A correspondência de Fradique Mendes - 11

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e mudez, tão dôces para n'ellas se curtirem deliciosamente as saudades
do céo; nem as espessuras de bosque, onde S. Bernardo se embrenhava, por
n'ellas encontrar melhor que na sua cella a «fecunda solidão»; nem os
claros de pinheiral gemente, com rochas núas, tão proprias para a choça
e para a cruz do ermita... Não! Aqui, em torno do pateo (onde a agua da
fonte todavia corre dos pés da cruz) são solidas tulhas para o grão,
fofos eidos em que o gado medra, capoeiras abarrotadas de capões e de
perús reverendos. Adiante é a horta viçosa, cheirosa, succulenta,
bastante a fartar as panellas todas de uma aldeia, mais enfeitada que um
jardim, com ruas que as tiras de morangal orlam e perfumam, e as latadas
ensombram, copadas de parra densa. Depois a eira de granito, limpa e
alisada, rijamente construida para longos seculos de colheitas, com o
seu espigueiro ao lado, bem fendilhado, bem arejado, tão largo que os
pardaes voam dentro como n'um pedaço de céo. E por fim, ondulando
ricamente até ás collinas macias, os campos de milho, e de centeio, o
vinhedo baixo, os olivaes, os relvados, o linho sobre os regatos, o
matto florido para os gados... S. Francisco de Assis e S. Bruno
abominariam este retiro de frades e fugiriam d'elle, escandalisados,
como de um peccado vivo.
A casa dentro offerece o mesmo bom conchego temporal. As cellas
espaçosas, de tectos apainelados, abrem para as terras semeadas, e
recebem d'ellas, através da vidraçaria cheia de sol, a perenne sensação
de fartura, de opulencia rural, de bens terrenos que não enganam. E a
sala melhor, traçada para as occupações mais gratas, é o refeitorio, com
as suas varandas rasgadas, onde os regalados monges podessem, ao fim do
jantar, conforme a veneravel tradição dos Cruzios, beber o seu café aos
golos, galhofando, arrotando, respirando a fresquidão, ou seguindo nas
faias do pateo o cantar alto d'um melro.
De sorte que não houve necessidade de alterar esta vivenda, quando de
religiosa passou a secular. Estava já sabiamente preparada para a
profanidade;--e a vida que n'ella então se começou a viver, não foi
differente da do velho convento, apenas mais bella, porque, livre das
contradicções do Espiritual e do Temporal, a sua harmonia se tornou
perfeita. E, tal como é, deslisa com incomparavel doçura. De madrugada,
os gallos cantam, a quinta acorda, os cães de fila são acorrentados, a
moça vai mungir as vaccas, o pegureiro atira o seu cajado ao hombro, a
fila dos jornaleiros mette-se ás terras--e o trabalho principia, esse
trabalho que em Portugal parece a mais segura das alegrias e a festa
sempre incansavel, porque é todo feito a cantar. As vozes vêm, altas e
desgarradas, no fino silencio, d'além, d'entre os trigos, ou do campo em
sacha, onde alvejam as camisas de linho crú, e os lenços de longas
franjas vermelhejam mais que papoulas. E não ha n'este labor nem dureza,
nem arranque. Todo elle é feito com a mansidão com que o pão amadurece
ao sol. O arado mais acaricia do que rasga a gleba. O centeio cae por
si, amorosamente, no seio attrahente da foice. A agua sabe onde o torrão
tem sêde, e corre para lá gralhando e refulgindo. Ceres n'estes sitios
bemditos permanece verdadeiramente, como no Lacio, a Deusa da Terra, que
tudo propicia e soccorre. Ella reforça o braço do lavrador, torna
refrescante o seu suor, e da alma lhe limpa todo o cuidado escuro. Por
isso os que a servem, mantêm uma serenidade risonha na tarefa mais dura.
