A Neta do Arcediago - 01

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A NETA DO ARCEDIAGO.
POR
CAMILLO CASTELLO-BRANCO.

SEGUNDA EDIÇÃO.

PORTO,
EM CASA DE CRUZ COUTINHO--EDITOR,
Rua dos Caldeireiros, n.os 18 e 20.
1860.


PORTO: 1860--TYP. DE SEBASTIÃO JOSÉ PEREIRA,
Rua do Almada, 641.


A NETA DO ARCEDIAGO.


I.
UM BERÇO BORRIFADO DE SANGUE.

Convém, primeiro, saber quem é este cavalheiro, que salta garbosamente
d'uma carruagem com uma dama vestida de branco, defronte do theatro de
S. Carlos, em Lisboa, em uma noite de fevereiro de 1838.
Por não apurar impaciencias, diga-se tudo já. Este cavalheiro é Luiz da
Cunha e Faro. Aquella dama é... Nem tanta bondade! Não se póde dizer,
por ora, quem é a dama. Se o leitor é esperto, como supponho, ha de
adivinhal-a logo, e, de certo, fica muito contente da sua penetração.
Luiz da Cunha e Faro tem vinte e cinco annos. É um homem feio, segundo a
opinião masculina, que se acha em harmonia com a sua. Não era esta,
porém, a opinião das mulheres. Algumas que por capricho, em publico, o
desdenhavam como feio, desmentiam-se em particular... Não digo que
fossem todas; mas tambem não é preciso o suffragio de todas para a
reputação d'um homem feio.
A que chamam v. ex.as feio? Feio é o demonio, dizia minha avó. São e
escorreito é o essencial--dizem as velhas, quando as illusões da
formosura não tem nada a fazer com ellas, nem, por isso mesmo, ellas
teem direito a optar entre o feio e o bonito.
Luiz da Cunha era trigueiro; tinha a pelle bronzeada da cara pegada aos
ossos, que lhe sahiam, principalmente os malares, em proeminencias
cadavericas. Os bordos das orbitas muito salientes contribuiam muito
para que o brilho dos olhos negros e grandes luzisse mais na escuridade
das cavernas, debroadas sempre d'um annel bastante escuro para destacar
da côr geral de azeitona. O nariz era notavel pela ausencia total do
cavalete. A bôca não se lhe via, coberta pelo bigode espêsso, que se não
encaracolava nas guias, e cahia em luzentes recurvas sobre ambos os
labios. Ora aqui está o que é um homem feio.
Perguntava muita gente a razão physiologica da côr africana de Luiz, tão
diversa da alvura ingleza de seu pae João da Cunha e Faro, que, por esse
tempo, contava quarenta e cinco annos, e passava ainda por um dos bellos
homens de Lisboa.
Pouca gente respondia physiologicamente a tal reparo, porque muito pouca
sabia que Luiz da Cunha era filho d'uma mulata.
Agora é que ninguem poderá allegar ignorancia. Eu tenho a honra de
responder á curiosidade, que foi longo tempo a mortificação de pessoas
muito sizudas.
Sabia-se geralmente que o nascimento de Luiz fôra uma das multiplicadas
aventuras amorosas do fidalgo, seu pae; mas a outra metade productora, o
complemento da machina, em que o mysterioso artefacto se fabricára, isso
é que os amigos intimos de João da Cunha e Faro ignoravam.
O leitor não perderia muito ignorando tambem. Ainda assim, se não
quizerem passar ao capitulo segundo, tambem nada perdem, e ficam sabendo
tanto como eu.
João da Cunha frequentára a universidade de Coimbra, quando era mania
dos fidalgos deixarem medrar seus filhos na seva opulenta d'uma fidalga
estupidez. Em quanto seu irmão mais velho estudava veterinaria para se
não deixar enganar em compras de cavallos, João da Cunha estudava
mathematicas para se distinguir na carreira militar.
Cursava o segundo anno, com admiravel aproveitamento, quando chegou a
Coimbra um moço brazileiro, filho de portuguez, casado com uma mulata,
filha d'um rico fazendeiro de café, e fabulosamente rica, segundo era fama.
A intenção do brazileiro era formar-se em naturaes para
scientificamente explorar os vastos terrenos do Mexico, onde seu sogro
desenterrára o mais grosso do seu cabedal.
