A correspondência de Fradique Mendes - 08

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O que V. observou em Septa-Sindhou poderá verificar igualmente, parando
(antes de recolhermos a Vianna, a beber esse vinho verde de Monção, que
V. dithyrambisa) na Antiguidade classica, em Athenas ou Roma, onde
quizer, no momento de maior esplendor e cultura das civilisações
greco-latinas. Se V. ahi perguntar a um antigo, seja um oleiro de
Suburra, seja o proprio _Flamen Dialis_, qual é o corpo de doutrinas e
de conceitos moraes que compõe a Religião,--elle sorrirá, sem o
comprehender. E responderá que a Religião consiste em _paces deorum
quaerere_, em apaziguar os Deuses, em segurar a benevolencia dos Deuses.
Na idéa do antigo isso significa cumprir os ritos, as praticas, as
formulas, que uma longa tradição demonstrou serem as unicas que
conseguem fixar a attencão dos Deuses e exercer sobre elles persuasão ou
seducção. E n'esse ceremonial era indispensavel não alterar nem o valor
d'uma syllaba na Prece, nem o valor d'um gesto no sacrificio, porque
d'outro modo o Deus, não reconhecendo o Sacrificio da sua dilecção e a
Prece do seu agrado, permanecia desattento e alheio; e a Religião
falseava o seu fim supremo--influenciar o Deus. Peor ainda! Passava a
ser a irreligião: e o Deus, vendo n'essa omissão de liturgia uma falta
de reverencia, despedia logo das Alturas os dardos da sua colera. A
obliquidade das pregas na tunica do Sacrificador, um passo lançado á
direita ou movido á esquerda, o cahir lento das gottas da libação, o
tamanho das achas do lume votivo, todos esses detalhes estavam
prescriptos immutavelmente pelos Rituaes, e a sua exclusão ou a sua
alteração constituiam impiedades. Constituiam verdadeiros crimes contra
a patria--porque attrahiam sobre ella a indignação dos deuses. Quantas
Legiões vencidas, quantas cidadellas derrubadas, porque o Pontifice
deixára perder um grão de cinza da ara--ou porque Auruspice não arrancou
lã bastante da cabeça do anho! Por isso Athenas castigava o Sacerdote
que alterasse o ceremonial; e o senado depunha os Consules que
commettiam um erro no sacrificio--fosse elle tão ligeiro como reter a
ponta da toga sobre a cabeça, quando ella devia escorregar sobre o
hombro. De sorte que V., em Roma, lançando ironias d'ouro á Divindade,
era talvez um grande e admirado Poeta Comico: mas satyrisando, como na
_Velhice do Padre Eterno_, a Liturgia e o Ceremonial, era um inimigo
publico, um traidor ao Estado, votado ás masmorras do _Tuliano_.
