A Neta do Arcediago - 02

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mais prestes que podia dos braços tenazes do seu discipulo de latim.
As correcções paternas aproveitaram muito, por isso que, na noite d'esse
dia, á hora costumada, Luiz da Cunha agatinhou rapidamente a escada, e
içou-se para a varanda. Pouco depois que entrára, o logista, avisado por
quem quer que foi, subiu ao segundo andar. Luiz da Cunha fugiu
precipitadamente, e quando descia, na altura do primeiro andar, o
robusto confeiteiro levantou os ganchos da escada, e deixou-a pender
para o centro da terra, em plena condescendencia com as leis da gravitação.
O filho de João da Cunha recuperou os sentidos quando uma patrulha da
policia o entregava ao pai, que, a essas horas, recolhia, e não é bem
liquido se tambem elle debaixo do capote trazia uma escada de corda.
Luiz da Cunha desmanchou algumas articulações, cuja collocação o fez dar
ao diabo a filha do confeiteiro. O pae ameaçou com um chicote o seu
pundonoroso visinho; mas, pelos modos, o minhoto não era homem de
transigir pelo mêdo d'uma arrogancia dos actos dos Sousas e Faros. A
rapariguinha nunca mais appareceu na janella, e, no fim da semana
immediata, casou com o caixeiro, rapaz dos suburbios de Guimarães, muito
fino, que é hoje capitalista, e não foi ainda codilhado por governo
nenhum. Já vêem que a filha do confeiteiro não perdeu nada, visto que o
marido não a encontrou lesada physica nem moralmente. Estes é que são os
felizes. Não sabem nada de psycologia, nem de anatomia: não descriminam
imperfeições da alma nem do corpo.
João da Cunha teve assomos de rigidez paterna. Luiz desconheceu-o,
quando o viu, sombrio e carrancudo, ordenar-lhe que seguisse o padre
capellão ao collegio dos Nobres. Obedeceu sem hesitar um momento. Entrou
no collegio, onde os mestres prevenidos trataram de captar-lhe a estima,
habitual-o á casa, para se dispensarem da outra ponta do dilemma.
Luiz recebeu alegremente os companheiros que os mestres lhe escolheram.
Eram os mais estudiosos e mais ajuizados. Acharam-no docil, e
persuadiram-se que lhe tinham inoculado o amor do estudo, e o
esquecimento das liberdades por que fôra, aos dezeseis annos, encerrado
no collegio.
João da Cunha, maravilhado da mansidão de seu filho, visitou-o,
indemnisando-o com afagos das asperezas que precederam a sua entrada no
collegio. Luiz não se mostrou magoado com as asperezas, nem lisongeado
com os carinhos. Estava melancolico, e dizia o padre Joaquim, sempre
agoureiro aziago, que o menino meditava uma nova loucura, fosse ella
qual fosse.
Prophecia de padre Joaquim era infallivel. N'essa noite, Luiz cortou em
tiras os lençoes e o cobertor. Saltou para a cêrca. Partiu a cabeça ao
hortelão com um fundo de garrafa dos aguilhões do muro, quando o
indiscreto gallego lhe agarrou uma perna para a não deixar seguir o
destino da outra.
Luiz recolheu-se a casa de José Bento de Magalhães e Castro.
Este senhor José Bento é uma pessoa que nós conhecemos da FILHA DO
ARCEDIAGO. É justamente aquelle que casou com Rosa Guilhermina, em 1825;
que comprára n'esse anno o fôro de fidalgo, e fizera a sua nova
residencia em Lisboa, por isso que os invejosos no Porto tinham a
petulancia de rir-se da pedra d'armas que elle fizera lavrar no seu
palacete do Reimão.
