A Neta do Arcediago - 12

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fosse a protectora d'elle, e o remisse da condemnação eterna,
descontando-lhe os sofrimentos d'este mundo.
E seguiram-se assim, sem alteração para Assucena, os dias de seis annos.
Em 1848 morreu a filha do arcediago quasi repentinamente: mas desde
muito que o seu testamento estava feito. Assucena era herdeira d'uma
quinta no Minho, unica disposição que a mulher de José Bento podia legar.
Este golpe confirmou as conjecturas do padre Madureira. Assucena teve
passageiros accessos de demencia. Convalescida, ordenou ao padre que lhe
trouxesse um tabellião. Á solemnidade e bom tino da supplica, não
resistiu o padre desconfiado.
Assucena dava o uso-fructo da sua quinta ao beneficiado Madureira, em
quanto vivo, com a condição de elle fazer cumprir o legado de tres
missas diarias: uma por alma do conego Bernabé Trigoso; outra por alma
de D. Perpetua Trigoso; e outra por D. Rosa Guilhermina, sua mãe. Por
morte do padre, a quinta passaria á Santa Casa da Misericordia com as
mesmas condições para sempre.
Madureira, sabendo nas vesperas da partida, que Assucena se retirava
para a sua quinta de Caldellas, na provincia do Minho, admoestou,
supplicou, mas não conseguiu demovêl-a do proposito.
--A minha sahida d'esta casa--dizia ella--é o maior sacrificio que eu
posso fazer. Deus m'o acceitará, porque no serviço de Deus me sacrifico.
Preciso ser grata aos bemfeitores mortos, e ao vivo: os suffragios para
os mortos, e a posse d'esta quinta, meu purgatorio e paraizo, para o meu
bemfeitor.
--E deixa o seu bemfeitor com tamanha presença d'espirito, senhora D.
Assucena!
--Deixo-o com a mais violenta dôr de coração. É o cilicio com que
martyriso o meu espirito. Deus me levará em conta esta renuncia da
convivencia com o meu bom amigo.
Madureira não podia constrangêl-a, receando abreviar uma loucura
irremediavel.
Acompanhou-a ao Minho, na primavera de 1849. Estiveram alguns dias no
Senhor do Monte, onde a melancolia de Assucena parecia desopprimil-a,
alargando-lhe o coração pela amplitude do céo, que, n'aquelle local,
convida a um scismar suavissimo, a uma santa saudade d'outra existencia,
que deve ter precedido a das dôres terrenas.
A quinta de Caldellas é um eden. As aguas prateadas do rio Homem
banham-lhe as orlas verdejantes. Por entre as franças das acacias,
enastradas no salgueiro, suspira a viração rescendente do perfume das
flores maninhas. Em antigos tempos, o genio bucolico de um possuidor
creára alli tudo que a invenção póde realisar de mais viçoso, de mais
lympida frescura, de mais poetico devaneio.
O edificio é antigo, d'essa pittoresca architectura, sem escóla,
respigada em todos os modêlos, e acizelada pela phantasia do que ahi
quizera eternizar debaixo d'esse formoso céo os prazeres innocentes
d'outras eras, d'outros idilios que raros corações concebem hoje.
Aos lados da magestosa entrada, erguem-se os cyprestes seculares,
outr'ora confidentes de segredos que a mão do amor lhes entalhára na
casca, perecedoura como tudo em que o homem quer perpetuar-se.
É essa a herança da neta do arcediago. Ahi fugiram tres mezes em
deliciosos instantes a padre Madureira.
Chamavam-no a Lisboa as suas obrigações clericaes, e o quasi abandono em
que deixára a quinta do Lumiar. Fôra, promettendo á lacrimosa Assucena,
vir ahi passar todos os estios. Deixára-a acariciada pela velha serva
que já o fôra do conego Trigoso. Dispôz o arrendamento da quinta para
evitar á nova possuidora canceiras d'administração. Afflictivo fôra
aquelle adeus! Assucena dos braços d'elle corrêra a lançar-se aos pés da
cruz.
