A Neta do Arcediago - 08

Total number of words is 4561
Total number of unique words is 1682
35.7 of words are in the 2000 most common words
49.1 of words are in the 5000 most common words
56.1 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
o coração... Não queira que eu soffra mais, minha boa mãe. Se seu marido
lhe não prohibe, venha vêr-me muitas vezes; mas considere-me sem
familia, sem apêgo a nenhuma cousa do mundo, triste e só, por prazer e
por necessidade...........................................................
..........................................................................


XII.
FASCINAÇÃO DO ABYSMO.

Raro será o peito de homem onde não bata apressado o coração, que deixa,
na patria, uma infancia com recordações suaves, ou uma adolescencia
alternada por prazeres e amarguras.
Deve ser-lhe tristissimo o ultimo adeus dos olhos ao ceo do seu berço!
Bem digno de compaixão será aquelle que lhe vira as costas, com as faces
enxutas! Esse irá mais duro da alma que o homicida, fugindo do lugar do
delicto! Esse amaldiçoou-se a si, primeiro que a patria o amaldiçoasse;
e, espedaçando os vinculos, que o ligavam aos deveres de homem, não sabe
o que é familia, não sabe o que é sociedade, sente, com tedio de si
proprio, que não tem patria nenhuma!
Tal era o filho de Ricarda.
Em quanto o marinheiro, com o barrete na mão, e os olhos turvos de
lagrimas, dizia um mudo adeus ás montanhas de Portugal, e orava, com a
santa poesia da fé, a supplica de feliz viagem ao Senhor, que faz bramir
a tempestade, Luiz da Cunha observava com risonha curiosidade as varias
physionomias dos seus companheiros. De tantas nem uma só deparou sem
signaes de mágoa. Parece que todos levavam da terra uma recordação
saudosa! O proprio capitão, de braços cruzados, á pôpa da galera,
absorvido nos longinquos cimos das montanhas cinzentas, não se
differençava, no ar melancolico, do tenro moço, arrancado pela ambição
aos braços da mãe, que o deixou ir sem resistencia, dando-se como certa
a prosperidade em que tornaria a vêl-o.
Quem mais dava nos olhos, pelo chorar ancioso, era uma senhora vestida
em rigoroso luto, com véo preto descido, e com dous meninos, um de dous
annos, outro de peito ainda, sentados no collo d'uma preta, criada sua.
--Aquella dama chora por ella e por mim!--disse, com zombeteiro
sorriso, Luiz da Cunha ao capitão.
--E o senhor não leva saudades de ninguem?
--Não, senhor. Não levo, nem deixo. Não tenho patria, nem familia. Não
sei se fóra dos lagos da Allemanha tambem ha ondinas. Se n'este mar me
namorasse de uma, casava com ella, e viveriamos na mesma concha.
--Bem se vê que não deixa em Portugal ninguem que lhe seja caro. A
quatro milhas da patria, nunca tive passageiro nenhum, que risse de tão
boa vontade!
--Pois alguma vez havia de encontrar o impio contra a religião do
amor-patrio. Não sei o que é isso, e dou-me os parabens de o não saber.
Aquella mulher por que chora? são saudades?
--Saudades, sim, do marido, que deixa na sepultura.
--É o unico lugar seguro onde podia deixal-o. Se fôr ciumosa, póde ir e
tornar, na certeza de que o não surprenderá n'uma infidelidade...
--Não zombe de cousas tão sérias, senhor Cunha. Cá no mar respeita-se a
religião...
--E em terra, estes piedosos marinheiros convertem-na em libações de
canada!... Vejo que é um bom catholico, senhor capitão!
--E o senhor não é catholico?
--Eu não sei o que sou, melhor do que o senhor. Sou este homem que vê.
Tanto sou em terra como no mar. Não me canso a pensar em cousas
superiores ao meu bom-senso, e vivo á discrição da fatalidade como este
navio á mercê das ondas... Então aquella senhora viuva é brazileira?
--Sim, senhor. Enviuvou ha dous mezes, e vai ao Brazil tomar conta da
administração da sua casa. É uma rica fazendeira de café e canna.