E se, já farto d'estes tempos antigos, V. quizer volver aos nossos
philosophicos dias, encontrará nas duas grandes Religiões do occidente e
do oriente, no Catholicismo e no Budhismo, uma comprovação ainda mais
saliente e mais viva de que a Religião consiste intrinsecamente de
praticas, sobre as quaes a Theologia e a Moral se sobrepozeram, sem as
penetrarem, como um luxo intellectual, accessorio e transitorio--flôres
pregadas no altar pela imaginação ou pela virtude idealista. O
Catholicismo (ninguem mais furiosamente o sabe do que V.) está hoje
resumido a uma curta série de observancias materiaes:--e todavia nunca
houve Religião dentro da qual a Intelligencia erguesse mais vasta e alta
estructura de conceitos theologicos e moraes. Esses conceitos, porém,
obra de doutores e de mysticos, nunca propriamente sahiram das escólas e
dos mosteiros--onde eram preciosa materia de dialectica ou de poesia;
nunca penetraram nas multidões para methodicamente governar os juizos ou
conscientemente governar as acções. Reduzido a catechismos, a cartilhas,
esse corpo de conceitos foi decorado pelo povo:--mas nunca o povo se
persuadiu que tinha Religião, e que portanto _agradava a Deus_, _servia
a Deus_, só por cumprir os dez mandamentos, fóra de toda a pratica e de
toda a observancia ritual. E só decorou mesmo esses _Dez Mandamentos_, e
as _Obras de Misericordia_, e os outros preceitos moraes do Catechismo,
pela idéa de que esses versiculos, _recitados com os labios_, tinham,
por uma virtude maravilhosa, o poder de attrahir a attenção, a
bemquerença e os favores do Senhor. Para _servir a Deus_, que é o meio
_de agradar a Deus_, o essencial foi sempre ouvir missa, esfiar o
rosario, jejuar, commungar, fazer promessas, dar tunicas aos santos,
etc. Só por estes ritos, e não pelo cumprimento moral da lei moral, se
propicia a Deus,--isto é, se alcançam d'elle os dons inestimaveis da
saude, da felicidade, da riqueza, da paz. O mesmo Céo e Inferno, sancção
extra-terrestre da lei, nunca, na idéa do povo, se ganhava ou se evitava
pela pontual obediencia á lei. E talvez com razão, por isso mesmo que no
Catholicismo o premio e o castigo não são manifestações da _justiça_ de
Deus, mas da _graça_ de Deus. Ora a graça, no pensar dos simples, só se
obtem pela constante e incansavel pratica dos preceitos--a missa, o
jejum, a penitencia, a communhão, o rosario, a novena, a offerta, a
promessa. De sorte que no catholicismo do Minhoto como na religião do
Arya, em Septa-Sindhou como em Carrazeda d'Anciães, tudo se resume em
propiciar Deus por meio de praticas que o captivem. Não ha aqui
Theologia, nem Moral. Ha o acto do infinitamente fraco querendo agradar
ao infinitamente forte. E se V., para purificar este Catholicismo,
eliminar o Padre, a estola, as galhetas e a agua-benta, todo o Rito e
toda a Liturgia--o catholico immediatamente abandonará uma Religião que
não tem Egreja visivel, e que não lhe offerece os meios simples e
tangiveis de communicar com Deus, de obter d'elle os bens transcendentes
para a alma e os bens sensiveis para o corpo. O Catholicismo n'esse
instante terá acabado, milhões de sêres terão perdido o seu Deus. A
Egreja é o vaso de que Deus é o perfume. Egreja partida--Deus
volatilisado.
Se tivessemos tempo de ir á China ou a Ceylão, V. toparia com o mesmo
phenomeno no Budhismo. Dentro d'essa Religião foi elaborada a mais alta
das Metaphysicas, a mais nobre das Moraes: mas em todas as raças em que
elle penetrou, nas barbaras ou nas cultas, nas hordas do Nepal ou no
mandarinato chinez, elle consistiu sempre para as multidões em ritos,
ceremonias, praticas--a mais conhecida das quaes é o _moinho de rezar_.
V. nunca lidou com este moinho? É lamentavelmente parecido com o _moinho
de café_: em todos os paizes budhistas V. o verá collocado nas ruas das
cidades, nas encruzilhadas do campo, para que o devoto ao passar, dando
duas voltas á manivella, possa fazer chocalhar dentro as orações
escriptas e communica com o Budha, que por esse acto de cortezia
transcendente «lhe ficará grato e lhe augmentará os seus bens».
Nem o Catholicismo, nem o Budhismo vão por este facto em decadencia. Ao
contrario! Estão no seu estado natural e normal de Religião. Uma
Religião, quanto mais se materialisa, mais se popularisa--e portanto
mais se divinisa. Não se espante! Quero dizer, que quanto mais se
desembaraça dos seus elementos intellectuaes de Theologia, de Moral, de
Humanitarismo, etc., repellindo-os para as suas regiões naturaes que são
a Philosophia, a Ethica e a Poesia, tanto mais colloca o povo face a
face com o seu Deus, n'uma união directa e simples, tão facil de
realisar que, por um mero dobrar de joelhos, um mero balbuciar de
Padre-Nossos, o homem absoluto que está no céo vem ao encontro do homem
transitorio que está na terra. Ora este encontro é o facto
essencialmente divino da Religião. E quanto mais elle se
materialisa--mais ella na realidade se divinisa.
