A Neta do Arcediago - 04

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innocente dos collegios d'outro tempo, nutria-se, fortalecia-se, e
extravasava d'um amor sem calculo, d'uma aspiração sem condições.
Tal fôra Assucena.
As práticas judiciosas de sua mãe poderiam impressiona-la de passagem;
mas o amor, que vencêra o pejo, que se formára em si, e de tal força que
nem os desdens do amante o aniquilariam, esse amor reagiu contra os
mesquinhos estorvos de um dote, contra a dependencia ignobil das
algibeiras d'um padrasto.
Luiz da Cunha, restaurada a saude melindrosa de seu pae, continuou
regularmente as suas visitas á viscondessa. O trato grosseiro do
visconde era cada vez mais acrimonioso. A affabilidade de Rosa
desmerecêra um pouco; e as maneiras de Assucena pareciam-lhe, em
compensação, mais ternas, mais meigas e insinuantes do que o tinham sido
antes da sua declaração.
E, certo, eram.
Assucena despediu-se de João da Cunha na vespera da sua entrada nas
commendadeiras. De Luiz despediu-se tambem; mas toda a arte foi vã para
esconder as lagrimas do adeus. Os olhos aguados, e as palavras
balbuciantes denunciaram-na, não a Luiz que a adivinhava; mas a João da
Cunha que a não imaginava tão fragil á tentação do filho.
A fantasia de Luiz deixou-se outra vez levar do enganoso amor. Era o
desejo que o fazia credulo. Era a pergunta, que elle muitas vezes se
fizera depois da emenda: «poderei eu ser ainda feliz, amando?» era essa
pergunta que o fazia procurar a resposta no amor de Assucena.
E sabem, leitores, quanto duram estas illusões em homem que deu da sua
alma tudo quanto podia ás puras ou ás impuras paixões? É devaneio d'um
dia: accesso febril que arrefece no dia seguinte: é o mentiroso
rejuvenescer de algumas horas.
«Se eu podésse lutar com as difficuldades d'uma affeição despresada!...
Se houvesse ahi uma mulher que me ameigasse para me captivar, e, depois
de captivo, me lançasse de si com a ponta do pé, para que ao menos, eu
sentisse aqui no seio de pedra a tarda palpitação do amor proprio!»
Ha homens que dizem isto, que o dizem e o desejam, que o desejam e não o
encontram.
Para esses de que serve o amor sem rebuço, a dedicação espontanea e
descuidosa da mulher que vem procural-os, sem ser chamada? Pobre d'ella,
se a ultima scintilla de piedade generosa se apagou no coração do seu
verdugo amado. E elle que lucraria?... O tedio de si proprio.
O amor angelico de Assucena fôra outra vez recebido por Luiz da Cunha,
esquecido já das primeiras emoções.
A filha de Rosa entrára no convento, onde encontrára faceis amigas que
se interessavam em remediar-lhe com conselhos a profunda tristeza. Os
conselhos lisongeavam-na. Jubiladas no amor, as commendadeiras,
illustres em nascimento, e até illustradas no espirito, olhavam as
cousas d'este mundo, pouco mais ou menos, como ellas são. Menina de
dezoito annos, melancolica, soffre de amor: entenderam as mais
penetrantes. Conhecido o diagnostico da enfermidade, era infallivel a
pharmacia, muito acreditada nas benedictinas. A quem penava do coração
applicava-se-lhe amor a grandes dóses. Ora a barateza da droga nunca
deixou morrer ninguem á mingua de antidoto.
O que se dizia a Assucena era que amasse, que recebesse no lucutorio
quem quer que fosse, que se não deixasse possuir d'uma heroica
abnegação, porque o mundo não valia o sacrificio. A sua mais presada
amiga, secular tambem, que passava tres mezes no convento, e nove na
sociedade, tomou ao seu cargo a voluntaria missão de convidar o filho de
seu primo João da Cunha a tomar chá na sua grade, em dia dos seus annos.
Assucena foi surprendida por Luiz da Cunha, que nunca vira tal prima,
nem entrára em tal convento. Aceitára o convite porque desejava mostrar
que lhe era grato o pretexto de que Assucena se servira para chamal-o ao
convento.
