A Neta do Arcediago - 03

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até á neta do arcediago e o filho de Ricarda.
Dizer que o amor é a sensualidade, além de grosseira definição, é
falsidade desmentida pela experiencia. Ha um amor que não rasteja nunca
no raso estrado das propensões organicas.
Dizer que o amor é uma operação puramente espiritual é um devaneio de
visionarios, que trazem sempre as mulheres pelas estrellas, ao mesmo
tempo que ellas, gravitando materialmente para o centro do globo, comem
e bebem á maneira dos mortaes, e até das divindades do cantor de Achyles.
Eu conheço homens, sem faisca de espirito, que se abrazam tocados pelo
amor como o phosphoro em presença do ar. Eis-aqui um phenomeno
eminentemente importante. Elle, só, sustenta em these que o amor não tem
nada com o corpo nem com o espirito. Eu creio que é um fluido. É pena,
porém, que eu não saiba o que é fluido para me dar aqui uns ares
pedantescos, ensinando ao leitor, mais ignorante que eu, cousas que, de
certo, o não privavam de continuar a comer, e a dormir.
A prova de que o amor não está na cabeça, nem no coração, é que Luiz da
Cunha e Faro tinha uma cabeça incapaz de calcular as consequencias
d'uma acção boa ou má, e um coração desbaratado, verminoso, apodrecido
para nutrir em si uma flôr das que nascem aromatisando a imagem que o
amor lá insculpiu com maviosos traços.
Assucena, pelo habito da convivencia, perdêra a estranheza, e
familiarisára-se com o moço tão bem aceite e tão desvelado por sua mãe.
O sobresenho de seu padrasto com o filho de João da Cunha tornára-lhe a
ella mais sympathico o mancebo. Recordando as asperezas do marido de sua
mãe, com ella sua enteada, sempre carinhosa e humilde, achava ahi a
razão da grosseira indifferença com que Luiz era recebido.
Um dia, acharam-se sósinhos, porque a viscondessa não prevenira o filho
de João da Cunha da sua sahida á noite, nem prohibira, por inadvertencia
talvez, a sua filha a recepção de visitas.
Os embaraços de Luiz, a sós com ella, eram improprios d'um rapaz de
sala, imperturbavel fallador em todas as conjuncturas de que o homem se
salva fallando muito, e prompto improvisador de palavras que não deixam
nunca descahir a conversação nas trivialidades aborrecidas.
Luiz da Cunha imaginou que amava Assucena; e, só com ella, deduziu do
seu acanhamento que a amava muito. Assucena já não córava na presença de
Luiz da Cunha; e, só com elle, percebeu, no ardor da face, que se estava
denunciando.
Era necessario dizer alguma cousa, esgotadas as primeiras palavras d'um
cumprimento, cuja elasticidade se não descobriu ainda.
--Está v. ex.ª em vesperas de recolher-se ás Commendadeiras...--disse
Luiz, cuidando que tinha acertado com a vereda por onde, mais
facilmente, chegaria a um vasto assumpto.
--É verdade...--respondeu ella com mimo e tristeza--D'amanhã a quinze
dias...
--Tão cêdo!... E está desejosa de se vêr lá, não é assim?
--Desejosa, não. Eu antes queria estar com minha mãe...
--E ella não lhe faz a vontade?
--Por vontade d'ella nunca eu sahiria de casa; mas meu padrasto, não
sei porque, acha que eu sou aqui de mais, e mostra-me sempre um modo
aborrecido, que me incommoda, e de certo ha de incommodar minha boa mãe.
--O senhor visconde tem essa singularidade. Por calculo ou por genio,
parece que toda a gente o incommoda, que todos lhe são pezados e
suspeitos. Eu tenho sido bem mimoseado com os seus arremêssos, como v.
ex.ª terá observado. Se encontro francas as portas d'esta casa, favor é
que devo á senhora viscondessa, minha amiga desde a infancia, mais que
minha mãe, porque uma mãe deixa muitas vezes perder um filho, e esta
nobre senhora, este anjo que tem sobre mim uma influencia celeste,
salvou-me.