E, com effeito, matriculou-se, ao mesmo tempo que sua mulher, desejosa
de cultivar o espirito, recebia em casa lições de francez, e inglez.
Ricarda chamava-se ella. Não lhes quero dizer que era bonita, porque
receio que zombem da minha franca ingenuidade; porém, não chegue este
capitulo ao fim, converta-se-me esta penna em sovela, se eu não gostasse
da senhora D. Ricarda, e a não amasse com o delirio de João da Cunha.
Pois elle ousou?... Ousou... Miserias inherentes ao peccado original! O
primeiro homem cahiu, e bem forte devia ser esse primeiro homem, sahido
das mãos do Creador, com toda a substancia e rigidez d'uma obra
perfeita, com todas as harmonias e segredos para desmanchar o sortilegio
da tentação!... Como não cahiria o academico, degenerado pelas fraquezas
de tantas gerações que vieram até elle, desde o Eden?
Que tinha, pois, Ricarda de seductora?
O que ella tinha! Sabem o que é ter um coração de lume, lume que não se
esconde, em quanto ha olhos que o dardejem em lavaredas electricas?
Sabem o que é o nervo optico, ferido d'esse galvanismo da alma, que se
lhe côa nas fibras, que se communica aos musculos, que se injecta na
pupilla vertiginosa, que se lança fóra do corpo em scintillas
contagiosas, até vos pegar uma febre, que se não cura com a quina? Sabem
o que é a voluptuosidade da mulher dos tropicos? Não crêem que o sol, a
prumo, se infiltra n'ella, e a queima desde os quatorze annos, com uma
sêde insaciavel de gosos ternos, morbidos, e elanguescidos como a
requebrada cantilena d'uma carioca?
Ricarda, além de tudo isto, tinha cousas de encantar. Dizia uma cousa
singela com tantos artificios de graça, de meiguice, e de cansaço, que
mais valiam as simples palavras d'ella, que os beijos mais suavemente
chilreados de uma europêa. As perolas, que tão lindo lhe faziam o
sorriso brando, raro se mostravam, porque, se os olhos diziam tudo, o
sorriso não lhe vinha auxiliar os gestos. E a flexibilidade das fórmas?
Que donaire, que gentileza, que perfeição de estudo, ou que
naturalidade tão caprichosa em enriquecêl-a!
Bem haja, pois, João da Cunha, que adorou a omnipotencia do Creador, sem
perguntar ao abbade de Salamonde a gravidade da culpa, adorando a mulher
do seu proximo, de mais a mais, seu contemporaneo. Bem haja, digo eu
meio resolvido a rasgar este periodo, se o leitor, por uma sobrenatural
revelação, me não diz que bem póde ser que o academico não esteja
condemnado pela mesma razão que Magdalena foi salva. Amar muito! Sem
esta virtude, Deus sabe se a acta das santas nos faria menção da
dedicada galilea!...
Não quero inculcar a santidade de João da Cunha. Creio até que o homem
nunca se lembrou d'estas honras posthumas, e a universidade, com quanto
produza grandes doutores para a mitra, ainda não deu um para a igreja. O
mathematico era capaz de renunciar á canonisação se lhe pedissem a troco
o sacrificio de abjurar o amor, que o trazia tão longe da sciencia, e
tão avêsso ás obrigações academicas, que, antes de Paschoa, tinha
perdido o anno por faltas, e dissera incriveis disparates em duas
lições, que o desacreditaram.
João da Cunha soubera insinuar-se na confiança do brazileiro. Era sua
visita em vespera de feriado. Fallava francez com Ricarda, e solvia, em
mathematica, as difficuldades que o obtuso marido não vencia.
Seria impertinencia alongar de sobejo este episodio, que não vem ao
essencial da nossa historia. O leitor, amigo da concisão, quer que eu
lhe diga se aquella mulher de fogo se conservou incombustivel, como o
amiantho, na presença do estudante. Não, senhores. Fosse pelo que fosse,
a brazileira parece que não tinha ideias muito claras a respeito dos
deveres conjugaes. Seu marido, allucinado pela sciencia, retirou-se cá
de baixo para tão alto que não podia vêr a terra onde sua mulher
vacillava ao pé de um abysmo. Acordou, uma manhã scismando n'um _x_, que
o fizera adormecer ás duas horas. Chamou sua mulher, que o costumava
saudar em francez do quarto proximo. D'esta vez não ouviu lingua alguma
das que se entendem no globo. Entrou no quarto para contemplal-a no
somno feliz de quem não estuda mathematica. Achou um leito vazio.