V. porém dirá (e de facto o diz): «Tornemos essa communicação puramente
espiritual, e que, despida de toda a exterioridade liturgica, ella seja
apenas como o espirito humano fallando ao espirito divino». Mas para
isso é necessario que venha o Millenio--em que cada cavador de enxada
seja um philosopho, um pensador. E quando esse Millenio detestavel
chegar, e cada tipoia de praça fôr governada por um Mallebranche, terá
V. ainda de ajuntar a esta perfeita humanidade masculina uma nova
humanidade feminina, physiologicamente differente da que hoje embelleza
a terra. Porque emquanto houver uma mulher constituida physica,
intellectual e moralmente como a que Jehovah com uma tão grande
inspiração d'artista fez da costella de Adão,--haverá sempre ao lado
d'ella, para uso da sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.
Essa communhão mystica do Homem e de Deus, que V. quer, nunca poderá ser
senão o privilegio d'uma _élite_ espiritual, deploravelmente limitada.
Para a vasta massa humana, em todos os tempos, pagã, budhista, christã,
mahometana, selvagem ou culta, a Religião terá sempre por fim, na sua
essencia, a supplica dos favores divinos e o afastamento da cólera
divina; e, como instrumentação material para realisar estes objectos, o
templo, o padre, o altar, os officios, a vestimenta, a imagem. Pergunte
a qualquer mediano homem sahido da turba, que não seja um philosopho, ou
um moralista, ou um mystico, o que é Religião. O inglez dirá:--«É ir ao
serviço ao domingo, bem vestido, cantar hymnos». O hindú dirá:--«É fazer
_poojah_ todos os dias e dar o tributo ao _Mahadeo_». O africano
dirá:--«É offerecer ao _Mulungú_ a sua ração de farinha e oleo». O
Minhoto dirá:--«É ouvir missa, rezar as contas, jejuar á sexta-feira,
commungar pela Paschoa». E todos terão razão, grandemente! Porque o seu
objecto, como sêres religiosos, está todo em communicar com Deus; e
esses são os meios de communicação que os seus respectivos estados de
civilisação e as respectivas liturgias que d'elles sahiram, lhes
fornecem. _Voilà!_ Para V. está claro, e para outros espiritos de
eleição, a Religião é outra coisa--como já era outra coisa em Athenas
para Socrates e em Roma para Seneca. Mas as multidões humanas não são
compostas de Socrates e de Senecas--bem felizmente para ellas, e para os
que as governam, incluindo V. que as pretende governar!
De resto, não se desconsole, amigo! Mesmo entre os simples ha modos de
ser religiosos, inteiramente despidos de Liturgia e de exterioridades
rituaes. Um presenciei eu, deliciosamente puro e intimo. Foi nas margens
do Zambeze. Um chefe negro, por nome Lubenga, queria, nas vesperas de
entrar em guerra com um chefe visinho, communicar com o seu Deus, com o
seu Mulungú (que era, como sempre, um seu avô divinisado). O recado ou
pedido, porém, que desejava mandar á sua Divindade, não se podia
transmittir através dos Feiticeiros e do seu ceremonial, tão graves e
confidenciaes matérias continha... Que faz Lubenga? Grita por um
escravo: dá-lhe o recado, pausadamente, lentamente, ao ouvido: verifica
bem que o escravo tudo comprehendera, tudo retivera: e immediatamente
arrebata um machado, decepa a cabeça do escravo, e brada
tranquillamente--«parte!» A alma do escravo lá foi, como uma carta
lacrada e sellada, direita para o céo, ao Mulungú. Mas d'ahi a instantes
o chefe bate uma palmada afflicta na testa, chama á pressa outro
escravo, diz-lhe ao ouvido rapidas palavras, agarra o machado,
separa-lhe a cabeça, e berra:--«Vai!»
