A Neta do Arcediago - 11

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--De Bacellar, justamente.
--Isso é um miseravel a quem puni com um chicote nos Paulistas.
--Não sei se é um miseravel que puniste com um chicote; mas de certo não
é calumniador. Todas as informações confirmam as d'elle. O que será
feito d'uma menina que fugiu das Commendadeiras, e abandonaste no
primeiro mez, trocando-a pelos amores da celebre Liberata?
--Não fallemos n'isso... Rapaziadas!... Talvez tu não creias que a
mulher que me ha de fazer feliz é justamente a que fugiu das
Commendadeiras?
--Vejo que é grata aos teus beneficios... Deve morrer de saudades por
ti... Estará ella anciosa da tua chegada como Marianna?
--Estás impertinente, Proença!... Que diabo lucras tu em apoquentar-me?!
Marianna morreu; não posso dar-lhe vida; se podésse, dava-lh'a... Que
mais queres?
--Nada, Luiz... Que hei de eu querer? É que não acho natural a tua
felicidade proveniente de uma mulher que perdeste.
--E, se eu te disser que essa mulher me deu obra de quarenta mil
cruzados, depois que a abandonei?
--Se é verdade o que dizes, espanta-me que o digas sem cahires n'esse
chão fulminado de vergonha!
--Vergonha... de que?
--Ha em ti um defeito de organisação, Luiz!... Tu não és o homem moral.
Falta-te a consciencia, o senso-intimo do bem, o caracter da
sociabilidade. Não te posso responsabilisar pelos teus crimes. O tigre
tem a ferocidade nativa. Tu és uma aberração, Cunha. Digo-te, com as
lagrimas nos olhos, que estás perdido, perdido para sempre... Receio
muito que encontres um cadafalso no teu caminho.
--Estás funebre! Que diabo de prophecia! O meu furor todo é
desmentil-a... Hei de rehabilitar-me! Desafio todos os demonios para que
me combatam.


XVI.
TENHO FOME! ESTOU HA TRES DIAS SEM PÃO!

Em uma tarde de Agosto de 1842, Assucena passeava sósinha entre os
renques de loureiros e amoreiras da sua quinta do Lumiar. Abria e
fechava com apparente distracção um livro, e, se lia, poucas linhas a
fatigavam.
Veste ainda de lucto pelos seus bemfeitores, ha tres annos mortos. Sobre
o lenço de gorgorão que lhe cobre o pescoço, traz pendente um collar de
contas de azeviche com uma pequena cruz de pau preto, embutida de
lavores de madre-perola. Este adorno está em harmonia com o livro em que
lê, e profundamente medita: é o thesouro de Kempis, a Imitação de Christo.
Sentára-se, lendo mentalmente estas linhas:
«Crê-te indigno da consolação divina; mas sim merecedor de muitas
tribulações. Quanto mais se compunge o homem, mais amarga lhe é a
sociedade. O bom não depara ahi senão incentivo para lagrimas. Ou pense
em si ou nos outros, reconhece que sem amarguras ninguem vive aqui. E
tanto mais angustiado se vê, mais dos outros se compadece. As compunções
intimas, e a nutrição das dôres merecidas, são filhas dos nossos vicios
e peccados; deslumbrado por elles, não temos vista para contemplar o
ceo. Se mais vezes pensares na morte, que na vida, fervorosa será a tua
emenda. Se scismares nas penas do inferno e do purgatorio, e do coração
as temeres, ser-te-hão leves os trabalhos da vida, e não tremerás de
susto.» Fechára o livro, erguêra para o ceo os olhos lacrimosos, e
murmurára:
--E serei eu grande peccadora, meu Deus? Não terei eu seguido a vossa
santa lei? Terei deixado cahir a minha cruz, seguindo-vos?
Parára uma carruagem.
--É minha mãe!--disse alvoroçada Assucena, sahindo-lhe ao encontro.
Rosa Guilhermina vinha triste.
