A correspondência de Fradique Mendes - 05

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vêr _por fóra_, por mera festa dos olhos, nunca fui senão a Marrocos».
O que tornava estas viagens tão fecundas como ensino era a sua rapida e
carinhosa sympathia por todos os povos. Nunca visitou paizes á maneira
do detestavel _touriste_ francez, para notar de alto e pêcamente «os
defeitos»--isto é, as divergencias d'esse typo de civilisação mediano e
generico d'onde sahia e que preferia. Fradique amava logo os costumes,
as idéas, os preconceitos dos homens que o cercavam: e, fundindo-se com
elles no seu modo de pensar e de sentir, recebia uma lição directa e
viva de cada sociedade em que mergulhava. Este efficaz preceito--«_em
Roma sê romano_»--tão facil e dôce de cumprir em Roma, entre as vinhas
da collina Celia e as aguas susurrantes da Fonte Paulina, cumpria-o elle
gostosamente trilhando com as alpercatas rotas os desfiladeiros do
Himalaya. E estava tão homogeneamente n'uma cervejaria philosophica da
Allemanha, aprofundando o Absoluto entre professores de Tubingen--como
n'uma aringa africana da terra dos Matabeles, comparando os meritos da
carabina «Express» e da carabina Winchester, entre caçadores de
elephantes.

Desde 1880 os seus movimentos pouco a pouco se concentraram entre Paris
e Londres--com excepção das «visitas filiaes» a Portugal: porque, apesar
da sua dispersão pelo mundo, da sua facilidade em se nacionalisar nas
terras alheias, e da sua impersonalidade critica, Fradique foi sempre um
genuino Portuguez com irradicaveis traços de fidalgo ilhéo.
O mais puro e intimo do seu interesse deu-o sempre aos homens e ás
coisas de Portugal. A compra da quinta do _Saragoça_, em Cintra,
realisára-a (como diz n'uma carta a F. G., com desacostumada emoção)
«para _ter terra em Portugal_, e para se prender pelo forte vinculo da
propriedade ao sólo augusto d'onde um dia tinham partido, levados por um
ingenuo tumulto de idéas grandes, os seus avós, buscadores de mundos, de
quem elle herdára o sangue e a curiosidade do _além_!»
Sempre que vinha a Portugal ia «retemperar a fibra» percorrendo uma
provincia, lentamente, a cavallo--com demoras em villas decrepitas que o
encantavam, infindaveis cavaqueiras á lareira dos campos, fraternisações
ruidosas nos adros e nas tavernas, idas festivas a romarias no carro de
bois, no vetusto e veneravel carro sabino, toldado de chita, enfeitado
de louro. A sua região preferida era o Ribatejo, a terra chã da leziria
e do boi. «Ahi (diz elle), de jaleca e cinta, montado n'um potro, com a
vara de campino erguida, correndo entre as manadas de gado, nos finos e
lavados ares da manhã, sinto, mais que em nenhuma outra parte, a delicia
de viver».
Lisboa só lhe agradava--como paizagem. «Com tres fortes retoques
(escrevia-me elle em 1881, do Hotel Braganza), com arvoredo e pinheiros
mansos plantados nas collinas calvas da Outra-Banda; com azulejos
lustrosos e alegres revestindo as fachadas sujas do casario; com uma
varredella definitiva por essas bemditas ruas--Lisboa seria uma d'essas
bellezas da Natureza creadas pelo Homem, que se tornam um motivo de
sonho, de arte e de peregrinação. Mas uma existencia enraizada em Lisboa
não me parece toleravel. Falta aqui uma atmosphera intellectual onde a
alma respire. Depois certas feições, singularmente repugnantes, dominam.