Essa era a ditosa feição da vida antiga.
Á uma hora é o jantar, serio e pingue. A quinta tudo fornece
prodigamente:--e o vinho, o azeite, a hortaliça, a fructa têm um sabor
mais vivo e são, assim cabidos das mãos do bom Deus sobre a mesa, sem
passar pela mercancia e pela loja. Em palacio algum, por essa Europa
superfina, se come na verdade tão deliciosamente como n'estas rusticas
quintas de Portugal. Na cozinha enfumarada, com duas panellas de barro e
quatro achas a arder no chão, estas caseiras de aldeia, de mangas
arregaçadas, guizam um banquete que faria exultar o velho Jupiter, esse
transcendente guloso, educado a nectar, o Deus que mais comeu, e mais
nobremente soube comer, desde que ha Deuses no céo e na terra. Quem
nunca provou este arroz de caçoula, este anho paschal candidamente
assado no espeto, estas cabidellas de frango coevas da Monarchia que
enchem a alma, não póde realmente conhecer o que seja a especial
bemaventurança tão grosseira e tão divina, que no tempo dos frades se
chamava a _comezaina_. E a quinta depois, com as suas latadas de sombra
macia, a dormente susurração das aguas regantes, os ouros claros e
foscos ondulando nos trigaes, offerece, mais que nenhum outro paraiso
humano ou biblico, o repouso acertado para quem emerge, pesado e
risonho, d'este arroz e d'este anho!
Se estes meios-dias são um pouco materiaes, breve a tarde trará a porção
de poesia de que necessita o Espirito. Em todo o céo se apagou a
refulgencia d'ouro, o esplendor arrogante que se não deixa fitar e quasi
repelle; agora apaziguado e tratavel, elle derrama uma doçura, uma
pacificação que penetra na alma, a torna tambem pacifica e dôce, e cria
esse momento raro em que céo e alma fraternisam e se entendem. Os
arvoredos repousam n'uma immobilidade de contemplação, que é
intelligente. No piar velado e curto dos passaros ha um recolhimento e
consciencia de ninho feliz. Em fila, a boiada volta dos pastos, cançada
e farta, e vai ainda beberar ao tanque, onde o gotejar da agua sob a
cruz é mais preguiçoso. Toca o sino a Ave-Marias. Em todos os casaes se
está murmurando o nome de Nosso Senhor. Um carro retardado, pesado de
matto, geme pela sombra da azinhaga. E tudo é tão calmo e simples e
terno, minha madrinha, que, em qualquer banco de pedra em que me sente,
fico enlevado, sentindo a penetrante bondade das coisas, e tão em
harmonia com ella, que não ha n'esta alma, toda encrostada das lamas do
mundo, pensamento que não podesse contar a um santo...
Verdadeiramente estas tardes santificam. O mundo recua para muito longe,
para além dos pinhaes e das collinas, como uma miseria esquecida:--e
estamos então realmente na felicidade de um convento, sem regras e sem
abbade, feito só da religiosidade natural que nos envolve, tão propria á
oração que não tem palavras, e que é por isso a mais bem comprehendida
por Deus.
Depois escurece, já ha pyrilampos nas sebes. Venus, pequenina, scintilla
no alto. A sala, em cima, está cheia de livros, dos livros fechados no
tempo dos Cruzios--porque só desde que não pertence a uma ordem
espiritual é que esta casa se espiritualisou. E o dia na quinta finda
com uma lenta e quieta palestra sobre idéas e letras, emquanto na
guitarra ao lado geme algum dos fados de Portugal, longo em saudades e
em ais, e a lua, ao fundo da varanda, uma lua vermelha e cheia, surde,
como a escutar, por detraz dos negros montes.
_Deus nobis haec otia fecit in umbra Lusitaniae pulcherrimae_... Mau
latim--grata verdade.
Seu grato e mau afilhado--Fradique.


