A correspondência de Fradique Mendes - 09

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irreparavel desordem. Depois para se consolar puxou com delicia o lume
ao cigarro. Assim se arrastou um d'estes quartos d'hora que fazem rugas
na face humana.
Finalmente, o carregador voltou, sacudindo a chuva, affirmando que não
havia uma tipoia em todo o bairro de Santa Apolonia.
--Mas que hei de eu fazer? Hei de ficar aqui?
O capataz aconselhou-me que deixasse a bagagem, e na manhã seguinte, com
uma carruagem certa (contratada talvez por escriptura), a viesse
recolher «muito a meu contento». Essa separação porém não convinha ao
meu conforto. Pois n'esse caso elle não via solução, a não ser que por
acaso alguma caleche, tresnoitada e trasmalhada, viesse a cruzar por
aquellas paragens.
Então, á maneira de naufragos n'uma ilha deserta do Pacifico, todos nos
apinhamos á porta da estação, esperando através da treva a vela--quero
dizer a sege salvadora. Espera amarga, espera esteril! Nenhuma luz de
lanterna, nenhum rumor de rodas, cortaram a mudez d'aquelles ermos.
Farto, inteiramente farto, o capataz declarou que «iam dar tres horas, e
elle queria fechar a estação!» E eu? Ia eu ficar alli na rua, amarrado,
sob a noite agreste, a um montão de bagagens intransportavel? Não! nas
entranhas do digno capataz decerto havia melhor misericordia. Commovido,
o homem lembrou outra solução. E era que nós, eu e o Smith, ajudados por
um carregador--atirassemos a bagagem para as costas, e marchassemos com
ella para o Hotel. Com effeito este parecia ser o unico recurso aos
nossos males. Todavia (tanto costas amollecidas por longos e deleitosos
annos de civilisação repugnam a carregar fardos, e tão tenaz é a
esperança n'aquelles a quem a sorte se tem mostrado amoravel) eu e o
Smith ainda uma vez sahimos ao largo, mudos, sondando a escuridão, com o
ouvido inclinado ao lagedo, a escutar anciosamente se ao longe, muito ao
longe, não sentiriamos rolar para nós o calhambeque da Providencia.
Nada, desoladamente nada, na sombra avara!... A minha querida madrinha,
seguindo estes lances, deve ter já lagrimas a bailar nas suas
compassivas pestanas. Eu não chorei--mas tinha vergonha, uma immensa e
pungente vergonha do Smith! Que pensaria aquelle escocez da minha
patria--e de mim, seu amo, parcella d'essa patria desorganisada? Nada
mais fragil que a reputação das nações. Uma simples tipoia que falta de
noite, e eis, no espirito do Estrangeiro, desacreditada toda uma
civilisação secular!
No emtanto o capataz fervia. Eram tres horas (mesmo tres e um quarto), e
elle queria fechar a estação! Que fazer? Abandonamo-nos, suspirando, á
decisão do desespero. Agarrei o estojo de viagem e o rolo de mantas:
Smith deitou aos seus respeitaveis hombros, virgens de cargas, uma
grossa maleta de couro: o carregador gemeu sob a enorme mala de
cantoeiras d'aço. E (deixando ainda dois volumes para ser recolhidos de
dia), começamos, sombrios e em fila, a trilhar _á pata_ a distancia que
vai de Santa Apolonia ao Hotel de Braganza! Poucos passos adiante, como
o estojo de viagem me derreava o braço, atirei-o para as costas... E
todos tres, de cabeça baixa, o dorso esmagado sob dezenas de kilos, com
um intenso azedume a estragar-nos o figado, lá continuamos, devagar,
n'uma fileira soturna, avançando para dentro da capital d'estes reinos!
Eu viera a Lisboa com um fim de repouso e de luxo. Este era o luxo, este
o repouso! Alli, sob a chuvinha impertinente, offegando, suando,
tropeçando no lagedo mal junto d'uma rua tenebrosa, a trabalhar de
carrejão!...
Não sei quantas eternidades gastamos n'esta via dolorosa. Sei que de
repente (como se a trouxesse, á redea, o anjo da nossa guarda) uma
caleche, uma positiva caleche, rompeu a passo do negrume d'uma viella.
Tres gritos, sofregos e desesperados, estacaram a parelha. E, á uma,
todas as malas rolaram em catadupa sobre o calhambeque, aos pés do
cocheiro, que, tomado d'assalto e de assombro, ergueu o chicote,
praguejando com furor. Mas serenou, comprehendendo a sua espantosa
omnipotencia--e declarou que ao Hotel de Braganza (uma distancia pouco
maior que toda a Avenida dos Campos Elyseos) não me podia levar por
menos de _tres mil reis_. Sim, minha madrinha, _dezoito francos_!
Dezoito francos em metal, prata ou ouro, por uma corrida, n'esta Idade
democratica e industrial, depois de todo o penoso trabalho das Sciencias
e das Revoluções para igualisarem e embaratecerem os confortos sociaes.
Tremulo de colera, mas submisso como quem cede á exigencia d'um trabuco,
enfiei para a tipoia--depois de me ter despedido com grande affecto do
carregador, camarada fiel da nossa trabalhosa noite.
Partimos emfim, n'um galope desesperado. D'ahi a momentos estavamos
assaltando a porta adormecida do Hotel de Braganza com repiques,
clamores, punhadas, cocegas, injurias, gemidos, todas as violencias e
todas as seducções. Debalde! Não foi mais resistente ao bello cavalleiro
Percival o portão de ouro do palacio da Ventura! Finalmente o cocheiro
atirou-se a ella aos couces. E, decerto por comprehender melhor esta
linguagem, a porta, lenta e estremunhada, rolou nos seus gonzos. Graças
te sejam, meu Deus, pae ineffavel! Estamos emfim sob um tecto, no meio
dos tapetes e estuques do Progresso, ao cabo de tão barbara jornada.
Restava pagar o batedor. Vim para elle com acerba ironia:
--Então, são tres mil reis?
Á luz do vestibulo, que me batia a face, o homem sorria. E que ha de
elle responder, o malandro sem par?
--Aquillo era por dizer... Eu não tinha conhecido o snr. D. Fradique...
Lá para o snr. D. Fradique é o que quizer.
Humilhação incomparavel! Senti logo não sei que torpe enternecimento que
me amollecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos
enlaça a todos nós portuguezes, nos enche de culpada indulgencia uns
para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a Disciplina
e toda a Ordem. Sim, minha cara madrinha... Aquelle bandido conhecia o
snr. D. Fradique. Tinha um sorriso brejeiro e serviçal. Ambos eramos
portuguezes. Dei uma libra áquelle bandido!
E aqui está, para seu ensino, a veridica maneira por que se entra, no
ultimo quartel do seculo XIX, na grande cidade de Portugal. Todo seu,
aquelle que de longe de si sempre péna--Fradique.