Lisboa é uma cidade _alitteratada_, _afadistada_, _catita_ e
_conselheiral_. Ha _litteratice_ na simples maneira com que um caixeiro
vende um metro de fita; e, nas proprias graças com que uma senhora
recebe, transparece _fadistice_: mesmo na Arte ha _conselheirismo_; e ha
_catitismo_ mesmo nos cemiterios. Mas a nausea suprema, meu amigo, vem
da politiquice e dos politiquetes».
Fradique nutria pelos politicos todos os horrores, os mais
injustificados: horror intellectual, julgando-os incultos, broncos,
inaptos absolutamente para crear ou comprehender idéas; horror mundano,
presuppondo-os reles, de maneiras crassas, improprios para se misturar a
naturezas de gosto; horror physico, imaginando que nunca se lavavam,
rarissimamente mudavam de meias, e que d'elles provinha esse cheiro
morno e molle que tanto surprehende e enoja em S. Bento aos que d'elle
não têm o habito profissional.
Havia n'estas ferozes opiniões, certamente, laivos de perfeita verdade.
Mas em geral, os juizos de Fradique sobre a Politica offereciam o cunho
d'um preconceito que dogmatisa--e não d'uma observação que discrimina.
Assim lh'o affirmava eu uma manhã, no Braganza, mostrando que todas
essas deficiencias de espirito, de cultura, de maneiras, de gosto, de
finura, tão acerbamente notadas por elle nos Politicos--se explicam
sufficientemente pela precipitada democratisação da nossa sociedade;
pela rasteira vulgaridade da vida provincial; pelas influencias
abominaveis da Universidade; e ainda por intimas razões que são no fundo
honrosas para esses desgraçados Politicos, votados por um fado vingador
á destruição da nossa terra.
Fradique replicou simplesmente:
--Se um rato morto me disser,--«eu cheiro mal por isto e por aquillo e
sobretudo porque apodreci»,--eu nem por isso deixo de o mandar varrer do
meu quarto.
Havia aqui uma antipathia de instincto, toda physiologica, cuja
intransigencia e obstinação nem factos nem raciocinios podiam vencer.
Bem mais justo era o horror que lhe inspirava, na vida social de Lisboa,
a inhabil, descomedida e papalva imitacão de Paris. Essa «saloia
macaqueação», superiormente denunciada por elle n'uma carta que me
escreveu em 1885, e onde assenta, n'um luminoso resumo, que «_Lisboa é
uma cidade traduzida do francez em calão_»--tornava-se para Fradique,
apenas transpunha Santa Apolonia, um tormento sincero. E a sua anciedade
perpetua era então descobrir, através da frandulagem do Francezismo,
algum resto do genuino Portugal.
Logo a comida constituia para elle um real desgosto. A cada instante em
cartas, em conversas, se lastíma de não poder conseguir «um cozido
vernaculo!»--«Onde estão (exclama elle, algures) os pratos veneraveis do
Portugal portuguez, o pato com macarrão do seculo XVIII, a almondega
indigesta e divina do tempo das descobertas, ou essa maravilhosa
cabidella de frango, petisco dilecto de D. João IV, de que os fidalgos
inglezes que vieram ao reino buscar a noiva de Carlos II levaram para
Londres a surprehendente noticia? Tudo estragado! O mesmo provincianismo
reles põe em calão as comedias de Labiche e os acepipes de Gouffé. E
estamo-nos nutrindo miseravelmente dos sobejos democraticos do
_boulevard_, requentados, e servidos em chalaça e galantine! Desastre
estranho! As coisas mais deliciosas de Portugal, o lombo de porco, a
vitella de Lafões, os legumes, os dôces, os vinhos, degeneraram,
_insipidaram_... Desde quando? Pelo que dizem os velhos, degeneraram
desde o Constitucionalismo e o Parlamentarismo. Depois d'esses enxertos
funestos no velho tronco lusitano, os fructos têm perdido o sabor, como
os homens têm perdido o caracter...»