Em Lisboa fôra bem recebido, particularmente por João da Cunha e Faro,
que, segundo dizem, lhe vendêra cara a consideração. D. Rosa Guilhermina
era bem acolhida na roda que torce o nariz aristocratico aos que chegam
sem garantias d'algum conspicuo de linhagens. A maledicencia dizia que
João da Cunha não era indifferente á mulher do senhor José Bento. Tanto
não ouso eu dizer, e a calumnia é mancha que não pega nos meus romances.
Pêcos de imaginação, sim; mas arreados de phantasias que desdouram o meu
proximo, isso nunca.
Luiz, sempre acceito com os seus gracejos a D. Rosa, fugindo do
collegio, surprendeu-a com um abraço estouvado. Pediu-lhe que não
dissesse nada ao pae, e o deixasse sentar praça em marinha, que era a
sua vocação. D. Rosa prometteu-lhe tudo, e avisou João da Cunha, que, a
essas horas, recebia a fatal nova da fuga do filho. A filha do arcediago
pedia-lhe uma entrevista, antes de encontrar-se com Luiz. O fim era
combinarem o meio de o levarem com brandura a entrar em casa, onde de
certo a violencia o não levaria. João da Cunha annuiu, e o filho de
Ricarda foi recebido com affabilidade por seu pae.
Não era já possivel domal-o com violencias nem com afagos. Luiz da Cunha
tinha um roteiro fixo pelo destino, cuja absurda influencia é necessario
acreditar na vida tragica de certos homens, que nos compadecem, que nos
nauzeam, e que nos assombram!
João da Cunha, certo da sua inefficacia paterna, resumiu a sua
auctoridade ensinando o filho a salvar as apparencias, porque os
escandalos eram atroadores, e promettiam-lhe uma vergonhosa expulsão das
casas honestas. O merceeiro visinho, não obstante a sua coragem, passou
pelo desgosto de curar-se d'uma dura carga de pau com que o amante de
sua filha, auxiliado por campinos embriagados em noite de tourada, o
mimosearam dentro do seu proprio balcão. Toda a importancia de João
da Cunha foi necessaria para torcer a justiça, visto que o logista
era affecto em extremo á politica vigente, o que provára mais d'uma vez
com o cacete na mão. Um outro pae, que ousou repellir de sua casa o
fidalgo, chamando-lhe «mulato» perdeu a orelha esquerda n'esta honrosa
lucta, sem por isso, ainda assim, salvar a filha da deshonra. Um irmão
d'uma estanqueira, que morou ao Pote das Almas, pagou com cadêa de tres
mezes, afóra as custas do processo, a audacia de quebrar a cabeça ao
amante de sua irmã, que lhe viera, em noite de luminarias, recitar
debaixo da janella umas coplas em que lhe pedia escandalosamente licença
de cear com ella.
Esta classe de mulheres era a menos ponderosa na balança da opinião
publica. Algumas d'estas aventuras faziam rir as mulheres distinctas por
nascimento e por muitas outras qualidades que não lustravam muito o
nascimento...
Luiz da Cunha lá foi entre ellas receber os applausos, e achou que a
vereda nova, em que se lançára, levava mais depressa ao capitolio. O que
elle queria era a reputação de conquistador, que principiava a declinar
de seu pae, e justo era que não sahisse da familia.
O filho de Ricarda era jactancioso. Costumava, com os seus amigos, fixar
o dia impreterivel de tal ou tal triumpho, e bebia com elles no _Isidro_
á saude da victima destinada.
Se acontecia acharem-se presentes os parentes da victima illustre, o
impudente não calava o nome, nem respeitava as conveniencias do pudor,
visto que os seus amigos o não respeitavam.
O «Ismael,» que as damas desdenhavam pela côr, se não fosse o terrivel
sestro da denuncia, em fins de jantares, poderia enriquecer o seu
cathalogo com muitas illustrações do sexo, que já n'esse tempo era fraco.
Mas a fatuidade indiscreta perdeu-o no conceito das menos pundonorosas.