--Tenho reparado que ella é muito sua amiga. Se v. ex.ª fosse meu irmão,
de certo minha mãe lhe não daria mais estima...
--E porque me não faria Deus seu irmão?--atalhou Luiz com ar infantil, e
meiguice de sorriso. Assucena baixou os olhos, em silencio, tambem
desabrochando um ligeiro sorriso, no nacar dos labios, que pouco
sobresahia á côr purpurina do pejo.
--Esta pergunta--proseguiu elle, com affectuosa tristeza--fez-lhe uma
impressão muito diversa do que eu pensava! V. ex.ª córa, e a pergunta
não é das que ferem a susceptibilidade do coração. Magoou-a o meu
innocente desejo de ser seu irmão?
--Não me magoou...
--Pois então diga-me o que sentiu para eu poder convencer-me de que
ainda lhe não disse uma só palavra indiscreta...
--Não me magoou, senhor Luiz da Cunha... já lh'o disse... O que eu
senti... não foi pezar, nem alegria... Fez-me impressão essa pergunta,
por que...
--Diga, não se arrependa... o seu coração ia fallar...
--Porque muitas vezes tenho perguntado a mim mesma se não seria muito
bom que...
--Eu fosse seu irmão?
--É verdade...
--E córa por isso? Um desejo tão puro e tão santo diz-se, e não se
esconde...
--Dizer-se... nem a toda a gente. Eu disse-o a minha mãe, e ella
perguntou-me cousas estranhas para mim... Se não fosse ella, isto que
lhe disse com difficuldade, não teria duvida em dizêl-o ás minhas
mestras do collegio, por que não sei onde está o mal d'este desejo.
--Não tem nenhum... Diga-me, senhora D. Assucena, sua mãe prohibiu-a de
manifestar o bom conceito que v. ex.ª faz de mim?
--Não, senhor... Só me disse que me não habituasse a pensar no senhor
Luiz da Cunha, por que o coração em se habituando a fantasias, custa-lhe
muito depois a desfazer-se d'ellas quando vem a realidade. E acho que
minha mãe tem razão. V. ex.ª não póde ser meu irmão.
--Mas amigo, mais que irmão, não poderei tambem?
--Amigo... sim...--Assucena córou de novo, e balbuciou estas duas
palavras. Luiz da Cunha viu-a tremer d'aquella quasi imperceptivel
oscillação nervosa, que denuncia o antagonismo da natureza com a arte, a
força expansiva do espirito com os estorvos compressores da educação.
--Pois então... sejamos--continuou elle--sejamos o mais que podêmos
ser... muito amigos, amigos por toda a vida, sim?... Por que me não
responde? Receia que eu algum dia, se se esquecer de mim, a
responsabilise pela promessa? Tambem não serei capaz de mortifical-a, e,
se o fosse, não poderia chamar-me seu amigo. Quando aconteça que a minha
amizade lhe seja pezada...
--Pezada?!
--Sim; quando se dêem motivos fortes para que me esqueça...
--Que motivos?!
--Se lhe derem um marido...
Assucena levou instinctivamente o lenço aos labios, como para esconder o
rubor que lhe assomava.
N'este momento, entrou João da Cunha, e surprendeu ainda o escarlate,
que destacava na tez trigueira de Assucena. Experimentado, comprehendeu
o caso, que não tinha nada de mysterioso senão o facto de se acharem
sósinhos seu filho e a filha da viscondessa. João da Cunha sentiu o
abalo prophetico d'alguma desgraça. A anciedade não lhe concedia
delongas. Como Assucena pediu licença para retirar-se, João da Cunha
perguntou ao filho, ainda absorto n'um silencio muito significativo para
o pae:
--Como venho encontrar-te sósinho com Assucena?