A prima de Luiz da Cunha era uma senhora desempoada. Na sua desprevenida
intelligencia, dous e dous eram quatro, e, segundo ella, toda a mulher
devia ter um amante, e particularmente aquella que reza vesperas n'um
côro em quanto as outras elegem entre dezenas de vestidos o que ha de
realçal-a mais no baile, ou no theatro. Eil-a, pois, em opposição com os
estatutos de todos os patriarchas, que apadroaram conventos.
Desde esse dia as visitas de Luiz da Cunha a sua prima eram quasi
diarias. Na grade de sua prima, as mais das vezes, quem Luiz encontrava
era Assucena.
A viscondessa sabia d'estas visitas, e não as prohibiu a sua filha,
despresando assim as insidiosas prevenções da intriga, que d'este modo
procurava vingar-se de odios domesticos a D. Leonor Machado, a prima
prestadia de Luiz da Cunha. Os reiterados avisos a Rosa Guilhermina
sahiam do convento. Assucena ignorava-os, porque sua mãe, concebendo os
melindres d'um amor contrariado, não fallava de proposito em Luiz da
Cunha, nem consentia que sua filha de proposito lhe fallasse n'elle.
O visconde tambem teve as suas duas cartas anonymas, a respeito dos
_escandalosos_ amores da sua enteada, protegidos pela _escandalosa_
secular Leonor Machado.
José Bento levou ao conhecimento de sua mulher as informações, que
recebera, e Rosa, por assentir a seu marido, de quem dependia o futuro
de Assucena, impôz-se a dolorosa obrigação de prohibir a sua filha
intelligencias com Luiz da Cunha.
Assucena recebeu silenciosa a correcção; mas, em silencio, se
promettia não lhe dar o pêso que sua mãe lhe dava. Era tarde para ella,
e tarde para o filho de Ricarda, que acabava de convencer-se que o amor,
e por ventura o patrimonio de Assucena, alcançado por astucia, faria as
delicias da sua vida.
Luiz continuou sem obstaculo as suas constantes attenções á prima. O
visconde, informado de novo, mostrou ao seu devedor João da Cunha as
cartas que recebêra. João da Cunha, admoestando o filho, encontrou-o um
pouco parecido com o que fôra em tempo, respondendo-lhe que a reforma de
costumes não consistia na renuncia completa dos mais innocentes prazeres
do espirito. Como não fallou em materia, o caso não era tão pavoroso
como o afiguravam os timidos informadores do padrasto.
Luiz da Cunha, ressentido das grosserias do filho do retrozeiro da rua
das Flôres, espaçou as suas visitas a casa d'elle. Romperam-se,
portanto, as hostilidades. O visconde ameaçava a enteada de retirar-lhe
as mesadas. Luiz da Cunha offerecia-se como irmão a Assucena, quando seu
estupido padrasto a desamparasse.
E tudo isto exacerbava a paixão de Assucena, que, agradavelmente
humilde, não sabia resistir ao amante, para obedecer ao tyranno da sua
alma.
A prelada do convento recebeu do visconde poderes, que nunca, até então,
exercêra sobre o coração das professas, e muito menos das seculares.
Animada pela indomita Leonor Machado, a neta do arcediago desobedecia,
correndo pressurosa á grade, quando Luiz da Cunha apeava no páteo. Alli,
a pobre menina alliviava da sua dôr oppressiva, chorando, e bebia a
longos sôrvos o balsamo, que o filho de Ricarda, de antemão, trazia
preparado em estudadas palavras de esperança.
Mas qual esperança era essa? Que planos eram os d'elle?
Muito communs, e muito infames.
Luiz da Cunha, invocando o seu _eu_ d'outros tempos, encontrou-o.
Pediu-lhe conselhos, e recebeu-os. Aventou uma trama que não é nada
extraordinaria, porque não cansam por ahi cavalheiros muito probos, e
exemplares a todos os respeitos que a praticaram com prosperos
resultados.
O filho de João da Cunha sabia que, morto seu pae, os successores do
vinculo viriam desalojal-o do ultimo palmo de terra. O futuro dava-lhe
cuidado. Os poucos bens de livre nomeação estavam hypothecados a dividas
enormes, contrahidas por sua causa, depois que as preciosas joias de
Ricarda foram desbaratadas em desperdicios do pae e do filho. João da
Cunha, segundo o pensar dos medicos, não resistiria a um dos ataques
cerebraes que repetidas vezes o ameaçavam com a morte, annunciando-se
por uma sombria tristeza, e desordem de ideias, á maneira d'aquella em
que o vimos censurar o amor do filho a Assucena. Luiz teve o bom senso
de se julgar desvalido apenas seu pae fechasse os olhos. Precisava
enriquecer-se e grangear com tempo uma fortuna, empregar para isso
esforços e habilidade, embora aconselhados pela desmoralisação.
