A Neta do Arcediago - 05

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foi apalpando na escuridade, imaginando que era aquelle o bater de Luiz
da Cunha. Abriu com precipitação, e recuou espavorida ao aspecto um
pouco funebre de Perpetua que lançára um chale de cachemira escura sobre
a cabeça, franjada na testa por cabellos brancos. A figura magra,
macillenta e cadaverica do velho, não era menos assustadora, vista ao
clarão da vela que lhe betava de sombras as rugas profundas do rosto.
--Não se assuste, visinha--disse o conego, entrando--nós somos os
moradores do andar de baixo, e, como ouvissemos gemidos cá em cima,
viemos em soccorro, se é que podemos servir de algum bem á pessoa que
nos cortou o coração com os seus gemidos.
--Era talvez mêdo dos trovões...--accrescentou D. Perpetua, dando tambem
um passo para dentro da porta.
--A menina estava ás escuras?--tornou o conego.
--Sim, senhor.
--E não tem criada?--disse a irmã.
--A criada está a dormir.
--Quer a menina vir comnosco para a nossa casa até ser dia?--disse o
conego.
--Vou... se me concedem esse favor--respondeu sem titubear Assucena.
--Pois então, menina--atalhou Perpetua--cubra o meu chaile, ou vá buscar
o seu, que está muito frio na escada.
--Eu não posso ter mais frio...--disse a filha da viscondessa.
--Nem mais febre--tornou o conego, apalpando-lhe as mãos com singular
carinho--Ora venha, venha comnosco. Anda lá com ella adiante, Perpetua,
que eu fecho a porta.
Perpetua assentou Assucena no seu esteirão; embrulhou-a em cobertores; e
deu-lhe uma chavena de café com um golo de genebra, por conselho de seu
irmão. Depois sentou-se a par com ella, que não cessava de tiritar,
Bernabé veio, melhor forrado contra o frio, sentar-se ao pé d'ellas. As
lagrimas de Assucena eram inesgotaveis. Perpetua queria consolar, mas
não conhecia a dôr. O conego, fixando alguns minutos em silencio o
semblante da pobre menina, fez a sua irmã um gesto significativo, tomou
com paternal ternura as mãos abrazadas de Assucena, e perguntou-lhe:
--Minha filha, porque soffre? Abra o seu coração. Se lhe não podérmos
ser uteis, poderemos ao menos conseguir que o seu soffrimento diminua
respirando pelas palavras. Quem sabe se Deus nos approximou? Diga o que
tem: falla com um padre, que é seu pae espiritual.


VII.
PERDIDO SEM REDEMPÇÃO

Quando Luiz da Cunha era conduzido por dous soldados á administração do
bairro, encontrou Liberata n'uma sege, e respondeu com um gesto de
cabeça á rasgada cortezia que ella lhe fizera.
A sege de Liberata retrocedêra, e vinha a passo lento seguindo Luiz da
Cunha. Quando os soldados pararam á porta da auctoridade, e Luiz, sem
reparar na sege, desapparecêra no interior do páteo, Liberata acenou a
um dos soldados, que se chegou á portinhola. Perguntou por que fôra
prêso aquelle sujeito, e o soldado informou-a com a minuciosidade que
podia. Pagou com um cruzado novo o pequeno serviço do informador, e
pediu-lhe que subisse á sala da administração, e dissesse ao ouvido do
prêso que uma pessoa, que elle encontrára, em uma sege, lhe mandava
offerecer não só dinheiro, mas até a influencia dos seus amigos, se com
isso era possivel a sua immediata soltura.
O soldado não conseguira fallar ao prêso; mas soubera de um official de
diligencias, seu conhecido, que o tal sujeito só podia ser solto com
fiança, e não estava presente ninguem que o afiançasse.