--Estranho hoje a sua physionomia, minha querida mãe! Que é? teve algum
desgosto com o padrasto?
--Não, filha... Como estás?
--Bem vê que estou boa.
--Com lagrimas nos olhos...
--Foi de lêr o meu querido livro... Faz-me sempre este bem.
--Que fizeste hontem, filha?
--O que faço todos os dias. Assisti ás tres missas na capella; dei ao
meio dia o jantar aos pobres; de tarde rezei a via-sacra; depois, passei
um bocadinho aqui com o padre Madureira; tomamos chá á noite; rezei a
corôa de Nossa Senhora, e deitei-me. Hoje fiz o mesmo; esperava minha
mãe, e o padre...
--Minha filha, eu entendo que és muito excessiva nas tuas devoções.
Padre Madureira já me disse que te fazia mal tanta religião. Tu queres
comprehender o incomprehensivel, e prejudicas o teu espirito... e a tua
saude.
--Não, mãe. Eu não acho nada incomprehensivel na religião de Jesus
Christo. Leio muitos livros mysticos, porque não tenho outro recreio,
nem o quero; rezo muito, porque não devo ser ingrata aos beneficios que
Deus me faz, e peço á sua divina vontade continue a fazer-m'os. Com isto
não sou pesada a ninguem...
--Mas tudo que é de mais...
--Servir a Deus é sempre de menos, minha mãe.
--Mas ha cousas que denunciam fraqueza de razão.
--Em mim?
--Sim. Sei que vaes de noite acompanhar o viatico aos enfermos.
--E será isso fraqueza de razão?
--É uma demasia de virtude que não fica bem a uma senhora de vinte e
dois annos.
--Porque?... Todos me tratam com tanto respeito...
--Mas... não fazes bem: póde-se servir a Deus com suavidade.
--Isto não me custa; mas, se a mãe não quer, não tornarei.
--E que invenção é essa de trazer as contas por fóra do lenço?
--Pensei que não importava trazêl-as assim, ou de outro modo.
--De certo, não importa; mas poderá alguem chamar-te visioneira.
--Alguem! Eu não conheço ninguem. O padre Madureira não me diz nada; a
mãe de certo se não ri de mim; os outros, ainda que me vissem, não me
envergonhavam com a sua zombaria... A mãe não acaba de crêr que me não
importa nada o mundo?
--Nem queres que te fallem em cousas do mundo?
--Se me affligem, não... Queria dizer-me alguma cousa?... Vejo-a triste,
e quer desabafar comigo... Diga o que tem...
--Uma afflicção que tu não imaginas... e não devo dizer-t'a...
--Se não deve dizer-m'a, terrivel cousa é! Então, não posso eu
consolál-a...
--Se eu soubesse que te não affligias...
--Isso não prometto, mãe; mas, ainda que me afflija, quero soffrer comsigo.
--E se fôr cousa que tenha mais relação comtigo de que comigo?
--Se tiver remedio, remedeia-se com o auxilio de Deus; se não tiver,
paciencia. O Senhor ha de dar-me forças e resignação... Mas que póde
ser? Alguma calumnia?
--Ninguem ousa manchar a tua reputação, minha filha.
--A minha reputação!... Ai! minha querida mãe, se soubesse o mal que me
faz quando pronuncia essa palavra...
--Pois porque não hei de pronunciál-a?
--Pelo amor de Deus, calemo-nos... Diga o que é...
--Tens animo, filha?
--Jesus que me aterra!
--Sabes que Luiz da Cunha está em Lisboa?
--Se o sei?... quem m'o havia dizer!...
--Tu descóras, filha.
--Deus dá-me animo... Não é nada, minha mãe... É isso só que me queria
dizer?... Deixál-o estar... Não tenho nada com elle... É feliz?...
--Muito infeliz... Vem pobre...
--Eu não pergunto se vem rico... Será virtuoso? terá temor de Deus?
--Vem cheio de crimes. Dizem-se em Lisboa cousas horriveis d'este homem.