E, depois, o oratorio, a capella, as devoções eram a sua vida. Ninguem a
encontrava fóra dos muros da quinta. Os proprios caseiros viam-na apenas
atravéz de um véo negro, no côro da capella em dias santificados.
Os symptomas d'um transtorno intellectual eram sensiveis cada vez mais,
não para ella que, toda absorta em Deus, não tinha ensejo de comparar-se
com os moradores da terra; mas para a consternada velha que, de perto,
lhe observava os gestos, os temores pueris, as visões beatificas, e até
a imaginaria convicção de que o conego, em fórma de cherubim, a visitava
em sonhos.
E, se acontecia descer, á tarde, ás margens do rio, sentia refrigerar-se
no coração, respirava alto, sorria-se aos gratos risos da natureza,
punha a mão no seio que se agitava em estranhas commoções d'um
sentimento incognito, de uma saudade inexprimivel. E, de repente,
ao riso succediam as lagrimas; á instantanea frescura das rosas da
face a pallidez do susto. Assucena fugia, dizendo que offendêra o Senhor
com pensamentos mundanos. Fechava-se no seu quarto, soluçando a cada
vergoada que se abria no corpo com as disciplinas.
Em 1850, padre Madureira veio ao Minho, e viu que a molestia progredia.
Empregou uma religiosa severidade para arrancál-a á mystica exaltação;
mas era tarde. O disparate principiava nas devoções de Assucena. Não
queria entrar na capella, sem aspergil-a com agua-benta, por isso que
vira erguer-se um homem amortalhado sobre o carneiro onde dormia o somno
de duzentos annos o fundador d'aquella casa.
Um habil confessor não podéra aclarar o espirito enturbado da mysteriosa
senhora. Imaginando-a em lucta com alguma paixão desditosa,
franqueava-lhe as portas do mundo para que se não perdesse na região das
chimeras. Assucena respondia com lagrimas ao confessor, e, apertada pela
explicação das lagrimas e do silencio, gritava pela misericordia divina.
Madureira, despedindo-se d'ella no outomno de 1850, foi seguro de que
não tornaria a vêl-a senão douda.
Previra bem.
Quando, em 1851, voltou, foi recebido com uma gargalhada. Assucena
estava vestida com o seu chambre de cassa branca, e sapatos de duraque
em fitas cruzadas nas pernas. Eram trastes dos dezoito annos,
conservados ainda nos seus bahús de educanda. O padre respondeu com o
pasmo e com as lagrimas á gargalhada.
--Porque chora?--disse ella, com tristeza.
--Porque choro? Oh minha filha!... não me pergunte porque choro...
--Tambem eu chorei, meu amigo, quando me disseram que o desgraçado tinha
fome...
--Quem?
--Pois, quem!? Luiz da Cunha, esse verme que todos pizam, desde que me
mordeu no coração. Se eu lhe perdoei, para que o perseguem? Deixem o
infeliz! A deshonrada, a infamada, a martyr, fui eu... Não quero que
ninguem me vingue...
--Assucena!...
--Se eu fosse outra, procurava-o na cadêa... Fui eu que o abandonei
primeiro... quando o meu padrasto o pôz a ferros... Que me importava a
mim a sociedade! Quem me vem consolar das torturas que me tem custado
este abandono!?...
--Isto parece incrivel, meu Deus!--exclamava o padre, voltando a face
dos olhos abrazados de Assucena.
--Não me fuja, senhor padre Madureira. O senhor não tem culpa nos meus
infortunios. Ha de sempre lembrar-me que levou o dinheiro ao desgraçado,
e que lhe deu um bocado de pão, quando elle disse que tinha fome...
Ouça-me... Onde está Luiz?
--Não sei, senhora.
--Pois eu quero vêl-o para perdoar-lhe...