Entendeu, portanto, que Assucena receberia um bom dote do visconde,
quando esse dote lhe fosse imposto como resgate da deshonrada filha de
sua mulher. Para isso era necessario tiral-a do convento, diffamal-a,
forçar a viscondessa a influir no dinheiro de seu marido.
O calculo parecia-lhe infallivel a elle. Assucena prestava-se
maquinalmente á vontade do amante, por isso que sua mãe acabava de lhe
fazer sentir que o visconde resolvêra fazêl-a entrar n'um convento do
Minho, em Bairão. Era necessario apressar o desfecho. Leonor Machado
abundava nas ideias do seu primo, e prometteu coadjuvar Assucena na
fuga, pela sua casa, que era paredes meias com o muro da cêrca, sobre
que se abria por um postigo. Luiz da Cunha comprou o hortelão, que devia
abrir-lhe a porta travessa do pomar. Animou a timida menina a descer uma
escada que lhe foi içada ao postigo. Recebeu-a nos braços murmurando o
vigesimo juramento de nunca desmerecer a confiança que lhe merecia, e
entrou com ella na mesma sege em que muitas vezes entrára com Liberata.
Desde esse momento, qual das duas teria um melhor futuro?
Deus! como presenciaes, sereno e tranquillo em vossa magestade tremenda,
a precipitação d'um anjo em cada dia!?
Homem, que crês na effectiva vigilancia da Providencia, responde-me:
Se Assucena vai innocente a resvalar n'um abysmo, quem lhe dará a
consciencia do erro? A perdição? Seja. Mas esse remorso tardio que lhe
presta? A contrição? Seja. E, se ella morrer, blasphemando? O inferno?...
Valha-nos Deus!...........................................................
..........................................................................


VI.
ANJO CAHIDO, MAS AINDA ANJO.

A fuga de Assucena não admittia conjecturas. As commendadeiras
explicaram-na com admiravel promptidão, menos Leonor Machado que, no
auge do seu pasmo, não atinava com a causa de semelhante resolução, nem
podia comprehender por onde ella fugira! Ingenua creatura!
A noticia foi depressa á viscondessa de Bacellar. A pobre mãe desmaiou
sem lêr as ultimas linhas da carta, que a consternada abbadessa lhe
escrevêra. O visconde, encontrando-a desfallecida, lêra tambem a carta,
e passados os segundos da surpreza, déra-lhe para rir com estupida
imbecillidade.
Tal fôra o estridor da gargalhada, que Rosa Guilhermina volveu a si para
contemplar, com os olhos lagrimosos e absortos, o estranho espectáculo
de José Bento, que batia com o pé direito no chão e com a mão direita na
esquerda, exclamando, entre frouxos de riso:
--Não t'o dizia eu? Ahi está o convertido Luiz da Cunha!... Ahi está a
innocentinha Assucena! Sou um criado do senhor convertido, e da senhora
innocentinha! Agora pega-lhe com um trapo quente. E dizem que és
esperta! Os espertos cáem em cada langará, que não sei o que te diga,
Rosa! Ora beija as mãos ao teu Luizinho que t'a pregou na menina do
olho! Isto havia de acontecer tarde ou cêdo! Eu sempre tive quizilia com
tua filha, e com o mulato; por alguma cousa era.
--Está bom, José; tens razão; não me mortifiques mais porque me matas.
Tem piedade de mim que sou mãe. Não és pae; se o fosses, em vez de
gargalhadas, chorarias...
--Choraria! pois não! Se fosse pae, mandava o tal bregeiro de presente
ao diabo. Havia-lhe de arrancar o coração pela bôca. Se fosse
pae--accrescentou o assassino do mestre de latim, morto a garfo--não
descançava em quanto os não arrebentasse a ambos. Como não sou, não
tenho nem quero ter direito algum sobre tal mulher. Lá se avenha.
--Lá se avenha!--exclamou Rosa, estendendo-lhe os braços
supplicantes--Lá se avenha... não é assim, José! Assucena é minha filha,
é filha de tua mulher... sou mãe que tenho de sentir a deshonra d'essa
desgraçada!... Por compaixão, meu amigo, por compaixão não a abandonemos!