Casou muito rico...
--Isso já eu sabia, que m'o disse o padre Madureira.
--Mas abandonou a mulher...
--Coitadinha!...
--E morreu atormentada.
--Compadeceu-se d'ella o Altissimo... Foi feliz... Rezemos-lhe pela
alma, minha mãe.
Assucena ergueu as mãos, murmurando o _padre-nosso_. A viscondessa
reparou na exaltação religiosa de sua filha, e capacitou-se das
suspeitas do padre Madureira. Estas exaltações eram uma ameaça de algum
grande desmancho intellectual.
Assucena obedecia ás mais extravagantes preoccupações religiosas:
abraçava todos os prejuizos populares: desauthorisava a razão, calando-a
com fanaticos receios. Déra-se na sociedade, como incentivo de risos, se
fosse possivel sustentar a vehemencia das suas crenças em publico.
Depois da oração, Assucena pediu silencio a sua mãe, que se retirou
maravilhada da impassibilidade da filha; mas segura de que as astucias
de Luiz da Cunha não poderiam nada contra ella. E era essa a sua afflicção.
Padre Madureira viera á hora do chá. A neta do arcediago não dissera uma
palavra do dialogo com a viscondessa. Porém o padre, com grandes
rodeios, ia dar-lhe, dizia elle, uma espantosa novidade. Assucena
atalhou, dizendo:
--Já sei. Não fallemos em tal cousa.
--Já sabe!! mas não sabe tudo, minha senhora.
--Sei tudo. Vem desgraçado...
--E tão desgraçado que lhe pede uma esmola.
--A mim?!... Santo Deus! Como sabe elle que eu...
--Perdão, senhora D. Assucena. Attenda-me. Eu tive uma imprudencia; mas
o meu fim era justo e nobre. Quiz punir Luiz da Cunha para que a dôr da
culpa lhe despertasse no coração sentimentos de honra. Fiz que elle
soubesse no Brazil, por uma carta minha, quem o salvára da ignominia e
do degredo, rehabilitando-o para o futuro com os meios necessarios para
experimentar uma nova estrada.
--Deus lhe perdôe... senhor padre Madureira... o mal que fez! Eu
perdôo-lhe, e Deus Nosso Senhor me receba estas lagrimas em desconto dos
meus peccados.
--Luiz da Cunha--proseguiu o padre--depois de mil revezes, apparece em
Portugal, e encontra-se comigo, quando eu sahia do côro. Pergunta-me se
v. exc.ª ainda vive. Vacillo na resposta. Quero até fingir que não
conheço tal homem. Insta comigo para que lhe responda. Digo-lhe que
Assucena vive; mas não para o mundo. «Quero vêl-a--exclama elle--quero
pedir-lhe perdão!» É impossivel--disse-lhe eu.
--Sim, sim, é impossivel!...--atalhou Assucena sobresaltada.
--Quer lançar-se-me aos pés... eu tento fugir-lhe... segura-me pela mão,
e exclama com desespêro: «tenho fome! estou ha tres dias sem pão! dê-me
uma esmola!»
--Oh meu Deus!--bradou Assucena, escondendo o rosto nas mãos.
--Eram horriveis as visagens d'aquelle infeliz!--continuou o
padre.--Disse-lhe que viesse a minha casa; dei-lhe de comer... Sahi,
deixando-o á mesa. Fui dar ordem n'uma hospedaria para que o
sustentassem, e mandei-o para lá... Que é isto?--interrompeu-se
impetuosamente Madureira, tomando Assucena nos braços--Minha filha...
Estava desmaiada.
Os haveres da neta do arcediago estavam reduzidos á quinta do Lumiar.
Extremas economias permittiam-lhe pagar diariamente duas missas por alma
dos seus bemfeitores, dar jantar a vinte pobres, e sustentar-se com
muito pouco.