XIII

A CLARA...
(_Trad._)

Paris, novembro.

_Meu amor._--Ainda ha poucos instantes (dez instantes, dez minutos, que
tanto gastei n'um _fiacre_ desolador desde a nossa _Torre de Marfim_) eu
sentia o rumor do teu coração junto do meu, sem que nada os separasse
senão uma pouca de argilla mortal, em ti tão bella, em mim tão rude--e
já estou tentando recontinuar anciosamente, por meio d'este papel
inerte, esse ineffavel _estar comtigo_ que é hoje todo o fim da minha
vida, a minha suprema e unica vida. É que, longe da tua presença, cesso
de viver, as coisas para mim cessam de ser--e fico como um morto jazendo
no meio de um mundo morto. Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto
momento de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu
nome--recomeço a aspirar desesperadamente para ti como para uma
resurreição!
Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu Deus a minha Eva--que
era eu, na verdade? Uma sombra fluctuando entre sombras. Mas tu vieste,
dôce adorada, para me fazer sentir a minha realidade, e me permittir que
eu bradasse tambem triumphalmente o meu--«_amo, logo existo!_» E não foi
só a minha realidade que me desvendaste--mas ainda a realidade de todo
este Universo, que me envolvia como um inintelligivel e cinzento montão
de apparencias. Quando ha dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te
queixavas que eu contemplasse as estrellas estando tão perto dos teus
olhos, e espreitasse o adormecer das collinas junto ao calor dos teus
hombros--não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa
contemplação era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente
estava admirando nas coisas a belleza inesperada que tu sobre ellas
derramas por uma emanação que te é propria, e que, antes de viver a teu
lado, nunca eu lhes percebera, como se não percebe a vermelhidão das
rosas ou o verde tenro das relvas antes de nascer o sol! Foste tu, minha
bem-amada, que me alumiaste o mundo. No teu amor recebi a minha
Iniciação. Agora entendo, agora sei. E, como o antigo Iniciado, posso
affirmar:--«Tambem fui a Eleusis; pela larga estrada pendurei muita flôr
que não era verdadeira, diante de muito altar que não era divino; mas a
Eleusis cheguei, em Eleusis penetrei--e vi e senti a verdade!...»
E accresce ainda, para meu martyrio e gloria, que tu és tão
sumptuosamente bella e tão ethereamente bella, d'uma belleza feita de
Céo e de Terra, belleza completa e só tua, que eu já concebera--que
nunca julgára realizavel. Quantas vezes, ante aquella sempre admirada e
toda perfeita Venus de Milo, pensei que se debaixo da sua testa de Deusa
podessem tumultuar os cuidados humanos; se os seus olhos soberanos e
mudos se soubessem toldar de lagrimas; se os seus labios, só talhados
para o mel e para os beijos, consentissem em tremer no murmurio de uma
prece submissa; se, sob esses seios, que foram o appetite sublime dos
Deuses e dos Heroes, um dia palpitasse o Amor e com elle a Bondade; se o
seu marmore soffresse, e pelo soffrimento se espiritualisasse, juntando
ao esplendor da Harmonia a graça da Fragilidade; se ella fosse do nosso
tempo e sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do Prazer se
tornasse Senhora da Dôr--então não estaria collocada n'um museu, mas
consagrada n'um santuario, porque os homens, ao reconhecer n'ella a
alliança sempre almejada e sempre frustrada do Real e do Ideal, decerto
a teriam acclamado _in eternum_ como a definitiva Divindade. Mas quê! A
pobre Venus só offerecia a serena magnificencia da carne. De todo lhe
faltava a chamma que arde na alma e a consome. E a creatura incomparavel
do meu scismar, a Venus Espiritual, Cytherêa e Dolorosa, não existia,
nunca existiria!... E quando eu assim pensava, eis que tu surges, e eu
te comprehendo! Eras a encarnação do meu sonho, ou antes d'um sonho que
deve ser universal--mas só eu te descobri, ou, tão feliz fui, que só por
mim quizeste ser descoberta!
Vê, pois, se jámais te deixarei escapar dos meus braços! Por isso mesmo
que és a minha Divindade,--para sempre e irremediavelmente estás presa
dentro da minha adoração. Os Sacerdotes de Carthago acorrentavam ás
lages dos Templos, com cadeias de bronze, as imagens dos seus Baals.
Assim te quero tambem, acorrentada dentro do templo avaro que te
