A Neta do Arcediago - 09

Total number of words is 4463
Total number of unique words is 1691
34.4 of words are in the 2000 most common words
46.4 of words are in the 5000 most common words
54.6 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Eram passados tres mezes. Não havia razão nenhuma para acreditar a fama,
confirmada por ulteriores indagações. Luiz da Cunha não desmerecêra nada
nas esperanças de Marianna, e vivia á mercê da vontade d'ella, que era a
primeira a lembrar-lhe os bailes, o theatro, e os passeios, que o bom
marido frequentava com ar de aborrecido.
Os que tinham como certos os escandalos de Luiz em Portugal, estavam com
elle em suspeitosa guarda, não querendo acceitar como possivel a sua
emenda. Andava aqui inveja da avultada riqueza que a fortuna da
caprichosa lhe déra; o todo, porém, d'esses cabedaes, em terrenos e
predios urbanos, não podia considerar-se propriedade alienavel da viuva,
que era simples administradora de seus filhos. Ainda assim, a sua meação
avaliavam-na em cem contos de reis.
Como quer que fosse, Luiz da Cunha estava rico. A administração
economica da casa, em poucos annos, podia dobrar o que era legitimamente
seu por mutua escriptura.
O marido de Marianna chegou a acreditar na sua regeneração. Sabia das
suas intimas confidencias que de todas as mulheres a que menos amava era
a sua; mas tambem não sentia os imperiosos estimulos de procurar emoções
nas outras. A paz, as commodidades, o luxo, a consideração, bem-estar
que nunca experimentára, agradavam-lhe. Constavam-lhe as informações
idas de Portugal, e queria, até por capricho, desmentil-as. Signal
era de que a opinião publica alguma cousa valia já na sua. Este symptoma
enganaria o mais sisudo physiologista do coração, quando o proprio Luiz
da Cunha acreditava na estranha reforma das suas tendencias.
Basta dizer-vos que D. Marianna chamava-se feliz, e alardeava com
soberba a sua boa escolha na presença dos que faziam côro com a
maledicencia, mordendo a reputação de seu marido.
Deliciosos tres mezes!
Mas ao quarto.... Porque não morreu aquella pobre senhora no terceiro?
Porque não se aplacou o inexoravel destino d'aquelle homem? Porque ha de
ser tão brutal, tão despota a desgraça atirando abaixo das felizes
illusões a victima a que deu trégoas d'alguns mezes?
Mas, ao quarto, Luiz da Cunha viu uma dançarina no theatro, e fixou-a
com tal curiosidade, que o coração de Marianna palpitou dolorosamente.
Quiz desviar-lhe a attenção da perigosa mulher, e não pôde. Quiz, no dia
seguinte, com um subtil pretexto, sahir para os arrabaldes da capital,
mas seu marido, com pretextos ainda mais subtís, adiou a sahida.
A dançarina era franceza. Tinha a seu favor todos os demonios alados da
seducção. Era fresca como um ramalhete de camelias. Tinha os olhos mais
maliciosos, mais voluptuosos, mais zombeteiros que podem descender de
uma costella do homem, amputado no seu barro primitivo. As pernas tão
expostas á avidez da analyse, não invejavam a correcção proverbial das
de Diana caçadora. Nos braços, d'um setim transparente, destacava-se a
rêde das veias azuladas, onde o sangue buliçoso vos deixaria suspeitar
se eram aquelles os braços roubados á Venus de Milo. O pé, que nenhuma
sevilhana teve nem mais pequeno nem mais arqueado, obedecia ao frenesi
das evoluções, ou encontrava o dente da tarantula, cada vez que tocava o
invejado pavimento do palco. Era a Paquita que Asmodeu inventára para
Cleófas. Era a creatura de Lucifer em competencia com as creaturas de Deus.
Luiz da Cunha não experimentára ainda as paixões tempestuosas do
theatro, a mordedura d'esses desejos enfurecidos pelo ciume de muitos
concorrentes, essa garganta que sorve com o ouro as illusões nobres
do coração; emfim, essa vertigem, que faz de um amor vendido um triumpho
á custa do desdouro em publico, e das lagrimas no recinto domestico.