--Entrei n'esta sala, e encontrei-a a receber-me. Se soubesse que vinha
encontral-a sósinha, creia v. ex.ª que eu não subiria.
--Tu comprehendes, Luiz, quanto seria melindroso para a nossa honra um
namoro com a filha da pessoa que tão cara nos é, e tanto por ti se tem
sacrificado?
--Comprehendo, meu pae. E d'onde é que v. ex.ª deduz que eu namore
Assucena?
--Surprendi-a d'um modo que revelava emoções que não são as d'uma
singela conversação.
--Acabava eu de pedir-lhe que fosse minha amiga e amiga como póde sêl-o
uma irmã.
--Luiz, esses rogos não se fazem a uma mulher de dezoito annos. Irmãos
só os faz a natureza. A arte, que approxima o homem da mulher com laços
fraternaes, é uma ficção. Os teus amores tem sido todos faceis,
d'aquelles que a seducção não precisa mascarar com um titulo impostor; e
por isso não sabes ainda prêver as consequencias d'esse improvisado
parentesco. Eu tive muitas irmãs, como esta que tu adoptas, e todas
ellas quebraram o vinculo da fraternidade, quebrando primeiro pela honra.
--Meu pae cuida que falla a seu filho dous mezes antes. Eu devo á
Providencia um novo coração.
--Quero, devo acredital-o: Deus me livre de pensar o contrario. Mas é
preciso que meu filho saiba muitas cousas que não aprendeu na vertigem
da dissolução em que viveu onze annos. Quando o coração é nobre, tambem
ha paixões que principiam nobremente, e acabam pela ignominia como as
outras que começam pela infamia. O amor violento, o amor que deshonra, o
amor que faz victimas, não é o infame privilegio dos homens pervertidos.
Os de nobre coração tambem deshonram, tambem pervertem, e fazem
victimas. O avarento póde viver uma longa existencia sem um remorso, sem
roubar o pão do seu semelhante, logo que elle alimente a sua sede de
ouro com o seu proprio suor. O general, coberto de condecorações,
póde ter sido um barbaro nas batalhas, matando inermes, e incendiando
choupanas que encerram velhos e creanças. É um algôz condecorado, ao
qual Deus não pergunta o que fez de seu irmão; é uma consciencia
tranquilla de remorsos, como a lamina da sua espada está limpa de
sangue. O avarento do ouro, e da gloria caminham ambos por estrada
desempedida: um legalisa a posse do ouro com a astucia e com o trabalho;
o outro, com o poder que lhe foi conferido, e com a bravura sanguinaria.
Na sociedade ha um homem que vive tambem de ambições, que aspira tambem
ás glorias; mas glorias e ambições do coração, as que elle julga mais
innocentes, as que a sociedade lhe não crimina no seu principio, as que
por fim se lhe convertem em cilicios de remorso, em apertos de coração,
e em tedio de si proprio, no declinar das forças physicas para a
sepultura das chimeras. Este homem fui eu, e és tu. O coração perde-nos,
Luiz. O homem que se dá exclusivamente ao amor, cuida que vai sobre
alcatifas de flôres, e resvala n'um abysmo. Principia, com o proposito
de ser honrado, um commercio de sensações brandas; e acaba enfastiado
d'ellas, ancioso d'outras que não depara. Depois, como indemnisação do
que perdeu, encontra o desprêso dos outros; como companhia das suas
horas solitarias, tem a imagem d'uma pobre mulher que se levanta do
charco, onde elle a lançou, agarrando-se-lhe aos cabellos; e, como
refrigerio das sêdes que o calcinaram na mocidade, encontra na
velhice... um filho, que lhe encrava uma corôa de espinhos sobre o
stigma do crime com que a sociedade o manda á presença de Deus...
--Meu pae!--atalhou Luiz pasmado da desordenada eloquencia.--Eu não sei
o que fiz para merecer-lhe admoestações tão sevéras!