Pouco e pouco repellido, Luiz da Cunha aos vinte e cinco annos, era
detestado, acolhido com desprêso em todas as casas, excepto na de José
Bento de Magalhães e Castro, que, em 1837, era já visconde de Bacellar.
Rosa Guilhermina foi a unica mulher que exerceu uma sombra de ascendente
fraternal sobre o filho de Ricarda. Os seus rogos afastaram-no
muitas vezes de abysmos, em que a sua queda seria mortal. Tinha sido
ella quem o salvára de casar-se com a mulher que mais séria impressão
lhe fizera, quando se viu arremessado com infamia d'entre tantas que
elle pozera no pelourinho da ignominia.
Esta mulher era uma infeliz encontrada n'um primeiro andar da rua do
Ouro: uma d'essas que vem, com os hombros nús e as tranças enfloradas,
pedir-vos da janella com um aceno e um sorriso o preço do espectaculo a
que se offerecem, por esse sorriso e aceno voluptuoso.
Luiz da Cunha sympathisára com a libertinagem da mulher que lhe ensinava
cousas novas para o coração, não combalido de todo ainda pela podridão
do vicio. As duas almas comprehenderam-se maravilhosamente, porque se
encontraram na profundidade do mesmo charco. Luiz encantou-se d'esta
mulher. Pediu-lhe o exclusivo da sua alma, e foi feliz na súpplica.
Liberata, desde esse dia, foi d'elle, exclusivamente, como a filha que
foge apaixonada do seio materno. Encontrou uma bem mobilisada
aposentadoria, servida de criados, e da opulencia que os brilhantes de
Ricarda, prodigalisados em ultimo recurso por João da Cunha, lhe
permittiam. Aquelles brilhantes reservára-os elle, sem escrupulo, para
patrimonio do filho da sua esquecida amante.
Envergonhado d'esta união torpe, João da Cunha admoestou o filho; e,
quando esperava despertar-lhe o brio com os topicos d'uma sentimental
censura aos seus rasos instinctos, Luiz respondeu-lhe que tencionava
salvar Liberata da infamia, casando com ella.
O primeiro impeto de cólera paterna foi correr sobre o filho e soval-o a
ponta-pés. Luiz estranhou a lisonja, e pôde muito sobre si para não
receber o pae na ponta de um punhal.
Expulso de casa, recorreu á viscondessa de Bacellar, que lhe prometteu
reconcilial-o com o pae, com tanto que elle despresasse essa mulher, que
o arrastava com ella ao mesmo abysmo de perdição. Luiz prometteu não
casar; mas despresal-a nunca. Se seu pae lhe negasse recursos, disse
elle que seria ladrão para sustental-a, ou morreriam de fome, abraçados.
João da Cunha, sabendo este heroismo, reconheceu que seu filho era a
vibora, que elle trouxera no coração, para o morder com o remorso
expiador do seu crime, cujo saldo com a Providencia começava vinte e
seis annos depois.
E aceitou a proposta. Continuou a dar-lhe recursos para uma dissipada
grandeza com que a libertina se infatuava, soberba do seu dominio sobre
o homem, que se não pejava de assentar-se, ao lado d'ella, na mesma sege
e no mesmo camarote.
Dizia-se que Liberata era fiel ao fascinado moço. Amigos de João da
Cunha tentaram vencêl-a com promessas, para darem ao desgraçado uma
surpreza que o fizesse detestal-a.
Não o conseguiram. A necessidade não a forçava. O ouro servia-lhe
prodigamente os mais exquisitos caprichos. O coração afizera-se-lhe
áquelle caracter, e a pontualidade do amante não lhe deixava um instante
vago para meditar uma traição.
