A Neta do Arcediago - 10

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--É melhor.
--Mas, se me não levas a mal, sempre te farei uma pergunta...
--Não ha pergunta sem resposta... Venha de lá isso.
--Como se póde ser homem tão cruel?
--Como se póde ser mulher tão impertinente?--respondo, perguntando.
--Não tenho mais que te diga.
--Falla, se tens lá mais alguma pergunta de algibeira.
--Não tenho nenhuma; comtudo... se tens paciencia, has-de ouvir-me. Eu
tenho filhos, de cujo patrimonio sou administradora.
--Já sei.
--Os meus filhos podem pedir-me contas d'esta administração.
--Não digas mais nada, que eu já te matei a charada no ar. Queres dizer
que eu gasto mais do que os rendimentos da tua meação. Dir-te-hei que
não consinto que me lances em rosto a minha dependencia da tua fortuna.
Isso é vil.
--Sou vil, é o que se segue; mas repara, Luiz, que te não lancei em
rosto a tua dependencia.
--A cousa bem traduzida lá vai dar. Queres despedir-me do commercio de
bens?
--Não: o peor é se te despedem...
--Quem?! Que quer isso dizer?...--replicou elle, colerico.
--Nada...
--Minha querida senhora, para não irmos adiante, fiquemos aqui... Até
ámanhã...
--Até ámanhã, Luiz.
No dia seguinte, o conviva de Carlota Gauthier não veio a casa. A
escrava soube que o marido de sua ama sahira para Peschiera com a
franceza, que disse, no hotel, voltaria passados tres dias.
O immediato era o dia aprazado para a sahida do navio.
O addido conduzia de madrugada D. Marianna, e sua escrava, a bordo.
Genoveva levou sempre sua ama desfallecida nos braços. Dizia-se a bordo
que a pobre passageira parecia morta, e não desmaiada.


XIV.
CAVAR PARA OS OUTROS A SEPULTURA, E PARA SI O INFERNO.

Luiz da Cunha passeava com Carlota nas margens do lago de Garda, ao pé
do pittoresco Mincio. Deliciavam-se em meigos brinquedos, como duas
creanças, embebidos um no outro, ao que pareciam, suspirando juntos como
a brisa tépida que os arremedava no bulicio da ramagem.
Escurecia, quando divisaram tres vultos. O barqueiro que, a distancia,
os tinha já prevenido contra os perigos do local, ao vêr os vultos
teimou que entrassem no barco. Luiz, instado por Carlota, olhou com
saudade para as deleitosas testemunhas de seus prazeres, e foi, como
arrastado, na direcção do barco.
Mas os vultos acceleravam o passo. Carlota e o barqueiro diziam a Luiz
que fugisse.
--Fugir a que? São tres, e eu só fujo a trinta.
--Foge Luiz, que eu suspeito...
--Que suspeitas?
--Que algum d'elles é...
--O troca-tintas teu patricio? Deixa-me reconhecêl-o.
Luiz da Cunha esperou-os com as pistolas engatilhadas. Os vultos
marchavam para elle tão serenos como se tivessem ouvido o tinnir do
gatilho..
--Parem, quando não mato-os!--exclamou Luiz.
--Pois atira, miseravel!--disse um dos tres.
Os gatilhos bateram duas pancadas surdas. Luiz recuou, aperrando-os
de novo. As pancadas produziram o mesmo som abafado.
--Estou desarmado, covardes!--gritou elle, quando as primeiras pauladas
de «cacetes» curtos lhe estalavam na cabeça, nos braços e no peito.
--Chama os teus sicarios do Brazil!--dizia o antigo amante de Carlota,
sovando-lhe a cara de pontapés, quando elle, já em terra, coberto de
sangue, perdêra o accôrdo.
A dançarina presenceava o espectaculo de dentro do barco, que se fizera
ao largo, graças á prudencia do barqueiro.
