A Neta do Arcediago - 06

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incutiu, temendo que sua mãe viesse dissuadil-a do seu casamento.
--Sua mãe--dizia o conego--naturalmente não lhe falla em Luiz da Cunha.
A menina não deve tambem fallar-lhe n'elle.
--Porque? não ha de elle ser meu marido?
--E que tem isso? O coração de sua mãe é bondoso; mas não se segue
que a bondade desvaneça o melindre natural. Calar tal nome é uma prova
de respeito com que deve retribuir a generosa amizade de sua mãe. É
provavel que ella pouco lhe diga. A sua primeira expansão será de
lagrimas. Receba-as que são, talvez, as que salvam a infeliz senhora da
morte.
Não se enganára o conego. Rosa Guilhermina fraqueou quando recebia nos
braços Assucena. Desmaiada, podéra reputar-se morta, se o coração não
batesse violento no seio da consternada filha.
Bernabé, amparando-a tambem, perguntava a Assucena quanto daria por
salvar sua mãe.
--Dou a minha vida!--exclamou ella.
--E, se sua mãe lhe pedisse o coração, e não a vida?
--Tudo, tudo, senhor!
--E, se ella lhe pedisse que renunciasse o amor de Luiz da Cunha?
--Para salval-a?
--Sim, para salval-a.
--Morreria, mas renunciava...
--Melhor lhe fôra então morrer!...--disse em voz soturna Bernabé,
afastando a viscondessa esvaida dos braços da filha, e fixando n'esta um
olhar de severa reprehensão. A neta do arcediago deixou cahir os braços,
e pregou os olhos no chão. Ora o rubor, ora a pallidez revesavam-lhe no
rosto afflicto. Dôr e vergonha, amor e arrependimento, esperança e
desespêro, eram por ventura as variadas sensações que lhe occorreram,
atropellando-se para lhe fazerem mais difficil a consciencia da sua
situação. A infeliz não podia combinar as palavras esperançosas do
conego com o repellão e olhar severo que acabava de soffrer.
--Venha comigo, menina...--disse D. Perpetua receiando algum accidente
dos que lhe davam depois do dia anterior.
--Eu não vou sem que minha mãe me falle.
--Deixe-a tornar a si; depois, ficará sósinha com ella.
Assucena obedeceu. Minutos depois, Bernabé sahiu da sala em que ficava a
viscondessa, esperando a filha, deitada n'um canapé.
O conego disse quasi ao ouvido de Assucena, que entrava na sala:
--Perante Deus é responsavel pela vida de sua mãe. Ella não lh'o dirá;
mas digo-lh'o eu. No dia em que a menina se julgar feliz, amando um
infame, matou sua mãe.
Assucena entrou na sala atordoada por estas palavras.
Bernabé Trigoso esfregava as mãos em ar de jubilo.
--Porque estás assim contente?--perguntou D. Perpetua, alegrando-se
tambem de anticipação.
--Contentissimo! Salvei-as ambas! Aqui a grande difficuldade era salvar
a filha! Bemdito seja Deus, que nunca me abandonou n'estas difficuldades!
--Pois então? como é que salvaste a menina?
--Puz em luta dous sentimentos fortes. A mãe que morre por sua filha, e
o amado que despresa a sua amante. Ha de vencer o mais nobre, que é o
primeiro, e tem em seu auxilio um coração ainda puro. Verás, Perpetua; A
viscondessa não lhe falla em Luiz da Cunha. Este silencio só de per si é
uma pungente accusação á filha. A viscondessa dá indicios d'uma morte
proxima. Assucena começa desde já a sentir o remorso de a ter matado. A
ancia de salval-a ha de vencer a ancia da saudade. Por fim é a mãe que
triumpha, e não triumpharia se viesse lançar-lhe em rosto a deshonra. É
Deus que me manda. Creio que salvaria Assucena sem o conselho do medico.
Escusavamos, talvez, uma mentira...
--É verdade, Bernabé!--atalhou pungida a senhora D. Perpetua.
--Mas, emfim, Deus sabe as intenções com que a gente mente para tornar
menos hediondo o crime do seu semelhante... Não ouves soluçar na sala?
--Ouço... são ambas...
--Bem, bem!
--Escuta, Bernabé...
--Que ouves?
--Palavras... _perdão_... _não me mates_... _amaldiçoada_... É a mãe que
falla...
--Bem, bem!