--Não leva com ella algum parente?
--Não, senhor. Leva duas criadas, e aquelles dous meninos. Coitada! como
não irá aquelle coração! Não ha ainda oito mezes que ella aqui passou
tão contente com o marido, que era doudo por ella! Mal diriam elles! A
vida é um engano! Quando penso nos trabalhos, que se procuram, para
amparar dous dias de vida, dá-me vontade de viver em descanso com meus
filhos, comendo um bocado de pão estreme, e ensinando-os a despresarem a
enganadora ambição de riquezas, que por fim... alli tem o exemplo!...
Quanto daria aquella senhora por ter seu marido vivo! Dava de boamente
os trezentos contos que tem...
--Trezentos contos! parece-me muito conto!
--Admira-se? pois tomára eu o que ella tem d'ahi para cima...
As reflexões melancolicas do capitão, ácerca da rapidez da vida, não
impressionaram Luiz da Cunha: mas o fecho da lamuria philosophica, os
_trezentos contos_, foi um valente encontrão á sua insensibilidade. Se
n'aquelle momento fosse possivel abrir-lhe o craneo, e analysar-lhe o
cerebro, ver-se-ia um arfar vertiginoso nas bossas predominantes
d'aquella maquina! O capitão, sem o pensar, jogára um ariete á alma
petrificada do passageiro, e abrira larga brecha por onde iam sahir
planos de infame calculo.
A viuva retirára, quasi nos braços das criadas, á sala de ré. Luiz da
Cunha desceu tambem, dominado por um pensamento que não supportava
delongas. Tão radiosa lhe fulgira a esperança de angariar uma fortuna
colossal, e tão susceptivel de realisar-se lhe parecêra um casamento com
a fazendeira de café, que, desde esse momento, o experimentado
aventureiro julgou-se protegido pelo diabo côxo de Le-Sage, e prometteu
não perder occasião de captar a benevolencia da viuva.
Como ella tivesse recolhido ao seu beliche, para esconder dos
indifferentes as incessantes lagrimas, Luiz meditou de vagar o seu
plano, estudando o papel adaptado ao caracter da viuva, e afivelando-se
uma mascara, visto que todas se ajustavam á perversa flexibilidade da
sua physionomia moral.
Convindo na conveniencia de representar mui sériamente, arrependeu-se
das imprudentes facecias com que respondêra ás graves perguntas do
capitão. Entendeu, porém, que a maneira de desvanecer o prejudicial
conceito, que merecêra ao maritimo, era explicar a sua sarcastica
jovialidade como um pretexto para illudir-se d'um profundo dissabor, uma
d'essas pungentes ironias com que o desgraçado imagina vingar-se do
verdugo destino, que o persegue.
Entrou em scena, e desempenhou magistralmente. O capitão, sincero e
rustico, mais conhecedor dos escolhos do mar que dos outros, que se
topam nas tempestades da vida, condoeu-se da pathetica narração
inventada pelo passageiro, alludindo á perda de um coração, que lhe fôra
caro, á ingratidão d'uma aleivosa mulher, que injuriára com a perfidia a
sua generosa alma. Por causa d'ella--dizia o comico--abandonava o caro
berço natal, o ceo dos seus amores de moço, cheio de illusões, mortas,
calcadas, perdidas para sempre! E tão grande fôra essa dôr, tal
desespero involvêra de negro a sua alma--proseguia elle, enrugando a
fronte, e correndo por ella a mão com a mais velhaca naturalidade--que
protestara affrontar com o escarneo todos os sentimentos nobres, pois
que os seus tambem o tinham sido por uma traiçoeira mulher, colligada
com miseraveis inimigos.
E, dito isto, no mais rigoroso ademan do palco, retirou-se, deixando o
capitão contristado, e condoido da sorte do pobre moço, que tão cêdo
perdêra o gosto da vida.
Os passageiros da galera _Boa-Sorte_, informados pelo capitão, olhavam
para Luiz da Cunha com certo ar de respeito e de triste curiosidade. O
silencio funebre de tal homem, sombrio sempre, movêra o natural
interesse dos sinceros companheiros, e não passára desapercebido a D.