Os francezes retiraram-se a passo moroso, conversando na mais tranquilla
pacatez de tres socios do instituto de bellas-letras, que viessem de
descobrir nas margens do Mincio o esqueleto d'um ichtyosaurus.
Carlota, contra a vontade do barqueiro, chegou-se a terra. Não vendo os
vultos, saltou, e viu em terra o amante, que gemia a cada esforço inutil
que punha para erguer-se sobre os braços macerados. O barqueiro veio em
auxilio da consternada moça. Tomaram-no entre os braços, deitaram-no na
prôa do barco, e lavaram-lhe a face arregoada de sangue.
Luiz da Cunha foi curado em Peschiera, e, logo que as forças lh'o
consentiram, quiz convalescer em Veneza. Carlota seguia-o,
indemnisando-o com extremosos cuidados do desgosto d'uma perigosa sova,
por causa d'ella.
Em Veneza, Luiz da Cunha que não déra, durante quinze dias, noticias
suas a Marianna, com quanto se não doesse muito de tal falta, achou que
era prudente procural-a, que não fosse ella, desesperada, sustar no
Brazil a remessa d'uma importante quantia que elle exigira.
No hotel disseram-lhe que sua senhora com a escrava tinham sahido n'uma
madrugada, havia treze dias, e não voltaram.
Entregaram-lhe as chaves dos seus quartos. Luiz da Cunha encontrou tudo,
menos os bahús d'ella. Nem uma carta sobre as mesas! cousa nenhuma que o
esclarecesse! Chamou o criado, que ficára com as chaves, esperando que
lh'as recebessem:
--Com quem sahiu a senhora?
--Com um cavalheiro.
--Seria de Veneza?
--Não, senhor: vi-o aqui entrar uma só vez, antes d'ella sahir com elle.
--E os bahús, quem os transportou?
--Dous homens que tinham vindo com o tal cavalheiro: pareciam marinheiros.
Luiz da Cunha informou-se. Justamente na madrugada d'esse dia sahira um
navio com carregação de vidros para o Rio de Janeiro.
A sua situação pareceu-lhe embaraçosa! A primeira ideia foi seguir
quanto antes sua mulher. Consultou Carlota, e a carinhosa respondeu
ternamente que o não acompanhava, porque não tornava ao Brazil. Ainda
assim, renunciando generosamente o amante á esposa, a bailarina
aconselhava-o que a seguisse, embora ella ficasse devorada de saudades.
Esta sublime abnegação impressionou Luiz, a ponto de olvidar, surdo aos
gritos do presentimento, as consequencias da apparição de Marianna,
sósinha, aos seus parentes.
Contando com a sua astucia, deferiu a viagem para mais tarde, visto que
ainda lhe restava uma ordem de dez contos, e entretanto Marianna,
forçada pela saudade, poderia de lá chamal-o, pedindo-lhe perdão.
Proseguiu nas suas viagens com Carlota. Saboreou o ouro e a liberdade,
não azedada pelas lagrimas importunas de sua mulher. Gastou francamente
como se uma nova remessa devesse chegar do Brazil, antes de escoar a
ultima libra dos dez contos. Fez, durante quatro mezes, pontuaes
pagamentos á bailarina, de cinco mil francos cada mez. Contava-lhe com
ingenua candura a sua vida, os seus haveres, e até desceu á pueril
pieguice de lhe dizer que era necessario fazerem economias, em quanto
lhe não chegava uma ordem para saccar em Londres um cabedal mais duradouro.
Carlota, á palavra «economias» sentiu que o coração lhe fazia no peito
uma pirueta, e ficava de costas voltadas para o economico amante.
Á maneira do coração, a dançarina resolveu fazer tambem uma pirueta na
primeira occasião.
A occasião veio-lhe ao encontro dos desejos. Um conde austriaco
hospedára-se no mesmo hotel em Roma. O locandeiro tinha poderes
discricionarios para convencer a moça. A proposta foi aceita,
estipuladas as condições, e Carlota desappareceu com o conde na estrada
que devia conduzil-a a Paris.