Pouco depois, abriu-se a porta da sala. Bernabé Trigoso, com sua irmã,
entraram. Mãe e filha enxugavam as lagrimas. A viscondessa
abraçou-se a D. Perpetua, pedindo-lhe que fosse mãe de sua filha,
forçando-lhe a mão para aceitar uma bolsa. O conego reparava na luta
silenciosa em que sua irmã parecia afflicta e envergonhada. Cheio de
affabilidade, tomou da mão de Rosa Guilhermina a bolsa, dizendo:
--Muito obrigado a v. ex.ª
Depois, no patamar da escada entregou-lhe com dignidade a bolsa,
solemnisando o acto com estas palavras:
--Aceitei o dinheiro na presença de sua filha para que ella se persuada
que é sua mãe que a sustenta, e não se considere em obrigação a
estranhos. É a quarta vez, senhora viscondessa, que lhe digo que em
minha casa ha abundancia, e independencia, e honra. Espero da sua
bondade que me não forçará á repetição, porque me desgosta. Outro
assumpto: que vaticina?
--Penso que minha filha se condoeu de mim, e esquecerá o infame... É
preciso não a abandonar... Virei, todas as vezes que podér, observar o
bom resultado das suas diligencias, senhor conego. Se lhe parecer que é
util afastal-a de Lisboa...
--Não convém... A cura ha de operar-se aqui, se Deus me conceder vida,
que será breve, porque a velhice e os padecimentos trazem sempre a gente
em redor da sepultura...


IX.
HERANÇA DE VIRTUDE E OURO.

Não era possivel tirar um sorriso dos labios de Assucena. Muito era já
evitar as occasiões das lagrimas, no primeiro mez da sua convalescença.
A recahida era possivel á menor tentação de Luiz da Cunha. E, por isso,
os cuidados do conego eram solicitos em prevenir um bilhete, ou qualquer
meio de que o perverso se servisse, em algum momento de caprichoso
desejo. Bem sabia Bernabé Trigoso que Luiz da Cunha existia, quasi
invisivel, em Lisboa. As informações eram-lhe dadas por um beneficiado
da Sé, seu discipulo em virtudes e em sciencia, unica pessoa, que
frequentava sua casa. Para corresponder ás recommendações do conego, o
padre Madureira entrara no segredo do viver de Luiz da Cunha. Não o vira
nunca no theatro, nem nos cafés, nem no Passeio Publico; mas soubera
casualmente d'um boleeiro que uma sege de praça o ia buscar todas as
noites, depois das onze e meia, a Campolide. O padre Madureira, que, em
pesquizas, teria sido um habil agente do santo-officio, indagou da casa
em Campolide, e pôde apenas vêr-lhe o portão. Era justamente aquella
onde, vinte e cinco annos antes, tinha sido assassinada Ricarda, e
enterrado seu marido.
O prescrutador alapou-se n'um casebre fronteiro, e viu que, ás onze
horas e meia, uma sege parava defronte do portão. O padre estava a pé:
era necessario seguil-a, e, para isso, desceu da sua dignidade
sacerdotal ás astucias de gaiato, e sentou-se na taboa. O impeto da
corrida não dava tempo á desconfiança do sota. A sege parou na rua do
Collegio. O padre apeou primeiro que Luiz da Cunha, e sumiu-se na
travessa do Pombal. Depois, seguiu-o de longe, e viu-o entrar em uma
casa da rua de S. Bento, reparando na subtileza com que a porta fôra
aberta e fechada. O padre não era de meias informações. Queria, por
força, distinguir á luz azulada da lua o numero. N'esta difficultosa
empreza, demorára-se, sem attender a um vulto, que desembocara da
travessa de Santa Thereza, e caminhava para elle, deixando, alguns
passos atraz, dous outros vultos parecidos, pelo capote e chapéo
derrubado, com os importantes sicarios de qualquer drama em cinco actos.
O primeiro dos tres chegou, hombro com hombro, a par do irreflectido
Madureira.
--Que quer aqui o senhor?
--Não queria nada--respondeu, retirando-se o observador.
--Não quer nada, e está com os olhos espetados n'aquella janella!
Ólé--disse o encapotado para os da rectaguarda--Conhecem este homem?
Approximaram-se os dous, e responderam negativamente.
--Que está vossê aqui fazendo?--tornou carrancudo, com voz de tyranno,
sem descobrir a cara, o interruptor de uma analyse innocente.