VIII

AO SNR. E. MOLLINET
Director da _Revista de Biographia e de Historia_

Paris, setembro.

_Meu caro snr. Mollinet._--Encontrei hontem á noite, ao voltar de
Fontainebleau, a carta em que o meu douto amigo, em nome e no interesse
da _Revista de Biographia e de Historia_, me pergunta quem é este meu
compatriota Pacheco (José Joaquim Alves Pacheco), cuja morte está sendo
tão vasta e amargamente carpida nos jornaes de Portugal. E deseja ainda
o meu amigo saber que obras, ou que fundações, ou que livros, ou que
idéas, ou que accrescimo na civilisacão portugueza deixou esse Pacheco,
seguido ao tumulo por tão sonoras, reverentes lagrimas.
Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como n'um resumo, a sua
figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu paiz nem uma obra, nem uma
fundação, nem um livro, nem uma idéa. Pacheco era entre nós superior e
illustre unicamente porque _tinha um immenso talento_. Todavia, meu caro
snr. Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente
acclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva,
expressa, visivel! O talento immenso de Pacheco ficou sempre calado,
recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente elle atravessou
a vida por sobre eminencias sociaes: Deputado, Director geral, Ministro,
Governador de bancos, Conselheiro d'Estado, Par, Presidente do
conselho--Pacheco tudo foi, tudo teve, n'este paiz que, de longe e a
seus pés, o contemplava, assombrado do seu immenso talento. Mas nunca,
n'estas situações, por proveito seu ou urgencia do Estado, Pacheco teve
necessidade de deixar sahir, para se affirmar e operar fóra, aquelle
immenso talento que lá dentro o suffocava. Quando os amigos, os
partidos, os jornaes, as repartições, os corpos collectivos, a massa
compacta da nação, murmurando em redor de Pacheco «_que immenso
talento!_» o convidavam a alargar o seu dominio e a sua fortuna--Pacheco
sorria, baixando os olhos serios por traz dos oculos dourados, e seguia,
sempre para cima, sempre para mais alto, através das instituições, com o
seu immenso talento aferrolhado dentro do craneo como no cofre d'um
avaro. E esta reserva, este sorrir, este lampejar dos oculos, bastavam
ao paiz que n'elles sentia e saboreava a resplandecente evidencia do
talento de Pacheco.
Este talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em
que Pacheco, desdenhando a _Sebenta_, assegurou «que o seculo XIX era um
seculo de progresso e de luz». O curso começou logo a presentir e a
affirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta
admiração cada dia crescente do curso, communicando-se, como todos os
movimentos religiosos, das multidões impressionaveis ás classes
raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um
_premio_ no fim do anno. A fama d'esse talento alastrou então por toda a
academia--que, vendo Pacheco sempre pensabundo, já d'oculos, austero nos
seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia alli um
grande espirito que se concentra e se retesa todo em força intima. Esta
geração academica, ao dispersar, levou pelo paiz, até os mais sertanejos
burgos, a noticia do immenso talento de Pacheco. E já em escuras boticas
de Traz-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia,
com respeito, com esperança:--«Parece que ha agora ahi um rapaz de
immenso talento que se formou, o Pacheco!»
Pacheco estava maduro para a representação nacional. Veio ao seu
seio--trazido por um governo (não recordo qual) que conseguira, com
dispendios e manhas, apoderar-se do precioso talento de Pacheco. Logo na
estrellada noite de dezembro em que elle, em Lisboa, foi ao Martinho
tomar chá e torradas, se susurrou pelas mesas, com curiosidade:--«É o
Pacheco, rapaz de immenso talento!» E desde que as Camaras se
constituiram, todos os olhares, os do governo e os da opposição, se
começaram a voltar com insistencia, quasi com anciedade, para Pacheco,
que, na ponta d'uma bancada, conservava a sua attitude de pensador
recluso, os braços cruzados sobre o collete de velludo, a fronte vergada
para o lado como sob o peso das riquezas interiores, e os oculos a