Era forçoso ao homem de todas as situações conhecer esta.
Marianna não precisava de mais provas; eram desnecessarios os avisos das
suas amigas: uma boa esposa está muito perto do coração de seu marido; a
sombra de uma ligeira infidelidade sente-se logo no escurecer da alegria
tranquilla que se lhe irradia dos olhos enxutos. Vem logo as lagrimas
accusarem o que os labios não accusam. Vem a pallida melancolia enturvar
os sorrisos descuidados da dôce paz.
Era assim que ella se queixava de Luiz da Cunha, que parecia estranho a
essas timidas manifestações de ciume. Se os labios deixavam passar um
gemido, ninguem a consolava, porque não queria testemunhas. Luiz
costumava enrugar a testa com fastiento gesto aos suspiros repetidos de
sua mulher.
Entretanto, o allucinado empregava todos os processos conhecidos para
satisfazer a ancia pertinaz. Fez grandes offertas de dinheiro,
repellidas sempre. Cortejou a bailarina, valendo-se umas vezes da
brandura hypocrita, outras da violencia natural. Nem de uma, nem da
outra maneira. Ao lado da franceza estava um amante, francez tambem,
caprichoso, ciumento, e espadachim. Luiz da Cunha fôra ameaçado por
elle, e conteve-se em quanto as esperanças lhe não falliram.
Marianna já transigia com a infidelidade; mas não queria vêr-se
sacrificada, no coração do esposo, ao amor sensual d'uma mulher sem
alma. Os seus amigos lamentavam-na; os infamadores tenazes de Luiz da
Cunha batiam as palmas. A infeliz tentou uma dolorosa lucta comsigo
mesma. Advertiu seu marido do que se dizia; pediu-lhe que não désse aos
seus inimigos o prazer de o apregoarem tal qual as informações de Lisboa
o pintavam.
Luiz da Cunha riu-se, dizendo com grosseira altivez, que os seus
inimigos podiam ser atados em feixe com um chicote, e mandados de
presente ao diabo.
As promessas redobraram, e a bailarina cahiu do pedestal do
capricho, onde quizera ter-se como em pedestal de virtude.
Cedeu, e com tanto escandalo que na noite de proximo theatro, em pleno
espectaculo, Luiz da Cunha recebeu do rival uma bofetada na face, á qual
respondeu com chicotadas, que lhe deram a primazia na lucta. Tratou-se
um duello, que Luiz da Cunha disse não aceitava, porque era filho de um
dos mais nobres fidalgos de Portugal, e não media o seu florete com um
troca-tintas da França. O francez, dias depois, abandonava o Rio para
evitar um assedio de traiçoeiros punhaes, comprados por Luiz da Cunha.
A bailarina estava sob o exclusivo dominio do novo amante. O seu fausto
centuplicou em grandeza. Prendas d'um valor enorme, arrancadas pela
prodigalidade do ouro a especuladores astuciosos, eram o preço da
escandalosa rival de Marianna.
Os amigos d'esta, finda a estação do theatro, expulsaram a dançarina,
com artificiosa violencia, ou por dinheiro que Marianna deu como se o
restabelecimento da sua ventura dependesse da ausencia da franceza.
Luiz da Cunha foi surprendido pela fuga da segunda Liberata que lhe
tocára o coração. Disfarçou a affronta em publico; mas, de portas a
dentro, desforçou-se do ultraje despresando Marianna. Esta mulher era
sublime! Quiz convencer a sociedade de que era outra vez feliz, para
readquirir o bom nome de seu marido.
Luiz da Cunha comprehendeu-a, deu ares de compadecido, fez sobre si um
esforço, e convenceu-a do seu arrependimento. Vejamos porque.
Dois mezes depois, Marianna era outra vez ditosa. O detrimento que a sua
casa soffrêra, estava remido. As dissipações com a mulher do theatro,
posto que exorbitantes, não doiam no coração da nobre senhora. Esses
calculos deixava-os ella á curiosidade dos mesquinhos louvados dos seus
haveres. O que ella queria era o coração de seu marido, e esse
capacitou-a elle de que fôra sempre seu, até mesmo na embriaguez
vertiginosa d'essa fatal loucura com a franceza.