O leitor de certo adivinhou já quem era a mulher que apeou, com Luiz da
Cunha e Faro, da sege, á porta do theatro de S. Carlos. Agora, se a
imaginação lhe não é escassa, afigure-a no camarote 15 da 2.ª ordem, e
verá uma perfeita senhora, adestrada em salas, meneando garbosamente um
leque, fitando com requebro airoso o oculo branco nas faces que se
retrahem envergonhadas, e sorrindo com deslavada alegria ao amante, todo
carinho e attenção para ouvir-lhe alguma obscenidade allusiva a qualquer
das damas, que não ousam fixal-a de face. Liberata era o que devia ser.
Hoje é moda regenerar, em romances, estas mulheres. A imaginação,
cansada de reduzir a virtude ao crime, trata de fecundar a virtude no
alcouce.
Em quanto a mim, as Liberatas não se regeneram. A de Luiz da Cunha
dançava lubricamente a cachucha, quando lhe fallavam em virtude.


III.
ASSUCENA.

Consta da FILHA DO ARCEDIAGO que a filha do memoravel Leonardo Taveira,
arcediago de Barroso, houvera de legitimo consorcio com Augusto Leite,
uma filha, chamada Assucena.
Quando Rosa Guilhermina contrahiu segundas nupcias com José Bento de
Magalhães e Castro, tinha seis annos a creança.
O filho do retrozeiro não se affeiçoou á filha de sua mulher, com quanto
a meiga menina o acarinhasse com meiguices, e lhe chamasse pae. Em pouco
se conhecia a rude insensibilidade do padrasto. As menores travessuras
de Assucena eram para elle o resultado do mimo demasiado que sua mãe lhe
dava. A esperteza, que Rosa admirava em sua filha, dizia o senhor José
Bento que era malicia; e, por entre dentes, resmungava que não seria
ella quem levasse a agua ao seu moinho. Era uma das suas phrases
favoritas este annexim, que o filho da senhora Anna Canastreira retivera
na memoria, rebelde sempre para o imperativo do verbo _laudo_, como em
tempo competente se disse.
Rosa doía-se da indifferença, ou, melhor, da antipathia de José Bento
pela creança. Nunca lhe perguntou a causa d'esta ingratidão aos mimos de
Assucena: é que não contava com a delicadeza de seu marido n'uma
resposta. A coacção em que a tinha o caracter brusco do assassino do
mestre de latim, a reserva nada familiar com que um ao outro se
tratavam, collocava-os a distancia do que vulgarmente se
diz--confidencias domesticas.
José Bento não tinha a rusticidade nem a doçura de indole de Antonio
José da Silva, o desventurado esposo de Maria Elisa, tão desventurada
como elle. (Já lá estão ambos!) Se aos dezoito annos, o aprendiz de loio
annunciava uma bestialidade mythologica, a natureza, modificada pelo
dinheiro, enxertára n'aquella cabeça, hermeticamente fechada, uma finura
maliciosa. Á primeira vista, o senhor José Bento parecia um pensador, um
homem experimentado, e até um presidente d'uma companhia de viação, ou
orador gosmento de associações commerciaes, que, só muito depois,
tiveram Ciceros em _patois_.
O capitalista era amigo de Rosa Guilhermina: não podemos duvidar que o
era; mas o seu modo de ser amigo era excentrico. A approximação dos
extremos confundira o pequeno espirito de José Bento com o grande
espirito d'algum marido fatigado de caricias, anhelante de paixões
incisivas, e incapaz de se amoldar ás formulas burguezas da
tranquillidade domestica. O moço fidalgo, no primeiro anno de casado,
foi o que seria no quadragesimo, se Rosa Guilhermina não morresse em
1849. Nunca lhe deu mostras de aborrecido, porque tambem nunca se
mostrou enthusiasmado com a posse. Teve sempre a constancia
imperturbavel dos felizes alarves. Nenhuma mulher valia mais que a sua,
nem a sua valia mais que as outras.
Rosa Guilhermina não esperava que sua filha succedesse na herança do
marido, nem, quatro annos depois de casada, tivera ainda um filho, nem
depois o teve, que protegesse a sua irmã, habituando-se a consideral-a tal.