Liberata deu ordens promptas ao boleeiro, e a sege, a grande galope,
correu algumas ruas, e parou á porta de um conselheiro, official-maior
d'uma secretaria de estado. S. ex.ª não recolhêra ainda da secretaria. A
protectora de Luiz da Cunha mandou tocar para o Terreiro do Paço, e
fez parar a sua sege a par da do conselheiro. Chamou um correio de
ministro, que passeava debaixo das arcadas, e mandou-o entregar ao
official-maior o seu _porte-monnaie_. O conselheiro veio rapidamente á
portinhola. Trocou algumas palavras com Liberata, entrou na sua sege, e
partiu para a administração do bairro.
Perguntou por Luiz da Cunha; disseram-lhe que fôra remettido ao juiz
criminal. Foi ao juiz criminal, quando o prêso acabava de sahir para o
Limoeiro. Declarou o amante de Liberata que vinha afiançal-o. O juiz
aceitou respeitosamente a fiança, e prometteu mandal-o soltar o mais
depressa que se lavrasse o auto. Sahia, porém, o conselheiro, quando uma
carta de uma notabilidade do Supremo Tribunal recommendava ao juiz que
não aceitasse fiança, paliando quanto podésse a soltura
inconvenientissima de Luiz da Cunha, que ameaçava a existencia do
visconde de Bacellar.
Liberata, com a certeza da soltura, dada pelo amante, foi á cadeia,
procurou Luiz da Cunha que passeava ainda na sala do carcereiro, e
contou-lhe rasgadamente os passos que déra. O preso agradeceu-lh'os com
aviltante submissão, não sentindo a vergonha de ser unicamente protegido
por tal mulher. Sem o recriminar, a amante do conselheiro perguntou-lhe,
sorrindo, se melhorára de fortuna, despedindo-a do seu serviço. Luiz da
Cunha teve a sinceridade de confessar que tinha saudades do tempo em que
vivêra com ella. Liberata disse que tambem as tinha, e deu como prova
não ter sido fiel a nenhum dos seus amantes, depois d'elle, porque não
encontrára rapaz tão perfeito, nem tão despreoccupado das asneiras
sociaes, como Luiz da Cunha.
Recordaram scenas da sua vida de dous annos, dando tempo a que viesse a
ordem de soltura. Passaram duas horas, e, como ella não chegasse,
Liberata impacientou-se, e sahiu, dizendo que, se entretanto a ordem
viesse, e elle quizesse fazer-lhe uma visita, depois da meia noite, a
procurasse na rua de S. Bento, n.º 46.
Luiz prometteu-lhe a suspirada visita, e apertou-lhe com estremecida
meiguice a mão. Em quanto lhe dava a mão direita, Liberata lançava com a
esquerda no chapéo de Luiz o _porte-monnaie_. Sahiu.
Foi d'uma corrida a casa do conselheiro; obrigou-o a sahir, a vencer
todos os obstaculos que redobraram desde que o proprio visconde peitára
o juiz, e, taes elles eram, que só, no dia immediato á tarde, Luiz da
Cunha foi solto, e o conselheiro veio allegar a Liberata trabalhosos
serviços, que ella pagou com um beijo.
Imaginam que Luiz da Cunha, apenas livre, nem tempo tem de procurar uma
sege, e corre á rua do Principe, onde o espera a atormentada Assucena?
Não foi assim. Sahiu placidamente da cadeia. Desceu á primeira estação
de seges no Terreiro do Paço. Montou a que lhe pareceu mais bem servida
de parelha. Foi jantar ao Matta, no caes do Sodré. Subiu pela rua do
Alecrim. Tomou café no Marrare. Passou na rua de S. Bento para vêr a
casa n.º 46; cortejou Liberata que, por dentro das janellas, lhe fitava
um pequeno oculo de theatro. Foi ao Campo Grande saber como seu pae
estava. Entristeceu-se um momento quando lhe disseram que passára peor,
depois que um imprudente lhe dissera que seu filho batêra no visconde de
Bacellar. Não apeou para lhe não irritar os padecimentos. Veio para o
theatro de S. Carlos, e reparou que o encaravam de lado, voltando-lhe as
costas, se elle os encarava de frente. Achou-se sósinho no salão, e
sósinho no banco em que se sentára. Depois da meia noite, despediu o
boleeiro defronte do palacio das côrtes, e seguiu a rua de S. Bento até
á casa n.º 46.