Correu a casa toda, chamando-a, com sobresalto, que não era ainda o da
certeza. Nem a criada encontrou! Volveu ao quarto de Ricarda. Reparou
que sobre a commoda não estava um cofre de marfim. Era o adereço de
Ricarda: os seus brilhantes que valiam uma fortuna; os mais ricos
diamantes que deram as Minas Geraes; as melhores pedras do Novo-mundo, o
valor de quatro dotes opulentos!
Desde esse dia, o brazileiro não tornou ás aulas. Sabe-se que foi curado
d'uma congestão cerebral. Viram-no, dous mezes depois, sahir de Coimbra,
sem estender a mão aos amigos, compadecidos do seu infortunio. Passára
por entre elles sem os vêr. Reputaram-no doudo, e vingaram inutilmente a
affronta que o enlouquecêra, execrando o infame João da Cunha que lhe
roubára sua mulher.
Mas, um dia, dez mezes depois, passára o brazileiro na rua do Ouro, em
Lisboa, e vira n'uma taboleta de ourives um annel com uma esmeralda,
cravejada entre doze brilhantes.
--Quanto pede por este annel?--perguntou elle.
--Dous contos de reis.
--Comprou as pedras separadas, ou o annel?
--Comprei o annel.
--Ha muito tempo?
--Ha dous mezes.
--O vendedor era portuguez?
--Creio que sim.
--Garantiu-lhe a legitima venda de que era seu? Creio que me não
entende... Tem a certeza de que este annel não fosse um roubo?
--O cavalheiro que m'o vendeu é um fidalgo.
--Conhece-o?
--Conheço, sim...
--Desculpe estas perguntas, porque eu quero comprar o annel, e não o
faria sem a certeza de que ámanhã me fizessem as perguntas que eu lhe fiz.
Pouco depois, o ourives recebia dous contos de reis por um annel que
comprára por cincoenta moedas. Contente da veniaga, esquecêra-se da
reserva que lhe fôra pedida, quando o comprou, a respeito do vendedor. A
alegria fizera-o indiscreto e expansivo. Dous contos de reis era
dinheiro para trinta Judas, e demais o ourives não sabia o valor do
segredo.
--Visto que me comprou o annel, vou dizer-lhe quem m'o vendeu; mas v.
s.ª guarde segredo, não porque seja um furto; mas porque é um melindre.
Este annel foi-me vendido por um dos primeiros fidalgos de Lisboa; mas o
homem pediu o segredo do seu nome, para que o não julguem em más
circumstancias. A v. s.ª posso dizer-lhe o nome...
--De certo póde, mesmo porque eu estou em vesperas de embarcar para o
Brazil, que é o meu paiz.
--Lá me pareceu logo que v. s.ª era brazileiro... Por cá não ha quem dê
assim dinheiro por uma obra de gosto... Pois, senhor, o ex-possuidor
d'este annel foi Antonio da Cunha e Faro, e quem aqui m'o vendeu, com
ordem sua, foi seu filho João.
--Penso que conheci em Coimbra esse cavalheiro--disse com mal fingida
serenidade o marido de Ricarda.
--Póde ser, porque segundo ouvi dizer, o tal senhor João da Cunha estuda
em Coimbra.
--Pensei que esse sugeito não estava em Lisboa.
--Ha quinze dias de certo estava; se quer fallar com elle para ir seguro
do que lhe digo, ainda que eu lhe prometti de não dizer quem me vendeu o
annel, póde v. s.ª procural-o em casa de seu pae no Campo Grande.
--Não duvido da sua palavra.
O brazileiro passou a noite d'esse dia encostado ás arvores fronteiras
do palacete de Antonio da Cunha. De madrugada vira entrar um embuçado,
que se lhe afigurou João da Cunha. Ao escurecer d'esse dia viu sahir o
mesmo vulto suspeito, e seguiu-o. No Campo Pequeno viu-o entrar numa
sege de praça, que desappareceu pela estrada transversal.
Na noite immediata, a pouca distancia da sege, que esperava João da
Cunha, estava um cavalleiro encoberto pelo muro da quinta do conde das
Galveas. A sege partiu e o cavalleiro seguiu-a de longe, para que o
tropel do cavallo se não tornasse suspeito.