Só uma occasião, n'esta especialidade consideravel, o vi plenamente
satisfeito. Foi n'uma taverna da Mouraria (onde eu o levára), diante
d'um prato complicado e profundo de bacalhau, pimentos e grão de bico.
Para o gozar com coherencia Fradique despiu a sobrecasaca. E como um de
nós lançára casualmente o nome de Renan, ao atacarmos o piteu sem igual,
Fradique protestou com paixão:
--Nada de idéas! Deixem-me saborear esta bacalhoada, em perfeita
innocencia de espirito, como no tempo do Senhor D. João V, antes da
Democracia e da Critica!
A saudade do velho Portugal era n'elle constante: e considerava que, por
ter perdido esse typo de civilisação intensamente original, o mundo
ficára diminuido. Este amor do passado revivia n'elle, bem curiosamente,
quando via realisados em Lisboa, com uma inspiração original, o luxo e o
«modernismo» intelligente das civilisações mais saturadas de cultura e
perfeitas em gosto. A derradeira vez que o encontrei em Lisboa foi no
Rato--n'uma festa de raro e delicado brilho. Fradique parecia desolado:
--Em Paris, affirmava elle, a duqueza de La Rochefoucauld-Bisaccia póde
dar uma festa igual: e para isto não me valia a pena ter feito a
quarentena em Marvão! Supponha porém vossê que eu vinha achar aqui um
sarau do tempo da Senhora D. Maria I, em casa dos Marialvas, com
fidalgas sentadas em esteiras, frades tocando o lundum no bandolim,
desembargadores pedindo mote, e os lacaios no pateo, entre os mendigos,
rezando em côro a ladainha!... Ahi estava uma coisa unica, deliciosa,
pela qual se podia fazer a viagem de Paris a Lisboa em liteira!
Um dia que jantavamos em casa de Carlos Mayer, e que Fradique lamentava,
com melancolica sinceridade, o velho Portugal fidalgo e fradesco do
tempo do snr. D. João V--Ramalho Ortigão não se conteve:
--Vossê é um monstro, Fradique! O que vossê queria era habitar o
confortavel Paris do meado do seculo XIX, e ter aqui, a dois dias de
viagem, o Portugal do seculo XVIII, onde podesse vir, como a um museu,
regalar-se de pittoresco e de archaismo... Vossê, lá na rua de Varennes,
consolado de decencia e de ordem. E nós aqui, em viellas fedorentas,
inundados á noite pelos despejos d'aguas sujas, aturdidos pelas arruaças
do marquez de Cascaes ou do conde d'Aveiras, levados aos empurrões para
a enxovia pelos malsins da Intendencia, etc. etc... Confesse que é o que
vossê queria!
Fradique volveu serenamente:
--Era bem mais digno e bem mais patriotico que em logar de vos vêr aqui,
a vós, homens de letras, esticados nas gravatas e nas idéas que toda a
Europa usa, vos encontrasse de cabelleira e rabicho, com as velhas
algibeiras da casaca de sêda cheias d'odes shaphicas, encolhidinhos no
salutar terror d'El-Rei e do Diabo, rondando os pateos da casa de
Marialva ou d'Aveiro, á espera que os senhores, de cima, depois de dadas
as graças, vos mandassem por um pretinho, os restos do perú e o mote.
Tudo isso seria dignamente portuguez, e sincero; vós não merecieis
melhor; e a vida não é possivel sem um bocado de pittoresco depois do
almoço.
Com effeito, n'esta saudade de Fradique pelo Portugal antigo, havia amor
do «pittoresco», estranho n'um homem tão subjectivo e intellectual: mas
sobretudo havia o odio a esta universal modernisação que reduz todos os
costumes, crenças, idéas, gostos, modos, os mais ingenitos e mais
originalmente proprios, a um typo uniforme (representado pelo _sujeito
utilitario e sério_ de sobrecasaca preta)--com a monotonia com que o
chinez apara todas as arvores d'um jardim, até lhes dar a fórma unica e
dogmatica de pyramide ou de vaso funerario.