--Isto não são admoestações, Luiz... Não sei o que disse... Lembra-me
que o meu fim era uma cousa muito importante... Não dediques uma
affeição perigosa á filha da viscondessa. Pára aqui. Ama uma mulher, que
possas fazer tua esposa, ou não ames nenhuma, por que eu sei que o teu
amor tem o contagio da morte...
Assucena entrou na sala, desculpando-se da demora, com uma invenção mal
fingida. Se quizesse ser verdadeira, diria que estivera no seu
quarto, saboreando, sósinha, uma felicidade que principiava por lagrimas.
..........................................................................
As confusas recriminações de João da Cunha não cahiram em coração
inerte. Luiz nunca respeitára tanto seu pae. Supposto lhe não
comprehendesse as comparações do ambicioso e do general com os affectos
do coração, achára uma dôr sublime n'essa desordem, um gemido de remorso
n'essa condemnação a si proprio, n'essa tocante ideia d'uma corôa de
espinhos, cravada pelo filho, na fronte de seu pae, onde a sociedade
gravára o lema da deshonra.
Em casa da viscondessa, Luiz da Cunha faltou algumas noites, depois da
ultima em que o vimos, sem grande esforço, erguer o véo do coração de
Assucena.
A causa da falta extraordinaria, e sensivel para a viscondessa, era o
incommodo de João da Cunha, que periodicamente soffria accessos de
sangue á cabeça, ameaços de congestão cerebral, que o debilitam pelas
repetidas sangrias, seu allivio unico. Luiz passava os dias e as noites,
ao pé de seu pae, pela primeira vez. Em tempos de libertinagem, as
doenças do pae eram indifferentes ao filho, e até a formalidade d'um
cumprimento lhe era pezada.
--Que differença!--dizia D. Rosa a sua filha--Quem diria que Luiz da
Cunha passaria as noites ao pé de seu pae! Onde estava um nobre coração!
Á vista d'isto, ninguem deve perder a esperança de salvar um homem
abandonado de todos! A sociedade é a que atira o desgraçado á miseria...
--Á miseria!--atalhou Assucena.
--Sim, minha filha. O desprêso com que são repellidos os infelizes, que
não podem ser bons sem os conselhos d'um bom amigo, é muitas vezes a
causa de se perderem de todo. O mau homem cuida que se vinga redobrando
em malvadez. Deixam-no sósinho, e elle precisa de viver em sociedade.
Procura a unica que o recebe, a dos abandonados como elle. Ahi encontra
irmãos mais perdidos que elle, e acha sempre um amigo. Dizia teu pae,
minha filha, que o ultimo amigo do criminoso era o carrasco... Não
entendes esta linguagem, Assucena... Oxalá que nunca recordes
palavras de tua mãe, ditas como um desafogo a quem lh'as não entende...
Foi talvez com ellas que eu salvei Luiz da Cunha... Servem só para
desgraçados... e tu, filha, és feliz, és innocente, és um anjo.
--Elle é ainda desgraçado?
--Póde ser feliz...
--Eu queria que elle o fosse; mas é tão triste... Elle era assim d'antes?
--Não. Escarnecia de tudo, convertia tudo em galhofa respondia ás minhas
admoestações com agradecimentos ironicos, e contava-me os seus desatinos
como quem conta acções meritorias. O primeiro dia em que lhe ouvi
queixar-se da sua má estrella, foi no dia em que te viu...
--Em que me viu!?...--atalhou Assucena, sem poder conter as palavras,
que vinham do coração sobresaltado.
--Porque me fazes esse reparo tão admirada?!
--Admirada... não!... É que...
--Não te escondas aos olhos de tua mãe, que é inutil, minha filha. Leio
em todos os corações, e nunca se me escondeu um só pensamento do teu...
Amas Luiz da Cunha?