construi, só Divindade minha, sempre no teu altar,--e eu sempre diante
d'elle rojado, recebendo constantemente n'alma a tua visitação,
abysmando-me sem cessar na tua essencia, de modo que nem por um momento
se descontinue essa fusão ineffavel, que é para ti um acto de
Misericordia e para mim de Salvação. O que eu desejaria na verdade é que
fosses invisivel para todos e como não existente--que perpetuamente um
estofo informe escondesse o teu corpo, uma rigida mudez occultasse a tua
intelligencia. Assim passarias no mundo como uma apparencia
incomprehendida. E só para mim, de dentro do involucro escuro, se
revelaria a tua perfeição rutilante. Vê quanto te amo--que te queria
entrouxada n'um rude, vago vestido de merino, com um ar quêdo,
inanimado... Perderia assim o triumphal contentamento de vêr
resplandecer entre a multidão maravilhada aquella que em segredo nos
ama. Todos murmurariam compassivamente--«_Pobre creatura!_» E só eu
saberia da «pobre creatura», o corpo e a alma adoraveis!
Quanto adoraveis! Nem comprehendo que, tendo consciencia do teu encanto,
não estejas de ti namorada como aquelle Narciso que treme de frio,
coberto de musgo, à beira da fonte, em Savran. Mas eu largamente te amo
e por mim e por _ti_! A tua belleza, na verdade, attinge a altura de uma
virtude:--e foram decerto os modos tão puros da tua alma que fixaram as
linhas tão formosas do teu corpo. Por isso ha em mim um incessante
desespero de não te saber amar condignamente--ou antes (pois desceste de
um céo superior) de não saber tratar, como ella merece, a hospeda divina
do meu coração. Desejaria, por vezes, envolver-te toda n'uma felicidade
immaterial, seraphica, calma infinitamente como deve ser a
Bemaventurança--e assim deslisarmos enlaçados através do silencio e da
luz, muito brandamente, n'um sonho cheio de certeza, sahindo da vida á
mesma hora e indo continuar no _além_ o mesmo sonho estatico. E outras
vezes desejaria arrebatar-te n'uma felicidade vehemente, tumultuosa,
fulgurante, toda de chamma, de tal sorte que n'ella nos destruissemos
sublimemente, e de nós só restasse uma pouca de cinza sem memoria e sem
nome! Possuo uma velha gravura que é um Satanaz, ainda em toda a
refulgencia da belleza archangelica, arrastando nos braços para o Abysmo
uma freira, uma Santa, cujos derradeiros véos de penitencia se vão
esgaçando pelas pontas das rochas negras. E na face da Santa, através do
horror, brilha, irreprimida e mais forte que o horror, uma tal alegria e
paixão, tão intensas--que eu as appeteceria para ti, oh minha Santa
roubada! Mas de nenhum d'estes modos te sei amar, tão fraco ou inhabil é
o meu coração, de modo que por o meu amor não ser perfeito, tenho de me
contentar que seja eterno. Tu sorris tristemente d'esta eternidade.
Ainda hontem me perguntavas:--«No calendario do seu coração, quantos
dias dura a eternidade?» Mas considera que eu era um morto--e que tu me
resuscitaste. O sangue novo que me circula nas veias, o espirito novo
que em mim sente e comprehende, são o meu amor por ti--e se elle me
fugisse, eu teria outra vez, regelado e mudo, de reentrar no meu
sepulchro. Só posso deixar de te amar--quando deixar de ser. E a vida
comtigo, e por ti, é tão inexprimivelmente bella! É a vida de um Deus.
Melhor talvez:--e se eu fosse esse pagão que tu affirmas que sou, mas um
pagão do Lacio, pastor de gados, crente ainda em Jupiter e Apollo, a
cada instante temeria que um d'esses Deuses invejosos te raptasse, te
elevasse ao Olympo para completar a sua ventura divina. Assim não
receio:--toda minha te sei e para todo o sempre, olho o mundo em torno
de nós como um Paraiso para nós creado, e durmo seguro sobre o teu peito
na plenitude da gloria, oh minha tres vezes bemdita, Rainha da minha
graça.
Não penses que estou compondo canticos em teu louvor. É em plena
simplicidade que deixo escapar o que me está borbulhando na alma... Ao
contrario! Toda a Poesia de todas as idades, na sua gracilidade ou na
sua magestade, seria impotente para exprimir o meu extase. Balbucio,
como posso, a minha infinita oração. E n'esta desoladora insufficiencia
do Verbo humano é como o mais inculto e o mais illetrado que ajoelho
ante ti, e levanto as mãos, e te asseguro a unica verdade, melhor que
todas as verdades--que te amo, e te amo, e te amo, e te amo!...
Fradique.