Assucena não aceitára nunca uma mealha de casa de seu padrasto,
remira-se com o seu pouco, embora sua mãe esgotasse todos os
subterfugios para melhorar-lhe as commodidades. Que poderia ella fazer
em bem de Luiz da Cunha?
Padre Madureira tinha apenas o seu mesquinho ordenado do cabido, como
beneficiado simples. Tambem não podia.
--Que faremos?--perguntou ella ao padre.
--Tenho pensado n'um meio; e não vejo outro.
--Qual? foi Deus que lh'o inspirou?
--Arranjarei quem empreste quatrocentos mil reis, com juros, e o
pagamento a prazos, hypothecando esta quinta. Com este dinheiro
alcançarei um emprego para Luiz da Cunha, longe de Lisboa.
--Sim, sim, longe de Lisboa.
--Dir-lhe-hei que é o mais que posso fazer-lhe.
--Sem dizer-lhe que eu concorri para isto...
--Farei a sua vontade. É conveniente que elle o ignore.
Dias depois, era despachado João Maria das Neves escrivão do Juizo
ordinario do concelho de Ribeira de Pena, na Provincia de Traz-os-Montes.
João Maria das Neves equivalia a Luiz da Cunha e Faro. O requerente
nunca subiu as escadas da secretaria. O seu agente foram os quatrocentos
mil reis da neta do arcediago.
Na ante-vespera da sua sahida de Lisboa, Luiz da Cunha quiz saber o que
era feito de Liberata.
Ao escurecer, porque não sahia de dia, foi á rua de S. Bento, e parou
defronte da casa n.º 40. Viu as janellas occupadas por um rancho de
senhoras, e deduziu que Liberata já não morava alli.
Accendeu um cigarro na vela do tendeiro, que morava defronte, e como por
mera curiosidade perguntou quem morava defronte.
--É a familia d'um empregado.
--Aqui ha tres annos morava lá uma mulher...
--Era boa rolha! chamava-se Liberata.
--Justamente... Que é feito d'essa mulher?
--Eu lhe conto o que sei. Depois que aqui á minha porta deram umas
facadas n'um tal Luiz da Cunha que morava no Campo Grande, e que lhe
comia a ella a mesada que certo figurão lhe dava, a mulher metteu-se com
um jogador que a trazia nas pontinhas. Chegou a ter duas seges a
bebeda![1] Vai, se não quando, a mulher adoece, e o tal
jogador nunca mais ahi veio. Esteve de cama onze mezes, vendeu tudo
quanto tinha, os trastes até fui eu que lh'os penhorei por cento e
cincoenta mil reis que me devia do grão para os cavallos, azeite, arroz,
&c. &c. &c.
[1] Respeitemos a fidelidade.
--E morreu?
--Qual morrer! A mulher tem sete fôlegos como os gatos. D'alli foi para
o hospital acabar de se tratar, e não ha muito que me disseram que a
viram no Bairro Alto; mas mora á porta da rua, para não ter o trabalho
de subir e descer as escadas. É no que veio parar a tal matrona das
carruagens.
--Sabe em que sitio ella mora?
--Eu, graças a Deus, não ando por essas casas, mas quem me disse que a
vira foi aquelle barbeiro que mora acolá! Se tem muito empenho em
sabêl-o, isso é facil,
--Faz-me muito favor.
O tendeiro voltou, dizendo que Liberata morava na travessa da Agua da Flôr.
Luiz da Cunha agradeceu cordialmente a indagação, e subiu pela travessa
Nova, mais absorvido que nunca na inconsequente trapalhada das cousas
humanas.
Ao voltar na esquina da rua da Rosa das partilhas viu uma mulher de
chale vermelho, saia branca, lenço atado na cabeça com as pontas em
grande laço para as costas, sahindo d'uma taverna abraçada com um marujo.
Pela voz, de certo era ella, cantarolando um landum que outro marujo
arpejava na guitarra. Acabando a cantiga, o marujo phylarmonico, fazendo
um bordo largo de encontro a Luiz da Cunha, grunhiu:
--Ponha-se á capa, quando não vai a pique, sû paralta!
