
de felicidade, e eu te dizia os meus!... Que mal fariam a Deus os nossos
innocentes desejos!... Porque não merecemos nós o que tanta gente
tem!... Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crêl-o! A eternidade
apresenta-se-me tenebrosa, porque a esperança era a luz, que me guiava
de ti para a fé. Mas não póde findar assim o nosso destino. Vê se podes
segurar o ultimo fio da tua vida a uma esperança qualquer. Ver-nos-hemos
n'um outro mundo, Simão? Terei eu merecido a Deus contemplar-te? Eu
rezo, supplíco; mas desfalleço na fé, quando me lembram as ultimas
agonias do teu martyrio. As minhas são suaves, quasi que as não sinto.
Não deve custar a morte a quem tiver o coração tranquillo. O peor é a
saudade, saudade d'aquellas esperanças que tu achavas no meu coração
adivinhando as tuas. Não importa, se nada ha além d'esta vida. Ao menos,
morrer é esquecer. Se tu podesses viver agora, de que te serviria? Eu
tambem estou condemnada, e sem remedio. Segue-me, Simão! não tenhas
saudades da vida, não tenhas, ainda que a razão te diga que podias ser
feliz se me não tivesses encontrado no caminho por onde te levei á
morte... E que morte, meu Deus!... Aceita-a! não te arrependas. Se houve
crime, a justiça de Deus te perdoará pelas angustias que tens de soffrer
no carcere... e nos ultimos dias, e na presença da...»
Thereza ia escrever uma palavra, quando a penna lhe cahiu da mão, e uma
convulsão lhe vibrou todo o corpo por largo espaço. Não escreveu a
palavra; mas a ideia de _forca_ parou-lhe a vida. A freira entrou na
cella a pedir-lhe a carta, porque o correio ia partir. Thereza,
indicando-lh'a, disse:
--Leia, se quizer, e feche-a, por caridade, que eu não posso.
Nos tres dias seguintes Thereza não sahiu do leito. A cada hora, as
religiosas assistentes esperavam que ella fechasse os olhos.
--Custa muito morrer!--dizia algumas vezes a enferma.
Não faltavam piedosos discursos a divertirem-lhe o espírito do mundo.
Thereza ouvia-os, e dizia com ancia:
--Mas a esperança do ceu, sem elle!... que é o ceu, meu Deus?
E o apostolico capellão do mosteiro não sabia dizer se os bens do ceu
tinham commum com os do mundo as delicias que falsamente na terra se
chamam assim.
Aquellas subtilezas espirituaes, que vem com algumas especies de tisica,
assim á maneira dos ultimos lampejos da vital flamma, tinha-as a
enferma, quando acontecia fallarem-lhe as religiosas na bemaventurança.
Ás vezes, se o capellão, convidado pela lucidez de Thereza, entrava os
dominios da philosophia, tratando como problema a immortalidade da alma,
a inculta senhora argumentava em breves termos, mas com razões tão
claras a favor da união eterna das almas, já d'este mundo esposas, que o
padre ficava em duvida se seria heretico contestar uma clausula não
inscripta em algum dos quatro evangelhos.
Maravilhava-se já a medicina da pertinacia d'aquella vida. Tinha a
abbadessa escripto a seu primo Thadeu, apressurando-o a ir vêr o anjo ao
despedir-se da terra. O velho, tocado de piedade, e por ventura de amor
paternal, deliberou tirar do convento a filha na esperança de salval-a
ainda. Uma forte razão accrescia áquella: era a mudança do condemnado
para os carceres do Porto. Deu-se pressa, pois, o fidalgo, e chegou ao
Porto a tempo que a religiosa, amiga da outra de Lamego, entregava á
doente esta carta de Simão:
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