O seu pensamento foi ageital-a para tudo o que é trabalho, dotando-a com
a educação, cultivando-lhe o espirito para que a formosura não fosse a
unica prenda que podésse merecer-lhe um marido com patrimonio.
Em Lisboa, José Bento não se oppôz á entrada de Assucena n'um collegio.
O excellente coração da menina, arrancado ao de sua mãe, comprehendeu,
em tenra idade, que a sua posição no mundo dependia de si. Docil ás
mestras, que lhe adoravam a angelica humildade, o trabalho, a oração, e
o estudo fizeram-na um modelo entre todas as suas companheiras. A
melancolia scismadora que, aos quatorze annos, a estremava dos folguedos
da sua idade, era um vaticinio de muitas lagrimas que verteria sobre
as flôres da mocidade, queimando n'essas o germen que nunca mais lhe
desabrocharia outras.
Em 1838, Assucena tinha dezoito annos, e era ainda alumna do collegio
para onde entrára aos dez. A viscondessa de Bacellar conseguira de seu
marido a influencia e os meios para que ella entrasse nas
commendadeiras, ordem meio monastica, meio profana, em que a vida
retirada se suavisa com todas as magnificencias do luxo, e se approxima
da sociedade sem conhecêl-a pelo ponto de contacto em que o coração se
infecciona.
Antes de entrar nas commendadeiras, como secular, Assucena veio passar
com sua mãe dous mezes.
Aos dezoito annos, estranhava o mais vulgar da sociedade. Lêra muito, e,
só com sua mãe, dava ideia de não ter desaproveitado o tempo, nem
enganado os mestres. Na presença de estranhos o seu acanhamento dava-lhe
ares de idiota. Córava ás mais simples lisonjas á sua formosura, e
folgava todas as vezes que as portas da sala se não abrissem a visitas.
A presença dos hospedes privavam-na de expandir-se a sós com sua mãe que
a beijava, como se faz a uma creança.
Assucena era trigueira como seu pae, e não podia chamar-se formosa,
senão em verso. A formosura, que não é senão a harmonia rigorosa das
fórmas, é muito rara. O que não é raro é a graça, a sympathia, o
indisivel que vos encanta, sem vos dar tempo a estudar a irregularidade
de um nariz, ou o defeito d'uma testa.
Engraçada e sympathica era, como nenhuma, a neta do arcediago. O
sobr'olho cerrado castanho escuro, e o buço que lhe assombrava o labio
superior, não fino, mas graciosamente arqueado, eram as feições mais
distinctas depois dos olhos brandos e amortecidos, tão fóra do commum em
rosto trigueiro. Gentil de corpo, alta como sua mãe, mais flexivel que
ella, mais delicada de mão, ao longo da qual corria uma penugem que
denunciava o braço delicioso, Assucena era a mulher para os sentidos e
para o coração; para a voluptuosidade do amor animal, e para os
arrobamentos do amor do espirito.
Luiz da Cunha e Faro não se recordava já de Assucena, quando a viu,
surprendido, em casa da viscondessa.
--Quem é esta mulher?--perguntou elle ao ouvido da viscondessa.
--É minha filha.
--Sua filha! a menina que eu vi, ha bons nove annos?
--A mesma. Não o apresento, porque ella é muito acanhada, e dá de si uma
triste ideia, quando a forçam a fallar.
--É galante senhora! Que olhos, e que sobrancelha! Aquellas pestanas são
divinas! Tem um olhar de santa! E aquelle buço? Ha de perdoar-me,
senhora viscondessa; mas a filha de v. ex.ª é capaz de me fazer doudo!
--Não zombe, senhor Luiz da Cunha. A minha Assucena não é capaz de
endoudecer ninguem, e principalmente v. ex.ª, que não póde endoudecer,
porque a demencia dá ideia do juizo anterior a ella...