Luiz da Cunha recuou.
--Canta Liberata... se não queres levar com a banza nos rizes!--tornou o
marujo, perfilando-se com o grupo.
E Liberata cantou outra copla das privilegiadas da travessa da Agua da
Flôr.
Ella e os marujos sentaram-se na escaleira d'uma porta.--Vieram depois
outros marujos e mulheres em saia branca batendo as palmas, e saltando
ás costas dos marinheiros, que as indemnisavam dos carinhos com amaveis
pontapés.
O escrivão do juiz ordinario permaneceu encostado á esquina da rua da
Rosa, até ás dez horas. Os marujos debandaram, e Liberata recolheu-se
sósinha.
Luiz bateu á porta.
--Quem nos honra?--perguntou ella.
--Abre.
--Quem és?
--Abre sem receio.
--Não conheço flamengos. Diz lá o teu nome... Se és o patavina d'hontem,
vai-te com o diabo.
--Abre, Liberata.
--Eu conheço esta voz...--murmurou ella.
Abrindo a porta, recuou, exclamando:
--És tu, Luiz?!
--Em que estado te encontro!
--Que queres? tornei ao que fui... Nada de lamurias. Como tu me
conhecestes, isso é que eu admiro! Pois vês em mim algum signal da
mulher de ha tres annos?!
--Apenas te conheço a voz, e os olhos. Que é isso que tens na cara?
parece que te queimaram com vitriolo?
--Estas nódoas vermelhas?
--Sim.
--Eu sei cá o que isto é? Está bom... não fallemos em mais nada, senão
mêtto uma faca no peito. Eu já fujo de abrir a porta a ociosos que me
vem fallar na minha formosura, e nas minhas carruagens! Acabou... Nem
carruagens, nem formosura. O diabo o deu, o diabo o levou. Tu tambem
estás acabado! Disseram-me que estavas rico, é verdade?
--Não: apenas tenho um bocado de pão para cada dia.
--Não te faças pobre que eu não te peço nada.
--Pois, Liberata, eu venho pagar-te uma divida do pouco que posso, assim
como a contrahi do muito que podias. Depois d'amanhã vou empregado
para a provincia, queres vir comigo?
--Pois tu querias-me lá assim?
--Quero... serei o teu enfermeiro.
--Olha lá o que dizes!
--Não me desdigo.
--Eu tenho este vestido que vês.
--Comprar-te-hei o que fôr da primeira necessidade.
--Pois tu ainda gostas de mim n'este infeliz estado em que me vês?!
--Gosto. Ha uma unica pessoa que se parece comigo n'este momento pela
desgraça. És tu. Quero viver comtigo. Quero vêr se a rehabilitação é
possivel para ambos nós.
--Agora creio que é. Olha, Luiz, toda a minha philosophia desappareceu.
Eu não t'o dizia que sem dinheiro não ha philosophia? Sabes tu que tudo
isto me parece um sonho!... Ha mais d'um anno que me embriago todos os
dias para me esquecer... Hei de contar-te a minha vida... Eu não
esperava vêr-te mais; mas vê tu o que é o presentimento... Ainda não ha
quatro horas que eu dizia:--«Que impressão faria eu n'este estado a Luiz
da Cunha!» O que são as cousas d'esta vida!... Até parece que recuperei
o som da palavra, fallando com o meu amante dos tempos felizes! Ai! quem
me déra ser bella para te agradar ainda! Diz-me cá: esta machina não
terá concerto?
--Veremos.
--Eu era ainda bella se me tirassem da cara estas manchas vermelhas.
Sinto ainda a robustez dos trinta annos; o que me falta é o fogo da
alma... Vê se fazes de mim outra mulher, que eu prometto de fazer a tua
felicidade... Não me vês a chorar? Isto é galante! Cuidei que chorara
pela ultima vez quando entrei, no hospital, pobre, e abandonada do
infame que me reduziu a este estado...