Chegou a primavera, e Luiz da Cunha projectou com sua mulher uma visita
ás primeiras capitaes da Europa. Marianna desejava vêr Paris,
Veneza, e Londres: não queria, porém, tornar a Portugal. O marido
conveio da melhor vontade na excepção, e partiram.
Em Paris, mal se hospedaram, Luiz da Cunha sahiu a colher informações da
dançarina _Carlota Gauthier_. Fôra escripturada para Madrid. Em breves
dias viu com sua mulher os objectos menos notaveis de Paris. A
impaciencia ralava-o. Inventou uma epidemia para retirar-se, e prometteu
a Marianna voltar.
Em Madrid foi acolhido por Carlota, que não teve pejo de receber o
abandonado amante, phantasiando a violencia com que fôra arrastada a
bordo a uma embarcação.
Luiz propôz-lhe abandonar o theatro, a troco de doze contos de reis
annuaes. O seu desenlace devia ser immediato: nem uma só vez appareceria
no palco. Luiz da Cunha evitava assim que sua mulher visse a bailarina,
e explicasse a viagem á Europa, e a sahida precipitada de Paris.
Carlota aceitou: rompeu as escripturas; e o amante pagou a condemnação.
Marianna não podia comprehender as sahidas frequentes de Luiz,
deixando-a só n'uma hospedaria! Não se queixava para não ser, talvez,
injusta com as abstracções de seu marido. Suspeitou um passageiro namoro
com alguma madrilense d'entre tantas tão seductoras, e cujo garbo ella
não podia invejar. Por necessidade de conviver, relacionou-se com uma
familia portugueza, hospedada no mesmo hotel. Fugia de revelar os seus
pezares; mas uma das senhoras portuguezas adivinhou-lh'os. O marido
d'esta sabia quaes eram as distracções de Luiz da Cunha. O rompimento da
escriptura era sabido de todos. O amante de Carlota era apontado. Só
Marianna ignorava o que em Madrid era materia de ociosa analyse, até ao
momento em que a senhora portugueza lhe aclarou o segredo das frequentes
sahidas.
Marianna adoeceu. Luiz suspeitou a inutilidade dos seus cuidados em
esconder de sua mulher o escandalo, que dava a todo o mundo,
galardoando-se d'elle, e guardando-se apenas d'ella.
Na incerteza, convidou carinhosamente Marianna a continuarem a sua
viagem. A desgraçada, apegando-se ao derradeiro fio da esperança,
imaginou que a dançarina ficaria em Madrid.
A ancia de sahir restabeleceu-a, e partiram; mas, ao dar o ultimo adeus
á dama portugueza, disse-lhe esta ao ouvido:
--Se vão para Paris, saiba minha amiga, que a dançarina já para lá
partiu ha dous dias.
..........................................................................
--Não vamos para Paris...--dizia, depois, Marianna a seu marido.
--Porque, minha filha?
--Porque receio a epidemia.
--Sou informado de que já não ha peste em Paris.
--Ha, ha...
--Como sabes que ha?!
--Não é só a peste, é tambem a morte para esta desgraçada mulher, que
trazes pelos cabellos a ser testemunha das tuas infidelidades... dos
teus desprêsos...
--Isso é uma calumnia, Marianna.
--Não vamos para Paris, meu querido amigo... não vamos, não? Já vi
tudo.... não quero vêr mais nada de lá. Vamos para a Italia... sim?
--Iremos; mas é necessario fazer escala por Paris.
--Tenho entendido... hei de ser morta por essa mulher!...
--Que mulher?!
--Carlota...
--Ora adeus! quem zombou assim da tua credulidade? Eu não sei d'essa
mulher.
--Desde que te despediste d'ella em Madrid?
--Tem juizo minha creança... Tu já sabes que a parte que tens em minha
alma não póde ser substituida por ninguem, e muito menos por comicas...
--Desgraçadamente tenho a certeza do contrario... Queres dar-me uma
prova de estima? Fazes-me um favor que eu te agradecerei de joelhos?
--Que é, Marianna?