--Bem a entendo, senhora viscondessa. Quer dizer que ninguem perde o que
não tem... V. ex.ª não sabe o que eu sou capaz de sentir. Até hoje tenho
usado o mau coração; o bom ainda não entrou em serviço. Vinte e seis
annos não é tarde para que eu me regenere. Sonhei esta noite que era
virtuoso, e que dava lições de moral no largo do Rocio a quem me queria
ouvir. Depois, tornei a sonhar, e fazia milagres: puz uns dentes á
baroneza de Lemos, que está alli mascando com as gengivas quatro phrases
de açafetida a seu marido, e fui á beira do Tejo conversar com os
peixinhos que saltaram ao Terreiro do Paço, passeando em sêcco para me
darem honras de Santo Antonio.
--Comece com as suas impiedades, senhor Luiz da Cunha... Olhe que eu
retiro-me d'aqui... Quando ha de perder o vicio da maledicencia? Que lhe
importam os dentes da baroneza de Lemos?
--Tem v. ex.ª razão. Sou um grande malvado, mas permitta que eu corrija
a sua accusação. Eu não disse que me importava com os dentes da
baroneza, que é cousa que ella não tem. Eu sonhei que milagrosamente lhe
dava duas ordens de dentes, e lh'os déra quasi todos mollares, porque me
consta que ella gosta de tortas, em que os outros se dispensam. Se isto
é perversidade, minha amiga, não sei o que é virtude. Deixemos a velha,
e fallemos na juventude do nosso seculo. A senhora D. Assucena fica
na sua companhia?
--Não, senhor. Vai entrar nas commendadeiras.
--Isso é incrivel! Pois v. ex.ª quer inutilisar aquella creatura,
roubando-a á sociedade!! Isto é barbaro! Declaro que não consinto!
--É pena que v. ex.ª não consinta! Eis-ahi uma difficuldade que eu não
tinha prevenido! O seu consentimento é uma formula indispensavel!
--Quer que eu lhe diga uma verdade? Estou recebendo uma impressão
extraordinaria! Sinto por sua filha o que nunca senti! Será ella a
redemptora d'esta alma que anda em penas ha onze annos? Parece-me que o
amor é que me ha de salvar. Ora olhe, eu tenho imaginado que posso ainda
ser feliz. V. ex.ª acredite que tenho sido muito muito desgraçado...
--Não o parece.
--Diz bem... não o parece; mas creia que não tive ainda oito dias de
felicidade na minha vida. O mundo julga-me mal. Todas estas vertigens,
que apparentemente me dão o caracter d'um homem embriagado de
felicidade, são misturadas d'uma especie de nausea de mim proprio, d'um
vacuo de verdadeiros prazeres, e tal que, nestes ultimos mezes, tenho
desejado seguir um outro caminho por onde a verdadeira ventura me foge.
E quero perseguil-a. Realmente lhe digo que estou cansado d'este viver.
A sociedade despreza-me, e eu dou razão á sociedade. De certo lh'a não
dava, se eu me quizesse absolver dos meus desvarios. Aqui entre nós:
quem me perdeu foi meu pae. Se me tivesse negado os meios com que se
nutrem os vicios, eu não seria vicioso, ou, se o fosse, o trabalho, como
preço do vicio, ter-me-ia fatigado, ha muito. Olhe: se eu tivesse
nascido n'outro seculo, se é que todos os seculos não tem os mesmos
vicios, seria outro homem. V. ex.ª bem sabe que na sociedade não se
fazem santos. Eu vim por aqui dentro com os braços abertos para receber
todas as immoralidades, e vieram-me todas ao encontro, sem eu chamar
nenhuma.
--Naturalmente--atalhou a viscondessa, sorrindo--foi a filha do
merceeiro que o chamou...