Marianna, supposto que as suas penas fossem de sobra, para se dar
cuidado com as estranhas.
Luiz da Cunha felicitou-se do grande passo que déra. O que não parece
nada, era já muito para elle. Esse interesse, essa especie de curiosa
compaixão, o attencioso silencio com que duas palavras suas eram
escutadas, eram, com effeito, acquisições, que lhe valiam, na
opinião d'aquelle publico, uma consideração, que ninguem contrariava.
Havia um só motivo, que descerrasse um ligeiro sorriso nos labios de
Luiz: era o menino mais velho de D. Marianna, a criancinha de dous
annos, que, attrahida pelos agrados do passageiro, lhe dava a
preferencia nos carinhos. A mãe lisongeava-se d'este acolhimento, e
chorava, porque mais vivas a assaltavam as recordações de seu marido, ao
qual tão caros eram os afagos do menino.
Luiz, amestrado pelo contínuo estudo, não tratava de mitigar com o
balsamo banal dos seus companheiros a ferida da saudosa viuva. Pelo
contrario: dizia-lhe que chorasse, se perdêra um ente querido, um
extremoso marido, metade da sua alma, o melhor da sua existencia, um
homem digno d'ella. Como consolação, apenas lhe dizia que o encarasse a
elle, e veria alli enxutos os olhos, que derramaram lagrimas de sangue,
e por fim mirraram-se, como o coração exsangue, árido e resequido,
debaixo da sua lousa. Dizia-lhe que para ella não era impossivel a
ventura, porque, cêdo ou tarde, encontraria em um segundo marido o
reflexo das virtudes do primeiro; seria, outra vez, ditosa, porque ha
anjos privilegiados que o Altissimo não abandona, mesmo quando os deixa
sósinhos na terra, onde encontrarão um amparo, que lhes adoce as
saudades d'um outro partido, sob a lousa da sepultura.
Este estylo de cabeça não era mesquinho em figuras. Os periodos eram
artisticamente arredondados, acizelados, torneados como os hombros d'uma
estatua. Os discursos, sempre decorados da vespera, não tinham falha que
os fizesse tinnir mal aos ouvidos de Marianna. Em tudo, e até nos
improvisos, havia uma razão de ordem connexa, um rigor lógico de
honradez, um espantoso triumpho da corrupção eloquente sobre o gaguejar
da ingenuidade sempre boçal e descozida nos seus discursos.
Luiz da Cunha não se escondia para estes ligeiros dialogos com Marianna.
Em occasião de almoço ou jantar, e não sempre, é que elle se interessava
na conversa dos que por delicadeza procuravam consolar a viuva, sempre
inconsolavel.
O pequeno Antoninho afizera-se tanto a Luiz, que chorava, se o não
levavam de manhã ao beliche do seu amigo. Marianna agradecia ao
carinhoso soffredor de seu filho tantos favores, e ficava contente se
Luiz lhe dizia que era devedor áquelle menino dos raros momentos de
prazer, que Deus ainda lhe concedia por intermedio d'um innocente.
Vejam que estudo!
E assim passaram vinte dias de viagem. As amarguras de Marianna tinham
transigido um pouco com a natureza, que parece não ter sido feita para
os soffrimentos duradouros, e desmente sempre os propositos d'um lucto
perpetuo, variando as sensações com magica destreza.
Menos lagrimosa, ou mais resignada, que é o que sempre se diz, a viuva
não fugia da mesa, apenas terminava a refeição. Demorava-se na palestra,
silenciosa sim como Luiz, mas respondia com um aceno affirmativo ás
attenções, que os brazileiros de torna-viagem lhe davam, nas suas
conversas dissaboridas. Luiz fazia-se estranho a ellas, fingindo-se
abstracto em scismadoras tristezas de que o compadecido capitão, ou D.
Marianna o acordavam com esta ou outra semelhante pergunta:
--Que tem, senhor Luiz da Cunha? Em que pensa!
--No _nada_, minha senhora.
--Sempre assim! Quando virá um dia de o vêrmos alegre?