Luiz da Cunha--diga-se a verdade--não sentiu muito a ausencia da sua
companheira de quarto. A paixão diminuira na razão directa das libras. A
sensualidade ia-lhe arrefecendo á maneira que o espirito se lhe occupava
em meditações sobre o futuro. O mais que fez foi estudar os pontos de
contacto entre Carlota e Liberata, e viu que eram bustos do mesmo molde.
Teve a imprudencia de chamar Assucena e Marianna a esta galeria, e
concordou, o mais racionalmente que pôde, que aquellas duas eram d'um
estofo muito superior ás outras.
O peor era a pobreza que o ameaçava!
Os dez contos de reis em oito mezes, com quanto economisados, tinham
cahido na voragem dos brilhantes de Ricarda, dos bens livres de João da
Cunha, dos quarenta mil cruzados de Assucena, do incalculavel numerario
com que sahira do Brazil. Restavam-lhe algumas duzias de libras, e
nenhum amigo, nenhum credito, nenhuma esperança que lhe não deixasse
antever o futuro pela face da indigencia. Angustiado no dilemma,
resolveu abandonar a Europa, que tão cara lhe era, e vestir uma mascara
de bronze, como se precisasse de encobrir a vergonha, para lançar-se aos
pés de sua mulher, se é que ella lhe não correria aos braços, banhada em
lagrimas de alegria. O projecto dependia de uma execução immediata,
porque as ultimas libras urgiam.
Luiz da Cunha, protestando vencer, ainda uma vez, a força diabolica que
o empurrava para o abysmo da miseria, refez-se de coragem, confiou-se á
prodigiosa omnipotencia da sua impostura, e embarcou em Civitta-Vechia
n'um navio de escala para Buenos-Ayres.
N'esta viagem, não ha memoria d'alguma aventura digna de menção na
biographia do filho de Ricarda. Contaram, porém, os seus companheiros de
viagem, que tal homem se fizera repulsivo a todos pelo desprêso com que
a todos repellia. Era intratavel, e tinha accessos de frenesi
assustadores. Corria as cortinas do seu beliche durante o dia, e
passeava toda a noite na tolda. Se em noites calmosas os passageiros
tambem subiam a respirar, Luiz da Cunha descia com arremesso a isolar-se
na sua camara.
Vê-se que o cynico não tinha o riso despejado da escola. Soffria; mas
não era a suave melancolia do solitario sem os remorsos: era o assomo
colerico, o concentrado rancor do algoz que não póde estalar os grilhões
que o condemnam a morrer no desespêro da immobilidade.
Pois a hora do remorso não soára para este homem?! Ainda não. Talvez
nunca. O remorso é o triumpho do anjo bom. Luiz da Cunha pactuára uma
alliança insoluvel com o demonio, cuja existencia não é para mim uma
fabula, quando me vejo impellido ao mal, e cêdo com pesar ao impulso,
encarando o bem por que suspiro. A lucta entre as duas potencias existe
no coração humano, em quanto a consciencia sabe estremar o crime da
virtude. Mas, perdidas as noções do dever, raspada de sobre o coração a
palavra «honra» a lucta já não existe, o anjo bom fugiu espavorido, o
remorso é impossivel.
E era-o para Luiz da Cunha.
Esse fugir da sociedade, odiando os homens, era o encovar-se do tigre,
sequioso de prêsas, raivando de fome, e espreitando com olho abrazado a
victima desprevenida.
Luiz contava os dias de viagem com frenetica anciedade. Só, imaginára
todas as hypotheses terriveis do seu futuro. Dava-se como possivel a
vingança de Marianna, privando-se não só da tutella dos enteados para
diminuir os redditos, mas negando-lhe a elle uso-fructo da sua propria
meação. Verificar esta horrivel conjectura era o seu desejo: vingar-se
de qualquer modo era a sua tenção, se uma bem estudada impostura o não
reconciliasse com Marianna.