faiscar... Finalmente uma tarde, na discussão da resposta ao discurso da
Corôa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre zarolho que
arengava sobre a «liberdade». O sacerdote immediatamente estacou com
deferencia; os tachygraphos apuraram vorazmente a orelha: e toda a
camara cessou o seu desafogado susurro, para que, n'um silencio
condignamente magestoso, se podesse pela vez primeira produzir o immenso
talento de Pacheco. No emtanto Pacheco não prodigalisou desde logo os
seus thesouros. De pé, com o dedo espetado (geito que foi sempre muito
seu), Pacheco affirmou n'um tom que trahia a segurança do pensar e do
saber intimo:--«que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a
autoridade!» Era pouco, decerto:--mas a camara comprehendeu bem que, sob
aquelle curto resumo, havia um mundo, todo um formidavel mundo, de idéas
solidas. Não volveu a fallar durante mezes--mas o seu talento inspirava
tanto mais respeito quanto mais invisivel e inaccessivel se conservava
lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu sêr. O unico recurso
que restou então aos devotos d'esse immenso talento (que já os tinha,
incontaveis) foi contemplar a testa de Pacheco--como se olha para o céo
pela certeza que Deus está por traz, dispondo. A testa de Pacheco
offerecia uma superficie escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes,
junto d'elle, Conselheiros, e Directores geraes balbuciavam
maravilhados:--«Nem é necessário mais! Basta vêr aquella testa!»
Pacheco pertenceu logo ás principaes commissões parlamentares. Nunca
porém accedeu a relatar um projecto, desdenhoso das especialidades.
Apenas ás vezes, em silencio, tomava uma nota lenta. E quando emergia da
sua concentração, espetando o dedo, era para lançar alguma idéa geral
sobre a Ordem, o Progresso, o Fomento, a Economia. Havia aqui a evidente
attitude d'um immenso talento que (como segredavam os seus amigos,
piscando o olho com finura) «está á espera, lá em cima, a pairar».
Pacheco mesmo, de resto, ensinava (esboçando, com a mão gorda, o voar
superior d'uma aza por sobre arvoredo copado) que o «talento verdadeiro
só devia conhecer as coisas _pela rama_».
Este immenso talento não podia deixar de soccorrer os conselhos da
Corôa. Pacheco, n'uma recomposição ministerial (provocada por uma
roubalheira) foi Ministro:--e immediatamente se percebeu que massiça
consolidação viera dar ao Poder o immenso talento de Pacheco. Na sua
pasta (que era a da Marinha) Pacheco não fez durante os longos mezes de
gerencia «absolutamente nada», como insinuaram tres ou quatro espiritos
amargos e estreitamente positivos. Mas pela primeira vez, dentro d'este
regimen, a nação deixou de curtir inquietações e duvidas sobre o nosso
Imperio Colonial. Porquê? Porque sentia que finalmente os interesses
supremos d'esse Imperio estavam confiados a um immeaso talento, ao
talento immenso de Pacheco.
Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surdia do seu silencio
repleto e fecundo. Ás vezes porém, quando a opposição se tornava
clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com lentidão uma nota a
lapis:--e esta nota, traçada com saber e madurissimo pensar, bastava
para perturbar, acuar a opposição. É que o immenso talento de Pacheco
terminára por inspirar, nas camaras, nas commissões, nos centros, um
terror disciplinar! Ai d'esse sobre quem viesse a desabar com colera
aquelle talento immenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatavel!
Assim dolorosissimamente o experimentou o pedagogista, que um dia se
arrojou a accusar o snr. Ministro do Reino (Pacheco dirigia então o
Reino) de descurar a Instrucção do paiz! Nenhuma incriminação podia ser
mais sensivel áquelle immenso espirito que, na sua phrase lapidaria e
succulenta, ensinára que «um povo sem o curso dos lyceus é um povo
incompleto». Espetando o dedo (geito sempre tão seu) Pacheco esborrachou
o homem temerario com esta coisa tremenda:--«Ao illustre deputado que me
censura só tenho a dizer que emquanto, sobre questões d'Instrucção
Publica, s. exc.^a, ahi n'essas bancadas, faz berreiro, eu, aqui n'esta