XIV

A MADAME DE JOUARRE
(_Trad._)

Lisboa, junho.

_Minha querida madrinha._--N'aquella casa de hospedes da travessa da
Palha, onde vive, atrellado á lavra angustiosa da Verdade, meu primo o
Metaphysico, conheci, logo depois de voltar de Refaldes, um padre, o
padre Salgueiro, que talvez a minha madrinha, com essa sua maliciosa
paciencia de colleccionar Typos, ache interessante e psychologicamente
divertido.
O meu distrahido e pallido Metaphysico affirma, encolhendo os hombros,
que padre Salgueiro não se destaca por nenhuma saliencia de Corpo ou
Alma entre os vagos padres da sua Diocese;--e que resume mesmo, com uma
fidelidade de indice, o pensar, e o sentir, e o viver, e o parecer da
classe ecclesiastica em Portugal. Com effeito, por fóra, na casca, padre
Salgueiro é o costumado e corrente padre portuguez, gerado na gleba,
desbravado e afinado depois pelo Seminario, pela frequentação das
auctoridades e das Secretarias, por ligações de confissão e missa com
fidalgas que têm capella, e sobretudo por longas residencias em Lisboa,
n'estas casas de hospedes da Baixa, infestadas de litteratura e
politica. O peito bem arcado, de folego fundo, como um folle de forja;
as mãos ainda escuras, asperas, apesar do longo contacto com a alvura e
doçura das hostias; o carão côr de couro curtido, com um sobre-tom azul
nos queixos escanhoados; a corôa livida entre o cabello mais negro e
grosso que pellos de clina; os dentes escaroladamente brancos--tudo
n'elle pertence a essa forte plebe agricola de onde sahiu, e que ainda
hoje em Portugal fornece á Egreja todo o seu pessoal, pelo desejo de se
alliar e de se apoiar á unica grande instituição humana que realmente
comprehende e de que não desconfia. Por dentro, porém, como miolo, padre
Salgueiro apresenta toda uma estructura moral deliciosamente pittoresca
e nova para quem, como eu, do Clero Lusitano só entrevira
exterioridades, uma batina desapparecendo pela porta d'uma sacristia, um
velho lenço de rapé posto na borda d'um confessionario, uma sobrepeliz
alvejando n'uma tipoia atraz d'um morto...
O que em padre Salgueiro me encantou logo, na noite em que tanto
palestramos, rondando pachorrentamente o Rocio, foi a sua maneira de
conceber o Sacerdocio. Para elle o Sacerdocio (que de resto ama e acata
como um dos mais uteis fundamentos da sociedade) não constitue de modo
algum uma funcção espiritual--mas unicamente e terminantemente uma
funcção civil. Nunca, desde que foi collado á sua parochia, padre
Salgueiro se considerou senão como um funccionario do Estado, um
Empregado Publico, que usa um uniforme, a batina (como os guardas da
alfandega usam a fardeta), e que, em logar de entrar todas as manhãs
n'uma repartição do Terreiro do Paço para escrevinhar ou archivar
officios, vai mesmo nos dias santificados, a uma outra repartição, onde,
em vez da carteira se ergue um altar, celebrar missas e administrar
sacramentos. As suas relações portanto não são, nunca foram, com o céo
(do céo só lhe importa saber se está chuvoso ou claro)--mas com a
Secretaria da Justiça e dos Negocios Ecclesiasticos. Foi ella que o
collocou na sua Parochia, não para continuar a obra do Senhor guiando
docemente os homens pela estrada limpa da Salvação (missões de que não
curam as secretarias do Estado), mas, como funccionario, para executar
certos actos publicos que a lei determina a bem da ordem
social--baptisar, confessar, casar, enterrar os parochianos.
Os sacramentos são, pois, para este excellente padre Salgueiro, meras
ceremonias civis, indispensaveis para a regularisação do estado
civil,--e nunca, desde que os administra, pensou na sua natureza divina,
na Graça que communicam ás almas, e na força com que ligam a vida
transitoria a um principio Immanente. Decerto, outr'ora no seminario,
padre Salgueiro decorou em compendios ensebados a sua Theologia
Dogmatica, a sua Theologia Pastoral, a sua Moral, o seu S. Thomaz, o seu
Liguori--mas meramente para cumprir as disciplinas officiaes do curso,
ser ordenado pelo seu bispo, depois provido n'uma parochia pelo seu
ministro, como todos os outros bachareis que em Coimbra decoram as
_Sebentas_ de Direito natural e de Direito romano para «fazerem o