Por isso Fradique em Portugal amava sobretudo o povo--o povo que não
mudou, como não muda a Natureza que o envolve e lhe communica os seus
caracteres graves e dôces. Amava-o pelas suas qualidades, e tambem pelos
seus defeitos:--pela sua morosa paciencia de boi manso; pela alegria
idyllica que lhe poetisa o trabalho; pela calma acquiescencia á
vassallagem com que depois do _Senhor Rei_ venera o _Senhor Governo_;
pela sua doçura amaviosa e naturalista; pelo seu catholicismo pagão, e
carinho fiel aos Deuses latinos, tornados santos calendares; pelos seus
trajes, pelos seus cantos... «Amava-o ainda (diz elle) pela sua
linguagem tão bronca e pobre, mas a unica em Portugal onde se não sente
odiosamente a influencia do Lamartinismo ou das _Sebentas_ de Direito
Publico».


V

A ultima vez que Fradique visitou Lisboa foi essa em que o encontrei no
Rato, lamentando os saraus beatos e secios do seculo XVIII. O antigo
poeta das Lapidarias tinha então cincoenta annos; e cada dia se prendia
mais á quieta doçura dos seus habitos de Paris.
Fradique habitava, na rua de Varennes, desde 1880, uma ala do antigo
palacio dos Duques de Tredennes que elle mobilára com um luxo sobrio e
grave--tendo sempre detestado esse atulhamento de alfaias e estofos,
onde inextricavelmente se embaralham e se contradizem as Artes e os
Seculos, e que, sob o barbaro e justo nome de _bric-à-brac_, tanto seduz
os financeiros e as _cocottes_. Nobres e ricas tapeçarias de Paizagem e
de Historia; amplos divans d'Aubusson; alguns moveis d'arte da
Renascença Franceza; porcelanas raras de Deft e da China; espaço,
claridade, uma harmonia de tons castos--eis o que se encontrava nas
cinco salas que constituiam o «covil» de Fradique. Todas as varandas, de
ferro rendilhado, datando de Luiz XIV, abriam sobre um d'esses jardins
de arvores antigas, que, n'aquelle bairro fidalgo e ecclesiastico,
formam retiros de silencio e paz silvana, onde por vezes nas noites de
maio se arrisca a cantar um rouxinol.
A vida de Fradique era medida por um relogio secular, que precedia o
toque lento e quasi austero das horas com uma toada argentina de antiga
dança de côrte: e era mantida n'uma immutavel regularidade pelo seu
creado Smith, velho escossez da _clan_ dos Macduffs, já todo branco de
pello e ainda todo rosado de pelle, que havia trinta annos o
acompanhava, com severo zêlo, através da vida e do mundo.
De manhã, ás nove horas, mal se espalhavam no ar os compassos gentis e
melancolicos d'aquelle esquecido minuete de Cimarosa ou de Haydin, Smith
rompia pelo quarto de Fradique, abria todas as janellas á luz,
gritava:--_Morning, Sir!_ Immediatamente Fradique, dando de entre a
roupa um salto brusco que considerava «de hygiene transcendente», corria
ao immenso laboratorio de marmore, a esponjar a face e a cabeça em agua
fria, com um resfolgar de Trytão ditoso. Depois, enfiando uma das
cabaias de sêda que tanto me maravilhavam, abandonava-se, estirado n'uma
poltrona, aos cuidados de Smith que, como barbeiro (affirmava Fradique)
reunia a ligeireza macia de Figaro á sapiencia confidencial do velho
Oliveiro de Luiz XI. E, com effeito, emquanto o ensaboava e escanhoava,
Smith ia dando a Fradique um resumo nitido, solido, todo em factos, dos
telegrammas politicos do _Times_, do _Standard_ e da _Gazeta de
Colonia_!