Chegou a Buenos-Ayres, e na lista dos estrangeiros que pernoitavam no
mesmo hotel viu o nome de Francisco José de Proença. Saibamos de
passagem que Proença era um official do exercito portuguez, que seguira
as bandeiras de D. Miguel. Em 1833 expatriara-se para o Brazil. Filho
d'um brigadeiro, visitava-se com João da Cunha, e fôra da roda de Luiz.
O marido de Marianna encontrára-o no Rio de Janeiro, luctando com a
adversidade, pobre, sem emprego, vivendo do trabalho esteril de
amanuense d'um advogado. Soccorreu-o com um emprestimo de dinheiro para
tentar o trafico da escravatura, pensamento dominante de Proença.
O portuguez fôra bem acolhido por Marianna, em respeito a seu marido.
Civil, bem morigerado, e prudente, colhêra muito na escola da desgraça.
Fez-se bemquisto, adquiriu proveitosas relações, alcançou aura de
honrado, apesar do seu plano de mercadejar com pretos. Este trafico não
deshonrava ninguem. Era como qualquer outro, um ramo de commercio, que
germinou illustres vergonteas, as quaes transplantadas depois em
Portugal, bracejaram copadas sombras onde se acoitam em torpel as
mercês, e os sacerdotes da apotheose.
Tal era o protegido de Luiz da Cunha em Setembro de 1840, quando o seu
protector, sahindo do Rio para a Europa, o recommendava aos tios de sua
mulher.
Foi, pois, bem natural o sobresalto de Luiz da Cunha quando viu na lista
o nome _Francisco José de Proença_. Guiaram-no ao quarto d'elle.
Proença, com o coração alvoroçado da surpresa, abraçou Luiz.
--Tu aqui!...--exclamou elle.
--Não imaginei encontrar-te fóra do Rio!
--Vens de lá? Já vejo que não.
--Venho da Europa. Ha que tempo sahiste do Rio?
--Ha tres mezes. Tu ignoras tudo, pelo que vejo.
--Se ignoro tudo!... Sei que Marianna está lá...
--Sabes que ella está lá? E sabes como ella está?
--Doente, talvez...
--Doente, não... morta.
--Homem! isso é extraordinario! Tu não mentes?
--A brincadeira seria de mau gosto. Não minto, Cunha. Pensei até que o
saberias.
--Isso é incrivel! Pois Marianna está morta?!
--E sepultada ha cinco mezes.
--Que infernal vida a minha!
As bagas de suor frio innundavam-lhe a testa. A commoção não se
differençava nada d'uma boa alma surprendida por uma nova terrivel.
--Infernal vida a tua! tambem eu digo, Cunha... Mataste aquella senhora...
--Matei...
--Tardio remorso!...
--Conta-me tudo.
--Pouco tenho que te conte. D. Marianna appareceu no Rio, sem ninguem a
esperar. Foi transportada n'uma rede ao seu leito. Soube-se que tu não
vieras, e correu que tinhas morrido. Marianna não recebia visitas, nem
os medicos. Pedi aos tios que me deixassem vêl-a, não o consegui. Um
d'elles contou-me os teus desatinos, e disse-me que a infeliz era tão
nobre que não pronunciava contra ti uma queixa. Precisava explicar a sua
fuga, e o pouco que disse foi mais amplamente contado por cartas do
ministro do Brazil na Austria. Levantou-se contra ti um brado de
indignação. Contaram-se todos os teus infortunios de Lisboa. Á carga
cerrada, os amigos de D. Marianna pediram que lhe fosse tirada a
administração da casa de seus filhos, para que tu não viesses continuar
a dilapidál-a. Tua virtuosa mulher pediu que a não mortificassem, visto
que a sua morte viria breve emancipar os pobres filhos da sua indigna
tutella. Empenharam-se todos em distrahil-a: o mais que conseguiram foi
mudál-a para uma quinta no Bota-fogo, onde viveu vinte dias. Aqui tens
bem simples a historia, e realmente te digo que é uma historia bem
fertil de lances desgraçados... Déste um pontapé na fortuna, Luiz, e com
esse pontapé arremeçaste tua mulher á sepultura...