Dos moveis que Luiz da Cunha deixára á sua amante, nem uma cadeira
existia. A primeira sala, forrada de ricos tapetes, opulenta de luxo e
mau gosto não invejava o apparato da garrida decoração das salas d'um
brazileiro de torna-viagem, que vos deslumbra com o seu baazar de
porcellanas, de relogios, de cães e patos de vidro, de conchas
variegadas, de ricas encadernações em marroquim de livros nunca abertos,
de globos de luzente cobre, de coxins amarellos e vermelhos.
A sala de Liberata tinha tudo isto em prodiga profusão. Um americano,
antecessor do conselheiro, e successor do capitão de marinha ingleza,
tinha sido o intelligente coordenador d'aquella miscellanea em que
despendera contos de reis, pequena paga para os carinhos de sua
amante. Diziam que Liberata seria esposa d'esse americano, se o consul
despoticamente o não mandasse prêso a bordo d'uma embarcação que o levou
a seu pae, desfalcado em boa parte da sua fortuna.
O conselheiro, que substituira o americano, sustentava o luxo de
Liberata com uma farta mesada, de que ella tirava para todos os seus
caprichos, podendo montar sege, sua mais querida ambição.
Luiz da Cunha contemplava estupidamente aquella magnificencia, que não
era nada comparando-a á sumptuosidade d'alcova, onde foi recebido, como
era dever que o fosse, o unico homem que a fizera conter-se nos honestos
limites d'uma fiel amante.
--Achas que estou muito rica?--disse Liberata, puxando-lhe com meiguice
uma orelha.
--As apparencias são d'isso...
--Suppunhas que nenhum outro homem saberia dar-me valor?
--Eu bem sabia que te não faltariam adoradores, Liberata. Para que eu me
separasse de ti, foi preciso que eu entrasse n'uma época de demencia,
que me dura ha quatro mezes.
--Que tens tu feito ha quatro mezes?
--Tenho envelhecido quarenta annos. Quiz-me oppôr á natureza, fazendo-me
pessoa de bem, e perdi o tempo. Acabo de conhecer que era mais feliz
quando a minha sociedade eras tu, e os meus cavallos, palavra de honra!
--Com que então _eu e os teus cavallos_! O diacho da mistura não é nada
amavel! Mas conta-me cá... disse-me o conselheiro...
--Qual conselheiro?
--O actual... não sabes quem ficou por teu fiador?
--Pois o conselheiro é o teu amante?
--Excellente creatura... Pois foi elle que me disse que uma enteada do
visconde de Bacellar fugira das commendadeiras para casar comtigo. Já
casaste?
--Não, nem caso.
--Nem casas? então, tenho mais uma companheira...
Luiz sentiu um ligeiro toque de pundonor, ouvindo tamanho ultraje a
Assucena, que n'este momento se lhe afigurou de joelhos, pedindo a
Deus a morte. Esta visão desvaneceu-se como o raio instantaneo de sol em
ceo revolto de nuvens escuras.
--Diz-me cá, Luizinho--continuou Liberata, lançando-lhe o braço direito
sobre o hombro, e brincando-lhe com os anneis do longo cabello--queres
ser outra vez meu?
--É impossivel.
--Porque? Tens lá a tua fidalga das commendadeiras... Já me não lembrava...
--Não é por isso.
--Pois então?
--Não tenho dinheiro... Aquelle manancial das joias de minha mãe
esgotou-se; meu pae está doudo, e não me conhece...
--E é por isso que querias casar com a filha do visconde?
--Adivinhaste; mas o visconde não lhe dá nada, e eu nada tenho que lhe
dar como amante, e muito menos como mulher.