--Isso não foi immoralidade, minha senhora; ou, se o foi, queixem-se
do peccado original, de que tanto me fallou aquelle pobre padre Joaquim,
que, em quanto a mim, foi o unico homem virtuoso que não recebeu a
herança da culpa de Adão, e morreu intacto como algumas virgens das que
se conhecem pelos necrologios. A filha do confeiteiro não soube o que
fez, e eu tambem não. A natureza exerceu sobre nós o seu immortal
despotismo, e foi preciso que os homens viessem desmanchar á pancada o
que ella fizera com beijos.
--Foi a natureza que lhe ensinou a botar a escada de corda ao segundo
andar?
--Nada, não, minha senhora. Foi meu pae.
--Como seu pae!?
--Palavra de cavalheiro, o caso foi assim: debaixo da cama de meu pae vi
umas cordas, que terminavam por dous ganchos. Fiz o meu raciocinio, por
que já n'esse tempo estudava em logica as causas e os effeitos. A escada
era o effeito d'alguma causa. Sem saber nada de mechanica, calculei a
importancia social da escada, e mandei fazer uma semelhante ao meu
criado do quarto. Ora aqui tem com angelica sinceridade a historia da
escada de corda. Agora, pergunto eu: desarranjei eu a felicidade da
filha do merceeiro? Não a tem v. ex.ª visto no theatro, ao lado d'uma
especie de gallego com collarinhos em fórma de panno de falua? Esta
especie de gallego é marido d'ella, tem cem contos de reis em
inscripções, e não sei que no Banco Commercial, e tem a commenda da
ordem de Christo. D'esse peccado da infancia, absolvo-me eu; dos outros
é responsavel a sociedade.
--Não diga a sociedade. V. ex.ª tem zombado de todos os deveres. Tem
reduzido seu pae a um estado de tristeza que faz dó. Tem-se divorciado
de todas as pessoas de bem. Affronta a opinião publica apresentando-se
nos lugares mais frequentados com uma mulher, sem pudor, uma libertina
que nem ao menos o salva de se degradar com ella em publico. Se me acha
ainda uma constante censora dos seus desatinos, é porque sei a historia
triste do seu nascimento, sympathisei com os infortunios de sua mãe, e
tomei sobre mim o inutil zêlo da honra de seu filho. Não tenho
conseguido nada: nada espero conseguir. Deus sabe quantas lagrimas me
tem custado este desvelo quasi maternal. Por vontade do visconde, já
v. ex.ª não entra n'esta casa. Reprehende-me todos os dias a
familiaridade com que o recebo, e é preciso que eu o traga illudido com
a esperança de que um dia será possivel a sua reforma de costumes.
Senhor Luiz da Cunha, pense no futuro. Condôa-se de seu pae, que já não
tem animo de ouvir pronunciar o nome d'um filho que perdeu como seu
amor. Veja que póde ainda remediar o mal que fez... Aparte-se d'essa
mulher. Viva com seu pae. Convença pelo seu procedimento as pessoas, que
já não acreditam na possibilidade da sua emenda. Eu tambem me persuado
de que v. ex.ª deve estar cansado. Creio que deve ter momentos de
envergonhar-se; outros de remorso, e outros de esperança. Não cerre os
ouvidos ao que a esperança lhe promette. Se o instincto do bem lhe
aconselha a virtude, obedeça-lhe, e verá como a vida lhe póde ainda ser
agradavel. Olhe que a virtude tem consolações incomparaveis com os
prazeres momentaneos do vicio. Tenho quarenta annos. Sei o que é o
mundo. Combino todos os desgostos para os saber afastar de mim, e
recebo-os, quando elles são mais fortes, como desvios do errado caminho
em que entrei aos quinze annos. V. ex.ª não sabe que mulher lhe falla,
nem imagina o prazer que me daria se me viessem dizer que a virtude não
fôra repellida d'esse coração que todo o mundo considera fechado para a
luz da honra.
--Fez-me impressão, senhora viscondessa! Tem-me assim fallado tantas
vezes, e nunca me feriu tanto. Eu não sei bem se o que me aconselha é
possivel... Creia que vou empregar os esforços. Se o não conseguir, é
porque não posso, é porque ha em mim um desgraçado condão de força
sobrenatural.