--Que queres tu agora? que eu vá buscal-a para casa na minha carruagem?
--Não... Pelo amor de Deus não zombes com a desgraça...
--Pois que queres?
--Que te unas a mim para fazermos com que Luiz da Cunha case
immediatamente com ella.
--E que tenho eu com isso? Eu sou algum padre que os case? Isso é lá com
o prior.
--Jesus! tu não és tão cruel como estás fingindo, meu querido José...
Finges que me não entendes... Paciencia! Queres-me morta.... pois
sim.... eu te farei a vontade.
--Ora percebam este disparate! Que tenho eu com o casamento de tua filha?
--Não tens nada; mas se fallares com João da Cunha...
--Fallarei. Não queres mais nada?
--E te compadecêres de minha filha para que ella tenha um bocado de pão...
--Agora entendi... O tal patife só casará com Assucena dotada...
--Não sei, José; não sei se casará com ella sem dote; póde ser que sim;
mas são ambos pobres, bem sabes que João da Cunha deve tudo que
poderia deixar a seu filho... Não a desamparemos.
--Digo o que disse, Rosa. Não dou nem um pataco para que ella case com o
filho da preta, com o amante das mulheres perdidas, com o infamador das
senhoras honestas, e com o perdulario, que dissiparia n'um anno toda a
minha fortuna, se podésse metter-se em minha casa. É mais facil eu
recebêl-a em casa...
--Deshonrada, infamada, perdida...
--Sim; é mais facil recebêl-a assim, que aceital-a casada com esse
desastrado galopim, hypocrita, e infame que deshonra a filha da unica
senhora que o não repelliu de sua casa. Eu tenho sentimentos... Bem
sabes que os tenho desde que estudei latim na travessa do Laranjal...
Sei, ha muito, o que é ter nobreza d'alma. Assucena não é minha filha;
mas que me appareça esse vil seductor, e verá quantos dentes lhe ficam
na bôca.
O dialogo prolongou-se n'uma luta de afflicção da parte da infeliz mãe,
e um immutavel proposito da parte do padrasto.
João da Cunha, contra o seu costume, entrava ao meio dia em casa do
visconde.
Vinha em miseravel estado. As veias da face enturgeciam do sangue que
lhe subiu á cabeça em borbotões. O mal aggravou-se na presença de Rosa,
que lhe viera ao encontro, banhada em lagrimas, soluçando palavras
inarticuladas. O visconde, impassivel, encarava João da Cunha com
sobrecenho.
--Tem um excellente filho, senhor Cunha!--disse José Bento, balançando
a cabeça com pungente ironia, e solfando no pavimento com o pé direito.
--Tenho um desgraçado filho, senhor visconde!--murmurou João da Cunha,
cahindo extenuado sobre uma cadeira, e amparando a fronte calcinada na
mão ardente como ella.
--Eis-ahi continuou o inexoravel credor--o que é um fraco pae, que
deixou crescer seu filho á lei da natureza Agora regale-se, senhor Cunha!
--Não me despedace, visconde! Respeite a minha dôr!--murmurou o
atormentado pae, erguendo as mãos na indescriptivel ancia da sua
vergonha.
--E quem é que respeita a dôr d'essa mãe, que está ahi chorando ao pé
de si?
--Sou eu, visconde, sou eu. Somos ambos paes; comprehendemo-nos
chorando....
--Agora!... Remedeiam alguma cousa?
--Venho aqui para combinarmos a maneira de remediar esta desventura.
--De que maneira?--exclamou a viscondessa.
--Esse desgraçado escreve-me uma carta... Eil-a aqui: visconde... Leia,
que eu não posso.
--Nem eu!--disse bruscamente o visconde--que me importa a mim a carta de
seu filho? Não tenho nada com elle: entendam-me d'uma vez para sempre.
--Eu leio...--disse Rosa tomando a carta com soffreguidão.
Lendo-a, fechou-a, e disse a João da Cunha:
--É impossivel.
--Impossivel!
--Meu marido não dota Assucena, e, portanto... minha filha... está perdida!
--Perdida? não!--atalhou João da Cunha--Em minha casa ha umas sôpas; e,
em quanto eu viver, meu filho aprenderá o officio de sapateiro para não
morrer de fome, depois da minha morte. Eu vinha aqui pedir uma esmola
para o futuro de Assucena; não venho pedir o preço da reparação da sua
honra. É preciso que me entenda, senhor visconde. Meu filho é neto dos
Cunhas e Faros. Não mercadeja com a deshonra das suas amantes; não
calculava com as suas migalhas quando arrancou a filha d'esta senhora
aos braços da virtude...