Era para mim uma surpreza, sempre renovada e saborosa, vêr Smith, com a
sua alta gravata branca á Palmerston, a rabona curta, as calças de
xadrez verde e preto (côres da sua _clan_), os sapatos de verniz
decotados, passando o pincel na barba do amo, e murmurando, em perfeita
sciencia e perfeita consciencia:--«Não se realisa a conferencia do
principe de Bismarck com o conde Kalnocky... Os conservadores perderam a
eleição supplementar de York... Fallava-se hontem em Vienna d'um novo
emprestimo russo...» Os amigos em Lisboa riam d'esta «caturreira»; mas
Fradique sustentava que havia aqui um proveitoso regresso á tradição
classica, que em todo o mundo latino, desde Scipião o Africano,
instituira os barbeiros como «informadores universaes da coisa publica».
Estes curtos resumos de Smith formavam a carcassa das suas noções
politicas: e Fradique nunca dizia--«Li no _Times_»--mas «Li no Smith».
Bem barbeado, bem informado, Fradique mergulhava n'um banho ligeiramente
tepido, d'onde voltava para as mãos vigorosas de Smith, que, com um jogo
de luvas de lã, de flanella, d'estopa, de clina e de pelle de tigre, o
friccionava até que o corpo todo se lhe tornasse, como o de Apollo,
«roseo e reluzente». Tomava então o seu chocolate; e recolhia á
bibliotheca, sala séria e simples, onde uma imagem da Verdade,
radiosamente branca na sua nudez de marmore, pousava o dedo subtil sobre
os labios puros, symbolisando, em frente á vasta mesa de ébano, um
trabalho todo intimo á busca de verdades que não são para o ruido e para
o mundo.
Á uma hora almoçava, com a sobriedade d'um grego, ovos e legumes:--e
depois, estendido n'um divan, tomando goles lentos de chá russo,
percorria nos Jornaes e nas Revistas as chronicas d'arte, de
litteratura, de theatro ou de sociedade, que não eram da competencia
politica de Smith. Lia então tambem com cuidado os jornaes portuguezes
(que chama algures «phenomenos picarescos de decomposição social»),
sempre caracteristicos, mas superiormente interessantes para quem como
elle se comprazia em analysar «a obra genuina e sincera da
mediocridade», e considerava Calino tão digno d'estudo como Voltaire. O
resto do dia dava-o aos amigos, ás visitas, aos _ateliers_, ás salas
d'armas, ás exposições, aos clubs--aos cuidados diversos que se cria um
homem d'alto gosto vivendo n'uma cidade d'alta civilisacão.
De tarde subia ao _Bois_ conduzindo o seu phaeton, ou montando a _Sabá_,
uma maravilhosa egoa das caudelarias de Aïn-Weibah que lhe cedera o Emir
de Mossul. E a sua noite (quando não tinha cadeira na Opera ou na
_Comédie_) era passada n'algum salão--precisando sempre findar o seu dia
entre «o ephemero feminino». (Assim dizia Fradique).
A influencia d'este «feminino» foi suprema na sua existencia. Fradique
amou mulheres; mas fóra d'essas, e sobre todas as coisas, amava a
Mulher.
A sua conducta para com as mulheres era governada conjuntamente por
devoções de espiritualista, por curiosidades de critico, e por
exigencias de sanguineo. Á maneira dos sentimentaes da Restauração,
Fradique considerava-as como «organismos» superiores, divinamente
complicados, differentes e mais proprios de adoração do que tudo o que
offerece a Natureza: ao mesmo tempo, através d'este culto, ia dissecando
e estudando esses «organismos divinos», fibra a fibra, sem respeito, por
paixão de analysta; e frequentemente o critico e o enthusiasta
desappareciam para só restar n'elle um homem amando a mulher, na simples
e boa lei natural, como os Faunos amavam as Nymphas.