Esquecera-lhe algum detalhe no seu pedido ao Mulungú... O segundo
escravo era um _post-scriptum_.
Esta maneira simples de communicar com Deus deve regosijar o seu
coração. Amigo do dito--Fradique.


VI

A RAMALHO ORTIGÃO

Paris, abril.

_Querido Ramalho._--No sabbado á tarde, na rue Cambon, avisto dentro
d'um fiacre o nosso Eduardo, que se arremessa pela portinhola para me
gritar: «Ramalho, esta noite! de passagem para a Hollanda! ás dez! no
café da Paz!»
Fico dôcemente alvoroçado; e ás nove e meia, apesar da minha justa
repugnancia pela esquina do café da Paz, Centro catita do _Snobismo_
internacional, lá me installo, com um bock, esperando a cada instante
que surja, por entre a turba baça e molle do boulevard, o esplendor da
Ramalhal figura. Ás dez salta d'um fiacre com anciedade o vivaz
Carmonde, que abandonára á pressa uma sobremesa alegre _pour voir ce
grand Ortigan_! Começa uma espera a dois, com bock a dois. Nada de
Ramalho, nem do seu viço. Ás onze apparece Eduardo, esbaforido. E
Ramalho? Inedito ainda! Espera a tres, impaciencia a tres, bock a tres.
E assim até que o bronze nos soou o fim do dia.
Em compensação um caso, e profundo. Carmonde, Eduardo e eu sorviamos as
derradeiras fezes do bock, já desilludidos de Ramalho e das suas pompas,
quando roça pela nossa mesa um sujeito escurinho, chupadinho,
esticadinho, que traz na mão com respeito, quasi com religião, um
soberbo ramo de cravos amarellos. É um homem d'além dos mares, da
Republica Argentina ou Peruana, e amigo de Eduardo--que o retem e
apresenta «o snr. Mendibal». Mendibal aceita um bock: e eu começo a
contemplar mudamente aquella facesinha toda em perfil, como recortada
n'uma lamina de machado, d'uma côr acobreada de chapéo côco inglez, onde
a barbita rala, hesitante, denunciando uma virilidade frouxa, parece
cotão, um cotão negro, pouco mais negro que a tez. A testa escanteada
recua, foge toda para traz, assustada. O caroço da garganta esganiçada,
ao contrario, avança como o esporão d'uma galera por entre as pontas
quebradas do collarinho muito alto e mais brilhante que esmalte. Na
gravata, grossa perola.
Eu contemplo, e Mendibal falla. Falla arrastadamente, quasi
dolentemente, com finaes que desfallecem, se esvaem em gemido. A voz é
toda de desconsolo:--mas, no que diz, revela a mais forte, segura e
insolente satisfação de viver. O animal tem tudo: immensas propriedades
além do mar, a consideração dos seus fornecedores, uma casa no
Parc-Monceau, e «uma esposa adoravel». Como deslizou elle a mencionar
essa dama que lhe embelleza o lar? Não sei. Houve um momento em que me
ergui, chamado por um velho Inglez meu amigo, que passava, recolhendo da
Opera, e que me queria simplesmente segredar, com uma convicção forte,
que «a noute estava esplendida!» Quando voltei á mesa e ao bock, o
Argentino encetára em monologo a glorificação da «sua senhora». Carmonde
devorava o homemzinho com olhos que riam e que saboreavam,
deliciosamente divertido. Eduardo, esse, escutava com a compostura
pesada de um portuguez antigo. E Mendibal, tendo posto ao lado sobre uma
cadeira, com cuidados devotos, o ramo de cravos, desfiava as virtudes e
os encantos de Madame. Sentia-se alli uma d'essas admirações
effervescentes, borbulhantes, que se não podem retrahir, que transbordam
por toda a parte, mesmo por sobre as mesas dos cafés: onde quer que
passasse, aquelle homem iria deixando escorrer a sua adoração pela
mulher, como um guarda-chuva encharcado vai fatalmente pingando agua.