João da Cunha, alteando cada vez mais a voz, e embaralhando as ideias em
desalinhada precipitação, denunciava o ataque periodico de sangue, que
se lhe injectava nos olhos, transpirando na testa em frias bagas de
suor. Nem o visconde o entendia já, nem elle mesmo seguia com
consciencia o curso arrebatado dos pensamentos, quando de improviso
levou as mãos á cabeça, exclamando:
--Senhora viscondessa, se não sou sangrado já, morro, ou endoudeço!
O visconde condoêra-se. Deu ordens prestes, e o facultativo veio
rapido. Depois de copiosa sangria, eram pouco sensiveis as melhoras.
João da Cunha estava febril, e fallava em delirio. Sacudindo os braços
vertiginosamente, pedia que lhe afastassem dos olhos o espectro de Ricarda.
Decorridas horas, progredia mais intensa a febre, mais frenetico o
delirio. As afflicções agglomeravam-se no coração de Rosa, em quanto seu
marido curava serenamente dos seus negocios, sem enganar-se no quebrado
de uma operação arithmetica, em seu prejuizo.
A crise de vida ou morte passára; mas os medicos disseram que João da
Cunha não recuperaria o seu completo juizo por muito tempo, ou talvez
por nunca mais. Era o decimo ataque que soffria.
Entretanto, um criado de Luiz da Cunha esperava no Campo Grande, local
do palacete dos Cunhas, a resposta. Cinco horas depois, vira descer da
carruagem, nos braços de dous medicos o pae de seu amo. Approximára-se,
para ser reconhecido, os medicos disseram-lhe que se afastasse, e os
lacaios afiançaram-lhe a demencia do fidalgo.
Tal foi a resposta que Luiz da Cunha recebeu.
N'essa mesma noite, o filho de Ricarda entrou no quarto de seu pae.
Apertou-lhe a mão, chamou-o tres vezes inutilmente, e, á quarta, ouviu
as seguintes palavras, que pareciam ser ditas ao facultativo presente:
--Diga a meu filho que seja honrado casando immediatamente com essa
menina. Que venha para esta casa, com sua mulher, que será minha filha.
Que aproveite os poucos annos da minha vida para se formar em
mathematica, e assentar praça depois, que foi essa a mais esplendida
carreira de seus avós, valentes generaes, quasi todos mortos no campo da
honra, sem uma nodoa ignominiosa. Em quanto elle vai estudar, sua mulher
poderá mover á piedade o padrasto, e levantar do chão alguma esmola que
elle lhe atire como um osso a um cão importuno. Se lh'a não dér, nem por
isso será menos filha de João da Cunha; porque mais vale ser filha de
João da Cunha, que enteada do filho d'um retrozeiro do Porto. Que venham
ambos vêr-me.
--Eu estou aqui, meu pae.
--E que não se perca em Coimbra como eu me perdi...--continuou elle,
surdo ás interrupções incessantes de Luiz--Foi lá que me atirei a este
fôsso, d'onde não ha sahida, nem pela porta da contrição. Não se segue
do meu crime a expiação em meu filho. Se causei a morte de Ricarda, não
fui eu que a matei; foi seu marido. Se se reconciliaram na presença de
Deus, é bem que eu pague o sangue com o sangue: mas meu filho, esse não...
Luiz da Cunha não decifrava das vagas exclamações de seu pae a resposta
do visconde. Retirou-se para Lisboa, e entrou em uma casa da rua do
Principe. Subiu a um terceiro andar, e recebeu nos braços a inquieta
Assucena, que chorava e tremia.
--Porque choras?
--Estava sósinha, e muito triste, Luiz...
--A tua criada não te fez companhia?
--Ninguem m'a póde fazer... Ou tu, ou ninguem... Agora, não choro, nem
tremo... Que resposta deu minha mãe?
--Não sei: meu pae está effectivamente doudo. Não comprehendi nada do
que elle disse; mas, a acreditar o delirio em que o encontrei, o
visconde não lhe respondeu do modo que suppúnhamos.
--E então?
--E então, minha filha, és o que eras para mim. Bem sabes que te não amo
por calculo, nem te adoro menos se os meus planos falharem.