--Vamos para nossa casa.... Vamos ser felizes como temos sido... Eu
esqueço-me de tudo; nunca te fallarei d'esta mulher; mas vamos já...
--Não tem geito nenhum esse contra-senso. É um disparate que faria rir
os nossos conhecidos!
--Pois que riam elles, e não chore a tua amiga. Vamos, Luiz?... fazes-me
a vontade?
--Não posso.
--Não pódes?! Que maneira é essa de responder-me?! Lançaste-me um olhar
que nunca te vi! Santo Deus, que coméço a ter mêdo do teu aspecto! Será
possivel que tu sejas o homem que se disse?
--Não sei o que sou: fica n'aquillo que te parecer.
--Pois bem, Luiz, manda-me para os meus filhos, e fica tu em Paris.
--Não irás, Marianna. Has de ir comigo.
--Hei de ir já para minha casa... Tenho um presentimento que morrerei
longe dos meus filhos... Desliga-te de mim, faz o que quizeres; mas não
sejas tão mau, que me obrigues a acompanhar-te nos teus desatinos.
Esta afflictiva scena passava-se n'uma estação onde parára a diligencia
para os passageiros almoçarem. Luiz da Cunha deixára sua mulher, quasi
de joelhos, e viera para uma janella trautear uma aria. Depois, irritado
pelo imperioso _hei de ir já!_ voltou-se para dentro com arremesso,
crusou os braços, fez um gesto affirmativo de cabeça, e deu uma d'estas
risadas cortadas que significam desprêso e ameaça.
Marianna sentiu-se cahir desamparada, desvalida, na convicção de que seu
marido era um malvado. Vendo-se sósinha, tremeu da sua situação. Forte
em todos os sentimentos, tal terror se lhe incutiu, que receou pela
vida. Como a avesinha, escondendo a cabeça sob a aza para não vêr o
assassino que lhe mede com a pontaria o coração, Marianna escondeu a
face entre as mãos, cambaleou um momento, e recuou sobre um canapé, onde
cahiu desfallecida.
Luiz da Cunha, vendo de um lance de olhos todos os resultados d'um
possivel divorcio, ou mais ainda, da morte de sua mulher, reprehendeu-se
da inconveniente aspereza, intentou reconciliar-se com Marianna, e
começou o seu novo plano, rapidamente concebido, tomando-a nos braços,
chamando-a com ternura, e cobrindo-a de beijos.
Marianna viu com espanto a doçura dos olhos de Luiz, e por pouco
não cede ao impulso de abraçal-o. A que, momentos antes, tremêra de mêdo
diante do malvado, eil-a agora, quasi perdoando, arrependida do
criminoso susto que tivera! Quantas mulheres assim! Quantas
transfigurações da martyr que pena, para o anjo que perdôa! Quantas
lagrimas o homem enxuga com um falso sorriso!
--Não me tenhas odio, Marianna...--dizia elle, inclinando-a sobre o
braço esquerdo, e anediando-lhe os cabellos.
--Odio... não tenho; mas queres que eu não soffra?!
--Quero... farei o que tu quizeres... Não queres que vamos a Paris? Não
iremos. Vamos para a Italia, sim?
--E de lá para nossa casa?
--Iremos, filha... tornaremos para Madrid; vamos a Cadiz, e de lá
embarcaremos para a Italia... queres?
--Sim, sim, agradeço-te de todo o meu coração o sacrificio...
--Sacrificio! nenhum, Marianna! Tu não crês que és para mim a primeira
mulher, que não tens uma rival que possa mais que a tua vontade?
--Queria acreditar; mas tu...
--Eu que? Sou fraco... sou um miseravel ludibrio do destino; mas tu
vences esse destino, quando queres... És hoje para mim o que eras ha um
anno sobre o mar...
--Oh!... se eu fosse!...
--És, filha. Não me vês arrependido? Queres-me de joelhos a teus pés?
E o farcista fez menção de ajoelhar, quando Marianna se lhe lançou ao
pescoço, beijando-o, banhando-lhe de lagrimas a face, soluçando,
comprimindo-o com a vehemencia de toda a sua paixão acrisolada pelo
ciume, e expansiva pelo prazer do triumpho sobre a rival.