--Responda!--recalcitrou um dos dous--quando não metto-lhe quatro
pollegadas de ferro na barriga.
O padre não era connivente na proposta, e evitou o melhor que pôde
aceital-a, explicando d'este modo a sua paragem n'aquelle sitio:
--Eu vi aqui entrar um sujeito, e desejava muito saber que casa é esta.
--E conhece o sujeito?--perguntou o que tinha certa authoridade, e certa
polidez no metal de voz.
--Conheço, sim, senhor, mas só de vista.
--E com que fim quer saber a quem pertence esta casa?
--Para satisfazer a minha curiosidade.
--Pois, se está satisfeita, retire-se.
Madureira estava satisfeitissimo até com o inesperado desenlace.
Ainda assim, mudou de proposito, quando ouviu tres pancadas na mesma
porta onde entrára Luiz da Cunha. Cobriu-se com a esquina da travessa
Nova, e esperou. Ao segundo toque, foi aberta a porta. Um vulto entrára:
dous foram postar-se na travessa de Santa Thereza. Vinte minutos depois,
vira sahir um vulto, menos volumoso do que entrara. Viu correrem sobre
elle os outros dous, ouviu gritos de soccorro, e divisou um corpo
cambaleando até cahir. Duas patrulhas correram ao local do grito.
Madureira confiou nas garantias da guarda civica, e aventurou-se a tirar
a ultima conclusão dos seus principios. Foi, e viu, nos braços dos
soldados, Luiz da Cunha com as mãos tintas de sangue, que lhe
transsudava do collête branco, e da gravata. Eram duas punhaladas, pelo
menos: uma no peito, e outra no pescoço.
--O senhor viu como isto foi?--perguntou um soldado ao padre.
--Não senhor, eu vinha na travessa Nova, quando ouvi gritar.
--Conhece este homem?
--Nada, não conheço.
--Quem é o senhor?--perguntaram a Luiz da Cunha, que sahira do torpor em
que o deixára o abalo.
--Moro no Campo Grande, no palacete de João da Cunha.
--Olha que firma!--murmurou um soldado para o seu companheiro de
patrulha--Bem me parecia a mim que o conhecia... Este foi o que jogou o
murro com o visconde de Bacellar, nos Paulistas! D'esta vez parece que
topou com a fôrma do seu pé...
Luiz da Cunha foi conduzido por dous gallegos do chafariz, apenados por
cabos de policia, em uma cadeira, sobre duas trancas de carreto, a casa
de seu pae.
Madureira, apenas luziu a fresta do seu quarto, na rua das Gavias,
correu á rua do Principe, onde expôz na melhor ordem as aventuras da
noite; só não soube dizer que o vulto, que o accommettêra, e desempalára
o furão da casa de Liberata, fôra o conselheiro Costa e Almeida, que
não era tão _excellente creatura_ como a sua amante o imaginava.
Deixemos o padre Madureira com Bernabé Trigoso, e vamos espreitar mais
dentro o que elle não viu, nem saberá contar ao espantado conego, e á
espavorida Perpetua.
O conselheiro fôra avisado por cartas da infidelidade de Liberata. Á
primeira não deu credito. Á segunda deu algum, porque lhe marcava a hora
da entrada. Viu com os seus proprios olhos, porque a sua duvida era tal,
e tamanha como o pleonasmo da phrase. Depois que o viu entrar, quiz
bater á porta; mas faltou-lhe o animo na conjectura de ter de
encontrar-se com o rival. Na segunda noite, sem inspirar desconfianças a
Liberata, entrou armado, fortalecido pelo ciume. Procurou-o em todos os
cantos, com finura e resolução, e não o viu. No dia seguinte, recebe a
terceira anonyma: dizem-lhe que o concorrente sahia quando elle entrava.
Preparou-se. Chamou dous criados, e deu-lhe instrucções, que elles
desempenharam d'um modo que não deixou nada a desejar, porque o julgaram
morto, e as instrucções eram assim pontualmente executadas.
Liberata ouvira os gritos de soccorro, quando o conselheiro parecia
querer distrahil-a vibrando o teclado do piano. O criado, por um aceno,
significou-lhe a catastrophe. A enfurecida amante de Luiz veio á
janella, e perguntou a um grupo de soldados e cabos de policia o que
acontecêra. Responderam-lhe que fôra alli apunhalado um rapaz de boa
familia do Campo Grande. Liberata voltou para dentro, entrou no seu
quarto, correu desfigurada com um punhal á sala, onde passeava o
conselheiro, e desceu-lhe sobre o peito uma punhalada, que elle amparou
no braço.