As mulheres, além d'isso, estavam para elle (pelo menos nas suas
theorias de conversação) classificadas em especies. Havia a «mulher
d'exterior», flôr de luxo e de mundanismo culto: e havia a «mulher
d'interior», a que guarda o lar, diante da qual, qualquer que fosse o
seu brilho, Fradique conservava um tom penetrado de respeito, excluindo
toda a investigação experimental. «Estou em presença d'estas (escreve
elle a Madame de Jouarre), como em face d'uma carta alheia fechada com
sinete e lacre». Na presença, porém, d'aquellas que se «exteriorisam» e
vivem todas no ruido e na phantasia, Fradique achava-se tão livre e tão
irresponsavel como perante um volume impresso. «Folhear o livro (diz
elle ainda a Madame de Jouarre), annotal-o nas margens assetinadas,
critical-o em voz alta com independencia e veia, leval-o no coupé para
lêr á noite em casa, aconselhal-o a um amigo, atiral-o para um canto
percorridas as melhores paginas--é bem permittido, creio eu, segundo a
Cartilha e o Codigo».
Seriam estas subtilezas (como suggeria um cruel amigo nosso) as d'um
homem que theorisa e idealisa o seu temperamento de carrejão para o
tornar litterariamente interessante? Não sei. O commentario mais
instructivo das suas theorias dava-o elle, visto n'uma sala, entre «o
ephemero feminino». Certas mulheres muito voluptuosas, quando escutam um
homem que as perturba, abrem insensivelmente os labios. Em Fradique eram
os olhos que se alargavam. Tinha-os pequenos e côr de tabaco: mas junto
d'uma d'essas mulheres de exterior, «estrellas de mundanismo»,
tornavam-se-lhe immensos, cheios de luz negra, avelludados, quasi
humidos. A velha lady Mongrave comparava-os «ás guelas abertas de duas
serpentes». Havia alli com effeito um acto de alliciação e de
absorpção--mas havia sobretudo a evidencia da perturbação e do encanto
que o inundavam. N'essa attenção de beato diante da Virgem, no murmurio
quente da voz mais amollecedora que um ar de estufa, no humedecimento
enleado dos seus olhos finos,--as mulheres viam apenas a influencia
omnipotentemente vencedora das suas graças de Fórma e d'Alma sobre um
homem esplendidamente viril. Ora nenhum homem mais perigoso do que
aquelle que dá sempre ás mulheres a impressão clara, quasi tangivel--de
que ellas são irresistiveis, e subjugam o coração mais rebelde só com
mover os hombros lentos ou murmurar «que linda tarde!» Quem se mostra
facilmente seduzido--facilmente se torna seductor. É a lenda india, tão
sagaz e real, do espelho encantado em que a velha Maharina se via
radiosamente bella. Para obter e reter esse espelho, em que com tanto
esplendor se reflecte a sua pelle engilhada--que peccados e que traições
não commetterá a Maharina?...
Creio, pois, que Fradique foi profundamente amado, e que magnificamente
o mereceu. As mulheres encontravam n'elle esse sêr, raro entre os
homens--um Homem. E para ellas Fradique possuia esta superioridade
inestimavel, quasi unica na nossa geração--uma alma extremamente
sensivel, servida por um corpo extremamente forte.

De maior duração e intensidade que os seus amores foram todavia as
amizades que Fradique a si attrahiu pela sua excellencia moral. Quando
eu conheci Fradique em Lisboa, no remoto anno de 1867, julguei sentir na
sua natureza (como no seu verso) uma impassibilidade brilhante e
metallica: e através da admiração que me deixára a sua arte, a sua
personalidade, o seu viço, a sua cabaia de sêda--confessei um dia a J.