--Pois sim... agora cala-te. As tuas reprehensões, além de inuteis, não
me soam bem.
--Desculpa-me se te fallo com franqueza tão rasgada. O facto de seres
meu credor não me humilha até ao silencio approvador dos teus crimes.
--Os meus crimes... não são meus.
--Pois de quem?!
--D'um demonio que me perde... E agora vejo que estou irremediavelmente
perdido!...
--Comparativamente ao que perdeste... estás.
--E pobre...
--Quasi pobre. Tens apenas quatro contos de reis que te devo, e o
pouco que tenho acima d'esse capital á tua disposição.
--Minha mulher fez testamento?
--Não. Tudo que tinha pertence aos filhos.
--Mas uma escriptura _causa mortis_ que fizemos?
--É nulla: foi logo annullada. D. Marianna não podia dispôr do que era
dos filhos: podia apenas legar-te a terça; mas não testou. Aconselho-te
que não vás ao Rio, muito menos se tentas questionar os direitos dos
teus enteados. Não vás, que serás morto. O teu nome desperta odios
n'aquelles mesmos que recebeste nos teus jantares. Tens um só amigo, que
se condôa de ti. Sou eu.
--E qual será o meu futuro?
--O que podéres grangear pelo trabalho; mas, no Rio de Janeiro, não.
--Em que negocias?
--Negociei em escravos.
--Tens sido feliz?
--Muito pouco. Tenho repugnancia para esta mercadoria.
--Queres tentar comigo uma empreza d'essas?
--Não. Hoje o meu commercio é menos rendoso, mais pacifico, supposto que
mais laborioso.
--Não sei o que são emprezas laboriosas...
--Tenta; póde ser que a fortuna te dê ainda outro abraço; mas as costas
d'Africa estão coalhadas de negreiros.
--Que dinheiro dispensas?
--Oito contos de reis. Quatro que te devo, e quatro que te dou, ou te
empresto... como quizeres.
--Posso fazer alguma cousa com esse dinheiro?
--Pódes, associando-te a algum negreiro, que farei teu conhecido.
Apresento-te ao que tem maiores depositos na praia dos escravos em
Guiné.....................................................................
..........................................................................
N'esse dia foi conduzido ao escriptorio do negreiro, em Buenos-Ayres, o
adepto com a sua quota parte de oito contos de reis. Quando tratavam as
condições da sociedade, estava presente um mulato bem trajado, com os
dedos scintillantes de pedras, e uma grossa cadeia de ouro no
pescoço. Ouvira, silencioso, o contracto, e seguira-o até á porta do hotel.
Pouco depois, Luiz da Cunha recebia um bilhete anonymo, que lhe pedia
uma entrevista, a sós, atraz da igreja das Mercês, ao escurecer.
Recommendava o bilhete um segredo inviolavel.
O temerario foi, sem consultar Proença, e encontrou o homem que vira em
casa do negreiro.
--O senhor quer ser rico?--perguntou o mulato.
--Quero.
--Ninguem responde com mais concisão, nem mais depressa. Se quer ser
rico, siga outro rumo. A escravatura deu em droga. Metade dos negros
morrem no porão: os outros ninguem os quer a cem mil reis fortes por
cabeça.
--Pois que rumo devo seguir?
--Primeiro; o senhor é capaz de nunca revelar o que eu lhe disser?
--Sou.
--Não o sendo, a sua existencia valerá menos que um preto asmatico.
Segundo: tem coragem?
--Tenho, penso eu.