cadeira, faço luz!»--Eu estava lá, n'esse esplendido momento, na
galeria. E não me recordo de ter jámais ouvido, n'uma assembléa humana,
uma tão apaixonada e fervente rajada de acclamações! Creio que foi d'ahi
a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de S. Thiago.
O immenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional.
Vendo que inabalavel apoio esse immenso talento dava ás instituições que
servia, todas o appeteceram. Pacheco começou a ser um Director universal
de Companhias e de Bancos. Cubiçado pela Corôa, penetrou no Conselho de
Estado. O seu partido reclamou avidamente que Pacheco fosse seu Chefe.
Mas os outros partidos cada dia se soccorriam com submissa reverencia do
seu immenso talento. Em Pacheco pouco a pouco se concentrava a nação.
Á maneira que elle assim envelhecia, e crescia em influencia e
dignidades, a admiração pelo seu immenso talento chegou a tomar no paiz
certas fórmas d'expressão só proprias da religião e do amor. Quando elle
foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalmavam a mão no peito
com uncção, reviravam o branco do olho ao céo, para murmurar
piamente:--«Que talento!» E havia amorosos que, cerrando os olhos e
repenicando um beijo nas pontas apinhadas dos dedos, balbuciavam com
langor:--«Ai! que talento!» E, para que o esconder? Outros havia, a quem
aquelle immenso talento amargamente irritava, como um excessivo e
desproporcional privilegio. A esses ouvi eu bradar com furor, atirando
patadas ao chão:--«Irra, que é ter talento de mais!» Pacheco no emtanto
já não fallava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais
vasta.
Não relembrarei a sua incomparavel carreira. Basta que o meu caro snr.
Mollinet percorra os nossos annaes. Em todas as instituições, reformas,
fundações, obras, encontrará o cunho de Pacheco. Portugal todo, moral e
socialmente, está repleto de Pacheco. Foi tudo, teve tudo. Decerto, o
seu talento era immenso! Mas immenso se mostrou o reconhecimento da sua
patria! Pacheco e Portugal, de resto, necessitavam insubstituivelmente
um do outro, e ajustadissimamente se completavam. Sem Portugal--Pacheco
não teria sido o que foi entre os homens: mas sem Pacheco--Portugal não
seria o que é entre as nações!
A sua velhice offereceu um caracter augusto. Perdera o cabello
radicalmente. Todo elle era testa. E mais que nunca revelava o seu
immenso talento--mesmo nas minimas coisas. Muito bem me lembro da noite
(sendo elle Presidente do Conselho) em que, na sala da Condessa de
Arrôdes, alguem, com fervor, appeteceu conhecer o que s. exc.^a pensava
de Canovas del Castillo. Silenciosamente, magistralmente, sorrindo
apenas, s. exc.^a deu com a mão grave, de leve, um corte horisontal no
ar. E foi em torno um murmurio d'admiração, lento e maravilhado.
N'aquelle gesto quantas coisas subtis, fundamente pensadas! Eu por mim,
depois de muito esgravatar, interpretei-o d'este modo:--«mediocre,
meia-altura, o snr. Canovas!» Porque, note o meu caro snr. Mollinet como
aquelle talento, sendo tão vasto--era ao mesmo tempo tão fino!
Rebentou;--quero dizer, s. exc.^a morreu, quasi repentinamente, sem
soffrimento, no começo d'este duro inverno. Ia ser justamente creado
marquez de Pacheco. Toda a nação o chorou com infinita dôr. Jaz no alto
de S. João, sob um mausoleu, onde por suggestão do snr. conselheiro
Accacio (em carta ao _Diario de Noticias_) foi esculpida uma figura de
_Portugal chorando o Genio_.
Mezes depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viuva, em Cintra, na
casa do dr. Videira. É uma mulher (asseguram amigos meus) de excellente
intelligencia e bondade. Cumprindo um dever de portuguez, lamentei,
diante da illustre e affavel senhora, a perda irreparavel que era sua e
da patria. Mas quando, commovido, alludi ao immenso talento de Pacheco,
a viuva de Pacheco ergueu n'um brusco espanto, os olhos que conservára
baixos--e um fugidio, triste, quasi apiedado sorriso arregaçou-lhe os
cantos da bôca pallida... Eterno desaccordo dos destinos humanos!
Aquella mediana senhora nunca comprehendera aquelle immenso talento!
Creia-me, meu caro snr. Mollinet, seu dedicado--Fradique.