Teixeira d'Azevedo que não encontrára no poeta das Lapidarias aquelle
_tepido leite da bondade humana_, sem o qual o velho Shakspeare (nem eu,
depois d'elle) comprehendia que um homem fosse digno da humanidade. A
sua mesma polidez, tão risonha e perfeita, me parecera mais composta por
um systema do que genuinamente ingenita. Decerto, porém, concorreu para
a formação d'este juizo uma carta (já velha, de 1855) que alguem me
confiou, e em que Fradique, com toda a leviana altivez da mocidade,
lançava este rude programma de conducta:--«Os homens nasceram para
trabalhar, as mulheres para chorar, e nós, os fortes, para passar
friamente através!...»
Mas em 1880, quando a nossa intimidade uma noite se fixou a uma mesa do
Bignon, Fradique tinha cincoenta annos: e, ou porque eu então o
observasse com uma assiduidade mais penetrante, ou porque n'elle se
tivesse já operado com a idade esse phenomeno que Fustan de Carmanges
chamou depois _le degel de Fradique_, bem cedo senti, através da
impassibilidade marmorea do cinzelador das Lapidarias, brotar, tepida e
generosamente, o _leite da bondade humana_.
A forte expressão de virtude que n'elle logo me impressionou foi a sua
incondicional e irrestricta indulgencia. Ou por uma conclusão da sua
philosophia, ou por uma inspiração da sua natureza--Fradique, perante o
peccado e o delicto, tendia áquella velha misericordia evangelica que,
consciente da universal fragilidade, pergunta d'onde se erguerá a mão
bastante pura para arremessar a primeira pedra ao erro. Em toda a culpa
elle via (talvez contra a razão, mas em obediencia áquella _voz_ que
fallava baixo a S. Francisco d'Assis e que ainda se não calou) a
irremediavel fraqueza humana: e o seu perdão subia logo do fundo d'essa
Piedade que jazia na sua alma, como manancial d'agua pura em terra rica,
sempre prompto a brotar.
A sua bondade, porém, não se limitava a esta expressão passiva. Toda a
desgraça, desde a amargura limitada e tangivel que passa na rua, até á
vasta e esparsa miseria que com a força d'um elemento devasta classes e
raças, teve n'elle um consolador diligente e real. São d'elle, e
escriptas nos derradeiros annos (n'uma carta a G. F.) estas nobres
palavras:--«Todos nós que vivemos n'este globo formamos uma immensa
caravana que marcha confusamente para o Nada. Cerca-nos uma natureza
inconsciente, impassivel, mortal como nós, que não nos entende, nem
sequer nos vê, e d'onde não podemos esperar nem soccorro nem consolação.
Só nos resta para nos dirigir, na rajada que nos leva, esse secular
preceito, summa divina de toda a experiencia humana--«ajudai-vos uns aos
outros!» Que, na tumultuosa caminhada, portanto, onde passos sem conta
se misturam--cada um ceda metade do seu pão áquelle que tem fome;
estenda metade do seu manto áquelle que tem frio; acuda com o braço
áquelle que vai tropeçar; poupe o corpo d'aquelle que já tombou; e se
algum mais bem provido e seguro para o caminho necessitar apenas
sympathia d'almas, que as almas se abram para elle transbordando d'essa
sympathia... Só assim conseguiremos dar alguma belleza e alguma
dignidade a esta escura debandada para a Morte».
Decerto Fradique não era um santo militante, rebuscando pelas viellas
miserias a resgatar: mas nunca houve mal, por elle conhecido, que d'elle
não recebesse allivio. Sempre que lia por acaso, n'um jornal, uma
calamidade ou uma indigencia, marcava a noticia com um traço a lapis,
lançando ao lado um algarismo--que indicava ao velho Smith o numero de
libras que devia remetter, sem publicidade, pudicamente. A sua maxima
para com os pobres (a quem os Economistas affirmam que se não deve
Caridade mas Justiça)--era «que á hora das comidas mais vale um pataco
na mão que duas Philosophias a voar». As creanças, sobretudo quando
necessitadas, inspiravam-lhe um enternecimento infinito; e era d'estes,
singularmente raros, que encontrando, n'um agreste dia de inverno, um
pequenino que pede, tranzido de frio--param sob a chuva e sob o vento,
desapertam pacientemente o paletot, descalçam pacientemente a luva, para
vasculhar no fundo da algibeira, á procura da moeda de prata que vai ser
o calor e o pão d'um dia.