Em Madrid, Luiz da Cunha foi tão caricioso, que Marianna recordava os
primeiros dias do seu noivado, e não os achava mais gratos, mais
ligeiros nas suas rapidas horas do delicioso arrobamento.
Furtando-se poucos instantes á companhia d'ella, Luiz da Cunha escrevêra
a Carlota ordenando-lhe que o esperasse em Veneza, mas desconhecida, com
um pseudonimo, porque assim convinha á tranquillidade de ambos.
Quando, pois, D. Marianna, cheia de jubilo, sahia para Cadiz, a
dançarina, nomeando-se _Julia Lamotte_, chegava a Veneza, e isolava-se
n'um hotel, sacrificando a publicidade, que tão grata lhe era, á
prestação annual de sessenta mil francos, dos quaes apenas recebêra em
Madrid cinco mil.
Em Veneza, um dos primeiros homens que Luiz da Cunha encontrou,
fixando-o com ar provocador, foi o francez, que fugira aos sicarios
escravos do amante de Carlota. O brigão que partira a cabeça ao visconde
de Bacellar, e acutilára o mestre de esgrima, tinha tanta maldade como
bravura. Não se apavorou do gesto ameaçador do francez, rodeado de
francezes. Caminhou para elles, com duas pistolas engatilhadas, na
presença de sua mulher, que permanecêra estupefacta sem atinar com a
causa nem com o desenlace d'este estranho encontro. O grupo dos
francezes, os homens mais delicados do mundo, respondêra com um sorriso
á arrogancia de Luiz. Um d'elles, approximou-se de Marianna, com o
chapéo na mão, e disse-lhe com affectuosa urbanidade:
--Sabemos respeital-a mais que seu marido. Não receie consequencias
tristes. Os aggredidos são cavalheiros.
Luiz da Cunha, depois da ridicula provocação, metteu as pistolas nas
algibeiras, deu o braço a sua mulher, e saltaram na gondola que os
esperava.
Marianna pedira inutilmente a explicação d'aquelle successo. O marido
evadia-se ás perguntas, dizendo que detestava os francezes, e imaginára
que um d'aquelles o escarnecêra.
Deu-se um encontro que respondeu ás apprehensões da brazileira.
A gondola ia abicar na ilha de S. Lazaro, ao mesmo tempo que desatracava
outra gondola com uma dama, e um jokei. A perturbação de Luiz não foi
visivel para sua mulher, que não desviava os olhos pasmados da face da
dama, que se approximava na direcção da sua gondola. Já perto, Marianna
fez-se livida, convulsa, encostou-se, quasi esvahida, ao braço do
gondoleiro, repellindo o de seu marido, e, ajudada a saltar ao caes,
sentou-se, murmurando:
--Como eu sou desgraçada, meu Deus!
Acontece que um mau marido, repetidas vezes surprendido em flagrante por
sua mulher, indignado contra a má fortuna dos planos, volta-se contra
ella, por não poder vingar-se do demonio invisivel que lh'os frustra.
Esse tal, em quanto uma ardilosa desculpa o póde justificar, transige
com as lagrimas da esposa, e finge serenamente a contrição; mas, se a
contumacia no crime, todas as vezes descoberto, lhe inutilisa as
invenções refalsadas, e o exautora de prometter emendar-se, o que até
alli eram brandas desculpas converte-se depois em odio ás algemas, em
emancipação do jugo, em crime sem pretexto, nem escusas. É o cynismo que
se desmascara. É a impostura que se revolta contra o clarão da verdade.
Para ser-se tal não importa ser menos perverso que o marido de Marianna.
Luiz da Cunha, se n'aquelle instante devia odiar a imprudente Carlota
que não evitára tal encontro, irritou-se contra as lagrimas de sua
mulher, que não proferira uma só palavra offensiva, nem, sequer, queixosa.
--Vamos--disse elle com aspereza.
Marianna ergueu-se, quiz aceitar o braço de Luiz, e não pôde suster-se.
--Não posso.--E sentou-se.
--Se não pode, tornemos a entrar na gondola.
--Pois sim.... Não te zangues, Luiz, que não te fiz mal nenhum. Se é a
minha presença que te impacienta... pouco tempo te enfadarei... Vamos...