IX

A CLARA...
(Trad.)

Paris, junho.

_Minha adorada amiga._--Não, não foi na _Exposição dos Aguarellistas_,
em março, que eu tive comsigo o meu primeiro encontro, por mandado dos
Fados. Foi no inverno, minha adorada amiga, no baile dos Tressans. Foi
ahi que a vi, conversando com Madame de Jouarre, diante d'uma console,
cujas luzes, entre os molhos de orchideas, punham nos seus cabellos
aquelle nimbo d'ouro que tão justamente lhe pertence como «rainha de
graça entre as mulheres». Lembro ainda, bem religiosamente, o seu sorrir
cançado, o vestido preto com relevos côr de botão d'ouro, o leque antigo
que tinha fechado no regaço. Passei; mas logo tudo em redor me pareceu
irreparavelmente enfadonho e feio; e voltei a readmirar, a _meditar_ em
silencio a sua belleza, que me prendia pelo esplendor patente e
comprehensivel, e ainda por não sei quê de fino, de espiritual, de
dolente e de meigo que brilhava através e vinha da alma. E tão
intensamente me embebi n'essa contemplação, que levei commigo a sua
imagem, decorada e inteira, sem esquecer um fio dos seus cabellos ou uma
ondulação da sêda que a cobria, e corri a encerrar-me com ella,
alvoroçado, como um artista que n'algum escuro armazem, entre poeira e
cacos, descobrisse a Obra sublime d'um Mestre perfeito.
E, porque o não confessarei? Essa imagem foi para mim, ao principio,
meramente um Quadro, pendurado no fundo da minha alma, que eu a cada
dôce momento olhava--mas para lhe louvar apenas, com crescente surpreza,
os encantos diversos de Linha e de Côr. Era sómente uma rara tela, posta
em sacrario, immovel e muda no seu brilho, sem outra influencia mais
sobre mim que a d'uma fórma muito bella que captiva um gosto muito
educado. O meu sêr continuava livre, attento ás curiosidades que até ahi
o seduziam, aberto aos sentimentos que até ahi o solicitavam;--e só
quando sentia a fadiga das coisas imperfeitas ou o desejo novo d'uma
occupação mais pura, regressava á Imagem que em mim guardava, como um
Fra Angelico, no seu claustro, pousando os pinceis ao fim do dia, e
ajoelhando ante a Madona a implorar d'ella repouso e inspiração
superior.
Pouco a pouco, porém, tudo o que não foi esta contemplação perdeu para
mim valor e encanto. Comecei a viver cada dia mais retirado no fundo da
minha alma, perdido na admiração da Imagem que lá rebrilhava--até que só
essa occupação me pareceu digna da vida, no mundo todo não reconheci
mais que uma apparencia inconstante, e fui como um monge na sua cella,
alheio ás coisas mais reaes, de joelhos e hirto no seu sonho, que é para
elle a unica realidade.
Mas não era, minha adorada amiga, um pallido e passivo extasi diante da
sua Imagem. Não! era antes um ancioso e forte estudo d'ella, com que eu
procurava conhecer através da Fórma a Essencia, e (pois que a Belleza é
o esplendor da Verdade) deduzir das perfeições do seu Corpo as
superioridades da sua Alma. E foi assim que lentamente surprehendi o
segredo da sua natureza; a sua clara testa que o cabello descobre, tão
clara e lisa, logo me contou a rectidão do seu pensar: o seu sorriso,
d'uma nobreza tão intellectual, facilmente me revelou o seu desdem do
mundanal e do ephemero, a sua incansavel aspiração para um viver de
verdade e de belleza: cada graça de seus movimentos me trahiu uma
delicadeza do seu gosto: e nos seus olhos differencei o que n'elles tão
adoravelmente se confunde, luz de razão, calor de coração, luz que
melhor aquece, calor que melhor alumia... Já a certeza de tantas
perfeições bastaria a fazer dobrar, n'uma adoração perpetua, os joelhos