--Quer entrar comigo n'um commercio que é um pouco menos infame que o da
escravatura? Quer ser pirata?
--Pirata! O senhor está a zombar comigo?
--Não tenho mais que fazer! Chamei-o mesmo de proposito para zombar com
o senhor! Ora vamos, quer ou não?
--E o senhor assegura-me que se enriquece em pouco tempo?
--Asseguro-lhe que nos fazemos n'um momento proprietarios da propriedade
que outros adquiriram em muitos annos.
--E os contratempos?
--Os do mar?
--Não digo isso: a defeza que póde ser mais poderosa que o ataque...
--Ah! o meu amigo raciocina assim? Já vejo que me não serve... Até á paz
geral, meu caro senhor. Segredo, ouviu?
--Mas ouça, que eu não me deliberei ainda. Não me julgue algum miseravel
poltrão. Quer o senhor entrar no meu quarto, e fallemos lá?
--Então, entre o senhor no meu, que é mais perto. Ceará comigo, e
dormirá, se quizer, com a melhor das minhas escravas.


XV.
LOGICA DO INFORTUNIO.

Luiz da Cunha aceitára a proposta, a ceia, e a escrava. Com grande
espanto de Proença, fizera a sua aposentadoria em casa do mulato,
explicando esta nascente amizade por certo mysterio, que elle não dizia,
porque não soubera inventál-o. Proença, suspeitando as intenções de
Cunha, porque lhe não eram estranhos os boatos que corriam muito
deshonrosos para o mulato, deu-se pressa em sahir de Buenos-Ayres com a
sua carregação de cortumes para a Bahia.
Poucos dias depois, desappareceram Luiz da Cunha e o seu recente amigo.
Das praias de S. Thiago del Estero, sobre o Athlantico, levantaram ferro
dois navios com aspecto mercantil, içando a bandeira da republica
argentina. Costearam a provincia do Rio-da-Prata até ao Paraguay. Ahi
fizeram-se ao largo, e arrearam bandeiras.
Ao nono dia de roteiro indeterminado, reconheceram a bandeira hespanhola
em dois navios de alto bordo que lhe passavam á prôa. A manobra foi
rapida. As galeras auxiliadas pelas correntes procuravam a esteira dos
navios, que lhes fugiam. Ao cahir da noite, a trombeta do pirata levou
uma ameaça de morte aos hespanhoes. Responderam-lhe com uma bala que
zumbiu nas gaveas.
Travou-se a lucta. Era tenebrosa a noite, e ao clarão da artilheria
viam-se d'um lado e d'outro, como visões phantasticas, as faces
enraivecidas de aggressores destemidos, e a coragem desesperada nas dos
aggredidos resolutos á morte com bravura.
O mulato déra o tremendo signal da abordagem. A galera que se retirava
da lucta, capitaneada por Luiz da Cunha, não obedecêra. É que uma bala
lhe fizera á pôpa um rombo. Os bravos tinham descido ao porão a
calafetarem inutilmente a fenda.
Os piratas recuavam, e os aggredidos accommetteram com o enthusiasmo da
victoria. A galera do mulato vomitava lavaredas. Estava incendiada.
--Á abordagem!
Bradaram os hespanhoes. A maruja das galeras gritou que se entregava. Os
netos de Cortez não admittiram a proposta. Saltaram entre miseraveis
ajoelhados. Alguns venderam cara a vida. Outros foram poupados para
puxarem o carro do triumpho. Entre esses estava Luiz da Cunha, que não
tivera coragem de morrer borrifado do sangue dos contrarios, como o seu
companheiro, e pedira de joelhos a vida. O extremo da ignominia encontra
a covardia. Sem a força moral da honra, o musculo do infame ennerva-se,
e a existencia, que devia ser-lhe um pêso, é-lhe ainda cara! Segredos.