Comprehendi, desde que elle, com um prazer que lhe repuxava mais para
fóra o caroço da garganta, revelou que madame Mendibal era franceza.
Tinhamos alli portanto um fanatismo de preto pela graça loira d'uma
parisiensesinha, picante em seducção e finura. Desde que comprehendi,
sympathisei. E o Argentino farejou em mim esta benevolencia
critica--porque foi para mim que se voltou, lançando o derradeiro traço,
o mais decisivo, sobre as excellencias de Madame: «Sim, positivamente,
não havia outra em Paris! Por exemplo, o carinho com que ella cuidava da
mamã (da mamã d'elle), senhora de grande idade, cheia de achaques! Pois
era uma paciencia, uma delicadeza, uma sujeição... De cahir de joelhos!
Então nos ultimos dias a mamã andára tão rabugenta!... Madame Mendibal
até emmagrecera. De sorte que elle proprio, n'esse domingo, lhe pedira
que se fosse distrahir, passar o dia a Versalhes, onde a mãe d'ella,
madame Jouffroy, habitava por economia. E agora viera de a esperar na
_gare_ Saint-Lazare. Pois, senhores, todo o dia em Versalhes, a santa
creatura estivera com cuidado na sogra, cheia de saudades da casa, n'uma
ancia de recolher. Nem lhe soubera bem a visita á mamã! A maior parte da
tarde, e uma tarde tão linda, gastára-a a reunir aquelle esplendido ramo
de cravos amarellos para lhe trazer, a elle!»
--É verdade! Veja o senhor! Este ramo de cravos! Até consola. Olhe que
para estas lembrancinhas, para estes carinhos, não ha senão uma
franceza. Graças a Deus, posso dizer que acertei! E se tivesse filhos,
um só que fosse, um rapaz, não me trocava pelo principe de Galles. Eu
não sei se o senhor é casado. Perdôe a confiança. Mas se não é, sempre
lhe direi, como digo a todo o mundo:--Case com uma franceza, case com
uma franceza!...
Não podia haver nada mais sinceramente grotesco e tocante. Como V. não
vinha, fugidio Ramalho, dispersamos. Mendibal trepou para um fiacre com
o seu amoroso molho de cravos. Eu arrastei os passos, no calor da noite,
até ao club. No club encontro Chambray, que V. conhece--o «formoso
Chambray». Encontro Chambray no fundo d'uma poltrona, derreado e
radiante. Pergunto a Chambray como lhe vai a Vida, que opinião tem
n'esse dia da Vida. Chambray declara a Vida uma delicia. E,
immediatamente, sem se conter, faz a confidencia que lhe bailava
impacientemente no sorriso e no olho humedecido.
Fôra a Versalhes, com tenção de visitar os Fouquiers. No mesmo
compartimento com elle ia uma mulher, _une grande et belle femme_. Corpo
soberbo de Diana n'um vestido collante do Redfern. Cabellos apartados ao
meio, grossos e apaixonados, ondeando sobre a testa curta. Olhos graves.
Dois solitarios nas orelhas. Sêr substancial, solido, sem chumaços e sem
blagues, bem alimentado, envolto em consideração, superiormente
installado na vida.
E, no meio d'esta respeitabilidade physica e social, um geito guloso de
molhar os beiços a cada instante, vivamente, com a ponta da lingua...
Chambray pensa comsigo:--«burgueza, trinta annos, sessenta mil francos
de renda, temperamento forte, desapontamentos d'alcova». E apenas o
comboyo larga, toma o seu «grande ar Chambray», e dardeja á dama um
d'esses olhares que eram outr'ora symbolisados pelas flechas de Cupido.