Esta caridade estendia-se budhistamente a tudo que vive. Não conheci
homem mais respeitador do animal e dos seus direitos. Uma occasião em
Paris, correndo ambos a uma estação de _fiacres_ para nos salvarmos d'um
chuveiro que desabava, e seguir, na pressa que nos leváva, a uma venda
de tapeçarias (onde Fradique cubiçava umas _Nove Musas dançando entre
loureiraes_), encontrámos apenas um _coupé_, cuja pileca, com o sacco
pendente do focinho, comia melancolicamente a sua ração. Fradique teimou
em esperar que o cavallo almoçasse com socego--e perdeu as _Nove Musas_.
Nos ultimos tempos, preoccupava-o sobretudo a miseria das classes--por
sentir que n'estas Democracias industriaes e materialistas, furiosamente
empenhadas na lucta pelo pão egoista, as almas cada dia se tornam mais
sêccas e menos capazes de piedade. «A fraternidade (dizia elle n'uma
carta de 1886 que conservo) vai-se sumindo, principalmente n'estas
vastas colmeias de cal e pedra onde os homens teimam em se amontoar e
luctar; e, através do constante deperecimento dos costumes e das
simplicidades ruraes, o mundo vai rolando a um egoismo feroz. A primeira
evidencia d'este egoismo é o desenvolvimento ruidoso da philantropia.
Desde que a caridade se organisa e se consolida em instituição, com
regulamentos, relatorios, comités, sessões, um presidente e uma
campainha, e de sentimento natural passa a funcção official--é porque o
homem, não contando já com os impulsos do seu coração, necessita
obrigar-se publicamente ao bem pelas prescripções d'um estatuto. Com os
corações assim duros e os invernos tão longos, que vai ser dos
pobres?...»
Quantas vezes, diante de mim, nos crepusculos de novembro, na sua
bibliotheca apenas alumiada pela chamma incerta e dôce da lenha no
fogão, Fradique emergiu d'um silencio em que os olhares se lhe perdiam
ao longe, como afundados em horisontes de tristeza--para assim lamentar,
com enternecida elevação, todas as miserias humanas! E voltava então a
amarga affirmação da crescente aspereza dos homens, forçados pela
violencia do conflicto e da concorrencia a um egoismo rude, em que cada
um se torna cada vez mais o lobo do seu semelhante, _homo homini lupus_.
--Era necessario que viesse outro Christo! murmurei eu um dia.
Fradique encolheu os hombros:
--Ha de vir; ha de talvez libertar os escravos; ha de ter por isso a sua
igreja e a sua liturgia; e depois ha de ser negado; e mais tarde ha de
ser esquecido; e por fim hão de surgir novas turbas de escravos. Não ha
nada a fazer. O que resta a cada um por prudencia é reunir um peculio e
adquirir um revolwer; e aos seus semelhantes que lhe baterem á porta,
dar, segundo as circumstancias, ou pão ou bala.

Assim, cheios de idéas, de delicadas occupações e d'obras amaveis,
decorreram os derradeiros annos de Fradique Mendes em Paris, até que no
inverno de 1888 a morte o colheu sob aquella fórma que elle, como Cesar,
sempre appetecera--_inopinatam atque repentinam_.
Uma noite, sahindo d'uma festa da condessa de La Ferté (velha amiga de
Fradique, com quem fizera n'um _yacht_ uma viagem á Islandia) achou no
_vestiario_ a sua pelissa russa trocada por outra, confortavel e rica
tambem, que tinha no bolso uma carteira com o monogramma e os bilhetes
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