mais rebeldes. Mas succedeu ainda que, ao passo que a comprehendia e que
a sua Essencia se me manifestava, assim visivel e quasi tangivel, uma
influencia descia d'ella sobre mim--uma influencia estranha, differente
de todas as influencias humanas, e que me dominava com transcendente
omnipotencia. Como lhe poderei dizer? Monge, fechado na minha cella,
comecei a aspirar á santidade, para me harmonisar e merecer a
convivencia com a Santa a que me votára. Fiz então sobre mim um aspero
exame de consciencia. Investiguei com inquietação se o meu pensar era
condigno da pureza do seu pensar; se no meu gosto não haveria
desconcertos que podessem ferir a disciplina do seu gosto; se a minha
idéa da vida era tão alta e séria como aquella que eu presentira na
espiritualidade do seu olhar, do seu sorrir; e se o meu coração não se
dispersára e enfraquecera de mais para poder palpitar com parallelo
vigor junto do seu coração. E tem sido em mim agora um arquejante
esforço para subir a uma perfeição identica áquella que em si tão
submissamente adoro.
De sorte que a minha querida amiga, sem saber, se tornou a minha
educadora. E tão dependente fiquei logo d'esta direcção, que já não
posso conceber os movimentos do meu sêr senão governados por ella e por
ella ennobrecidos. Perfeitamente sei que tudo o que hoje surge em mim de
algum valor, idéa ou sentimento, é obra d'essa educação que a sua alma
dá á minha, de longe, só com existir e ser comprehendida. Se hoje me
abandonasse a sua influencia--devia antes dizer, como um asceta, a sua
Graça--todo eu rolaria para uma inferioridade sem remissão. Veja pois
como se me tornou necessaria e preciosa... E considere que, para exercer
esta supremacia salvadora, as suas mãos não tiveram de se impôr sobre as
minhas--bastou que eu a avistasse de longe, n'uma festa, resplandecendo.
Assim um arbusto silvestre floresce á borda d'um fôsso, porque lá em
cima nos remotos céos fulge um grande sol, que não o vê, não o conhece,
e magnanimamente o faz crescer, desabrochar, e dar o seu curto aroma...
Por isso o meu amor attinge esse sentimento indescripto e sem nome que a
Planta, se tivesse consciencia, sentiria pela Luz.
E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo,
nenhum bem imploro de quem tanto póde e é para mim dona de todo o bem.
Só desejo que me deixe viver sob essa influencia, que, emanando do
simples brilho das suas perfeições, tão facil e dôcemente opéra o meu
aperfeiçoamento. Só peço esta permissão caridosa. Veja pois quanto me
conservo distante e vago, na esbatida humildade d'uma adoração que até
receia que o seu murmurio, um murmurio de prece, roce o vestido da
imagem divina...
Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a
toda a recompensa terrestre, me permittisse desenrolar junto de si, n'um
dia de solidão, a agitada confidencia do meu peito, decerto faria um
acto de ineffavel misericordia--como outr'ora a Virgem Maria quando
animava os seus adoradores, ermitas e santos, descendo n'uma nuvem e
concedendo-lhes um sorriso fugitivo, ou deixando-lhes cahir entre as
mãos erguidas uma rosa do Paraiso. Assim, ámanhã, vou passar a tarde com
Madame de Jouarre. Não ha ahi a santidade d'uma cella ou d'uma ermida,
mas quasi o seu isolamento: e se a minha querida amiga surgisse, em
pleno resplendor, e eu recebesse de si, não direi uma rosa, mas um
sorriso, ficaria então radiosamente seguro de que este meu amor, ou este
meu sentimento indescripto e sem nome que vai além do amor, encontra
ante seus olhos piedade e permissão para esperar.--Fradique.