--O seu perdão não melhora os infortunios d'elle. Deus é que perdôa...
--Sim, sim, Deus...
Assucena fugira da sala impetuosamente bradando: «Deus! Deus!» Madureira
seguiu-a, e encontrou-a no seu quarto de joelhos, com os labios collados
no pavimento, diante do oratorio.
Levantou-a, e viu-lhe os olhos embaciados d'aquella nevoa cinzenta da
gôta coral. Sentou-a ao pé de si, e disse-lhe com voz tremula de
compuncção:
--Minha filha... Venha comigo para Lisboa...
--Deus me livre! Elle ha de aqui vir ter.
--Luiz da Cunha?
--Sim.
--Viu-o alguma vez n'estes sitios?--perguntou o padre suspeitoso.
--Vi... passou, ha um anno, na estrada. Estava eu no portão pela parte
de dentro. Espreitei, quando ouvi o tropel d'um cavallo. Era elle.
--Fallou-lhe?
--Não; nem elle podia vêr-me... Tem as barbas até á cintura; vestia uma
jaqueta de pelles, e ia tão triste, tão macilento!... Teria elle fome?
--E se elle lhe pedisse de comer?
--Dava-lhe tudo quanto tenho! Para que quero eu esta casa, esta quinta,
estas cadeiras, esta camiza, se eu morro muito cêdo?! Que venha, e eu
dou-lhe tudo! Não quero que o persigam, já disse! Hei de accusar
diante de Deus quem o matar!
..........................................................................
Padre Madureira viveu na quinta de Caldellas alguns mezes. Quando se
retirou, deixou Assucena aos cuidados de um egresso, vindo de Lisboa por
escolha d'elle. Era irremediavel a demencia. Assucena recusava receber
facultativos, e irritava-se em frenesis quando lhe pediam que se
deixasse visitar por um medico. Se fugia á vigilancia do egresso, ia ao
portão fitar o ouvido; ouvindo tropel de cavallo, espreitava;
desenganada da sua louca esperança, sentava-se na pedra, chorando com
mavioso mimo, com infantil resentimento, até que o seu guarda,
inventando promessas, a conduzia a casa.
E nunca a tão bella alma d'aquella mulher resurgiu das trevas!
Aos longos dias da desgraça seguiu-se a longa noite da demencia!


XIX.
UM VEIO NOVO A EXPLORAR.

E Luiz da Cunha?
Deixára Liberata na sua ultima paragem, e fôra ao concelho de Ribeira de
Pena exercer o seu officio. Os lucros de dois annos de contrabando
perdêra-os na fatal tomadia. Estava, outra vez, pobre: faltava-lhe a
coragem animadora de Liberata; cahiu n'um estupôr moral, em que o
pensamento do suicidio muitas vezes lhe esvoaçou sobre o cabo do punhal,
sem poder entrar com elle no coração. Luiz da Cunha não podia aniquilar-se.
Os jornaes gritaram contra o empregado publico, de novo contrabandista.
O ministro, que já não era o mesmo que o despachára, demittiu-o.
Demittido, desencadearam-se contra elle as malevolencias do concelho,
onde nunca praticara erro de officio, que não dirigia, nem extorsão, que
não precisava. Retirou-se para o Porto, onde chegou na memoravel noite
da resistencia á contra-revolução de 9 de Outubro de 1846. Associou-se
ao motim popular que prendêra o duque da Terceira. Deu morras ao
ministerio reaccionario, indicando-se victima dos Cabraes.
Entrou no serviço da junta governativa, foi tenente quartel mestre d'um
batalhão de artistas, alcançou o despacho de director d'uma alfandega da
raia, e distingiu-se com bravura em Torres Vedras, e Val-Passos.
Quando os hespanhoes interventores entraram em Valença, o tenente
quartel mestre arrostou com impotente heroismo o collosso. Metteu-se
debaixo das balas, e as balas, cruzando-se-lhe em redor,
respeitaram aquelle homem, que parecia ter o sêllo invulneravel do
primeiro assassino, a prerogativa de Caim.