--Queres tu uma cousa? Não digas a ninguem que és meu amante, e não se
te dê que o conselheiro o seja. Queres?
--Não; porque terias de me sustentar. A mim o que me convém é sahir já
já de Portugal.
--Porque?
--Quero vêr se a pequena se recolhe a casa do padrasto, e preciso na
Africa ou no Brazil mudar de nome, e arranjar uma fortuna.
--És tolo! Qual Africa nem qual Brazil! A pequena, em tu lhe dizendo que
nada feito, toma o rumo de casa, e a mãe ha de recebêl-a, se a não
quizer vêr onde vai parar muita gente que tambem foi honrada. Tu
mettes-te em casa de teu pae, de dia, e, passada a meia noite, vens para
a tua Liberata. Em quanto eu tiver um annel, tens tu um casaco, em se
acabando, fizemos trinta annos á justa. Has de crêr que sou tua amiga
apesar das tuas ingratidões? Deu-me para aqui! Sympathisei comtigo, e se
fosse rainha fazia-te rei. Ora aqui está. Nada de tristezas. Vamos cear,
que já ouvi a campainha tres vezes. Inda cá tenho os criados que me
déste, e não são capazes de dar um pio. Quando souberam que tu cá
vinhas hoje, até dançaram a gôta... Tu ficas sendo de hoje em diante o
dono d'esta casa, e o conselheiro é o nosso mordomo, sim?
Luiz da Cunha enlaçou o braço pelo de Liberata, que lhe cingia a
cintura, e entrou na sala de jantar, onde scintillavam os crystaes
variegados, pequena parte d'uma soberba copa. A cêa era servida por um
criado, de gravata e collête branco. Luiz respondeu com um abraço
familiar á cortezia affectuosa do seu antigo escudeiro de quarto.
O _et cetera_ é a palavra latina que eu conheço mais util nos usos
sociaes. Com um _et cetera_, ou dous, fica historiada esta noite; mas
ainda um terceiro de certo não diria que Luiz da Cunha no dia seguinte,
quando se approximava a matinal visita do conselheiro, depois de almoço,
recolheu-se ao quarto do criado, onde escreveu a seguinte carta:

«_Assucena._
«_Não te verei mais. Os obstaculos ao nosso casamento são invenciveis.
Uma desordem, que tive com teu padrasto, obriga-me a sahir de Portugal.
Escreve a tua mãe, e diz-lhe onde moras para que ella te procure, e te
receba em sua casa. Se eu um dia tiver colhido algum bom resultado dos
meus projectos, tornarei a Portugal, e serás então minha esposa, assim
como eu o serei teu, toda a vida, pelo coração. Demoro-me escondido em
Lisboa alguns dias; mas, por evitar mais amarguras, antes quero não
tornar a vêr-te. Lembra-te que eu sou muito infeliz para te resignares
na tua infelicidade._
«LUIZ DA CUNHA.»

O portador voltou, dizendo que a carta fôra recebida por um velho, que
tinha geitos de padre.
--Quem será este padre?!--dizia Luiz da Cunha a Liberata.


VIII.
PROVIDENCIA OU ACASO?

Assucena contára com pueril ingenuidade a sua vida ao conego Bernabé
Trigoso, e a sua irmã. Não lhe occultou o seu nascimento, nem as menores
circumstancias da sua fuga. Disse quem era o seu amante, e reparou que o
conego, ao ouvir tal nome, exclamára de modo que não queria ser ouvido:
--Santo Deus!
A senhora D. Perpetua, virtuosa sem momos de beata, pedia á sua
predilecta Senhora das Dôres que permittisse a reparação da falta de
Assucena. O conego, crente no remedio do ceo, mas intelligente bastante
para se não abandonar inerte ás operações invisiveis da Providencia,
prometteu á sua hospeda empregar todos os meios possiveis para destruir
os obstaculos ao seu casamento.