Os prisioneiros foram levados ás Antilhas para serem garrotados. Alguns
foram-n'o logo. Luiz da Cunha, que promettêra aos capitães o resgate da
sua liberdade, pesando-se a ouro, foi posto a ferros em Porto-Rico.
Chegára a nova á Bahia, onde Proença negociava. Não se fallava em Luiz
da Cunha; mas dizia-se que um portuguez ou brasileiro, que parecia de
educação distincta, fôra prêso, e demorára com astuciosas promessas o
seu processo.
Proença não tinha animo para encarar o suspeito Cunha n'esse ultimo grau
da infamia. Apressou-lhe quanto pôde soccorros, e, calando o nome do
prêso, solicitava a sua liberdade.
Entretanto, Luiz da Cunha tramava a fuga. Todos os seus ardis foram
descobertos. Parte das authoridades hespanholas quizeram desfazer-se
d'elle, pendurando-o n'um triangulo. Mas o governador não consentira,
sem primeiro ouvir esse homem mysterioso. Ouvindo-o, admirou-lhe a
eloquencia astuciosa; arrancou-lhe o segredo de alguns dos precedentes
que mais deviam tocar-lhe o espirito um pouco romanesco. Luiz da Cunha
soubera dar-se prestigio, porque adivinhára a indole da authoridade.
Foi processado e condemnado a tres annos de prisão em Porto-Rico. Tres
annos! Mil e noventa e cinco dias e outras tantas noites de ferros para
esse homem, desamparado de todos, forçado a pedir esmola, como um
ladrão, pela grade da enxovia! Não terá elle, ao menos, a coragem do
suicidio?!
Não tinha.
O governador mandava-lhe umas sôpas, e umas calças velhas. Uma senhora
desconhecida esmolava-lhe um jantar todos os domingos, e mudava-lhe os
lençoes da pobre enxerga. O carcereiro, apiedado com a apparente
resignação do pirata, arranjava-lhe livros, e dava-lhe para de noite uma
candeia.
Quatro mezes d'este viver! Eis alli o amante de Assucena! o marido de
Marianna! Aquelle homem que tira de uma tigella de barro com um garfo de
ferro umas couves, é o mesmo que pagava dançarinas a cinco mil francos
por mez; é o mesmo que vira fugir-lhe por entre os dedos cem contos de
reis. E, comtudo, não tem ainda trinta annos! Que futuro!
Proença vem a Porto-Rico, ao quarto mez de prisão de Cunha. Procura o
governador, com valiosas cartas de recommendação, e historia-lhe
vagarosamente a vida do prêso. O governador espanta-se de tanto crime, e
crê na magica influencia de Satanaz sobre o desgraçado. Uma das
circumstancias que mais o pungem é o illustre nascimento de Luiz da
Cunha e Faro! Era fidalgo, sentia a dôr collectiva da raça: o vexame e a
condolencia de uma sympathica compaixão. Vencido pelas instantes
lamurias de Proença, quiz ser arbitro na liberdade do prêso, assim como
o tinha sido no immediato garrote que os outros soffreram. Luiz da
Cunha, com cinco mezes de carcere, é solto. Respira o ar da liberdade, é
senhor seu; mas a liberdade que lhe importa sem dinheiro, sem soccorro,
sem incentivo algum ás forças que lhe sobejam ainda para commetter
difficultosas emprezas? Que perversidade nova lhe resta a explorar? A
que reservatorio do inferno irá elle invocar um outro genio?
Que lhe falta?
Luiz da Cunha fôra chamado, apenas solto, a casa do governador. Entrou
n'uma sala particular, onde encontrou Proença. Não córou: a commoção
forte que um facil apreciador julgaria vergonha, era o contentamento de
encontrar um homem que, de certo, não viera alli para o deixar sem
dinheiro.
O expatriado é que não podia soster as lagrimas. Sentia o vilipendio de
Cunha, como se tirasse dos hombros do infame para os seus o pêso da
ignominia.
--Vieste salvar-me?--disse serenamente o pirata infeliz.