Desarmada a junta suprema, Luiz da Cunha ficou no Porto, vivendo de
pequenos emprestimos que alguns amigos politicos lhe faziam, e de
pequenas esmolas que algum membro da junta patrioticamente lhe dava.
Assim viveu até 1850, na agua furtada de uma estalagem da rua de S.
Sebastião, d'onde foi expulso porque não pagava. Casualmente, deparou um
seu conhecido camarada que servira a junta, como sargento de cavallaria.
Convidado por elle, foi ser seu hospede ahi para os sitios do Marco de
Canavezes. Luiz da Cunha conheceu que o seu hospedeiro amigo era um
homem tambem mysterioso. O ex-sargento de cavallaria, nos primeiros
dias, teve a delicadeza de não catechisar o seu hospede aos principios
da communidade sem as theorias socialistas. Fartava-o regaladamente á
sua mesa; levava-o de patuscada a casa da sua amazia; punha á sua
disposição uma rica egua de raça para passeios, e ensinava-o a matar
perdizes com finissima pontaria.
Uma noite acabavam de cear, e Luiz da Cunha historiou o mais
sentimentalmente que podia a morte da heroica Liberata. José do Taboado
(era a graça do hospitaleiro), enthusiasta pela gloria, propôz uma
ovação á memoria de Liberata, a qual, como todas, foi freneticamente
recebida pela senhora Joaquina Vêsga, intima do proponente, e bem aceita
ao hospede enternecido.
--Meu caro Neves!--disse, depois, José do Taboado--acabemos com isto!
Queres ser dos meus?
--Se quero ser dos teus?
--Franqueza, e viva amizade! Sabes quem sou?
--Sei que és um excellente amigo...
--Dos meus amigos; mas inimigo dos ricos. Eu sou chefe d'uma quadrilha
de salteadores. Tira o chapéo na minha presença!
--Cá estou descoberto...--disse Luiz, sorrindo-se, e descobrindo-se.
--Agora cobre-te. Enche esses copos, Joaquina... Á tua saude, Neves! Á
saude do meu chefe de estado maior! Aceitas?
--Aceito!
--Toca!--E deram-se as mãos com vertiginoso transporte.
--Serás rico em pouco tempo...--continuou o chefe--para que diabo queres
tu as excellentes forças que tens? Como é que cumpres o protesto de
vingança que fizeste, quando te mataram Liberata, porque roubavas a
fazenda nacional?
--Tens razão..............................................................
..........................................................................
Dias depois os jornaes do Porto pediam força para debellar uma poderosa
quadrilha de ladrões que assaltavam as casas famosas em dinheiro.
Citaram a morte d'uma senhora, rica proprietaria do Douro; a de um padre
muito rico das circumvisinhanças de Villa Real; e varios assaltos em
fórma a casas inutilmente defendidas. Um destacamento de infanteria dera
caça aos salteadores, que resistiram com intrepidez admiravel.
Contava-se o heroismo do chefe, que saltava vallados com um ferido no
arção da sella. O ferido era Luiz da Cunha.
Não obstante a escaramuça, a cohorte estendia por longe o terror.
Proprietarios isolados refugiavam-se nas povoações, e as povoações velavam
armadas com os olhos fixos nas fogueiras que os ladrões acendiam nas
quebradas das serras. Ninguem, porém, ousava desalojal-os das suas tendas.
As almenaras ardiam até ser dia; as roldas e sobre-roldas velavam durante
a noite, e Luiz da Cunha, abraçado á sua clavina de dous cannos, dormia
tranquillo com a face sobre os apparelhos da sua egua fiel.