Madame impassivel. Mas, momentos, depois, vem d'entre as palpebras um
pouco pesadas, direito a Chambray (que vigiava de lado, por traz do
_Figaro_ aberto), um d'esses raios de luz indagadora que, como os da
lanterna de Diogenes, procuram um homem que seja um homem. Ao chegar a
Courbevoie, a pretexto de baixar o vidro por causa da poeira, Chambray
arrisca uma palavra, atrevidamente timida, sobre o calor de Paris. Ella
concede outra, ainda hesitante e vaga, sobre a frescura do campo. Está
travada a Ecloga. Em Suresnes, Chambray já se senta na banqueta ao lado
d'ella, fumando. Em Sevres, mão de Madame arrebatada por Chambray, mão
de Chambray repellida por Madame:--e ambas insensivelmente se
entrelaçam. Em Viroflay, proposta brusca de Chambray para darem um
passeio por um sitio de Viroflay que só elle conhece, recanto bucolico,
de incomparavel doçura, inaccessivel ao burguez. Depois, ás duas horas
tomariam o outro trem para Versalhes. E nem a deixa hesitar--arrebata-a
moralmente, ou antes physiologicamente, pela simples força da voz
quente, dos olhos alegres, de toda a sua pessoa franca e mascula.
Eil-os no campo, com um aroma da seiva em redor, e a primavera e Satanaz
conspirando e soprando sobre Madame os seus bafos quentes. Chambray
conhece á orla do bosque, junto d'agua, uma tavernola que tem as
janellas encaixilhadas em madresilva. Porque não irão lá almoçar uma
caldeirada, regada com vinho branco de Suresnes? Madame na verdade sente
uma fomesinha alegre de ave solta no prado: e Satanaz, dando ao rabo,
corre adiante, a propiciar as coisas na tavernola. Acham lá, com
effeito, uma installação magistral: quarto fresco e silencioso, mesa
posta, cortina de cassa ao fundo escondendo e trahindo a alcova. «Em
todo o caso que o almoço suba depressa, porque elles têm de partir pelo
trem das duas horas»--tal é o brado sincero de Chambray!
Quando chega a caldeirada, Chambray tem uma inspiração genial--despe o
casaco, abanca em mangas de camisa. É um rasgo de bohemia e de
liberdade, que a encanta, a excita, faz surgir a _garota_ que ha quasi
sempre no fundo da _matrona_. Atira tambem o chapéo, um chapéo de
duzentos francos, para o fundo do quarto, alarga os braços, e tem este
grito d'alma:
--_Ah oui, que c'est bon, de se desembêter!_
E depois, como dizem os hespanhoes--_la mar_. O sol, ao despedir-se da
terra por esse dia, deixou-os ainda em Viroflay; ainda na tavernola;
ainda no quarto;--e outra vez á mesa, diante d'um _beefsteak_
reconfortante, como os acontecimentos pediam com urgencia e logica.
Versalhes, esquecido! Tratava-se de voltar á estação para tomar o trem
de Paris. Ella aperta devagar as fitas do chapéo, apanha uma das flôres
da janella que mette no corpete, fixa um olhar lento em redor pelo
quarto e pela alcova, para todo decorar e retêr--e partem. Na estação,
ao saltar para um compartimento differente (por causa da chegada a
Paris), Chambray n'um aperto de mão, já apressado e frouxo, supplica-lhe
que ao menos lhe diga como se chama. Ella murmura--_Lucie_.
--E é tudo o que sei d'ella, conclue Chambray accendendo o charuto. E
sei tambem que é casada porque na _gare_ Saint-Lazare, á espera d'ella,
e acompanhado por um trintanario serio, de casa burgueza, estava o
marido... É um _rastacuero_ côr de chocolate, com uma barbita rala,
enorme perola na gravata... Coitado, ficou encantado quando ella lhe deu
um grande ramo de cravos amarellos que eu lhe mandára arranjar em
Viroflay... Mulher deliciosa. Não ha senão as francezas!