--Não chores, Liberata... Vamos vêr o que é o futuro. Até ámanhã.
--Pois deixas-me?! Vou comtigo já.
--Não. Preciso illudir alguem.
Luiz da Cunha deixara alguns cruzados novos sobre uma banqueta de pinho,
e sahiu.
Liberata não provou somno. As lagrimas incessantes eram-lhe d'um
sabor novo. Nunca ella fôra tão infeliz como n'essa noite. Havia no seu
soffrimento alguma cousa que disputaria á alma do cynico um momento de
compaixão. N'aquella degradação não diremos que as lagrimas regeneram;
mas por isso mesmo que são inuteis, como o orvalho sobre a flôr
arrancada e sêcca, a mulher que as chora, é bem que nos apiedemos
d'ella, mostrando-a como exemplo, mas que a infeliz não veja que é
mostrada com escarneo!


XVII.
AS PRIMEIRAS E ULTIMAS LAGRIMAS DE LUIZ DA CUNHA.

E dez dias depois, João Maria das Neves tomava posse do cartorio
d'escrivão do juizo ordinario no concelho de Ribeira de Pena. É escusado
dizer-vos que Liberata o acompanhára, e, ao decimo dia de convivencia
com Luiz da Cunha, eram visiveis os melhoramentos n'aquella physionomia
macerada. Passado um mez, raiavam-lhe da tez, ainda mosqueada de betas
côr de açafrão, uns longes da descomposta formosura. Luiz tinha soberba
de poder tanto no espirito d'aquella mulher, unica no mundo para elle,
unica pessoa que o não repellira, que se confiára á sua vontade,
entregando-se-lhe sem condições.
O homem abandonado, só, desatado de todos os liames sociaes, revoca as
potencias da sua alma para consubstanciar-se no coração da unica pessoa
que o não abomina. Ha exemplos de affeições ferventes do salteador de
estrada para a mulher que o recebe nos braços; do que aguarda na enxovia
o dia do patibulo, do assassino por officio para a mulher que a chorar
lhe dá esperanças de perdão. O instincto do sangue não adultera o da
sociabilidade. A ancia d'uma affeição recresce, quando o opprobrio vem
de todas as bôcas pedir o exilio do execrado de entre os homens.
Assim se explica o enlace de Luiz com Liberata. Não ha hypocrisia no
afan com que a procura, em todas as horas vagas do trabalho. Succedem-se
os dias sem um vislumbre de fastio. Vem as longas noites do inverno,
sem outra convivencia, encontral-os sentados ao fogão, contando-se
mutuamente lances de duas biographias, que muitas vezes são saudadas com
estrepitosas gargalhadas. Feitos para se encontrarem no mesmo atoleiro,
é necessario que ahi se amem, que ahi se reconheçam, ahi se centralisem
na mesma aspiração, e não tenham de que se envergonhar, um ante o outro,
de infamias passadas.
Reconheceram-se, e amaram-se.
Pois não seria amor a soffreguidão d'aquelles beijos? Não seria amor a
anciedade de Liberata, procurando-o, se lhe tardava vinte minutos mais,
nos paços do concelho? Não seria amor o orgulho com que Luiz da Cunha
fallava de sua esposa aos cavalheiros da terra?
Devia acontecer que Luiz da Cunha ignorasse os mais triviaes rudimentos
dos processos judiciarios. Valêra-se d'um velho amanuense que tomára
sobre si a administração do cartorio. Entretanto, o proprietario não
curava de estudar, e cedia ao regente uma boa parte dos seus proventos,
que eram poucos.
Luiz da Cunha conhecêra um contrabandista de Chaves, que lhe picára o
desejo de tentar fortuna pelo contrabando. Liberata não se oppunha ao
arbitrio do seu amante. As tentativas foram prosperas, e o audacioso
contrabandista aventurára os seus capitaes, e outros contrahidos de
emprestimo em arrojadas emprezas.