José do Taboado não mentira. O filho de João da Cunha e Faro tinha ouro,
muito ouro, podia retirar-se com um passadio honesto, e adquirir até uma
reputação honrada. O seu pensamento era passar á Africa em 1853, com o
louvavel intuito de commerciar em generos licitos com a metropole. José
do Taboado promettêra-lhe acompanhal-o, e, para isso, liquidava os
ultimos saldos com alguns proprietarios, incursos na condemnação de
Proudhon.
O filho de Ricarda tinha quarenta e um annos. Julgal-o-iam de cincoenta;
mas os cabellos brancos não tinham nada com o vigor feroz da alma. O seu
fito era voltar a Lisboa, rico, alardeando a passada infamia, com
tanto que arrastasse com correntes de ouro após si o respeito publico.
Desejava lançar aos pés de Assucena esse dinheiro que ella lhe
emprestára. Desejava levantar no cemiterio publico um faustuoso
monumento a Liberata, como insulto ás mulheres do «grande mundo.» Quatro
annos de fortuna, e o seu sonho seria visto á luz da realidade! A sua
fama teria alguma cousa de horrivel heroismo. O seu nome, partido o
braço vingativo, seria levado aos vindouros como a tradicção d'um
meteoro que abrira um rasto de fogo entre os homens.
José do Taboado, que não se alteava ás concepções arrojadas do camarada,
admirava-o como um grande homem, gostava de ouvil-o, e dizia que a sua
linguagem não parecia d'um simples escrivão do juizo ordinario. Levava-o
a casa de cavalheiros de nome, que hospedavam affavelmente o salteador
(não importa explicar o disparate), e os cavalheiros maravilhavam-se do
estylo puritano do supposto Neves, e mais ainda da vasta noticia que
elle dava de paizes estrangeiros, dizendo, ao mesmo tempo, que nunca os
vira.
Encontraram-se uma noite em casa d'um fidalgo de Basto, onde concorreram
outros, discutindo linhagens. Excepto os presentes, que eram todos
representantes de illustres governadores das possessões portuguezas,
todos os outros eram netos de almocreves, de lavradores, e até de
ciganos, afóra os eivados de sangue judeu, que eram muitos.
Um dos detractores citou, como em distracção, seu tio João da Cunha e
Faro. Luiz, agitado por tal nome, prendeu astutamente o incidente do
parentesco á conversação, dizendo que conhecêra João da Cunha e Faro, em
Lisboa, onde fôra caixeiro em 1838. Perguntou se morrêra.
--Morreu doudo--respondeu o senhor Bernardo de Malafaia e Alvim de
Castro e Leite Pereira de Menezes e Sá Corrêa de Sepulveda e Cunha e
Faro &c. &c. &c.--Morreu doudo. Foi o malvado bastardo que o matou.
--O bastardo?!--atalhou Luiz.
--Sim: o filho d'uma mulata que elle roubou em Coimbra...
--Sabes se já morreu esse homem?--perguntou um senhor com quinze
appellidos.
--Não sei; mas é de crêr que sim. Ainda vos não contei a passagem dos
ossos?
--Já; mas conta-a ao amigo Neves, que é romantica.
--Pois lá vai. Haverá sete annos que eu fui a Lisboa e hospedei-me em
casa de meu primo Ignacio da Cunha, que succedeu no vinculo de meu tio
João da Cunha. Era no verão, e resolvemos passar alguns dias n'uma
bonita casa de campo que meu primo tem em Bemfica. Foram comnosco o
primo Alvaro de Castro, o primo conde de Santa Justa, o primo D. Pedro
de Malafaia, o primo D. Antonio de Alvim, o tio Monsenhor Menezes, &c.
&c. &c. Estavamos sentados debaixo d'um caramanchão, e disse o primo
João da Cunha, apontando para a álea das amoreiras: «Alli foi que morreu
a amante de meu tio João.» Contou-nos que um velho criado, morto alguns
mezes antes, lhe contára tudo, e lhe dissera o sitio onde fôra enterrado
o marido e assassino d'essa tal Ricarda, porque os criados deram cabo
d'elle.