--Mas--accrescentou elle--eu não creio que o senhor Luiz da Cunha
recompense o amor que a menina lhe tem.
--Porque? Pelo amor de Deus diga-me porque...
--Porque não acho muito proprio de um amante o silencio de quarenta e
oito horas, sem lhe dar por escripto, ao menos, certeza de que vive.
--Se elle está prêso!
--Mas os prêsos não estão privados de escrever.
--Estará doente...
--Estará... não aventemos explicações, menina. O tempo nos dirá tudo.
Logo que seja dia, eu vou informar-me do que é feito do senhor Luiz
da Cunha. Agora vá descançar um bocadinho no quarto de minha irmã. São
quatro horas. Tenha esperanças em Deus, que é pae, e em mim que hei de
ser para a menina o que seria para uma filha.
Quando foram horas de se abrirem os tribunaes, Bernabé Trigoso colheu
informações de Luiz da Cunha. Soube que elle na vespera fôra solto,
afiançado pelo conselheiro Costa e Almeida. Nenhumas outras informações,
além das que lhe deu o carcereiro de uma visita, á cadêa, de certa
senhora ricamente vestida, que viera em sege sua.
Recolhendo a casa, sua irmã disse-lhe que Assucena adormecêra momentos
antes, e era peccado acordal-a d'aquelle dormir, que parecia sereno como
o de um anjo.
--Creio que a infeliz--disse elle--deve perder a esperança em tal homem.
Eu por mim, julguei-a perdida desde que ouvi pronunciar tal nome.
--Pois quem é elle?
--É um flagello da humanidade... É um homem que tem dado brado com os
seus escandalos. Não te recordas das historias que nos contava o padre
Joaquim?
--O capellão de João da Cunha?
--Que é pae de Luiz da Cunha... Aqui tens o abutre em cujas garras cahiu
a pobre pomba. Desgraçada menina! É preciso preparal-a para o desengano...
--Quem sabe o que Deus fará?
--Eu não sei o que Deus fará; mas sei o que os homens são capazes de
fazer. Não abandonemos esta victima do erro. Desculpemol-a, que tem o
seu perdão na innocencia com que nos contou a sua vida. Se esse homem a
procurar, achal-a-ha em nossa casa. Se nunca mais a procurar, a nossa
casa será o abrigo de Assucena.
A criada da neta do arcediago desceu ao segundo andar, dizendo que um
portador trazia uma carta para a senhora D. Assucena. O conego mandou
descer o portador, perguntou de quem vinha a carta; o criado respondeu
que era do senhor Luiz da Cunha, e não tinha resposta. Redarguiu
Bernabé, inquirindo a residencia do senhor Luiz da Cunha: o moço
respondeu que não tinha ordem de a dizer.
As suspeitas do conego fortaleceram-se. Esta carta era uma despedida
na sua opinião. Reflectiu se devia entregar-lh'a, ou lêl-a. Perpetua
animou-o a abril-a, visto que a intenção era evitar algum desgosto
mortal á infeliz menina. O conego leu a carta; e ficou satisfeito da sua
temeridade.
--Não se lhe mostra esta infame carta--disse elle.
--Era capaz de morrer a desgraçadinha!--accrescentou a irmã.--Mas que
lhe dirás, se ella te pedir noticias d'esse mau homem?!
--Digo-lhe... eu sei cá o que hei de dizer-lhe!... Digo-lhe que se
resigne... e pedirei a Deus que lhe dê coragem para o desengano...
Veremos... Talvez a possa salvar, servindo-me das palavras d'elle, que a
matariam, se ella as lêsse todas...
Assucena tossira. D. Perpetua foi pé ante pé escutar. Ouviu-a soluçar.
Abriu a porta, e uma fresta da janella. Encontrou-a de joelhos aos pés
do leito. Abraçou-se a ella com os olhos humidos das lagrimas, que lhe
arrancára seu irmão com as suas, lendo a carta.