A meia legua, na azinhaga de Campolide, parou a sege. João da Cunha
entrou n'um largo portão, que se abriu no momento em que elle apeava.
Caminhou por debaixo de uma extensa parreira, que formava uma fresca
abobada de folhagem á entrada da casinha campestre, em que morava Ricarda.
O brazileiro de certo não viu a casinha, porque o portão fechára-se nas
costas de João da Cunha. O boleeiro entrára com a sege n'uma cavalhariça
a cincoenta passos distante do portão. O marido de Ricarda adquirira
aquella imperturbavel paciencia, que vem depois dos frenezis da
vingança. Quasi um anno de meditação e estudo na desforra, que mais
convinha á sua honra, era sobeja reflexão para não perder com uma
imprudencia a victoria que, tão depressa, lhe deparára o acaso do annel.
Retrocedeu para Lisboa.
No dia seguinte passou, a pé, defronte do portão onde entrára João da
Cunha. Estava fechado. Circuitou o baixo muro que marcava a pequena
quinta. Trepou no lanço que lhe pareceu mais accessivel. Não viu alguem.
As janellas da casa, á hora do calor, estavam fechadas com persianas
verdes interiormente corridas. Desceu para subir outra vez ao muro que
fechava a quinta na parte mais remota da casa. Saltou dentro. Os cães de
fila acorrentados ladraram; mas o aviso não inquietou ninguem.
O brazileiro embrenhou-se n'um caramanchão, enxugando o suor que lhe
empastava a camiza. Permaneceu ahi cinco horas.
Ás nove ouviu o rodar da sege; ouviu ranger os gonzos do portão; ouviu
abrir-se, mais perto, a porta e janellas como se até alli não vivesse
ninguem n'aquella casa, cujo aspecto risonho bem poderia ser mentiroso.
Minutos depois ouviu passos distantes, que faziam rumorejar a folhagem.
E estes passos eram cada vez mais proximos. Viu dous vultos. Eram já
distinctas as suas palavras:
--E quando partiremos, João?--perguntava Ricarda.
--Logo que eu te veja convalescida de modo que possamos viajar sem perigo.
--Pois eu não estou boa?
--Ainda não. Faz ainda ámanhã um mez que soffreste muito... para fazeres
completa a minha felicidade... Um filho teu, Ricarda!...--O brazileiro
ouviu o ciciar tremulo d'um beijo.
--Mas que podemos recear agora? Vamos embora de Portugal. Consegui que
vá comnosco a ama de leite do nosso Luizinho. Não nos falta nada...
Olha, João, eu não posso assim viver tão fugida do mundo. Não temos
necessidade d'isto. Se queres que eu assim viva, obrigas-me a crêr que
eu pratiquei um grande crime, pelo qual devo ser proscripta da vida.
--E não vivo eu tambem proscripto da sociedade, para viver comtigo só?
--Não ha comparação. De dia vives com os teus, de noite comigo. Eu
queria que tu viesses aqui passar sósinho, com o coração cheio de
saudades, as horas aborrecidas d'estes longos dias... Vive sempre ao pé
de mim, João, e eu viverei contente em toda a parte.
--Pois partiremos, minha filha. Mas é necessario fugir, porque meu pae
de certo me não deixa sahir de Portugal. A morte de meu irmão morgado
veio tolher o meu futuro. Meu pae quer entregar-me a administração da
casa que me pertence, e eu, habituado a obedecer-lhe desde creança,
acho-me prêso de braços quando é preciso ser mau filho...
--Ser mau filho!...--atalhou Ricarda com resentimento.--Antes ser mau
com a pobre mulher que não sentiu os braços prêsos para ser má esposa...
não é assim?
João da Cunha sentára-se no banco de pedra fronteiro ao caramanchão, em
que o brazileiro retrahia o halito para não perder uma palavra, em
quanto a longa distancia lhe não permittisse uma pontaria infallivel de
pistolas que lhe oscillavam nas mãos convulsas.
--Parece-me que estás cançado de mim...--continuou Ricarda, offendida
pelo silencio de João á ultima pergunta, que lhe custára a ella uma dôr
de coração, um desgosto amargo do seu amor proprio.
--Cançado de ti... Não, Ricarda... O amor não se cança assim. Não tenho
tido, desde o primeiro dia em que me viste, uma pequena desigualdade
comtigo. Tudo o que te prometti foi pouco para o grande sacrificio que
me fizeste; mas, se te não dou mais, é porque mais não póde dar o
coração. Podésses tu ser minha esposa... podésse eu convencer-te...