Quando ouvimos isto, tivemos, todos á uma, desejos de procurar os ossos
do tal marido. No outro dia, viemos cavar no sitio, e com effeito demos
com os ossos, e o primo D. Antonio de Alvim, mexendo na terra, encontrou
um riquissimo annel de brilhantes com uma enorme esmeralda. Procuramos
mais, e achamos a folha de um punhal com as letras que diziam «Rio de
Janeiro.» Não topamos mais nada. O que eu posso dizer-lhe, senhor Neves,
é que o annel foi vendido por duzentas moedas, por signal que o primo
Ignacio da Cunha as perdeu todas contra um valete, em casa do primo D.
José de Castro e Alvim.
--É uma interessante historia!--disse Luiz da Cunha em abstracta
meditação--E a tal brazileira onde foi enterrada?
--Na igreja, é o que disse o tal criado.
--E o filho d'essa brazileira era o tal bastardo que matou o pae!
--Justamente.
--E não acha que o pae foi bem morto pelo filho?
--Homem! essa é de cabo de esquadra!
--Se o tio de v. exc.ª, o senhor João da Cunha, foi causa da morte da
mulher d'esse homem, não era justo que o filho de tamanho crime fosse o
verdugo do pae, a viva reminiscencia d'esses dous cadaveres, o aguilhão
constante de remorso que o enlouqueceu?
--O nosso amigo está muito rasoavel nos seus discursos... Essas
doutrinas são de bons tempos...
--E o caso é que elle diz bem!--atalhou um fidalgo depondo as cartas do
voltarete--o filho foi o instrumento com que a Providencia castigou o pae.
--Então, n'esse caso, muita gente pagou innocentemente--replicou o
senhor Bernardo de Malafaia &c.--O tal bastardo foi o açoute da
humanidade. Perdeu umas poucas de mulheres, matou outras, esteve prêso
nas Antilhas por pirata... fez o diabo.
--E, por fim, é natural que se suicidasse...--disse Luiz da Cunha.
--É o que elle devia ter feito ha muito--concluiu o expositor da scena
dos ossos.
O filho de Ricarda projectou ajuntar ás suas futuras obras um monumento
a sua mãe.


CONCLUSÃO.

São 24 de Setembro de 1853.
É meia noite.
Assucena pergunta ao egresso inseparavel:
--Que barulho é esse que fazem lá dentro?!
--Já disse a v. exc.ª que os caseiros, sabendo que uma quadrilha de
ladrões apparecêra ao anoitecer na freguezia de S. Vicente, recearam que
esta casa seja atacada, porque dizem lá por fóra que vive aqui uma
senhora muito rica.
--Eu muito rica! Já o fui... agora não tenho nada...
--Pois sim; mas os ladrões não se persuadem d'isso, e quem sabe se virão
cá? Os caseiros, á cautella, chamaram gente, e tratam de se pôr em
defeza no caso que elles ataquem. V. ex.ª ainda que ouça tiros não tenha
medo.
--Mas de que serve matal-os?! Se quer, eu vou dizer-lhes que não tenho
nada, e elles vão-se embora.
--As cousas não correm assim, minha senhora. Salteadores não acreditam
na palavra das damas. O melhor é defender-se cada qual, e eu estou certo
que elles, em lhe zunindo o chumbo pelos ouvidos, vão prégar a outra
freguezia.
O ruido de passos e vozes augmentou na sala. O egresso chamou a criada
para ao pé de Assucena, e foi juntar-se ao povo.
--Que temos, rapazes?--perguntou elle.
--Os homens ahi estão.
--Quem os viu?
--Nós. Ouvimos estropear cavallos, e depois rugiu a ramada do portão, e
vimos um homem, ou o diabo por elle, que saltava do muro para dentro.
Depois buliram na tranca e abriu-se a porta.... Quél-os vêr?...
Olhe... senhor frei Antonio.... olhe aqui por entre estas faias....