--Sabe-se alguma cousa?--exclamou Assucena.
--Vamos lá dentro fallar com meu irmão, minha filha. Elle já veio, e
alguma cousa lhe dirá.
--Pois, sim, vamos...--disse, correndo impetuosamente meio vestida.
Entrando na salêta em que o conego almoçava, D. Perpetua fêl-a sentar ao
pé da cadeira de seu irmão, em quanto lhe apertava com os ganchos o
cabello em desalinho. Bernabé, risonho e com ares de quem vai dar uma
boa nova, deu-lhe a sua chavena de chá, escolheu-lhe a torrada mais
appetitosa, e os biscoutos mais torrados. Assucena queria rejeitar; mas
o conego teimou com brando afago, e conseguiu que ella sorrisse á
pertinacia d'um papagaio que, por força, queria participar das sôpas de
seu amo na mesma chicara.
Findo o almoço, o conego, por um gesto, fez sahir sua irmã. Assucena não
despregava os olhos dos labios d'elle, e achava insoffrivel a demora das
informações que lhe promettêra.
--Está anciosa pela resposta, minha menina?
--Estou... Fallou-lhe? Viu-o?
--Não o vi, nem lhe fallei.
--Meu Deus!... então?
--Vi uma carta d'elle, escripta a um seu amigo, que me procurou já hoje...
--Para que?
Bernabé Trigoso não pensára maduramente nas respostas, e luctava com as
difficuldades do improviso.
--Para que?... Não se apresse, minha filha. Quero primeiro convencêl-a
de que tem Deus a seu favor. Assucena não é tão infeliz como se imaginava.
--Pois diga, senhor, diga tudo o que sabe... Elle vem?
--Ha de vir, mas por em quanto não. Ora diga-me qual queria, vêl-o
perseguido por seu padrasto, ou salvo da perseguição longe de si?
--Antes longe de mim; mas eu irei viver com elle no fim do mundo.
--Isso é que é impossivel...
Assucena estava côr da cêra. As lagrimas estancaram-se-lhe; e as
palpebras penderam-lhe amortecidas. Já não ouvia as palavras do conego,
depois do _impossivel_. Quizera em vão suster a cabeça no braço tremulo.
Cada vez mais coada, até os labios se fizeram brancos. Um ai,
desentranhado do coração, foi seguido d'um vágado; o padre recebeu-a nos
braços, e chamou sua irmã, para ajudal-o a leval-a á cama.
--Este acontecimento não se evitava--disse o conego.
--Ella sabe tudo?
--O mais necessario. Agora resta imaginar a convalescença que é onde
está o maior perigo. Se eu podésse fallar á mãe d'esta menina...
--Querias entregar-lh'a?
--Não; hoje o meu maior prazer era restituir a felicidade a esta
senhora. Queria salval-a com a presença da mãe.
--Poderá ser peor...
--Não é. O remedio d'este mal são as torrentes de lagrimas, e essas só
ella as póde verter com fructo no seio de sua mãe... Perpetua, não te
separes d'ella; falla-lhe em sua mãe, e dize-lhe que sahi para bem seu.
Bernabé Trigoso, quando entrou no páteo do visconde de Bacellar,
perguntaram-lhe se era o padre que vinha confessar a senhora
viscondessa. Respondeu que não era o confessor da senhora viscondessa,
mas era um conego da patriarchal que precisava fallar com s. exc.ª
Conduziram-no ao quarto d'ella. Rosa Guilhermina estava de cama, com
dous medicos á cabeceira, que retiraram, quando o conego entrou. Um dos
medicos, quando se retirava, abraçára o conego, e disse á viscondessa:
«Eis-aqui o ultimo homem dos tempos de virtude. Estimo bem vêl-o á
cabeceira do seu leito, senhora viscondessa!» E ficaram sós.
--Não tenho o gosto de conhecêl-o...--murmurou ella com a voz enfraquecida.