Estas palavras, quasi ditas como um segredo, para que o gondoleiro as
não escutasse, não commoveram Luiz. Pelo que no rosto se lhe via, era
mais de crer que lhe exacerbassem a cólera. As contracções da testa, o
morder dos beiços, o arfar das azas do nariz, os impetos das mãos aos
cabellos e ao bigode, denunciavam a subita renascença de toda a
perversidade do coração que lhe atirava golphadas de sangue negro á face.
D. Marianna como dias antes em Madrid, fugia de encontrar semelhante
aspecto. Alguma cousa havia ahi que só póde vêr-se e imaginar na cara
assignalada pela predestinação do patibulo!
Os frageis vinculos de respeito que prendiam marido e mulher estavam
partidos. Desde esse dia, Luiz da Cunha seria escandaloso sem
justificar-se; imporia silencio a Marianna; fruiria todos os direitos da
infamia sem empecilhos, nem covardes explicações dos seus actos.
O programma d'esta nova phase vamos nós ouvir-lh'o no _Albergo di
Italia_. D. Marianna está encostada ao peitoril d'uma janella, com a
face apoiada na mão direita, com os olhos, brilhantes de lagrimas, fitos
na lua que se levanta sobre o Lido, purpureada como os arreboes que
bordam o horisonte das montanhas tyrobanas.
Está só. É meia noite, e seu marido não vem. Depois que a deixou no
hotel, sahiu, e nem sequer lhe disse que voltava. Ha cinco horas que
chora, e sente-se menos opprimida: não sabe ella dizer se deve este bem
ás lagrimas, se ás orações. É que orou muito; e, depois, quando levantou
da taboa os joelhos, raiou-lhe na sua escuridade uma luz, uma esperança,
qualquer cousa divina que não era da terra.
E foi sentar-se, ás escuras, fitando o ceo, com a imaginação mais
tranquilla, com as palpitações mais serenas, com a face aljofrada de
lagrimas suavissimas. Mas a esperança qual seria? Não sabia ella dizêl-a.
Á uma hora entrou Luiz da Cunha.
--Ainda a pé?!--perguntou elle em tom suave.
--É um prazer contemplar este ceo--disse Marianna no mesmo tom.
--Que lindas noites se gozam em Veneza!
--Muito lindas.
--Gosto de te vêr assim, Marianna.
--Assim!... como?
--Sem as impaciencias terriveis do ciume.
--Ah!... Tambem eu gosto de me sentir assim.
--O ciume é cousa que não existe na boa roda. Em Veneza, e em Paris não
ha ciume.
--E amor?
--Um pouco, em quanto dura. A civilisação é a liberdade das pessoas e
das cousas: bole com tudo, toca em todos os sentimentos, entra nos
juizos da cabeça, e enraiza-se nas aspirações da alma.
--Não te entendo, Luiz...
--Entendes, que tens muita intelligencia. E queres que te diga? Nenhuma
mulher de fina educação póde ser feliz, como esposa, se não estiver
possuida de certos sentimentos de tolerancia com as faltas do marido.
--Vou entendendo agora, e admiro a minha ignorancia de ha pouco... Ora
diz, meu amigo, falla, que me encontras em hora de ouvir tudo... Mas
olha, Luiz... Esta noite não te recorda aquella primeira noite, no mar,
quando me dizias: _é mentira approximarem-se os entes que o destino
talhou para se unirem: quando se encontram já a desgraça os traz
desfigurados; vêem-se e não se conhecem; fallam-se e não se
comprehendem_... Era uma noite assim formosa como esta... Se então nos
não comprehendemos, Luiz, hoje comprehenderemo-nos melhor?...
--Eis-ahi um incidente bem romanesco, minha amiga! Vejo que em Veneza ha
de necessariamente conversar-se em linguagem de romance!... A recordação
das minhas palavras o mais que prova é que tens uma feliz memoria...
--Que tu não tens... bem se vê que as esqueceste... Creio que vens
zombar comigo, Luiz.