--De que me amas? Não é assim que se convence uma mulher... O que eu
quero é a tua alma... Não me lembrou nunca ser tua mulher, como se diz
da que se dá por obrigação de casamento, para ser assim mais feliz...
Não fallemos n'isto... Essa palavra esteve para ser a minha morte... não
poderá nunca trazer-me felicidade. Ainda que eu hoje fosse viuva, não
quereria ser tua mulher, João.
--Porque?!
--Porque me obrigarias um dia a ser criminosa, como fui...
--De que modo te obrigaria eu a seres criminosa?!
--Considerando-me apenas uma companheira de casa, a quem não é obrigação
fazer carinhos, porque a mulher casada é uma posse sem disputa, é uma
roseira que dá uma flôr, e sécca para nunca mais reverdecer... Eu sei
que fui muito amada, muito estremecida por...
--Por teu marido...
--Sim... mas, dous mezes... e, ao cabo de dous annos, esse homem dava-me
a importancia que se dá a um socio d'uma casa commercial, e dizia-me que
não vira ainda as suas lições, quando eu me sentava ao seu lado com
receio de ser grosseiramente despresada com o seu silencio. Todas as
tuas qualidades pessoaes me não fariam impressão nenhuma, João, se
aquelle homem me soubesse ao menos mentir.
--Foi preciso que elle te despresasse para eu te possuir o coração.
--Foi... Pois tu crês que a mulher se degrada por prazer, sem que a
violentem a isso?! Quem faz a mulher desgraçada e despresivel na sua
desgraça é o homem. Tenho pensado muito no que fui para explicar o que
sou...
--E, se elle te amasse hoje, Ricarda?
--Se me amasse hoje, despresal-o-ía, porque não poderia amar outro
homem, depois que te conheço.
--E se eu te despresasse?
--Se me despresasses, morreria, matava-me.
--Não morrerás, minha filha...
João da Cunha abraçou-a com vehemente transporte. Colou-lhe os labios
ardentes no collo de encantadora nudez, sorvendo-o em beijos deleitosos.
Ella deixou-se inclinar para o seio d'elle, como desmaiada em ebriedade
de ternos deliquios. Toda esmorecida e alquebrada, os proprios
olhos, sempre fogo, pareciam apagar-se, para que a morbidez das
palpebras, pendendo amortecidas, dissessem ao sequioso amante que
aquelles olhos se fechavam para não verem o passado, e deixavam ao
coração, estreme de remorsos, o goso das delicias do momento.
O marido de Ricarda deu um passo para distinguir os vultos entre as
frondes da amoreira. O prazer devêra têl-os aturdidos para não ouvirem
esse passo, e dous que se seguiram. Aquelles braços não se desenlaçavam.
O extasis poderia ser apenas um extasis de dous amantes que se perdem
nas altas regiões do puro espirito; mas o brazileiro, na sua phantasia
allucinada, imaginou um crime, que deveria deixar-lhe a elle um remorso
eterno, se o não interrompesse com a morte.
Duas balas voaram de duas pistolas. Ouviu-se um grito. Ricarda levára a
mão ao seio. João da Cunha corrêra atraz d'um vulto que rompia a direito
as murtas do caramanchão em precipitada fuga. Mas, já perto do
assassino, sentiu uma dôr agudissima no hombro direito e esvahimentos de
cabeça.
A este tempo, o brazileiro era preza de dous enormes cães, que o filaram
no momento que elle lançava a mão a uma viga da parreira por onde
descêra. Os cães laceravam-no, saltando-lhe ao peito. O indefeso moço
arremessára as pistolas inutilmente aos cães, que redobravam de furor.
Os criados de João da Cunha, ouvindo os tiros, correram na direcção.
Encontraram o cadaver de Ricarda, e alguns passos distante, seu amo que
dizia em voz desfallecida: «matem esse assassino, que me matou.»
Correram onde latiam os cães. Viram um homem encostado ao muro
defendendo-se dos saltos d'elles com as pernas, que retiravam sempre
cravejadas por uma nova dentada. Não seria preciso o braço d'outro
assassino, se a lucta se demorasse entre as feras e o brazileiro quasi
morto de cansaço, e derramamento de sangue. A missão dos cães acabou
quando principiou a dos homens. Duas choupadas no peito abriram mais
larga fenda ao sangue. Mataram-no sem resistencia.