--Se a fortuna não encravar a roda--dizia elle a Liberata--em dous
annos, iremos viver em Paris.
E, com effeito, a roda da fortuna girava com a velocidade dos seus
caprichos. O escrivão não curava do officio, e raras vezes pedia contas
ao regente. As suas continuadas excursões tornaram-se suspeitas; mas, no
concelho, ninguem zelava os interesses do fisco, e Luiz da Cunha sortia
das melhores sêdas os arredores por preços modicos, e enviava para o
Porto e Braga valiosas carregações. No fim de dous annos, o
contrabandista celebrava os annos de Liberata com um rico adereço
comprado em Madrid, e adiava a sua sahida de Portugal por mais um anno,
visto que não achava doze contos dinheiro sufficiente para de Paris
metter, em grande, o contrabando em Portugal.
Tentára uma arriscadissima entrada de sêdas, quando os guardas-fiscaes,
logrados sempre, velavam as fronteiras desde Monção a Verim.
Encravou-se a roda da fortuna. As cargas foram tomadas, e o
contrabandista prêso. Luiz da Cunha para remir-se gastou tudo que
possuia. Liberata foi a Chaves com o precioso peculio a salvar o amante.
Choraram, abraçando-se no carcere? Não. A antiga amante do conselheiro
dizia a Luiz, sorrindo:
--Vamos para Paris? Parece-me que fez neste mez seis anos que eu te fui
buscar ao Limoeiro. É fado meu! O pior é não termos um conselheiro, que
nos dê a sege... O mais tudo vai bem. Temos feijões em casa, e muito
amor para prato de meio.
As authoridades queixaram-se ao governo, allegando que o funccionario
publico João Maria das Neves era o primeiro contrabandista. Os jornaes
de Lisboa reproduziram a accusação. Ia ser demittido, quando o ministro
se achou coacto por um dos seus amigos que lhe citou uma historia d'uns
quatrocentos mil reis...
O escrivão continuou funcionando. Vendeu o adereço de Liberata, e tentou
novas aventuras em pequena escala. A sorte sorriu-lhe outra vez, com
quanto as denuncias o rodeassem de perigos. Liberata acompanhava-o
galhardamente nas emprezas. Montava com varonil perfeição. Grudava um
bigode com gracioso arreganho; vestia um casaco de peles: cruzava com a
perna em brunida bota d'agua um bacamarte, e lançava com um piparote
para a nuca o chapéo sevilhano.
--Era esta a mulher que eu devia ter encontrado aos quinze annos!--dizia
o filho de Ricarda.
Em 1845 o escrivão estava remido do preço com que comprára a liberdade
dois anos antes. Resolvêra dar o ultimo assalto á vigilancia dos
guardas. Eram doze cargas de panos d'alto preço, que podiam augmentar
seis mil cruzados ao seu peculio. Deviam entrar por Almeida.
Luiz da Cunha apresentou-se ahi com a corajosa Liberata. As cargas
pisaram algumas milhas de territorio portuguez, quando os guardas a
cavalo, a toda a brida, lhe vinham no alcance. Os almocreves aperraram
os bacamartes, com o contrabandista à frente. Liberata não se afastára
de ao pé do seu amante. Travou-se um vivo tiroteio. Augmentaram os
guardas. As cargas foram tomadas; dous almocreves morreram. Luiz da
Cunha fugiu, e a destemida cavalleira, com a clavina despejada,
esporeava ao lado d'elle.
--Estás salvo--disse ella--mas eu estou ferida.
--Ferida! aonde?
--No peito... e creio que morrerei!
--Não digas tal... Apeia-te.
--Não, que ouço ainda o tropel de cavallos. Quero que te salves... Se eu
cahir, não me levantes, que me não dás vida.
Galoparam alguns minutos. Pararam. Já se não ouvia o ruido dos cavallos
nas extensas veigas de Pinhel.
--Apeemos--disse Luiz.