--Não importava conhecer-me antes d'este momento. De certo, eu não
poderia evitar os desgostos por que v. exc.ª está passando...
--Terminarão brevemente... Estou quasi morta.
--Não morrerá. Deus não nos dá a vida como um instrumento, partido no
primeiro estorvo, que nos embaraça uma suave carreira. Viemos para
trabalhos, senhora viscondessa; e o mais soffredor é o mais benemerito
aos olhos do Altissimo. Venho fallar-lhe de sua filha.
--Sim?... Oh! foi Deus que o mandou!.. Onde está minha filha?
--Na companhia de uma senhora que é minha irmã, e na minha companhia,
que sou um padre.
--Pois esse homem...
--Quer-me fallar de Luiz da Cunha?
--Sim...
--Esse homem abandonou-a.
--Já!... sem a salvar da deshonra!
--O que nós queremos é salval-a da morte.
--É mais feliz se morrer! Levai-a meu Deus, levai-a para vós!
--Deus não se aconselha, senhora viscondessa. Ella vive, porque Deus o
quer. Confiou-m'a, e eu quero encaminhal-a de modo que Deus a chame,
quando a gloria do ceo lhe seja dada como um premio de virtudes na
terra, amaldiçoada para os anjos.
--Mas... é impossivel recebêl-a em minha casa...
--Eu não quero que a receba em sua casa, minha senhora. Sua filha é
como se fosse minha. Debaixo das minhas telhas mora a honra e a
abundancia. Assucena não precisa senão chorar, para renascer para a
felicidade, que eu prometto dar-lhe. Chorar... chora ella sempre; mas é
preciso que o seu coração se abra ás suas lagrimas, para lhe perdoar...
--Eu perdôo-lhe...
--Bem... mas o seu perdão ha de ser-lhe dado a ella, abraçando-a,
convencendo-a de que é possivel a sua rehabilitação. E, depois, seja um
segredo para todo o mundo a existencia de sua filha em casa do conego
Bernabé Trigoso.
--Se eu viver, dar-lhe-hei tudo o que podér para a sua subsistencia.
--Não precisa de nada sua filha. Se v. exc.ª consente que ella seja da
minha familia, deixe-me inteiro o cargo de pae. O seu mais precioso
sustento é o do espirito. Esse é que eu pedirei a Deus que m'o não
escassêe, e talvez o consiga.
--Quer que eu procure minha filha?
--Supplico-lh'o.
--Se eu tivesse forças...
--Experimente, senhora viscondessa; parece-me que posso prophetisar-lhe
que terá forças. Trata-se de salvar uma filha. V. exc.ª sentir-se-ha
melhorar quando se convencer de que o anjo cahido se levanta, com a dôr
da sua ignominia adormecida. Não lhe falle em Luiz da Cunha, bem nem
mal. Ha de abominal-o, sem que lhe lancemos em rosto a perfidia d'esse
miseravel, que, no fim de tudo, não é menos lastimavel, porque o seu fim
deve ser triste. Deixemos-lhe a elle o cargo de se fazer detestavel. Uma
mulher apaixonada só recebe bem as censuras da sua consciencia. Illuda
sua filha com uma piedosa mentira. Diga-lhe que ninguem falla da sua
desgraça, que as poucas pessoas que a sabem se empenham em desmentil-a,
fazendo crêr que Assucena vive na companhia d'uns parentes no Porto. É
preciso mesmo que v. exc.ª faça acreditar que a enviou para alguma
quinta longe de Lisboa.
«Posso dizer que ella está no Minho, onde meu marido comprou uma quinta
em meu nome para eu poder legar a quem quizesse por minha morte, e
talvez eu conseguisse que meu marido me concedesse dar-lh'a já; mas
elle, depois da desordem com Luiz da Cunha, enfureceu-se contra ella,
contra mim, contra todos...
--Já lhe disse, minha senhora, que sua filha não precisa de quintas, se
lhe não prohibe ser mais minha filha que sua.