--O dia final.
--Que ideia tão triste! Então não espera, com vinte e oito annos, tão
novo, encontrar n'esta vida a felicidade?
--Não, minha senhora.
--Não póde ella apparecer-lhe como um acaso?
--A morte.... e essa é certissima.... espero-a com a segurança de quem a
vê continuamente diante dos olhos.
--Não falle na morte.... Eu tenho esperanças de o vêr feliz.... Ha de
encontrar no Brazil uma menina, muito linda e innocente, que lhe encha o
coração d'um novo amor...
--Não tenho espaço para elle. Onde está o demonio não póde entrar um anjo.
--Mas Deus póde mais que Satanaz--replicou Marianna.
--Isso é verdade!--confirmaram tres brazileiros.
--Pois Deus realise a sua generosa vontade, minha senhora.
Luiz da Cunha, com esta resposta, lançou a sonda ao coração da viuva. O
que ella lá encontrou, não o sei eu; mas que Marianna fez um gesto de
resentimento, isso foi um facto, que não escapava á fina observação de
Luiz da Cunha, nem á do leitor ou leitora, que são pessoas das muito
raras, que eu conheço, com vista dupla para lêr um coração na ruga
repentina da testa, ou no ligeiro morder do labio.
Seria indiscreta a versão feita por Luiz do repentino baixar d'olhos da
viuva? Não era, não. O desejo que ella affectava de o vêr feliz pelo
encontro d'uma linda e innocente menina, não era realmente o seu desejo,
se a menina linda e innocente não era ella.
Como essa pobre mulher, durante um mez de viagem, chorou todas as
lagrimas, que tinha perpetuado á memoria de seu marido, isso explica-se
pela inactividade das glandulas lacrimaes, quando a acção vital se
concentra no coração. A sua desesperada angustia, nos primeiros mezes de
viuva, não podia durar muito. Dôr, que se expande em soluços, que
rejeita consolações impotentes, e não espera nada dos recursos
ordinarios, mata depressa, ou depressa se desvanece. Ora, a dôr d'uma
viuva de vinte e cinco annos está, mais que nenhuma outra, sujeita
áquelle aphorismo, que não li em Hippocrates, mas nem por isso devem
deixar de o aceitar como regra de physiologia experimental.
E, depois, quando o aphorismo não frizasse com o facto, dou-vos uma
razão mais forte, mais experimentada, e menos especulativa que as
theorias incertas ácerca do coração.
Fôra necessario que Marianna tivesse sempre a seu lado um anjo a
segredar-lhe os precedentes de Luiz da Cunha, para que ella se não
deixasse illaquear na rêde habilmente lançada á sua fraqueza. O aspecto
grave, austero, e melancolico do cavalheiro, que não faltava á menor
cortezia d'uma refinada polidez; a veneração com que todos os
companheiros de viagem respeitavam a sua tristeza sombria; a bondade que
o seu sorriso respirava quando Antoninho, fugindo do collo da mãe, voava
com um beijo aos braços d'elle; a sensatez das suas reflexões a
respeito do justo pranto da viuva, que perdeu um bom marido, tão raro
entre os pervertidos filhos do seculo; os seus momentaneos extasis,
quando a palavra amor lhe roçava fugitivamente os labios; e, finalmente,
a certeza, dada pelo capitão, do illustre nascimento de Luiz, visto que
na sua carteira levava uma ordem de seis contos de reis, que lhe fôra
entregue por um padre, especie de mordomo ou cousa que o valha do
mysterioso passageiro: todas estas contingencias reunidas, e outras
muitas que nem a propria viuva saberia explical-as, davam a Luiz da
Cunha um ar de grandeza, de distincção, de sympathia, que, em poucos
dias, causára em Marianna vergonha da sua propria fraqueza, e até pesar
de ter encontrado tal homem.
De mais a mais, os olhos de Luiz, tão expressivos e ardentes nas suas
queixas contra o destino, baixavam-se submissos, se encontravam os olhos
d'ella, em que a curiosidade não era menos significativa que a ternura.