--Minha mãe!...--exclamou ella, tomando-lhe carinhosamente a mão, e
fazendo um aceno negativo.
--Não te assustes, Assucena. Eu não crimino essa affeição, que é muito
natural. Se o tivesses conhecido, ha dous mezes, de certo o não amarias.
Hoje... era quasi impossivel que o não amasses... Luiz tem alguma cousa
fatal, que o fez querido a muitas mulheres, que se envergonhavam de lhe
apertar a mão em publico. Hoje poucas seriam as que lhe recusassem
affectos. Mas olha, Assucena... tua mãe vai fallar-te como todas as mais
deviam fallar a uma filha que sáe d'um collegio aos dezoito annos. Se
tivesses vivido cá fóra, não era necessario dizer-te que só ha uma
posição que te convém com Luiz da Cunha. Se não fôres sua esposa, que
poderás tu ser para elle?
--Sua irmã.
--Não ha irmãs pelo coração, minha filha. Quererias ser sua esposa?...
Responde, Assucena... Faz de conta que fallas com a tua unica amiga.
Agora não sou tua mãe, visto que é de uma mãe que sua filha de
ordinario se esconde. Querias ser sua esposa?
--Queria...
--Que tristes cousas vou dizer-te... Teu padrasto não te daria uma moeda
de cobre como dote, e eu não posso tambem dar-t'a porque sou pobre como
tu. Luiz da Cunha não tem patrimonio, não póde succeder na herança de
seu pae, é pobre como ambas nós, logo que seu pae lhe morra. Vês o que é
o mundo? Um casamento entre duas pessoas, habituadas a não proverem com
o trabalho ás suas precisões, é uma desgraça. Tu serias muito infeliz,
quando teu marido te dissesse «não temos pão.» Minha filha, eu já soube
o que é não ter pão. Já desfiz um meu vestido para que tu não andasses
nua. Já andei sem lenço na cabeça para que tu não tivesses fome. Já me
ajoelhei comtigo nos braços, pedindo a Deus que nos levasse ambas, antes
que tivessemos de morrer de fome entre quatro paredes. A amiga que nos
valeu a ambas, é hoje uma desgraçada, não de fortuna, porque eu privo-me
de muito para que ella tenha tudo. É desgraçada... pobre Maria Elisa...
porque se deixou arrastar pelos cabellos onde a leva o mau anjo das suas
paixões... Coitadinha! no que deu aquella mulher!...
--Não chore assim, minha mãe...
--Deixa-me chorar... eu preciso de chorar alguma vez na tua presença...
São mais dolorosas as lagrimas, sem testemunhas. Preciso d'uma
confidente, e, se o não és tu, quem o será? Nos salões é preciso rir
sempre. Com meu marido, é necessario ser o que elle é... Comtigo posso
ser o que sou... Minha filha, tua mãe vai pedir-te um favor...
--Favor!... que quer, minha querida mãe?
--Esquece Luiz da Cunha.
--Esquecêl-o...
--Se não pódes esquecêl-o... resigna-te, não alimentes esperanças, não
lh'as dês a elle...
--Isso sim... isso posso fazêl-o... Quer minha mãe que eu me recolha já
hoje ao convento?
--Nem tanto, meu anjo, nem tanto!... Irás quando tens de ir...
--Mas eu não devo vêl-o mais...
--Porque não? Assim o amas?!
--Pensei que poderia vêl-o todos os dias. Não queria senão ser sua irmã.
Diz a mãe que não posso... não o serei; mas não tenho coragem... não sei
como hei de dizer-lhe que o não sou, porque elle ha de perguntar-me a
razão porque não sou sua irmã, sua amiga, e eu não sei o que hei de
responder-lhe.
--Mas... prometteste-lhe tu essa estima de irmã?... Córas!... responde,
Assucena.
--Prometti...
--Quando?!
--Uma noite que a mãe sahiu, elle veio adiante do pae...