--Não, Marianna; não venho zombar. Estou capitulando comtigo. Vamos
combinar bases novas sobre que deve assentar a nossa felicidade. Todos
os casamentos são felizes, quando entre marido e mulher se dá uma
perfeita harmonia de vontades. Negas isto?
--Não.
--Da desharmonia resultam a desordem domestica, as contrariedades
pequenas, as desavenças constantes, e tudo isto porque se não entendem,
nem se combinam. Entenderem-se e combinarem-se é fazer uma alliança de
se não importarem reciprocamente das suas acções.
--Não entendi, Luiz; ou entendi uma infamia de que te não considero capaz.
--Pois que entendeste, Marianna?
--Não ouso dizêl-o.
--Eu me explico, e bem vês que o faço com toda a serenidade. Serei muito
teu amigo, não teremos nunca o menor desmancho no nosso bem-estar, se tu
quizeres ser indifferente ao meu procedimento com as outras mulheres.
--Serei, Luiz; mas com uma condição...
--Qual?
--Conduz-me a minha casa, e depois torna para aqui, ou faz o que quizeres.
--E qual é o teu fim?
--Educar os meus filhos.
--Naturalmente, depois, lembravas-me que a tua casa não podia soccorrer
as minhas dissipações...
--Esse receio fica-te bem; mas é vileza que ainda me não lembrou.
--E porque não queres tu ser feliz como eu posso sêl-o? Eu pago
tolerancia com tolerancia....
--Isto não se crê, Luiz! Dar-se-ha caso que tu vens...
--Embriagado?
--Sim...
--Não venho embriagado, Marianna; e a prova de que o não estou, é que se
fosses um homem, n'este momento, tinhas a cabeça partida nas lages da rua.
--Pois esquece-te que sou mulher, e faz-me essa esmola.
--Basta! não lhe soffro nem mais uma palavra, senhora! Recolha-se ao seu
quarto!
Marianna ergueu-se. Tal era a placidez do seu semblante, que nem os
gritos brutaes de Luiz lhe alteraram a pallidez. Passou por diante
d'elle com os olhos no chão. Entrou no seu quarto, onde encontrou
chorando a escrava que a creára, e lhe creára os filhos. Era uma amiga.
Lançou-se nos braços d'ella, suffocando os soluços.
Luiz da Cunha sahira.
--Não se deixe morrer, minha senhora--disse a escrava.
--Deixava-me morrer, se não tivesse os meus filhos. Quero viver para
elles e... é preciso fugirmos, Genoveva.
--Fugirmos!
--Sim, senão, este homem mata-me, ou eu morro de desesperação.
--Como ha de a gente fugir? Não conhecemos aqui ninguem...
--Pela manhã has de levar ao correio uma carta para o ministro do Brazil
em Vienna. Vou escrevêl-a. Se vires entrar esse homem, avisa-me...
A carta para o ministro brazileiro seguira o seu destino. D.
Marianna, se podésse rehavêl-a uma hora depois, sustaria o seu
desesperado projecto de fuga. A infeliz illudira-se. O coração d'esta
mulher não deixára sahir o amor pelas feridas das incessantes
punhaladas. Luiz da Cunha, o homem de um anno antes, imaginára-o ella
sob a influencia de algum diabolico prestigio da dançarina. Não podia
conceber semelhante mudança! Não podia capacitar-se da ignominiosa
tolerancia que elle lhe offerecêra! Amava-o ainda.
Mas elle não a deixava muito tempo illudida. O seu proceder parecia um
proposito para desenganal-a. Indifferença, desprêso, e até abandono de
dias inteiros, seguiram-se ao ultimo dialogo que lhe ouvimos. Já não
rebuçava a affronta, nem pretextava sahidas. Á hora do dia, embalava-se
com Carlota nas gondolas de Rialto, e mostrava-se com soberba
impudencia, ao lado d'ella, ao fim da tarde, na Ponte dos Suspiros.