E porque se baixavam esses olhos? Mal vai ao coração da mulher quando
esta curiosa pergunta a incommoda! De dia para dia redobra-lhe o desejo
de entender esses olhos equivocos, essa modestia encantadora. Se elles
se esquivam em confessar-se, ou se a palavra timida os não denuncia, o
que era desejo, na mulher já ferida, torna-se em ancia de resolver o
problema. Chega a assustar-se d'essa apparente submissão, d'essa mudez
desamoravel. Quem sabe se aquelle olhar, fugindo aos olhos d'ella, quer
dizer que o coração foge tambem? E então entra na empreza o mais forte
inimigo da mulher: o amor-proprio, esse conselheiro intimo, que a salva
raras vezes da queda, e, demonio de soberba, impelle-a quasi sempre á
perdição, vendando-lhe os olhos do juizo, e dando-lhe aos do amor a
vista dupla, o vêr penetrante, que, em linguagem do tempo, se chama a
razão livre, a sanctificação do instincto. Era o amor-proprio o que
fizera na face de Marianna um signal de resentimento. Ainda que Luiz da
Cunha representasse o papel de atraiçoado amante, extenuado para novas
paixões, a viuva, como todas as mulheres nas circumstancias d'ella,
formosa e rica, tivera uma vez e outra a vangloriosa ideia de resuscitar
aquelle homem, que se julgava morto. Que nos perdôem as feiticeiras
florinhas com que o Senhor matisou as agruras da existencia; mas uma
fragilidade muito sensivel, e que muitas vezes as prejudica na sua
isempção, é o orgulho de acorrentar a fera, que faz estragos
desenfreada, ou insuflar uma existencia nova no homem, que adquiriu nota
de cansado. Arriscada empreza todos os dias commettida com mau successo!
A inexoravel serpente do éden está sempre assobiando aos ouvidos da
eterna Eva. A vaidade, creação contemporanea da primeira mulher,
continua a offerecer-lhe em taça de ouro o sumo do pomo, doce na
superficie, e fel no fundo. A que intenta prostrar a seus pés o
conquistador soberbo, para que a fascinação do seu engodo seja inveja ás
que não poderam tanto, é sempre victima, se o homem, que facilmente se
dá aos ferros, não tem ainda passado a linha da vida, além da qual está
o completo cansaço do corpo e da alma, tristes socios de um tardio
desengano. A que intenta restaurar no coração do homem as potencias,
atrophiadas pela perfidia, não sabe que será ella a offerenda expiatoria
do crime de outra mulher; não sabe que o trahido recupera as forças,
convertendo-as em vingança, porque tudo que n'essa alma existia nobre e
santo, bem póde ser que não sobrevivesse á morte d'um primeiro amor
galardoado com o desprêso.
Leitora, não se enfade v. ex.ª com o longo periodo que vem de lêr, se é
que o leu. Não seja ingrata á lhanesa com que se lhe mostra o homem tal
qual é, e com que se trazem do insondavel da sua alma á luz da analyse
cousas que v. ex.ª não vê em si, e muito raras vezes descobre n'elle.
Se D. Marianna tivesse encontrado na abundante leitura de romances uma
outra Marianna em face d'um outro Luiz da Cunha, parece-me que saberia
resistir aos primeiros assaltos do amor, victoria que alcançou a habil
hypocrisia, adestrada em doze annos de infamias. Não quero, porém, com
isto dizer que D. Marianna succumbisse, como imbecil, ao prestigio do
excentrico companheiro de viagem.
O que ella tinha de peor era não ser imbecil. Foi cousa que seu defuncto
marido não apoiava a tendencia d'ella para o maravilhoso. A indole,
acalorada pelos romances, seu passatempo querido, manifestára-se de
um modo assustador para um marido, não convencido da sua superioridade a
todos os outros homens, perante sua mulher. O fallecido fazendeiro de
café era um homem excellente; mas, a respeito de intelligencia, não
fallemos n'isso. O verniz que tinha, pouco ou muito, era obra de
Marianna, que sinceramente o presava, desde que elle entrára como feitor
em casa de seu pae. Diga-se de passagem que este bom homem, aos trinta
annos arrebatado por uma febre typhoide, era nosso patricio, nascêra nos
Arcos de Val-de-Vez, d'ahi sahira aos doze annos, e ahi voltára rico
para morrer nos braços de seus parentes, que tirou da miseria. Tantas
virtudes, mantidas pelo trabalho, são sobeja honra á memoria do marido
de D. Marianna. Não precisamos, mentindo, encarecer-lh'a com dotes que
elle não tinha, e, por isso mesmo, não approvava em sua mulher.