..........................................................................
Eu esbocei com repugnancia este quadro. Será demasiada fidelidade
dizer-vos que a sepultura do brazileiro foi os oito palmos de terra,
onde cahiu morto? Ainda bem que os cães o não devoraram a pedaços como
um passatempo durante a noite. Ricarda foi enterrada no cemiterio, de
noite, de combinação com o parocho. Os criados conduziram á sege João da
Cunha, que não quiz retirar-se sem reconhecer o assassino.
Dizem que beijára as faces mortas de Ricarda, e derramára algumas
lagrimas, que lhe fazem muita honra.
A sege que o conduziu, tornou a Campolide para transportar ao palacete
do Campo-Grande um menino d'um mez nos braços da ama.
João da Cunha beijando o neto que seu filho lhe entregava, na supposição
de que o ferimento era mortal, dizia lá comsigo:
--Parece filho de mulata! Bem me disseram a mim de Coimbra que meu filho
fugira com uma!
João da Cunha foi curado em poucos dias. A bala quebrára-lhe a clavicula
direita e sahira sem ferir algum vaso importante. O enfermo deixou-se
tratar, e não consta que tentasse romper o apparelho para se escoar de
sangue.
--Queria viver para o seu filho.--É como elle explicava o desejo da vida.
Isto passou-se em 1813; e o romance começa em 1838.
Já sabem que o filho de Ricarda é Luiz da Cunha e Faro, que apeou á
porta do theatro de S. Carlos.


II.
O FRUCTO DA SEMENTE AMALDIÇOADA.

João da Cunha era, pouco mais ou menos, o que são todos os homens. O seu
coração, viuvo do amor de Ricarda, vestiu lucto um anno. O choque fôra
muito forte, para que a mais robusta organisação se não resentisse,
longo tempo. A convivencia, com homens que não conheciam os precedentes
da sua mysantropia, não a procurava. Vivia só, com seu pae, e com seu
filho. Recordava a ephemera felicidade de alguns dias, rematados por uma
hora de sangue. Ora, estas recordações, por que foram muito repetidas,
pouco a pouco enfraqueceram, e o coração familiarisou-se com ellas. O
que primeiro fôra terror, veio, depois de um anno, á brandura das
reminiscencias que não mortificam, porque o tempo é o principio gerador
de imagens novas que desfazem sempre as impressões das velhas. O ferro
abre profundos sulcos no cortix da arvore: depois, as fibras da camada,
vigorosa de nova seiva, passam por cima, e deixam como signal uma cizura
imperceptivel.
Dous annos depois da catastrophe, João da Cunha não fugia das aventuras
que o perseguiam. Riqueza, talento, e fidalguia, afóra os dotes
physicos, auctorisavam-no a não deixar aos vinte e dous annos uma
carreira que encetára com tão má fortuna.
Do seu coração, repartido por muitas paixões passageiras, nunca usurpou
a seu filho a maior parte.
Em quanto elle crescia em corpo e extraordinaria penetração, o pae, que
não sabia sêl-o, alargava-lhe os desejos, adivinhando-lh'os, e prohibia
á ama, aos mestres, e ao avô a mais ligeira contrariedade ás
vontades caprichosas do menino.
Luiz, aos doze annos, era um despota com os criados, com os mestres, e
tratava o pae como se trata um irmão, quando não ha a recear a correcção
paterna. João da Cunha gostava da desenvoltura do pequeno, e ufanava-se
de leval-o, como maravilha, á sociedade dos homens e mulheres do grande
mundo, que lhe achavam muito sal nas suas respostas, e não córavam ás
galhofeiras liberdades do pequeno Ismael, como lhe chamavam, alludindo á
desconhecida Agar, que o sol da Africa bronzeára.
Luiz era tanto mais caro a seu pae, quanto a sua intelligencia, com
pequeno esforço, aproveitava nas irregulares lições dos mestres
soffredores. Aos quinze annos, o filho de Ricarda era homem, e, como
homem, as puerilidades, as folias que o entretinham até aos quatorze,
trocaram-se em ar reflexivo, em consciencia de si proprio, e até em
certo respeito ao pae, supposto que este lhe não invectivasse as
licenças, que os de fóra lhe censuravam.