--Já fóra de minha casa--bradou ella--quando não grito aqui-d'el-rei
contra um ladrão, contra um assassino!
--Cale-se, que eu retiro-me.
--Já sû assassino! ámanhã hei de publicar o seu nome nos jornaes, como
matador de Luiz da Cunha, se elle morrer. Fóra de minha casa, patife!
O official maior cozeu-se com o corrimão, mais receoso da lingua que do
punhal.
Liberata mandou montar a sege. Era um galopar vertiginoso para o
Campo Grande! Encontrou defronte do palacio do conde das Galveas a
cadeira, que conduzia Luiz. Apeou. Chamou-o, beijou-o com frenesi; fêl-o
entrar na sua sege; mandou adiante o criado de taboa chamar um medico;
deu ordem para que a sege volvesse vagarosamente, e entrou em sua casa
com o filho de Ricarda desfallecido nos braços, pela perda de sangue,
que ella em vão quizera estancar com os lenços, e até com as meias de
sêda branca, servindo-se das ligas, e fitas dos sapatos como compressas.
O medico declarou que as feridas não eram irremediavelmente mortaes.
Luiz da Cunha foi curado com extremo desvelo. Um mez depois dava um
passeio de sege, ao escurecer, a par da sua estremecida amiga.
As indagações da policia aclararam todo este mysterio. O conselheiro não
foi poupado á irrisão publica, e a dedicação de Liberata era celebrada
como um heroismo incompativel com tal mulher. Alguns litteratos
promettiam um drama em tres actos sobre bases tão dramaticas. Outros
escreviam poesias em versos grandes intercalados de pequeno, sem que se
promettia a rehabilitação de todas as Liberatas. E com isto, os pobres
rapazes, se fizeram algum mal, foi a elles, porque, desde esse dia, até
no Bairro Alto procuraram victimas a salvar do abysmo, e sahiram de lá
espancados por algum marujo, que entendia melhor de fado e vinho, que de
regeneração e amor, e ellas tambem, pelos modos.
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Bernabé Trigoso reduzira Assucena a um entorpecimento moral, semelhante
á indifferença. Eram passados quatro mezes, depois da sua quéda. A
infeliz erguia-se sem sensibilidade: parece que perdêra, com a
esperança, a memoria do passado. Ainda assim, Bernabé não se atinha ás
apparencias. Era necessario sondal-a.
Fallou-lhe em Luiz da Cunha como incidente n'uma conversação sobre o seu
passado no collegio. Assucena pedira-lhe que não fallasse em tal homem.
Replicára o conego, perguntando-lhe se lhe seria então indifferente a
vida ou a morte de Luiz.
--Antes quero que viva.
--Porque o ama ainda?
--Porque me queria vingar...
--Vingar-se!...
--Sim... vingar-me pelo remorso... É impossivel que elle não venha a
sentil-o...
--Isso é do coração?
--Do coração, sim, meu querido amigo. Eu tenho hoje odio a esse homem,
porque me vejo amada de todas as pessoas, e aborrecida por elle, depois
de me perder... Minha mãe que devera despresar-me, ama-me... V. s.ª, e
sua irmã adoram-me como se eu fosse d'esta casa... Só elle!... é elle o
que me esquece... o que me deixou, desamparada!...
--Desamparada?... E Deos não a acolheu?
--E sabe elle se eu a estas horas peço uma esmola!
--Não... nem lhe importa saber... Quer que eu lhe diga a ultima aventura
d'esse homem?
--Não... não me importa... Onde está elle?
--Em Lisboa.
--Em Lisboa?! Não me disseram que fôra para o Brazil?!
--Quando foi conveniente dizer-lh'o. Hoje póde saber que Luiz da Cunha
vive em Lisboa, debaixo das mesmas telhas com a unica mulher digna
d'elle...
--Cale-se, por piedade, meu amigo...--interrompeu ella.
--Pois que? Não me disse que lhe era indifferente...
--Basta-me o odio que tenho no coração... Não posso com mais...
--Odio é muitas vezes demasiada importancia ao que é sómente
despresivel. Eu quero que Assucena se lembre de Luiz da Cunha para
perdoar-lhe no seu coração, conversando com Deos, se os infortunios
d'esse homem forem taes, que possam attribuir-se a expiação do crime em
que Assucena foi a primeira victima.