--Eu bem o sabia, Luiz! O dinheiro não faz a tua felicidade nem a
minha...--disse ella abraçando-o com o acanhamento do pudor.
--De certo não, Assucena. O caminho que temos a seguir é sempre o mesmo.
Rica ou pobre serás minha esposa.
O amor não se finge. A tibieza das phrases triviaes de Luiz da Cunha
diz-nos que o arrependimento veio, mais cêdo do que devia esperar-se,
manifestar um enthusiasmo sobre posse. Não se acredita, sem ter
experimentado, a subita mudança que transforma o homem, quando a posse
absoluta da mulher, que se lhe dá, é logo misturada de desgostos
imprevistos. Um rapto, de que se espera um dote, é um pêso aborrecido
quando a esperança, fugindo, apenas deixa nos braços do raptor uma
mulher sem illusão, nem prestigio. E, peor ainda, quando o amor é
debil, o coração extenuado não aceita os sacrificios grandes, que, raras
vezes, acrisolam o amor de fantasia, como era aquelle de Luiz da Cunha.
Querem vêl-o tal qual era nas primeiras vinte e quatro horas de
convivencia com a filha de Rosa Guilhermina?
Chegou a conceber o pensamento de fazêl-a entrar no convento em quanto o
escandalo não era publico! Por vergonha, lhe não fez a ella a proposta
reparadora da sua virtude! A virtude, portanto, na opinião d'este homem
era um attributo bem facil n'uma mulher!
Passaram-se alguns dias, sem Assucena desconfiar da frieza do seu
amante. A nudez, e os gestos de impaciencia que elle, ao quarto dia, não
podia esconder, traduziu-os ella como inquietação pela perigosa
enfermidade de João da Cunha.
Luiz sahia de noite, a visitar seu pae. Não o encontrava nunca nos
intervallos lucidos, e sabia que os accessos eram cada vez mais duradouros.
Resolveu, sem consultar Assucena, escrever á viscondessa. A carta foi
ter ás mãos do visconde. O visconde devolveu-lh'a aberta, com estas linhas:
«_Em minha casa não ha quem responda ás infames cartas do senhor Luiz da
Cunha. Se quer dinheiro, trabalhe. Sahiu-lhe errado o seu calculo. Creia
que me não enganou a mim, que tenho experiencia para conhecer os
patifes. O que lhe vale ao senhor é essa mulher não ser minha filha...
De hoje em diante, os seus portadores a esta casa serão corridos a
chicote._»

Estas linhas provocaram toda a irascibilidade de Luiz da Cunha. A ameaça
era feita em termos muito insultantes, e o brio não tinha ainda expirado
no filho de João da Cunha. A carta recebêra-a elle em casa de seu pae.
N'essa noite não veio á rua do Principe, e mandou um bilhete
desculpando-se com a gravidade da doença de seu pae. Assucena viu a sua
desgraça a um raio de razão n'esse bilhete. Eram apenas decorridos vinte
dias, depois da sua fuga! Chorou uma noite inteira, e escreveu a sua mãe
uma longa carta, que rasgou.
Luiz da Cunha apeou no pateo dos Paulistas, esperando o visconde de
Bacellar que era certo ás onze horas de passagem para o Banco, ou para a
praça commercial.
Vendo-o, parou diante da sua carruagem. O boleeiro sustou os cavallos, e
o visconde, sem auxilio de criado, saltou da portinhola com resolução.
O filho de João da Cunha não entreteve o palavriado preliminar n'estes
conflictos. A sua arma era um chicote, e a do filho da Anna Canastreira
eram os braços musculosos. Travou-se a luta. Cada murro bem puxado do
visconde, Luiz recambiava-lh'o na face em chicotada, que se repetia
sobre o vergão da primeira. Os criados do visconde soccorreriam o amo,
se não encontrassem de frente os criados de Luiz da Cunha. Eram dous os
grupos de gladiadores; e o povo, sem ser romano, parecia, pela sua
inercia, gosar o espectaculo curioso entre os dous athletas.
O capitalista fôra ferido na face pelo martello do chicote. Os cabos de
policia, e a guarda do correio, supposto que tarde, empregaram a força.
O capitalista teve logo ahi um fiador, que o salvou de entrar entre
bayonetas. Luiz da Cunha do corpo da guarda foi á administração, e d'ahi
ao Limoeiro, d'onde sahiu afiançado quarenta e oito horas depois. Tudo
isto foi ridiculo a não poder ser mais! Cada qual explicava o caso com
uma anecdota. A fuga de Assucena era acontecimento que não passára d'uma
roda muito restricta; e, portanto, era livre a invenção aos interpretes
do pugilato.