Mostrára-lhe, talvez, uma intuição clara que as tendencias romanescas de
sua mulher a precipitariam. Viu bem.
Não sei se Marianna tinha sonhado o typo de Luiz da Cunha, como se diz
em verso; se o tinha sonhado, encontrou-o na realidade, o que é alguma
cousa peor. Os traços do astucioso caracter moral não discordavam do
physico. Para a sua physionomia triste e sympathica arranjára-se Luiz da
Cunha uma alma tão ao natural, que deixára a perder de vista as
imperfeições da natureza. A arte, em quanto a mim, póde mais que a sua
rival.
Sem arte não encaminhava Luiz da Cunha as cousas a ponto de Marianna ir
sentar-se, alta noite, a seu lado, na tolda, contando silenciosa as
estrellas do ceo, entre as quaes dizia o impostor que procurava a fada
do seu destino.
--Se a vir--dizia Marianna--peça-lhe que lhe diga o meu.
--O seu destino posso eu dizer-lh'o, senhora D. Marianna.
--Qual?... diga, diga.
--Ha de ser venturosa, venturosa sempre.
--E sou eu venturosa? Sósinha no mundo...
--Quem tem o coração povoado d'anjos nunca está sósinha... Qual
será o homem que a não adore? Póde v. ex.ª rejeitar o culto, póde
julgar-se só em quanto não encontrar uma alma afinada pela sua; mas, em
quanto se é adorada, não se póde julgar sósinha...
--E que valho eu para ser adorada?
--Vale as mais santas esperanças d'um homem com o coração viçoso, ainda
rico de todas as illusões, puro ainda de toda a mancha; vale um preço
inestimavel; vale uma existencia. Tivesse eu esse coração, com
esperanças, com vigor, com pureza.... não me tivessem vasado n'elle
torrentes de fel que m'o queimam...
--Sem esperança?
--Nenhuma esperança... tenho-lh'o dito como uma confidencia que se faz a
uma irmã...
--E eu não posso crêl-o... Deus não quer que a sua vida acabe tão
cêdo... Ha de haver alguem, que lhe faça esquecer essa mulher, indigna
de si...
--Onde encontrarei eu outra?
--Onde a encontrará? Talvez no Rio de Janeiro, onde ha tantas... e tão
seductoras...
--Oh! que santa prophecia é essa!... V. ex.ª não me conhece... não se
conhece...
--Não me conheço!... Que quer dizer?
--Nada, minha senhora.
--Diga... não me deixe dar uma má significação ás suas palavras.
--Pois sim, digo; mas que a não vá eu ferir... promette perdoar-me?
--Pois que me dirá que eu não deva perdoar-lhe?!
--Não se conhece; porque, se alguma mulher podia dar-me a mão, afastando
de sobre mim a pedra sepulcral... Já me comprehendeu...
Marianna baixára os olhos, e estremecêra. Subira-lhe ás faces o calor do
coração. Sentira em si uma confusão de ideias, uma embriaguez de
felicidade e receio, uma tal perturbação que, n'aquelle momento, quizera
antes não estar alli, supposto que em parte alguma podésse estar melhor.
Luiz da Cunha, encostando a face á mão direita, pozera a mão de modo que
os olhos retorcidos não perdessem um movimento de Marianna.--É o que eu
tinha previsto--disse elle a si proprio, sorrindo mentalmente.
Passados alguns segundos dramaticamente taciturnos, Luiz, como de um
rapto, sahiu do seu extasis, e perguntou com a mais artistica commoção:
--Offendi-a? Lembre-se que prometteu perdoar-me.