--Perdoar-lhe... eu!
--Não gosto d'essa exaltação de cólera, filha. Em quanto ella existir,
não está cauterisada a ferida. Eu vou experimental-a.
Bernabé Trigoso contou as scenas observadas por Madureira, e as outras
colhidas de informações que eram já do dominio publico. Assucena
escutou-as com attenção. A arte valeu-lhe muito. Manteve silenciosa
impassibilidade, quando o conego esperava alguma commoção. Mas, apenas
livre das vigilancias de Perpetua, fechou-se no seu quarto, e chorou. O
seu soffrimento devia ser um tumultuoso acervo de muitas dôres: odio,
amor, ciume, saudade, desesperação, consciencia da sua quéda nos braços
de tal homem, a preferencia em que era sacrificada a uma mulher perdida!
O incidente passou com alguns dias de profundo abatimento. As visitas de
Rosa Guilhermina, as diversões domesticas, que o conego lhe dava
despertando-lhe o gosto pela musica, pela pintura, prendas em que se
distinguira no collegio; e, de mais, a enraisada affeição com que pagava
pequena parte da amizade que lhe dava esta familia, considerada a sua,
pareciam tornal-a indifferente ás reminiscencias, se ellas existiam, das
suas passadas desventuras.
Assim correram dez mezes, que eu deixo passar sem analyse, porque em
poucas linhas se diz que a viscondessa de Bacellar recuperára, se não um
resto de contentamento, que perdera com a desgraça da filha, ao menos um
ar de saude, que os medicos lhe não promettiam. O visconde, preoccupado
com a alta e baixa de fundos, esqueceu a affronta recebida nos
Paulistas, e nunca perguntou o destino de Assucena. Luiz da Cunha de
quem no proximo capitulo fallarei mais de vagar, vivia com Liberata.
João da Cunha estava, se não rematadamente doudo, ao menos tres partes
do dia, fechado no seu quarto, dizia em voz cavernosa cousas
inintelligiveis.
Ao cabo de dez mezes Bernabé Trigoso adoeceu, e prophetisou a sua morte,
antes que os medicos lh'a mostrassem n'uma das pontas do fatal dilemma.
O seu primeiro acto foi um testamento verbal, dito a sua irmã,
fechando-se com ella em longa prática. Os fins da sua vida foram suaves,
tranquillos, e auxiliados de todos os soccorros espirituaes. A
viscondessa de Bacellar ajoelhou muitas vezes aos pés do seu leito.
Assucena, sempre ao lado do enfermo, não podia chorar na presença
d'elle, porque o venerando velho dava visiveis signaes de que lhe era
custosa a morte, se via lagrimas inuteis nas faces da que elle chamava a
sua corôa de triumpho sobre os vicios da terra. A filha de Rosa
Guilhermina só acreditou na perda do seu bemfeitor, quando o moribundo
apertou entre as suas, quasi frias, as mãos de Perpetua e as d'ella,
dizendo-lhes: «é agora!...» cerrando os olhos sobre tudo que lhe era
caro, fechando os labios com a palavra «Deos» e aceitando, já no limiar
da eternidade, convertidas em flôres, as lagrimas, que enxugára aos seus
irmãos de exilio.
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O conego Bernabé Trigoso passava por pobre, attendendo á sua velha
chimarra, ás suas sempre velhas botas de cano alto, e ao seu arruçado
tricorne. O seu espolio, só conhecido de sua irmã, era dinheiro, herança
de seu pae, de seus avós, thesouro até preciosissimo para a numismatica,
pela variedade de moedas de prata e ouro desde D. Affonso III.