Que diz V. a estas coisas consideraveis, meu bom Ramalho? Eu digo que,
em resumo, este nosso Mundo é perfeito e não ha nos espaços outro mais
bem organisado. Porque note V. como, ao fim d'este domingo de maio,
todas estas tres excellentes creaturas, com uma simples jornada a
Versalhes, obtiveram um ganho positivo na vida. Chambray passou por um
immenso prazer e uma immensa vaidade--os dois unicos resultados que elle
conta na existencia como proventos solidos, e valendo o trabalho de
existir. Madame experimentou uma sensação nova ou differente, que a
desenervou, a desafogou, lhe permittiu reentrar mais acalmada na
monotonia do seu lar, e ser util aos seus com rediviva applicação. E o
Argentino adquiriu outra inesperada e triumphal certeza de quanto era
amado e feliz na sua escolha. Tres ditosos, ao fim d'esse dia de
primavera e de campo. E se d'aqui resultar um filho (o filho que o
Argentino appetece), que herde as qualidades fortes e brilhantemente
gaulezas de Chambray, accresce, ao contentamento individual dos tres, um
lucro effectivo para a sociedade. Este mundo portanto está superiormente
organisado.
Amigo fiel, que fielmente o espera á volta da Hollanda--Fradique.


VII

A MADAME DE JOUJARRE
(Trad.)

Lisboa, março.

_Minha querida madrinha._--Foi hontem, por noite morta, no comboio, ao
chegar a Lisboa (vindo do Norte e do Porto), que de repente me acudia á
memoria estremunhada o juramento que lhe fiz no sabbado de Paschoa em
Paris, com as mãos piamente estendidas sobre a sua maravilhosa edição
dos _Deveres_ de Cicero. Juramento bem estouvado, este, de lhe mandar
todas as semanas, pelo correio, Portugal em «descripções, notas,
reflexões e panoramas», como se lê no sub-titulo da _Viagem á Suissa_ do
seu amigo o Barão de Fernay, commendador de Carlos III e membro da
Academia de Toulouse. Pois com tanta fidelidade cumpro eu os meus
juramentos (quando feitos sobre a Moral de Cicero, e para regalo de quem
reina na minha Vontade) que, apenas o recordei, abri logo
escancaradamente ambos os olhos para recolher «descripções, notas,
reflexões e panoramas» d'esta terra que é minha e que _está a la
disposicion de ustêd_... Chegáramos a uma estação que chamam de
Sacavem--e tudo o que os meus olhos arregalados viram do meu paiz,
através dos vidros humidos do wagon, foi uma densa treva, d'onde
mortiçamente surgiam aqui e além luzinhas remotas e vagas. Eram
lanternas de faluas dormindo no rio:--e symbolisavam d'um modo bem
humilhante essas escassas e desmaiadas parcellas de verdade positiva que
ao homem é dado descobrir no universal mysterio do Sêr. De sorte que
tornei a cerrar resignadamente os olhos--até que, á portinhola, um homem
de bonet de galão, com o casaco encharcado d'agua, reclamou o meu
bilhete, dizendo _Vossa Excellencia_! Em Portugal, boa madrinha, todos
somos nobres, todos fazemos parte do Estado, e todos nos tratamos por
_Excellencia_.
Era Lisboa e chovia. Vinhamos poucos no comboio, uns trinta
talvez--gente simples, de maletas ligeiras e sacos de chita, que bem
depressa atravessou a busca paternal e somnolenta da Alfandega, e logo
se sumia para a cidade sob a molhada noite de março.
No casarão soturno, á espera das bagagens sérias, fiquei eu, o Smith[3]
e uma senhora esgrouviada, de oculos no bico, envolta n'uma velha capa
de pelles. Deviam ser duas horas da madrugada. O asphalto sujo do
casarão regelava os pés.