--Perdôo-lhe todo o mal que me faz...
--Vê como sou infeliz?
--Infeliz!... qual de nós é mais?
--Tão infeliz que faço mal a quem eu quizera dar todas as felicidades da
terra, se tivesse a omnipotencia d'um Deus.
--O mal que me faz... poderia converter-se, se Deus o quizesse, em
ventura de ambos...
--Poderia!... eu bem sei que podia... Snr.ª D. Marianna... eu devera
têl-a encontrado no principio da minha juventude.... Eramos hoje tudo
que o desejo póde imaginar de mais feliz, de mais invejavel... Segue-se
que é mentira aproximarem-se os entes que o destino talhou para se
unirem... Quando se encontram, já a desgraça os traz desfigurados;
vêem-se, e não se conhecem; fallam-se, e não se comprehendem; abraçam-se,
e sentem-se frios como a pedra de um tumulo, como dous cadaveres, que se
levantam, a par, da mesma campa...
--E é o que nós somos um para o outro? Julga-me tão mal, senhor Luiz da
Cunha!
O filho de Ricarda ergue-se impetuosamente, dá quatro passeios no
tombadilho, afastando os cabellos da testa, e pára defronte da viuva,
com attitude o mais ridiculamente sinistra que póde imaginar-se.
--Senhora D. Marianna!
Ella fixou-o, erguendo-se tambem assustada.
--Senhora D. Marianna! ouve uma voz celeste, que a manda salvar-me? É o
instrumento sobrenatural do meu anjo de redempção? Responda...
--Que posso eu responder-lhe?
--Obedeça ao seu coração... Este momento póde marcar uma nova época na
minha vida...
--Senhor Luiz da Cunha...
--Responda, Marianna... não receie ferir-me com uma palavra negativa...
Eu preciso mesmo do ultimo desengano...
--Que hei de eu dizer-lhe... sem que me tenha dito...
--Que a amo?... Não o adivinhou ainda, Marianna?!
A viuva encostou-se á amurada do navio, e pousou a barba na palma da mão
direita, cujo braço tremia em perceptivel convulsão. Um raio da lua
reflectiu-se nas lagrimas d'ella. Luiz da Cunha teve um d'esses raros
momentos de compaixão, que costumam assaltar o infame: devêra então
maravilhar-se do magico prestigio da impudencia.
O capitão subia ao convez, e olhou com indifferença para os dous
passageiros, que não eram suspeitos a ninguem. Marianna, dizendo-se
influxada pelo ar da noite, desceu á camara, pedindo a Luiz da Cunha que
se recolhesse tambem. Era do plano astucioso obedecer.
Desde o dia immediato, repararam alguns passageiros na frequente
conversação da viuva com o homem mysterioso. O capitão, prevenido por
elles, reparára tambem que os passeios na tolda eram certos todas as
noites. O que elles todos notavam era uma sensivel differença nos
estranhos costumes do companheiro. Já não era preciso instar com elle
para assistir ao almoço. Acontecia muitas vezes encontrarem-no já com
Marianna, conversando em tom que subia uma oitava acima quando entrava
alguem. Viam-os, depois de almoço, ao pé da agulha, fugindo da ré onde
se agrupavam os passageiros. Para admirarem o phenomeno magnetico do
iman com o norte, achavam os criticos que era tempo de mais. Murmurou-se
que havia namoro, e censuravam a leviandade de Marianna, que tanto
chorára, e tão depressa esquecêra o marido. Mas não passava d'isto a
murmuração.
Com trinta e cinco dias de viagem, chegaram ao seu destino. A bordo da
galera vieram os parentes de Marianna. Luiz da Cunha, apresentado por
ella a seus tios, como pessoa a quem devia muitas finezas, foi convidado
para sua casa, e aceitou com arteira difficuldade, que as instancias
convencionadas de Marianna venceram.
O filho de Ricarda recebeu a ordem dos seis contos de reis, fechada n'um
envolucro em branco, qual o padre Madureira a entregara. Dentro d'esse
envolucro, junta á ordem, estava uma carta designada a Luiz da Cunha.