Passára-se uma noite e um dia de solidão para Assucena. Como seriam
entretidas aquellas quarenta e oito horas! Que presentimentos, que
receios, que saudades, que reprehensões da consciencia atormentariam a
pobre menina! Fechada no seu quarto, rejeitára o alimento que a
indifferente criada lhe offerecia. A sua dôr tinha frenesis, que a
extenuavam. Todo o seu esforço em resignar-se era baldado, quando a
esperança lhe mentia nos passos que subiam a escada e paravam no
primeiro ou no segundo andar.
Depois de quarenta e oito horas, sem noticia de Luiz, o desespêro
fortaleceu-a resolvendo-a a procural-o em casa de seu pae.
Á noite, sahiu com a criada, perguntando de rua em rua o caminho do
Campo Grande. Á porta de João da Cunha estava um criado. Pediu-lhe que
chamasse o senhor Luiz da Cunha; responderam-lhe que não estava lá, e
que o mais certo lugar onde o encontraria era no Limoeiro.
--Prêso!--exclamou Assucena.
--Sim, minha menina, prêso pela vigesima vez por causa das suas
patacoadas. Não chore, creaturinha, que o senhor Luiz ha de sahir
brevemente.
--E porque o prenderam?--perguntou a criada.
--Porque deu umas chicotadas no visconde de Bacellar, assim como quem
não quer a cousa.
Assucena sentiu-se arrefecer do gêlo que começa na alma, e vem em
calefrios á sensibilidade exterior. Encostou-se á criada, pedindo-lhe
que não perguntasse mais nada. Atravessou, sem murmurar um gemido, sem
um queixume, parando exhausta de forças a cada instante, a grande
distancia que a separava da rua do Principe. Entrando no seu quarto,
cahira de face sobre o leito, não para repousar, mas para reprimir os
gritos que podiam ouvir-se no segundo andar.
E ouviram-se.
Era meia noite. A criada adormecêra, indifferente aos gemidos da ama,
que lhe não aceitava as imbecís consolações. Assucena, só e ás escuras,
porque a vela se extinguira, abrira a janella do seu quarto; mas a noite
de Janeiro era tenebrosa e frigidissima. A filha da viscondessa de
Bacellar tiritava de frio, de susto, e até de terror de si mesma.
Sentava-se sobre a cama, lançando sobre os hombros o cobertor. Fitava o
ouvido a cada tropel remoto de passos. Desenganada, ajoelhava com as
mãos erguidas pedindo a Deus que lhe désse vida até que a luz do dia lhe
deixasse procurar Luiz. Assucena passava por um d'esses soffrimentos em
que se julga possivel a morte instantanea.
Depois, as trévas da noite romperam-se em relampagos successivos, e o
quarto illuminava-se de clarões azulados. A aterrada menina correu a
fechar a janella, quando uma chuva fria lhe açoitou as faces. A dôr
immensa só tinha expansão nos gemidos. Lançou-se sobre o leito sem
reflectir que a escutavam, invocando Maria Santissima, pedindo
compaixão a sua mãe, chamando Luiz com alarido de demente, e soluçando
de modo que, a distancia, simulava uma mulher que se contorce entre os
braços que a matam pela asphixia.
No andar de baixo morava uma devota senhora, que accendia duzias de
velas, e rezava duzias d'orações a Santa Barbara. O quarto d'ella estava
ao pé do de seu irmão, o conego Bernabé Trigoso, que dormia no quarto,
cujo tecto era o pavimento do de Assucena.
Foi elle o primeiro que ouviu os gemidos, os passos, o abrir e fechar da
janella, o ranger do leito, e ultimamente os gritos.
Chamou sua irmã, e disse-lhe que escutasse. D. Perpetua Trigoso applicou
o ouvido, e affirmou que não era illusão do conego os estranhos gritos
da mysteriosa menina que alli morava.
--Vamos nós lá, Bernabé?--disse ella quando seu irmão lhe pedia o
capote, e a mandava sahir do quarto para elle se vestir.
Subiram ao terceiro andar cada um com sua vela mystica, das que a
senhora D. Perpetua accendêra á santa das trovoadas, e bateram á porta.
Assucena, sem pensar nem discernir, como desintorpecida d'um lethargo,
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