D. Perpetua não tocou n'essa caixa quadrada, com dimensões bastantes
para conter uma riqueza que lhe não servia de nada a ella. Mostrou-a,
sem abril-a, dias depois da morte de seu irmão, a Assucena. «O seu
patrimonio está aqui, minha filha. Eu fui a depositaria, mas a menina é
a dona. Meu bom irmão não teve animo para lhe dar os seus ultimos
conselhos. Já morreu, já lá está na presença de Deus; mas elle vê e ouve
o que fazemos e dizemos. Parece-me que bem cedo vou ter com elle. Tenho
sonhado todas as noites, que meu irmão me chama para si... É tempo de
cumprir as ordens do nosso amigo. Depois da minha morte, Assucena será
tambem minha herdeira. Eu tenho uma quinta no Lumiar, onde fui nascida e
creada, e onde desejo morrer. Partirei para lá o mais cedo que possa
ser, Assucena vai comigo, porque sua mãe me deu consentimento. Se Deus
chamar a contas a minha alma, digo-lhe, em nome de meu irmão, que viva
n'essa quinta, que fuja d'esta terra d'onde vai fugindo a religião e o
temor dos juizos divinos. Tome como director da sua vida o padre
Madureira, que aprendeu a ser virtuoso com meu irmão. Com o tempo, a
menina ha de entrar na casa de sua mãe, e então estará livre de todas as
perfidias do mundo; mas, em quanto o não fizer, viva recolhida com a sua
boa alma no seio do Senhor; esqueça-se dos seus desgostos, dando-se ao
prazer de dar esmolas sem ostentação, que foi sempre a constante
virtude do santo, que Deus nos levou para a côrte celestial. Ha quasi um
anno que vive n'esta casa: já agora ha de fechar os olhos ás duas
pessoas, que mais lhe quizeram, e que a deixam no mundo a pedir ao
Senhor pelas suas almas. Nunca se ha de esquecer dos seus amigos, porque
meu irmão está no ceo pedindo por nós, e brevemente pediremos ambos pelo
nosso anjo.»
A singela prática acabou por lagrimas, que a interromperam.
Os sonhos de D. Perpetua são o inexplicavel effeito de uma causa
superior ao entendimento.
Como o seu desejo era morrer onde nascêra, a irmã do conego mudou para o
Lumiar, com Assucena, e o padre Madureira, constante companhia das duas
senhoras, depois da morte do seu mestre e amigo.
D. Perpetua Trigoso, durante dous mezes, foi exemplar em obras de
caridade, como se devesse ser essa a ultima lição de Assucena.
Setenta e tantos annos, com todos os achaques de velhice, explicam a
rapida consumpção que, n'esses dous mezes, convenceu Perpetua de que em
verdade seu irmão a chamava. Sacramentou-se uma tarde, com symptomas
ainda de vitalidade para alguns dias. Entregou-se o seu testamento ao
padre Madureira. E fechou o cyclo das suas virtudes, convidando a sua
attribulada amiga a presenciar a morte d'uma mulher sem a consciencia
d'uma injustiça. Só ella conheceu o seu fim, como se o anjo da
bemaventurança lh'o segredasse. Morreu, abençoando Assucena, e
passando-lhe ás mãos a cruz que não podia já suster no braço hirto pela
aridez cadaverica.
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Assucena era herdeira de quarenta mil cruzados. Nunca se julgou tão
desvalida. Não sabia a significação encyclopedica da palavra «dinheiro.»


X.
COMO OS ANJOS SE VINGAM.

Um anno corrêra tambem para Luiz da Cunha. As duas existencias,
comparadas entre si, afiguram-se-nos o mytho de duas almas: uma tirando
para Deus um vôo; a outra afundando precipitadamente na região das
trevas, na infinita desesperação.
O rival do official maior de secretaria estabeleceu a sua residencia em
casa de Liberata, noite e dia. O carinho com que ella o tratára na
convalescença dos ferimentos, obrigára-o a sentimentos de gratidão, e a
taes protestos de retribuir-lh'a em premios de inestimavel preço, que
Liberata, tão incapaz de avalial-os como quem lh'os promettia, ria com
cynica desenvoltura da sua rehabilitação, projectada por Luiz da Cunha.
O neto dos Faros, durante a sua enfermidade de vinte e tantos dias,
entrára na região philosophica dos deveres sociaes, e confeccionára
certas maximas de alta importancia para a sua futura felicidade.
A sociedade, que nos abomina, não tem direitos ao nosso respeito.
Primeira maxima.
O escandalo, quanto mais estrondoso, mais grato áquelle que o dá, porque
assim insulta uma hypocrisia astuciosa com que Tartufo e D. Basilio
douram a pilula aos seus parvos admiradores. Segunda maxima.
Todo o homem tem direito a ser um infame, na opinião publica, quando é
feliz na sua particularissima, e unica respeitavel. Terceira.
A felicidade está em nós, não se reflecte dos juizos estranhos. Quarta,
muito parecida com outra da sã philosophia. Os extremos tocam-se.
A mulher mais digna de nós é aquella que melhor serve as nossas
propensões, quer viva na crypta subterranea das vestaes, quer se ostente
de seios nús no estrado do alcouce. Quinta.