--Eis-aqui o que é o espirito!--dizia João da Cunha ao seu capellão, que
muitas vezes agourára mal da livre educação dada a Luiz--Assim que
chegou á idade da razão, ahi está meu filho obedecendo espontaneamente
ao instincto dos deveres. Não o vê tão pensador n'uma idade em que a
imaginação trabalha sempre?
--Não duvido que pense--respondeu o padre, solemnisando a resposta com
um sorvo de rapé--mas, se v. ex.ª me dá licença, parece-me que seu filho
pensa em alguma loucura.
--Essa é boa! O padre que razão tem para tanta severidade com meu filho?
--Que razão tenho? Ora ouça v. ex.ª Seu filho namora a filha do
merceeiro que mora ao lado.
--Deixe-se d'isso, padre; o meu filho apenas tem dezeseis annos, e ella
ainda é mais nova.
--Isso não é razão, e desculpe-me v. ex.ª a liberdade de replicar. Deus
sabe as intenções com que me intrometto em cousas, que não são de todo
estranhas ao meu ministerio. Eu quando fallo é com documentos na mão.
--Alguma cartinha de namoro... Isso são rapaziadas sem consequencia.
--Não é cartinha de namoro.
--Algum cordão de cabello, ou alguns suspensorios com a firma do
rapaz... Isso faz rir.
--Não é cordão nem suspensorios.
--Então acabe lá com isso, padre! Que é?
--É uma escada de corda que sobe ao segundo andar d'aquella casa.
--E sabe se elle faz uso d'essa escada?!
--Ha quinze noites seguidas que sobe ás duas horas da noite e desce ás
quatro.
--O rapaz é capaz de quebrar uma perna!
--E eu receio que o pae da rapariga seja capaz de lh'as quebrar ambas.
--N'esse caso, encarrego-o de o reprehender; mas não lhe diga que eu o sei.
--Parece-me que lhe não fará grande abalo ainda que v. ex.ª o saiba. Seu
filho não o teme, nem lhe reconhece direitos sobre a liberdade de subir
e descer escadas de corda.
--Está enganado.
--Oxalá que sim. Eu de mim reprehendi-o já, e elle respondeu-me se eu
fazia o favor de lhe ir segurar a escada para que ella não balançasse
quando elle descia, com grave risco das suas pernas, que ficavam
enleadas nas cordas transversaes. Aqui está o que é uma zombaria que não
parece d'um menino de dezeseis annos! V. ex.ª ri-se? Ora, queira Deus
que não chore ainda...
--Pois que quer que eu faça, padre?
--Que o castigue com severidade, ou o faça entrar no collegio dos Nobres
para ser castigado longe dos seus olhos. V. ex.ª perde seu filho. Está
cavando um manancial de desgostos, que não remediará... Elle ahi vem...
Se quer, retiro-me, para v. ex.ª lhe fallar.
--Pois sim, retire-se.
Luiz entrou apertando a mão ao pae, que lh'a estendeu com a familiar
etiqueta d'amigo.
--Vem cá, Luiz. Tu és um homem, e é preciso fallarmos como homens. Sei
que sobes por uma escada de corda ao segundo andar d'aquella casa...
--Então, de certo sabe tambem que desço...--atalhou com sorriso ironico
o filho de Ricarda.
--Responda-me com seriedade. Sabe que eu posso fazêl-o retirar d'esta
casa, logo que o menino proceda de modo que mereça ser castigado?
--V. ex.ª póde tudo; mas eu queria saber o que fiz que mereça castigo.
--Assim é que deve responder-me. Sei que se introduz em casa do merceeiro.
--É verdade, meu pae. Não nego senão o que não faço. Foi o padre Joaquim
que lh'o disse?
--Não sei quem foi... É isto verdade?
--É verdade; mas o padre Joaquim merece dous bofetões.
--O padre Joaquim é seu amigo. Se o menino observar os conselhos d'elle,
ha de ter um proceder exemplar; e, se os não attender, obriga-me a
castigal-o asperamente, bem contra minha vontade. Não quero que se diga
que um filho de João da Cunha escala as janellas dos visinhos. O peor
que póde acontecer-lhe, meu filho, é ser surprendido n'essa casa, e olhe
que de certo o não respeitam para o deixarem descer tranquillamente como
subiu.
Pouco depois, Luiz da Cunha sahiu do quarto de seu pae, e passando pelo
capellão deu-lhe um abraço, que o fez impertigar-se com a grave
compressão das costellas. Luiz ria-se, e padre Joaquim desencadeava-se o
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