curso», receber na cabeça a borla de doutor, e depois o aconchego de um
emprego facil. Só o grau vale e importa, porque justifica o despacho. A
sciencia é a formalidade penosa que lá conduz--verdadeira provação, que,
depois de atravessada, não deixa ao espirito desejos de regressar á sua
disciplina, á sua aridez, á sua canceira. Padre Salgueiro, hoje, já
esqueceu regaladamente a significação theologica e espiritual do
casamento:--mas casa, e casa com pericia, com bom rigor liturgico, com
boa fiscalisação civil, esmiuçando escrupulosamente as certidões, pondo
na benção toda a uncção prescripta, perfeito em unir as mãos com a
estola, cabal na ejaculação dos latins, porque é subsidiado pelo Estado
para casar bem os cidadãos, e, funccionario zeloso, não quer cumprir com
defeitos funcções que lhe são pagas sem atrazo.
A sua ignorancia é deliciosa. Além de raros actos da vida activa de
Jesus, a fuga para o Egypto no burrinho, os pães multiplicados nas bodas
de Caná, o azorrague cahindo sobre os vendilhões do Templo, certas
expulsões de Demonios, nada sabe do Evangelho--que considera todavia
_muito bonito_. Á doutrina de Jesus é tão alheio como á philosophia de
Hegel. Da Biblia tambem só conhece episodios soltos, que aprendeu
certamente em oleographias--a Arca de Noé, Samsão arrancando as portas
de Gaza, Judith degollando Holophernes. O que tambem me diverte, nas
noites amigas em que conversamos na travessa da Palha, é o seu
desconhecimento absolutamente candido das origens, da historia da
Egreja. Padre Salgueiro imagina que o Christianismo se fundou de
repente, n'um dia (decerto um domingo), por milagre flagrante de Jesus
Christo:--e desde essa festiva hora tudo para elle se esbate n'uma treva
incerta, onde vagamente reluzem nimbos de santos e tiáras de papas, até
Pio IX. Não admira, porém, na obra pontifical de Pio IX, nem a
Infallibilidade, nem o Syllabus:--porque se préza de liberal, deseja
mais progresso, bemdiz os beneficios da instrucção, assigna o _Primeiro
de Janeiro_.
Onde eu tambem o acho superiormente pittoresco, é cavaqueando ácerca dos
deveres que lhe incumbem como pastor de almas--os deveres para com as
almas. Que elle, por continuação de uma obra divina, esteja obrigado a
consolar dôres, pacificar inimizades, dirigir arrependimentos, ensinar a
cultura da bondade, adoçar a dureza dos egoismos, é para o benemerito
padre Salgueiro a mais estranha e incoherente das novidades! Não que
desconheça a belleza moral d'essa missão, que considera mesmo _cheia de
poesia_. Mas não admitte que, formosa e honrosa como é, lhe pertença a
elle padre Salgueiro! Outro tanto seria exigir de um verificador da
alfandega que moralisasse e purificasse o commercio. Esse santo
emprehendimento pertence aos Santos. E os Santos, na opinião de padre
Salgueiro, formam uma Casta, uma Aristocracia espiritual, com obrigações
sobrenaturaes que lhes são delegadas e pagas pelo Céo. Muito differentes
se apresentam as obrigações de um parocho! Funccionario ecclesiastico,
elle só tem a cumprir funcções rituaes em nome da Egreja, e portanto do
Estado que a subsidia. Ha ahi uma criança para baptisar? Padre Salgueiro
toma a estola e baptisa. Ha ahi um cadaver para enterrar? Padre
Salgueiro toma o hyssope e enterra. No fim do mez recebe os seus dez mil
reis (além da esmola)--e o seu bispo reconhece o seu zelo.
A idéa que padre Salgueiro tem da sua missão determina, com louvavel
logica, a sua conducta. Levanta-se ás dez horas, hora classicamente
adoptada pelos empregados do Estado. Nunca abre o breviario--a não ser
em presença dos seus superiores ecclesiasticos, e então por deferencia
gerarchica, como um tenente, que, em face ao seu general, se perfila,
pousa a mão na espada. Emquanto a orações, meditações, mortificações,
exames d'alma, todos esses pacientes methodos de aperfeiçoamento e
santificação propria, nem sequer suspeita que lhe sejam necessarios ou
favoraveis. Para que? Padre Salgueiro constantemente tem presente que,
sendo um funccionario, deve manter, sem transigencias, nem omissões, o
decoro que tornará as suas funcções respeitadas do mundo. Veste, por