X

A MADAME DE JOUARRE
(_Trad._)

Lisboa, junho.

_Minha excellente madrinha._--Eis o que tem «visto e feito», desde maio,
na formosissima Lisboa, _Ulyssipo pulcherrima_, o seu admiravel
afilhado. Descobri um patricio meu, das Ilhas, e meu parente, que vive
ha tres annos construindo um Systema de Philosophia no terceiro andar
d'uma casa de hospedes, na travessa da Palha. Espirito livre,
emprehendedor e destro, paladino das Idéas Geraes, o meu parente, que se
chama Procopio, considerando que a mulher não vale o tormento que
espalha, e que os oitocentos mil reis de um olival bastam, e de sobra, a
um espiritualista--votou a sua vida á Logica e só se interessa e soffre
pela Verdade. É um philosopho alegre; conversa sem berrar; tem uma
aguardente de muscatel excellente;--e eu trepo com gosto duas ou tres
vezes por semana á sua officina de Metaphysica a saber se, conduzido
pela alma dôce de Maine de Biran, que é o seu cicerone nas viagens do
Infinito, elle já entreviu emfim, disfarçada por traz dos seus
derradeiros véos, a Causa das Causas. N'estas piedosas visitas vou,
pouco a pouco, conhecendo alguns dos hospedes que n'esse terceiro andar
da travessa da Palha gozam uma boa vida de cidade, a doze tostões por
dia, fóra vinho e roupa lavada. Quasi todas as profissões em que se
occupa a classe-média em Portugal estão aqui representadas com
fidelidade, e eu posso assim estudar, sem esforço, como n'um indice, as
idéas e os sentimentos que no nosso Anno da Graça formam o fundo moral
da nação.
Esta casa de hospedes offerece encantos. O quarto do meu primo Procopio
tem uma esteira nova, um leito de ferro philosophico e virginal, cassa
vistosa nas janellas, rosinhas e aves pela parede,--e é mantido em
rigido asseio por uma d'estas creadas como só produz Portugal, bella
moça de Traz-os-Montes, que, arrastando os seus chinelos com a
indolencia grave d'uma nympha latina, varre, esfrega e arruma todo o
andar; serve nove almoços, nove jantares e nove chás; escarolla as
louças; prega esses botões de calças e de ceroulas que os portuguezes
estão constantemente a perder; engomma as saias da Madama; reza o terço
da sua aldeia; e tem ainda vagares para amar desesperadamente um
barbeiro visinho, que está decidido a casar com ella quando fôr
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