Não sei quantos seculos assim esperamos, Smith immovel, a dama e eu
marchando desencontradamente e rapidamente para aquecer ao comprido do
balcão de madeira, onde dois guardas d'Alfandega, escuros como
azeitonas, bocejavam com dignidade. Da porta do fundo, uma carreta, em
que oscillava o montão da nossa bagagem, veio por fim rolando com
pachorra. A dama de nariz de cegonha reconheceu logo a sua caixa de
folha de Flandres, cuja tampa, cahindo para traz, revelou aos meus olhos
que observavam (em seu serviço, exigente madrinha!) um penteador sujo,
uma boceta de dôce, um livro de missa e dois ferros de frisar. O guarda
enterrou o braço através d'estas coisas intimas, e com um gesto clemente
declarou a Alfandega satisfeita. A dama abalou.
Ficamos sós, Smith e eu. Smith já arrebanhára a custo a minha bagagem.
Mas faltava inexplicavelmente um saco de couro; e em silencio, com a
guia na mão, um carregador dava uma busca vagarosa através dos fardos,
barricas, pacotes, velhos bahus, armazenados ao fundo, contra a parede
enxovalhada. Vi este digno homem hesitando pensativamente diante d'um
embrulho de lona, diante d'uma arca de pinho. Seria qualquer d'esses o
saco de couro? Depois, descorçoado, declarou que positivamente nas
nossas bagagens não havia nem couro nem saco. Smith protestava, já
irritado. Então o capataz arrancou a guia das mãos inhabeis do
carregador, e recomeçou elle, com a sua intelligencia superior de chefe,
uma rebusca através das «arrumações», esquadrinhando zelosamente
caixotes, vasilhas, pipos, chapeleiras, canastras, latas e garrafões...
Por fim sacudiu os hombros, com indizivel tedio, e desappareceu para
dentro, para a escuridão das plataformas interiores. Passados instantes
voltou, coçando a cabeça por baixo do bonet, cravando os olhos em roda,
pelo chão vasio, á espera que o saco rompesse das entranhas d'este globo
desconsolador. Nada! Impaciente, encetei eu proprio uma pesquiza sofrega
através do casarão. O guarda da Alfandega, de cigarro collado ao beiço
(bondoso homem!), deitava tambem aqui e além um olhar auxiliador e
magistral. Nada! Repentinamente porém uma mulher de lenço vermelho na
cabeça, que alli vadiava, n'aquella madrugada agreste, apontou para a
porta da estação:
--Será aquillo, meu senhor?
Era! Era o meu saco, fóra, no passeio, sob a chuvinha miuda. Não
indaguei como elle se encontrava alli, sósinho, separado da bagagem a
que estrictamente o prendia o numero d'ordem estampado na guia em letras
grossas--e reclamei uma tipoia. O carregador atirou a jaleca para cima
da cabeça, sahiu ao largo, e recolheu logo annunciando com melancolia
que não havia tipoias.
--Não ha! Essa é curiosa! Então como sahem d'aqui os passageiros?
O homem encolheu os hombros. «Ás vezes havia, outras vezes não havia,
era conforme calhava a sorte...» Fiz reluzir uma placa de cinco tostões,
e suppliquei áquelle benemerito que corresse as visinhanças da estação,
á cata d'um vehiculo qualquer com rodas, coche ou carroça, que me
levasse ao conchego d'um caldo e d'um lar. O homem largou, resmungando.
E eu logo, como patriota descontente, censurei (voltado para o capataz e
para o homem da Alfandega) a irregularidade d'aquelle serviço. Em todas
as estações do Mundo, mesmo em Tunis, mesmo na Romelia, havia, á chegada
dos comboios, omnibus, carros, carretas, para transportar gente e
bagagem... Porque não as havia em Lisboa? Eis ahi um abominavel serviço
que deshonrava a Nação!
O aduaneiro esboçou um movimento de desalento, como na plena consciencia
de que todos os serviços eram abominaveis, e a Patria toda uma
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