--Porque me não disseste esse encontro, se elle te pareceu innocente?
Assucena baixou, corrida, os olhos, e limpou duas lagrimas, que lhe
tremiam nas pestanas. Ergueu-se impetuosamente, e escondeu a face no
seio de sua mãe, que chorava com ella.
--Foram tardias todas as minhas reflexões, minha filha?--disse a mãe com
a voz cortada, procurando vêr a face de Assucena.
--Não foram... Eu serei o que minha mãe quizer que eu seja; mas não sei
porque devo maltratar um homem, que lhe merece tantas provas de estima.
--Eu não te digo que o maltrates...
--Se elle me procurar, não lhe fallo.
--E porque não?
--Porque... seria peor... seria enganal-o, porque não posso esquecêl-o.
--Desde quando o amas, minha filha?
--Tinha eu dez annos, e elle dezesete...
--Oh filha!--interrompeu a mãe, sorrindo--isso não era amor!
--Não sei o que era... era amizade... nunca o esqueci... E quando o vi,
depois de oito annos, vi tudo que me era mais caro na vida, depois de
minha mãe...
--E disseste-lh'o?
--Nunca... mas, se elle m'o perguntasse, dizia-lh'o. A razão não me
crimina d'este affecto de irmã...
--Quem sabe, filha!... Talvez, mais tarde... outra razão, a da
experiencia, venha desmentir a que te falla hoje...
--Penso que não... Hei de seguir sempre os conselhos de minha mãe. Farei
tudo o que posso. Se é possivel esquecêl-o, empregarei todos os esforços
para isso. Diga-me a mãe quaes elles são.
--Terrivel pergunta!--disse a filha do arcediago, no fundo da sua
consciencia.
--Não me responde, minha mãe?
--Não o evites de todo... Recebe-o, se elle te visitar... Entretanto,
póde ser que Deus permitta um milagre.
--Esquecêl-o?
--Esquecêl-o, ou poder ser sua mulher. Não é esta a intenção de Luiz da
Cunha?
--Não sei. Não temos tido a liberdade de fallar n'essas cousas. Se elle
me tivesse fallado n'isso, eu dizia-lhe que seria sua esposa, sem me
lembrar que é necessario um dote.
--E sem o consentimento de tua mãe?
--Minha mãe quer a minha felicidade...
--Confia-te a mim, Assucena... eu continúo a ser a tua amiga. Hei de
fallar hoje com teu padrasto... Agora mesmo que elle ahi vem... Retira-te.
O visconde de Bacellar entrava, com a penna na orelha, e uma carta
aberta nas mãos.
--Rosa--disse elle, franzindo a testa, e tirando os oculos--lê essa
carta. É chegada agora do Porto. Basta que leias as ultimas linhas.
Senão, eu t'as leio:

_«Em quanto a Maria Elisa, meu caro visconde, sinto dizer-lhe que está
uma perdida. Ultimamente adquiriu um amante que lhe consome a generosa
mesada que a senhora viscondessa lhe dá. Acho prodigalidade despender
cincoenta mil reis cada mez, para sustentar dous viciosos. Ella tafula,
como se tivesse doze contos de reis de renda. Os cinco mil cruzados, que
sua senhora lhe mandou ha um anno, dissipou-os em menos de tres mezes.
Não sei, ainda assim, como ella póde fazer tanto com cincoenta mil reis
mensaes. Disseram-me hoje que ella recebia outros cincoenta; não posso
colligir d'onde venham. Os meus respeitos &c. &c.»_

Rosa Guilhermina estava pallida e fria. As ultimas linhas d'esta carta
eram a denuncia do emprego que ella dava ás suas economias. O filho da
senhora Anna Canastreira, lida a carta, passeou na sala, dobrando-a,
soprando, limpando os oculos, e batendo com a caixa do rapé na palma da
mão esquerda.
--Que dizes tu a isto, Rosa?