isso, sempre de preto. Não fuma. Todos os dias de jejum come um peixe
austero. Nunca transpoz as portas impuras de um botequim. Durante o
inverno só uma noite vai a um theatro, a S. Carlos, quando se canta o
_Polliuto_, uma opera sacra, de purissima lição. Deceparia a lingua, com
furor, se d'ella lhe pingasse uma falsidade. E é casto. Não condemna e
repelle a mulher com colera, como os Santos Padres:--até a venéra, se
ella é economica e virtuosa. Mas o regulamento da Egreja prohibe a
mulher: elle é um funccionario ecclesiastico, e a mulher portanto não
entra nas suas funcções. É rigidamente casto. Não conheço maior
respeitabilidade do que a de padre Salgueiro.
As suas occupações, segundo observei, consistem muito logicamente, como
empregado (além das horas dadas aos deveres liturgicos), em procurar
melhoria de emprego. Pertence por isso a um partido politico:--e em
Lisboa, tres noites por semana, toma chá em casa do seu chefe, levando
rebuçados ás senhoras. Maneja habilmente eleições. Faz serviços e
recados, complexos e indescriptos, a todos os directores geraes da
Secretaria dos Negocios Ecclesiasticos. Com o seu bispo é incansavel:--e
ainda ha mezes o encontrei, suado e afflicto, por causa de duas
incumbencias de. S. Exc.^a uma relativa a queijadas de Cintra, outra a
uma collecção do _Diario do Governo_.
Não fallei da sua intelligencia. É pratica e methodica--como verifiquei,
assistindo a um sermão que elle prégou pela festa de S. Venancio. Por
esse sermão, encommendado, recebia padre Salgueiro 20$000 reis--e deu,
por esse preço, um sermão succulento, documentado, encerrando tudo o que
convinha á glorificação de S. Venancio. Estabeleceu a filiação do Santo;
desenrolou todos os seus milagres (que são poucos) com exactidão,
exarando as datas, citando as auctoridades; narrou com rigor agiologico
o seu martyrio; enumerou as egrejas que lhe são consagradas, com as
épocas da fundação. Enxertou destramente louvores ao Ministro dos
Negocios Ecclesiasticos. Não esqueceu a Familia Real, a quem rendeu
preito constitucional. Foi, em summa, um excellente relatorio sobre S.
Venancio.
Felicitei n'essa noite, com fervor, o reverendo padre Salgueiro. Elle
murmurou, modesto e simples:
--S. Venancio infelizmente não se presta. Não foi bispo, nunca exerceu
cargo publico!... Em todo o caso, creio que cumpri.
Ouço que vai ser nomeado conego. Larguissimamente o merece. Jesus não
possue melhor amanuense. E nunca realmente comprehendi por que razão
outro amigo meu, um frade do Varatojo, que, pelo extasi da sua fé, a
profusão da sua caridade, o seu devorador cuidado na pacificação das
almas, me faz lembrar os velhos homens evangelicos, chama sempre a este
sacerdote tão zeloso, tão pontual, tão proficiente, tão respeitavel--«o
horrendo padre Salgueiro!»
Ora veja, minha madrinha! Mais de trinta ou quarenta mil annos são
necessarios para que uma montanha se desfaça e se abata até ao
tamanhinho d'um outeiro que um cabrito galga brincando. E menos de dois
mil annos bastaram para que o Christianismo baixasse dos grandes padres
das Sete Egrejas da Asia até ao divertido padre Salgueiro, que não é de
sete Egrejas, nem mesmo d'uma, mas sómente, e muito devotamente, da
Secretaria dos Negocios Ecclesiasticos. Este baque provaria a
fragilidade do Divino--se não fosse que realmente o Divino abrange as
religiões e as montanhas, a Asia, o padre Salgueiro, os cabritinhos
folgando, tudo o que se desfaz e tudo o que se refaz, e até este seu
afilhado, que é todavia humanissimo.--Fradique.


XV

A BENTO DE S.

Paris, outubro.

_Meu caro Bento._--A tua idéa de fundar um jornal é damninha e
execravel. Lançando, e em formato rico, com telegrammas e chronicas, uma
outra «d'essas folhas impressas que apparecem todas as manhãs», como diz
tão assustada e pudicamente o Arcebispo de Paris, tu vaes concorrer para
que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os Juizos ligeiros, se
exacerbe mais a Vaidade, e se endureça mais a Intolerancia. Juizos
ligeiros, Vaidade, Intolerancia--eis tres negros peccados sociaes que,
moralmente, matam uma Sociedade! E tu alegremente te preparas para os
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