A conversação, n'este sentido, foi demorada.
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No dia seguinte, Liberata recebia de Luiz da Cunha um bilhete que a
eximia dos compromissos de fidelidade, auctorisando-a a dispôr de tudo
que lhe fôra dado. O bilhete foi recebido de manhã, e á tarde o lugar de
Luiz da Cunha estava preenchido pelo primeiro oppositor á vacatura. Na
proxima noite de theatro, Liberata, no camarote, ria, olhava,
requebrava-se do mesmo modo, com a notavel differença de que o seu
companheiro era um capitão de marinha ingleza, que accumulava ás
delicias de uma conquista de tal ordem os gosos d'uma solemne embriaguez
de vinho.
João da Cunha acreditou na regeneração do filho, quando o viu entrar
contrito em casa, tão diverso do que fôra, accusando-se por uma tristeza
silenciosa, e captivando a benevolencia dos familiares com palavras
brandas. Por conselho da viscondessa de Bacellar, orgulhosa do seu
triumpho, João da Cunha não lhe disse uma palavra de reprehensão. O
passado não veio nunca irritar o pae, nem envergonhar o filho.
Os incredulos riram da subita mudança do «mulato.» Os crentes no poder
maravilhoso da conversão explicavam o phenomeno por um toque
sobrenatural. Não faltou quem dissesse que a reforma do peccador fôra
obra d'um egresso varatojano que operára admiraveis conversões nas casas
onde almoçava e jantava. Não sabiam dizer ao certo se tambem convertêra
alguem nas casas onde dormia. Eu tambem não, supposto que acho muito
possivel o caso affirmativo.
O que sei de sciencia certa é que Luiz da Cunha não conhecia o dito
egresso melhor que eu e o leitor. Penso que o varatojano perderia o seu
latim, se tentasse engrossar com a moral franciscana os alicerces
fundados pela viscondessa de Bacellar. A emenda do filho de Ricarda não
tinha nada com a moral christã, pelo menos o atheo não sabia que a moral
de Jesus é o codigo por que se rege a honra sobre a terra, e se
conquista no ceo a eterna bem-aventurança, que não é exclusivo dos
pobres de espirito.
João da Cunha passava algumas noites com seu filho em casa do visconde
de Bacellar. Rosa Guilhermina revia-se na sua obra, e agradecia a Deus
têl-a feito instrumento da sua vontade, para, com braços debeis,
arrancar do abysmo um filho, restituindo-o ao amor de seu pae.
Assucena não se maravilhava do presente de Luiz da Cunha por que não lhe
conhecêra o passado. Sabia, por meias revelações de sua mãe, que aquelle
homem desmerecêra no conceito do mundo, por causa do seu mau
procedimento. Os crimes, as infamias, as impudencias nem sua mãe lh'as
explicava, nem ella saberia comprehendêl-as. O que ella via era um
mancebo melancolico, quasi sempre calado, fixando-a com frequencia,
fugindo d'ella se os olhos se encontravam, trocando palavras de absoluta
necessidade, e conversando com viveza, e muitas vezes, com sua mãe, como
se ella só lhe merecesse attenções. Andaria aqui um incentivo de vago
ciume? A manifestação inexprimivel d'um germen de sympathia? O
resentimento do desdem que Luiz da Cunha aparentava por ella?
Se vos digo que sim, não digo cousa nenhuma do outro mundo, e obedeço á
verdade.


IV.
CONTAGIO.

Nem eu nem vós sabemos como nasce o amor. Em physiologia, que é a
sciencia do homem physico, não se sabe. A psycologia tambem não diz nada
a este respeito. Os romances, que são os mais amplos expositores da
materia, não avançam cousa nenhuma ao que está dito desde Labão e Rachel
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