--Que hei de eu dizer, José! que Maria Elisa deve muito a Deus, se a
levar d'este mundo.
--Mas, em quanto Deus a não leva, é preciso pôr cobro a isto. Sabes a
maneira como?
--Diz, meu amigo.
--Levantar-lhe a cesta. Os beneficios que lhe deves estão pagos com
usura. Em quanto esteve comnosco foi tratada como rainha. Deu-lhe o
diabo da asneira na cabeça, e fez tropellias que me obrigaram a sahir do
Porto. Sahiu da companhia do S*** C***, déste-lhe uma casa mobilada de
tudo, e uma mesada que sustentava uma familia. Vendeu casa e moveis, e
andou de amante em amante, até que lhe déste cinco mil cruzados para
ella cemprar uma quinta em Santo Thyrso. Qual quinta nem qual carapuça!
Gastou os cinco mil cruzados, gasta os cincoenta mil reis, e outros
cincoenta, que naturalmente são remettidos por ti. Não te ralho Rosa: o
mal feito não tem remedio; mas reprovo d'hoje em diante o desfalque da
nossa casa, para trazer no galarim uma mulher sem vergonha, uma
libertina de quarenta annos. Se lhe queres continuar a mesada, manda-a
entrar n'um convento, onde a não conheçam, e sustenta-a lá. Assim ha de
dizer-se que o meu dinheiro serve d'alimentar mulheres perdidas, e
vadias. Não estou por isso.
--Eu pensarei no que se ha de fazer: entretanto peço-te que lhe não
suspendas a mesada. Faz isto que te supplíca tua mulher.
--Farei; mas tu não te lembras de fazer economias para essa rapariga que
não tem nada de seu?
--Qual rapariga? minha filha?
--Pois quem?
--É a respeito d'ella que eu desejava muito alguns momentos de attenção.
Tenho pensado no futuro d'esta menina.
--Pois já não queres mettêl-a no convento?
--Quero; mas o convento, sem profissão, não é futuro. Diz-me, meu amigo:
tu dás um dote a minha filha?
--É a quarta vez que me fazes essa pergunta, e eu respondo o que já
respondi. A filha da viscondessa de Bacellar, das duas uma: ha de casar
com grande dote, ou não casar. O grande dote não o dou; com pequeno dote
não serve senão a algum amanuense de tabellião. Pediu-t'a alguem em
casamento?
--Não; mas se tu quizesses, poderiamos casal-a, talvez, com...
--Com quem?
--Com Luiz da Cunha.
--Estás tôla! Deus te livre d'essa asneira! Pois tu acreditas que elle
valha hoje mais do que valia ha tres mezes?!
--Acredito: não tem nada do antigo homem.
--Não terá; mas pelo sim, pelo não, sempre te vou dizendo que para tal
casamento não sáe um pataco da minha gaveta. Tomára eu o que por lá anda
por casa do João da Cunha! Cara me tem custado a amizade do tal fidalgo!
Já não tem bens livres que cheguem para o pagamento de dez mil e tantos
cruzados que me deve, afóra a fiança que eu lhe prestei para um titulo
de divida que o extravagante do filho assignou de um conto de reis. Tem
juizo, Rosa. Não te deixes enganar com apparencias. Alli onde o vês com
ares de convertido, tudo aquillo é hypocrisia. Agora vou entendendo a
razão de tal mudança. Queria um dote, e uma mulher. O dote gastava-o com
a tal dissoluta que levava ao theatro, ou com outra que tal; e a mulher,
qualquer dia vinha, com dous ponta-pés, pedir-te que lhe désses um
bocado de pão. Ás vezes pareces tão esperta... e cáes em cada alhada,
que nem uma cosinheira! Querem vêr que a rapariga está namorada com o
senhor Luizinho?!
--Basta, José... Não fallemos mais n'este assumpto. Fiz-te uma pergunta
muito simples, e respondeste mais do que era necessario. Ficamos
entendidos. Posso contar com a subsistencia de Assucena no convento?