Abriu-a, e leu:

_Luiz da Cunha foi remido da ignominia, do degredo, da fome, e da morte
por Assucena. Se esta certeza lhe não valer um arrependimento nobre,
sirva-lhe ao menos de vergonha perante a sua consciencia._

A perplexidade do promettido esposo de Marianna durou poucos segundos.
D'aquella alma já não era possivel arrancar vergonha nem remorso. O
padre Madureira enganára-se. Queimando a carta, Luiz da Cunha entendeu
que o segredo voava nas cinzas d'ella. Estabeleceu tranquillas
conjecturas ácerca da riqueza de Assucena: d'onde lhe viriam perto de
quarenta mil cruzados?
Occorreram-lhe hypotheses, quasi todas ignobeis, e sordidas. E, como
nenhuma era mais provavel que as outras, Luiz da Cunha resolveu, um dia,
embolsal-a d'esse emprestimo.
Hospedado em casa d'um tio de D. Marianna, a sua vida, posto que
inactiva, era regular, e bem procedida. Não aceitou apresentações nas
salas da boa roda, porque D. Marianna as não frequentava, como viuva.
Visitava-a todos os dias em familia. Escrevia-lhe todas as manhãs, e
recebia de tarde o menino, que era o pretexto para a entrega das cartas.
Viuva de onze mezes, D. Marianna, administradora da sua casa commercial,
declarou, por delicadeza, aos parentes, que, passado o lucto, casava com
Luiz da Cunha. Não se oppozeram estorvos, que seriam inuteis. O noivo
era bemquisto: informações de Portugal era tarde para havel-as: o astuto
soubera dirigir o plano de modo que se não pedissem a tempo.
Casaram.
No dia immediato espalhára-se no Rio que D. Marianna casara com um
infame aventureiro, fugido de Portugal, depois que os seus crimes lá não
cabiam.
Esta terrivel nova fôra levada pelo capitão da galera, que se informára
em Lisboa, para saber se Luiz da Cunha seria o que parecia no primeiro
dia de viagem, ou nos outros.
Era tarde. O mais que podiam os interessados na felicidade de Marianna
era verem desmentida a calumnia, ou confirmado o boato pelo procedimento
do marido.


XIII.
EXPLOSÃO DA INFAMIA REPRESADA.

You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Neta do Arcediago - 09
  • Parts
  • A Neta do Arcediago - 01
    Total number of words is 4629
    Total number of unique words is 1677
    37.3 of words are in the 2000 most common words
    50.6 of words are in the 5000 most common words
    58.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 02
    Total number of words is 4732
    Total number of unique words is 1686
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    49.5 of words are in the 5000 most common words
    57.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 03
    Total number of words is 4678
    Total number of unique words is 1562
    36.9 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 04
    Total number of words is 4613
    Total number of unique words is 1607
    34.2 of words are in the 2000 most common words
    48.8 of words are in the 5000 most common words
    56.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 05
    Total number of words is 4605
    Total number of unique words is 1611
    38.5 of words are in the 2000 most common words
    52.1 of words are in the 5000 most common words
    60.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 06
    Total number of words is 4557
    Total number of unique words is 1656
    37.6 of words are in the 2000 most common words
    50.9 of words are in the 5000 most common words
    58.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 07
    Total number of words is 4592
    Total number of unique words is 1689
    35.5 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    58.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 08
    Total number of words is 4561
    Total number of unique words is 1682
    35.7 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 09
    Total number of words is 4463
    Total number of unique words is 1691
    34.4 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    54.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 10
    Total number of words is 4449
    Total number of unique words is 1713
    33.5 of words are in the 2000 most common words
    46.7 of words are in the 5000 most common words
    54.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 11
    Total number of words is 4499
    Total number of unique words is 1710
    35.9 of words are in the 2000 most common words
    48.1 of words are in the 5000 most common words
    55.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 12
    Total number of words is 4402
    Total number of unique words is 1772
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    48.0 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 13
    Total number of words is 175
    Total number of unique words is 122
    59.7 of words are in the 2000 most common words
    70.2 of words are in the 5000 most common words
    74.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.