O homem que pede á opinião publica consentimento para amar uma, ou a
outra, é um tolo. Sexta.
_Et cetra._
E, de todas, concluiu que devia casar-se com Liberata, visto que era
esta a mulher, que mais servia as suas propensões, e mais credito
adquirira sobre o seu reconhecimento.
Este homem, que tocou da torpeza o extremo em que a compaixão se allia
ao nojo, offereceu-se a Liberata, como marido. Esperava vêl-a saltar-lhe
ao pescoço, fundindo-se em prantos de felicidade, e recebeu em resposta
a gargalhada mais estridorosa, mais comica, e mais fulminante! Liberata
tambem tinha as suas maximas, bebidas na fonte impura do seu amante; mas
entre as do seu amante não se encontravam algumas, que eram a base
fundamental de todas as outras no catecismo d'ella. Eram estas:
Toda a philosophia sem dinheiro é uma tolice.
Não ha nada que se pareça tanto com o mendigo como o philosopho pobre.
Bolsa vasia, intelligencia manca.
Sem dinheiro não se affrontam os desprêsos da sociedade.
Se não és rico, não sejas corrupto, porque o teu sapateiro não só te
despresa, mas dá-te com o tira-pé.
Mulher, cahida em leito de ouro, levanta-se toucada de brilhantes.
A deshonra, que se estorce n'uma esteira, é que nunca se rehabilita.
Rehabilitar-se é ser precisa, desejada, invejada, e pesada a ouro.
Estes proverbios explicam a gargalhada de Liberata á muito séria
proposta de Luiz da Cunha.
--Estás doudo!--accrescentou ella, batendo as palmas--Tragam-me uma
camiza de força para o meu pobre Luiz, que endoudeceu, e quer casar
comigo!... Tu fallas sério?!
--Fallo sério... fallo-te com o coração.
--Pobre coração! Pois ainda tens d'isso? Não nos fica bem fazermos de
creanças... Eu não sou Assucena, meu trampolineiro...--dizia ella,
anediando-lhe as guias do bigode--Que será feito d'essa illustre menina?
--Não sei... dizem que está no Minho em uma quinta do padrasto... Mas
diz-me cá, Liberata... Achas disparate o nosso casamento?!
--É uma bestialidade... Vou provar-te que nunca se disse mais tremenda
asneira. Se casassemos, qual era o nosso futuro? Naturalmente seria,
pouco mais ou menos, o que era ha dous mezes. Eu teria um amante rico
para sustentar o meu marido pobre.
--Mas hoje não acontece assim.
--Se não acontece hoje, acontecerá ámanhã. Desde que o conselheiro foi
despedido, gasto das minhas economias; mas as economias vão gualdidas. A
sege e os cavallos estão á espera de comprador; os brilhantes irão
depois da sege; depois dos brilhantes, meu caro Luiz, é necessario
adquirir outros. Ora agora, imagina tu que és meu marido, e vê lá se te
convém ficar atraz da porta, muito caladinho, para não assustar o amante.
--Mas eu pensei que renunciarias ao luxo que tens hoje, e te
sacrificarias ao amor e á posse d'um só homem.
--Creancice! A primeira victima eras tu, e a segunda eu, e a terceira os
credores. Pois tu pensas que eu valho alguma cousa se despir este
vestido de sêda, com rendas de Escocia, e vestir um vestidinho de chita
de uma costureira?! Parece que não tens gastado cincoenta mil cruzados a
teu pae! Não te lembras que, ha dous annos, me deste um luxo
extravagante para me phantasiares, como tu dizias, uma d'essas romanas
que pareciam cahidas do ceo n'uma nuvem de perfumes?! E agora estavas
resolvido a pôr um estanque, e mandar-me vender charutos ao balcão!
--É porque te amo, Liberata, e não sei como hei de indemnisar-te.
--Não me deves nada: estás recebendo o juro d'uma divida. Sem ti,
meu Luiz, não era eu nada. Foste tu que me fizeste conhecida dando-me em
espectaculo de que eu lucrei muito, quando dizem que o escandalo faz
perder. O americano apaixonou-se por mim no theatro, vendo-me comtigo. O
capitão de fragata foi um irritante que fez dar saltos o americano. O
americano fez dar saltos o conselheiro. Hoje és tu um irritante de
muitos; mas, em quanto podér sustentar fidelidade, sou tua captiva.
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