Elles lá vem.... Ó rapazes, aqui é que se conhecem os homens! Quando eu
disser «fogo» é fazer de conta que se acaba aqui o mundo... Deixa-os
vir... Olha... quatro já eu lobrigo... Alli!... alli não se perde um
quarto.... Deixa-os chegar mais.... É agora!... Fogo!
Despejaram-se doze espingardas ao mesmo tempo; e á detonação succedêra
uma infernal algazarra dos defensores.
--Leva arriba, rapazes!--gritava o regedor aos seus--Cerca, tem mão,
por esse lado...
E desceram ao páteo, animados pelo recuar dos salteadores. A sineta da
capella dava áquella infernal orchestra de berros e tiros um tiple
horroroso. Os ladrões recuavam, sustentando o fogo: accommettiam com
denodo, um momento; mas a população que os cercava não cedia aos impetos
da cohorte, militarmente, organisada em batalha á voz do chefe.
A sineta chamava chusmas de povo que affluiam disparando as armas. A
quadrilha conheceu o perigo, e retirou accelerada; mas nem todos
retiraram: um tinha cahido, e não se erguêra mais. Em redor d'este
cadaver agglomerou-se a multidão. Approximaram-lhe da cara um archote de
palha, e viram-lhe uma fenda de bala sobre a orelha direita.
Não era menos infernal o alarido do triumpho! Pegaram no cadaver e
levaram-no para debaixo das janellas, depositando-o sobre um banco de
pedra. O egresso veio ao quinteiro, viu-lhe a cara, e murmurou!...
--Pobre homem! morreu sem sacramentos!... Oxalá que tivesse um momento
de contrição! E não está mal trajado... Deixem-no aqui ficar até amanhã,
porque é necessario que o administrador o mande levantar...
Entrou no quarto de Assucena que batia os dentes como n'um tremor de
catalepsia.
--Não tenha medo, minha senhora.
--Mataram alguem?
--Ficou um; mas lá vão os outros, que eram bastantes.
--Rezemos por alma d'esse que morreu...
--Pois sim, rezemos--disse o egresso, ajoelhando ao pé d'ella.
--Poderá salvar-se?--disse ella, interrompendo a oração.
--Deus é pae de misericordia.
--Quem sabe se elle roubava por ter fome?...Vá vêr se elle não estará
morto... poderemos ainda cural-o.
--Aquelle está bem morto, minha senhora.
--Então rezemos: _Padre nosso, que estaes nos ceos, sanctificado seja o
vosso nome_... Não posso... Reze, senhor padre Joaquim... Eu estou muito
afflicta... Quero tomar ar... Anna... quero-me vestir... Traz-me o meu
vestido de seda preta de manga curta; os meus canhões de velludo preto;
o meu lenço de ramos amarellos; a minha saia de renda; o meu chale de
cazemira vermelho...
--Está com o accesso; não traga nada--murmurou o padre ao ouvido da criada.
--Não ouves, Anna? Então! Tambem tu me desobedeces! Ora vamos!
--Vá, vá dar-lhe essas cousas--tornou o egresso, e sahira para que ella
se vestisse.
Assucena collocou-se diante do espelho.
--Como são grandes estes cabellos!...--disse ella, puxando dois
graciosos pinceis de cabellos, que lhe sahiam dos angulos da maxilla
inferior. Procurou anciosa uma tesoura, e aparou-os.
--Agora sim--disse ella com risonha satisfação--Assim estou mais bella
para o noivado.
A criada ajudou-a a vestir. Vestida, olhou-se outra vez ao espelho,
enfeitando na cabeça desgrenhada o lenço dos florões amarellos, e
puxando para a garganta a grade preta do afogado no vestido.
--Agora, vamos.
--Onde, minha querida senhora?!
--Vamos passear no jardim... Quero esperal-o.
--Esperal-o... a quem?
--És tola! Pois não sabes que Luiz da Cunha vem receber-me esta noite?