--Já ninguem te salva... Vim alcançar a tua liberdade para
experimentares uma nova posição social. Cahiste muito no fundo. Já não
ha braço que te levante.
--Parece-me que não. Venho de estudar na solidão da masmorra.
Philosophei o melhor que se póde com os meus principios experimentaes.
Conclui que sou uma machina. Não tenho vontade, nem acção. Quero vêr
onde chega isto! Desejava poder calcular approximadamente, pelos dados
da vida, que morte será a minha. Tenho trinta annos. Proença! como se
póde ser tudo o que eu tenho sido em quatorze annos!
--E que serás tu?!
--Eu sei!... o mais natural na minha situação é pedir uma esmola.
--E és capaz de pedil-a?
--Que duvida! Morrer de fome é escolher de todas as mortes a mais
indecente.
--E gracejas!
--Pois tu queres que eu receba seriamente a infernal omnipotencia que me
reduziu a isto?! Zombemos com ella.
--Mas não ha outro recurso contra a fome senão pedir esmola?
--Ou roubar.
--E o trabalho?
--Ah! sim... não me lembrava o trabalho!... mas que trabalho? Eu não
sirvo para nada, não tenho força nem vocação.
--Adquire-a, Luiz. Tu não me conheceste em outro tempo? Imaginaria
alguem, ha oito annos, que eu viria a ser um amanuense de advogado, e
mais tarde um negociante de cortumes? Eu tive fome, Luiz. Deitei-me
algumas vezes em jejum, e levantei-me sem a certeza do almoço. Não pedi
esmola, pedi trabalho. Olha as minhas mãos... não vês estas durezas?
Estão calejadas, mas nunca senti aqui o contacto de uma moeda de cobre
como esmola. Trabalha, Luiz.
--Diz-me lá em que...
--Vives comigo: tomas uma pequena parte nas minhas occupações, e recebes
uma parte grande dos meus interesses.
--Não te sirvo de nada, Proença. O que fazes é dar-me uma esmola.
Emprestas-me algum dinheiro?
--Que farás com esse dinheiro?
--Vou para Portugal. Tenho um palpite de que vou ser feliz...
--Feliz! Quem fará a tua felicidade em Portugal?
--Uma mulher.
--Como Marianna?
--Não me falles em Marianna. Tenho tido horas de inferno pensando n'essa
infeliz... Eu não sou de bronze, Proença. Vi-me tão afflicto uma noite
na cadeia, que me puz de joelhos a pedir-lhe perdão, cuidando que a via.
Era febre; mas olha que a vi tal qual ella devia ser a expirar...
Palavra de honra! não me falles n'ella... Bastam-me os meus remorsos...
--Tu não tens remorsos, Cunha... Não fallemos n'ella; concordo... O nome
d'essa infeliz sôa mal nos teus ouvidos... e é uma profanação na tua
bôca... Queres então ir a Portugal procurar uma mulher que te ha de
fazer feliz... Vejo que a desgraça tem comtigo momentos de zombaria...
Vai. Dou-te o dinheiro necessario para a passagem, e para a subsistencia
de alguns mezes.
--És um perfeito cavalheiro. Espero ainda embolsar-te do ultimo real que
me emprestas... Ris-te? É porque não sabes os meus planos.
--Os teus planos... O que me faz rir é a facilidade com que te illudes,
a inexperiencia do que és, a intimativa com que te confias a uma
esperança imaginaria. Que mulher de Lisboa descerá até Luiz da Cunha com
a sua riqueza? Estou fóra de Portugal ha oito annos, e conheço a tua
vida dia a dia; conhecem-na todos no Rio de Janeiro. Quem te não
conhecerá em Lisboa? Eu vi uma carta d'um tal visconde, escripta ao
ministro portuguez no Brazil, que te apresentava um prodigio de
immoralidades.
--Esse visconde era precisamente o visconde de Bacellar.
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