--Pois sim... Estou quasi morta, Luiz... Desaperta-me este collete... Vês?
--Vejo sangue...
--É no coração que eu sinto a bala. Isto não tem remedio...
--Vamos a Pinhel... Torna a montar, minha filha.
--Não posso, nem me importa morrer aqui ou em Pinhel.
--Isto é atroz!... Não te posso salvar!...
--Salvaste-me, Luiz. Morro contente assim... Agora é que as nossas
contas estão saldadas. Tu tiraste-me da morte da alma, e eu quiz
defender-te da morte do corpo. É um bom fim o meu! As mulheres
virtuosas... raras são as que assim morrem... Se me não encontrasses
perdida de todo, não poderias nada sobre mim... Fogem-me os sentidos,
Luiz... É a vida... Deixa-me expirar bem perto do teu coração... Como é
bom morrer-se com o perfeito juizo para se conhecer a pessoa que se
deixa... com tanta saudade.. Que dôr!... o peor é deixar-te pobre...
e... só... no mundo.
Liberata expirou.
As primeiras e ultimas lagrimas de Luiz da Cunha cahiram sobre as faces
mortas d'essa mulher......
São quatro horas da madrugada.
Bateram á porta do parocho da matriz de Pinhel. O padre vem á janella e
vê um vulto disforme na escuridão.
--Quem é?
--Um passageiro que pede a v. s.ª licença para poder enterrar o
cadaver d'um seu companheiro de jornada, morto de repente.
--Eu não concedo que se enterre ninguem sem ordem da authoridade civil.
Não conheço o senhor, e não sei se se trata de esconder algum crime
debaixo das telhas sagradas. Espere que seja dia para se lavrar auto, e
depois fallaremos.
O compassivo pastor deu-lhe com a janella na cara, e retirou-se instado
por uma voz roufenha de mulher que lhe recommendava carinhosamente que
se não constipasse, que estava suado.
Era saber muito!
Luiz da Cunha pousou o cadaver na parede do adro. Ouviu passos. Eram
jornaleiros que sahiam para o trabalho. Chamou dous com promessa de boa
paga. Mandou-os abrir uma sepultura no adro. Desceu a depositar o
cadaver. Beijou-o na face. Assistiu ao attêrro. Pagou aos operarios, e
montou o cavallo de Liberata, que farejava o sangue de sua dona.
--Ainda me não venceste, demonio!--Hei de vingar-me da sociedade que me
quebrou o ultimo amparo! Hei de vingar-te, Liberata!
Era um como rugido facinoroso esta exclamação.


XVIII.
A LUZ DO AMOR NAS TREVAS DA DEMENCIA.

Desde agosto de 1842, época da apparição de Luiz da Cunha em Lisboa,
Assucena cahiu n'uma tristeza inconsolavel, n'um ancioso desejo de morte
que, continuamente, pedia a Deus, apesar dos seus principios de
resignação, e abandono á vontade divina.
Nem Rosa Guilhermina, nem o padre Madureira podiam nada contra a
misanthropia da neta do arcediago. Receavam-lhe a demencia, porque,
muitas vezes, eram desconnexas as suas ideias, e incompativeis até com a
sua religiosidade. Tentaram sahir com ella, por consentimento do
visconde condoido, a uma distracção em viagem. Assucena recusava-se, e
rejeitava com enfado as opportunas instancias de sua mãe.
Queriam adivinhal-a, e não achavam vereda que os guiasse. Sabiam que a
sua devoção era cada vez mais fervente, e descobriram os cilicios com
que cingia a cintura, e as disciplinas que lhe arrancavam gemidos alta
noite.
As admoestações não aproveitavam nada. Esperavam todos os dias
encontral-a douda, e o que de certo lhe faltava, para que assim a
julgassem, era alguma acção peccaminosa, que desmentisse a rigidez do
seu ascetismo.
Nunca perguntou por Luiz da Cunha, mas pedia sempre á Virgem Mãe que
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