A conversação prolongava-se, quando foi annunciado o confessor da
viscondessa. A enferma, pela subita animação que o conego lhe
emprestára, e pela desordem de ideias que lhe confundiam o exame de uma
confissão geral, mandou dizer ao padre que resolvêra adial-a.
Entretanto, Bernabé Trigoso retirava-se, porque a viscondessa lhe pedíra
que occultasse de seu marido, se elle entrasse no quarto, a causa da sua
vinda áquella casa.
As syncopes de Assucena repetiram-se na ausencia do conego. D. Perpetua,
receosa dos resultados, chamára medico para consultal-o se devia chamar
confessor. O medico nem receitou nem votou pela precipitação dos
sacramentos. Colligiu das timidas informações da virtuosa senhora que a
enfermidade de Assucena era uma forte affecção moral.
O conego, tambem assustado, não abandonava o leito de sua filha
adoptiva. As consequencias eram mais graves do que elle suppozera.
Assucena já não chorava, nem perguntava nada com referencia a Luiz da
Cunha. Tinha os olhos em extasis, e a boca meio-aberta respirava
acceleradamente. Sahiam-lhe do coração gemidos convulsivos, como o arfar
tremido da creança, quando cessa de chorar, mas, ainda animada pelos
beijos da mãe, parece queixar-se. Estes periodos duravam uma hora. Se
lhe perguntavam o que sentia, respondia com melancolico sorriso: «nada.»
Se lhe davam consolações, que não podiam deixar de ser fundadas em
frouxas palavras de esperança, a filha de Augusto Leite acenava com a
cabeça, como se dissesse: «não me salvam com a piedosa mentira.»
Bernabé fallava-lhe a linguagem que aconselhava á viscondessa,
dizendo-lhe que muita gente se persuadia que Assucena, por causa do
namoro de Luiz da Cunha, fôra tirada das commendadeiras, e conduzida a
uma quinta no Minho por ordem de sua mãe.
Este balsamo não prestava refrigerio algum á ferida. Bernabé Trigoso,
sabendo muito, não sabia tudo do coração. Estes remedios aproveitam
quando a mulher despresada esquece o amante para se lembrar da sua
reputação. Assucena não tinha ainda pensado no que o mundo diria d'ella.
Luiz da Cunha era a sua ideia unica, e a face torpe d'esse homem não se
voltára ainda para que a infeliz lh'a visse pelos olhos da reflexão. O
systema, pois, de Bernabé não era vantajoso como elle o suppunha. O
soffrimento silencioso augmentava: o pulso impetuoso recahia n'um
marasmo insensivel, para depois referver em borbotões de sangue. O
medico aconselhava uma qualquer impostura, se não havia consolações
verdadeiras que a salvassem. Era possivel a morte, dizia elle;--era
possivel uma loucura; era tudo possivel, menos cural-a d'aquella
desesperada situação com remedios da botica. Se é uma paixão por causa
d'algum amor infeliz,--accrescentava o doutor--mintam-lhe de modo que
possamos allivial-a d'esta crise, e reduzil-a a estado menos anormal
para que se colha algum resultado das palavras.
Aproveitou o conselho. O conego fingiu a recepção de uma carta d'um seu
amigo em que se lhe promettia o breve enlace de Luiz da Cunha com
Assucena. A innocencia tem credulidades sem critica nem senso. A pobre
menina, sem discernir quem poderia escrever tal carta a um homem
estranho a Luiz da Cunha, acreditou-a. Deu-se uma notavel alteração nos
symptomas. O medico nunca alcançára um triumpho tão barato, nem tão
util. Conhecer a alma é, em muitos casos pathologicos, a mais prestante
medicina.
No dia immediato, soube o conego que a viscondessa visitava de tarde sua
filha. Preparou-se, felicitando-a por ter merecido a Deus tão excellente
mãe. Dissipou-lhe os receios, a vergonha, e até o medo que se lhe
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