Marianna já não ignorava nada. A preta dedicada para apressar a fuga,
como taboa de salvação para sua ama, espreitava Luiz, ou pagava a quem
lhe espionasse os passos, que não careciam de espionagem. Cahira
extenuada de soffrimento no leito, ao pé do qual seu marido passava o
tempo necessario para calçar umas luvas, quando sahia de manhã para vir,
se vinha, jantar á noite. Luiz da Cunha aconselhava-lhe os passeios, e
para isso lhe vestira um jokei que a acompanhasse, e lhe déra plena
liberdade de gosar, na sua ausencia, não só os prazeres do lympido ceo,
mas os da terra que valiam bem a pena de sahir dos amúos que a molestavam.
Uma ironia por consolação! Um escarro nas faces cadavericas da infeliz!
Uma tarde, quinze dias depois que D. Marianna escrevêra ao ministro
brazileiro, chegou a Veneza o primeiro addido d'aquella embaixada, e
procurou no hotel uma senhora brazileira.
Marianna ergueu-se para recebêl-o, e soube que era elle o encarregado de
dispor a sua sahida para o Brazil. O addido, em poucas horas, colhêra
ácerca de Luiz da Cunha as precisas informações: assim lh'o ordenára o
ministro para não annuir imprudentemente ao capricho de uma senhora
casada. As informações eram muito peores do que a ultrajada esposa
fizera saber ao ministro, velho amigo de seu pae, e de seus tios.
Um navio estava prestes a fazer-se á vela para o Rio de Janeiro.
Marianna apenas tinha tres dias para preparar-se. Na sua situação, tres
horas seriam de sobejo. O addido devia retirar-se de Veneza, quando o
navio tivesse sahido. Marianna não hesitou, nem pediu delongas.
Acabava de sahir o addido, quando Luiz da Cunha entrou. A brazileira
estava chorando.
--Minha amiga--disse Luiz--tinha tenção de jantar comtigo; mas, se me
dás môlho de lagrimas, retiro-me.
--Eu é que não aceito o teu convite. Retira-te, se queres, que eu não
janto hoje.
--N'esse caso, não jantarei só... Como estás?
--Boa.
--Optimo. Mas essas lagrimas não se esgotam...
--São lagrimas de alegria.
--Ainda bem. Vê se te reanimas para irmos a Milão, na semana proxima.
--Estou reanimada.
--Melhor. E depois vamos a Turim, a Berlim, a Napoles, _et cetera_.
--Iremos. Estas viagens regalam-me o coração.
--Estou gostando do teu joco-sério! Vaes-me sahindo uma _pretenciosa_
falladora.
--Estarei calada, Luiz!
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Neta do Arcediago - 10
  • Parts
  • A Neta do Arcediago - 01
    Total number of words is 4629
    Total number of unique words is 1677
    37.3 of words are in the 2000 most common words
    50.6 of words are in the 5000 most common words
    58.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 02
    Total number of words is 4732
    Total number of unique words is 1686
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    49.5 of words are in the 5000 most common words
    57.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 03
    Total number of words is 4678
    Total number of unique words is 1562
    36.9 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 04
    Total number of words is 4613
    Total number of unique words is 1607
    34.2 of words are in the 2000 most common words
    48.8 of words are in the 5000 most common words
    56.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 05
    Total number of words is 4605
    Total number of unique words is 1611
    38.5 of words are in the 2000 most common words
    52.1 of words are in the 5000 most common words
    60.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 06
    Total number of words is 4557
    Total number of unique words is 1656
    37.6 of words are in the 2000 most common words
    50.9 of words are in the 5000 most common words
    58.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 07
    Total number of words is 4592
    Total number of unique words is 1689
    35.5 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    58.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 08
    Total number of words is 4561
    Total number of unique words is 1682
    35.7 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 09
    Total number of words is 4463
    Total number of unique words is 1691
    34.4 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    54.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 10
    Total number of words is 4449
    Total number of unique words is 1713
    33.5 of words are in the 2000 most common words
    46.7 of words are in the 5000 most common words
    54.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 11
    Total number of words is 4499
    Total number of unique words is 1710
    35.9 of words are in the 2000 most common words
    48.1 of words are in the 5000 most common words
    55.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 12
    Total number of words is 4402
    Total number of unique words is 1772
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    48.0 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Neta do Arcediago - 13
    Total number of words is 175
    Total number of unique words is 122
    59.7 of words are in the 2000 most common words
    70.2 of words are in the 5000 most common words
    74.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.