--Oh minha Mãe Santissima, compadecei-vos d'ella!
--Que estás a dizer? Vens, ou vou só!?
O egresso entrou, chamando por Anna.
--Que é?! Onde vai?!--perguntou elle a Assucena espavorida.
--Vou esperal-o.
--Não sahirá d'aqui... Sente-se n'esta cadeira.
--Não quero! Vou sósinha, sem medo nenhum. O meu Luiz é valente...
--É melhor acompanhal-a....--murmurou o padre.
E sahiram pela porta do jardim.
--Que linda noite!--disse ella, saltando entre os buxos.
--Está muito fria a noite, senhora D. Assucena.
--Fria! Ora essa! Calor tenho eu de mais no coração! Quantos annos tenho
eu? Dezoito... Queriam que eu tornasse para as Commendadeiras! Isso
sim!... Quem conheceu uma vez Luiz da Cunha, nunca mais o esquece...
morre por elle... Sou sua mulher... Jurou-m'o nos braços d'elle quando
eu fugia.... Porque estou eu aqui? Prenderam-me... fizeram bem! O amor
violentado vence ou mata. Eu me desforrarei em risos de esposa das
lagrimas que tenho chorado n'este desterro... Elle não tarda, e depois
fujam os meus inimigos! Sim, fujam, que o meu esposo é muito valente!
--Recolha-se, minha senhora.
--Recolher-me?! ás Commendadeiras?
--Ao seu quarto...
--Não quero.... Deixem-me respirar.... Vamos ao portão esperal-o.
O egresso seguiu-a.
Ao passarem pelo quinteiro, onde estava o cadaver, com a fogueira do
costume ao lado, Assucena perguntou:
--Que é aquillo?!
--É o corpo do ladrão que morreu--disse o padre, querendo afastal-a.
--Quero vêl-o... coitadinho!
--Não veja, senhora D. Assucena... A vista não é agradavel.
--Quero vêl-o... não tenho medo aos mortos...
E forçou a desprendêl-a o braço do padre. Levantou um tição da fogueira,
approximou o clarão azulado da face do cadaver,... soltou um grito que
se não descreve, nem se imagina, deixou cahir o lume, correu n'um
impeto vertiginoso, com as mãos agarradas á cabeça pela quinta abaixo,
na ladeira que conduzia ao rio Homem.
É ocioso dizer-vos de quem era o cadaver. O primeiro momento de repouso
para Luiz da Cunha principiava alli. Foi abençoada a bala que o salvou
do patibulo.
O egresso não podia alcançar Assucena na carreira... Gritou por
soccorro, por ella, por Deus, por Maria Santissima. Tinha-a já perdido
de vista, quando ouvia o chofre d'um corpo que baqueava na agua.
No _Braz Tizana_ de 24 de Setembro de 1853 lê-se o seguinte:

«_Um cadaver._--No rio Homem, acima da ponte de Caldellas, appareceu o
cadaver de uma mulher de trinta e seis a quarenta annos; tinha vestido
de sêda preta, e parece ser pessoa de consideração.»
No mesmo jornal de 28 do mesmo mez e anno lê-se o seguinte:

«_Signaes d'um cadaver._--A mulher que appareceu morta acima da ponte de
Caldellas, tinha os signaes seguintes: idade trinta e seis a quarenta
annos; cabello e sobre-olho castanho-escuro; bôca e nariz regular; rosto
redondo; labios grossos; e no queixo de uma e de outra parte alguns
cabellos que mostravam ter sido aparados; um pequeno buço; vestido de
seda preta com pouco uso; manga curta; canhões de velludo preto; grade
preta no afogado do mesmo vestido, e o corpo forrado de panninho
entrançado, côr de flôr de alecrim e vermelho, com tres espartilhos no
peito; chale de cachemira vermelho em meio uso, com franja em volta,
barra, e ramos pretos; na cabeça um lenço grande azul, com ramos
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