--Paguei hoje seiscentos mil reis de entrada, e estabeleci-lhe seis
moedas por mez, e uma creada de cozinha, e outra do quarto. Se é
necessario mais alguma cousa, é pedir por bôca, em quanto está aberto o
cofre.
--Não é preciso mais nada, meu amigo.
--Poucos padrastos fazem outro tanto...
--Tens razão, José.
--E quando lhe appareça um digno marido, não terei duvida em lhe dar um
dote; mas não para Luizes da Cunha, e outros que taes. Ficas zangada?
--Porque? Fico-te de todo o coração agradecida. Tudo que fizeres em bem
de minha filha é uma esmola de caridade.
O visconde desceu ao escriptorio a descontar letras do governo, e Rosa
Guilhermina fechou-se no seu quarto com a filha.
Antes de annunciar-lhe o que se passára, tinha dito com as lagrimas o
mais que poderia dizer-se.
Assucena, beijando-a meigamente, dizia:
--Adivinho tudo, minha querida mãe. Não se afflija, que eu para ser
feliz, não preciso do dinheiro de meu padrasto.
--Precisas... precisas...--respondia a mãe, abraçando-a com frenetica
ternura.


V.
UM ANJO CAHIDO.

Luiz da Cunha era estranho ás apressadas solicitudes da viscondessa de
Bacellar com o futuro de sua filha. Como a não pedíra, nem mesmo
significára a alguem intenções de casar-se, da sua parte nenhum esforço
punha para vencer as difficuldades do casamento, quando se déssem.
Votado inteiramente a velar a convalescença de seu pae, as saudades de
Assucena desvaneciam-se-lhe pouco e pouco; mas não tanto que elle não
esperasse com impaciencia, todos os dias, noticias indirectas de sua
«irmã.»
Luiz da Cunha quizera illudir-se. O amor, que a encantadora Assucena lhe
resuscitára nas ruinas do coração, era um sentimento de fantasia, um
impotente esforço da vontade. Depois de onze annos de vida aparcellada
de revezes na alma, de ignominias que entram como habito nas propensões
do homem, que se crê irresponsavel de seus escandalos, acredite-se de
boamente a conversão religiosa como consequencia do remorso como temor
de Deus; mas negue-se a reforma do espirito em cousas do amor, em
nobreza de affectos, em dedicações fervorosas. É impossivel essa
reforma. Não renasce o amor no peito cansado; não mais desabrocha no
tremedal a flôr dos perfumes ideaes, que, só no ar puro de um coração
juvenil, embellece a vida, e promette a felicidade.
O amante de Liberata não podia ser o interprete do coração de Assucena.
Um sahia da innocencia, outro do crime. Luiz, depois das paixões
impetuosas, entrava cansado no amor tranquillo para o qual é necessaria
muita alma. Assucena, com todo o vigor da juventude, abandonava-se,
mais céga do que se imaginava, á paixão impetuosa.
Se a tivessem educado nas salas, a neta do arcediago, aos dezoito annos,
não se apaixonaria por um homem inconveniente, socialmente fallando.
Aprenderia, desde os quatorze, a estremar o apparente do real, o homem
que se namora por entreter, e o que se namora para casar. Rodeada de
lisonjas, qual d'ellas mais impostora, perderia depressa a memoria dos
differentes thuribularios, e, ao sentir no coração impressos os traços
de uma imagem, outra imagem viria desfazêl-os depois. O amor repartido é
o amor sem consequencias perigosas. A razão conserva sempre o seu
dominio. A luta com tres é-lhe menos difficil que a de um só; e a
donzellinha de faces de leite e rosas, se tiver mãe experimentada, leva
a cabo emprezas arriscadas com a sisudez que os quarenta annos não tem.
Antes de amar a realidade, o coração da virgem, na vida êrma, no perfume
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