A correspondência de Fradique Mendes - 02

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n'um cardume nas ondas do mar do Norte, ou se, nas margens do Nilo, ha
quatro mil annos, arrolava as rezes de Amnon e commentava os _capitulos
de fim de dia_--não era certamente da conta dos Poderes Publicos. Isto
parecia-lhe logico. Todavia as auctoridades da Alfandega continuavam a
hesitar, coçando o queixo, diante do cofre sarapintado que encerrava
tanto saber e tanta piedade! E agora n'aquella carta os amigos Pintos
Bastos aconselhavam, como mais nacional e mais rapido, que se arrancasse
um _empenho_ do Ministro da Fazenda para fazer sahir sem direitos o
corpo augusto do escriba de Ramèzes. Ora este empenho, quem melhor para
o alcançar que Marcos--esteio da Regeneração e seu Chronista musical?
Vidigal esfregava as mãos, illluminado. Ahi estava uma coisa bem digna
d'elle, «bem catita»--salvar do fisco a mumia «d'um figurão pharaonico»!
E arrebatou a carta dos Pintos Bastos, enfiou para a tipoia, gritou ao
cocheiro a morada do Ministro, seu collega na _Revolução de Setembro_.
Assim fiquei só com Fradique--que me convidou a subir aos seus quartos,
e esperar Vidigal, bebendo uma «soda e limão».
Pela escada, o poeta das Lapidarias alludiu ao torrido calor d'agosto. E
eu que n'esse instante, defronte do espelho no patamar, revistava, com
um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a frescura da minha
rosa--deixei estouvadamente escapar esta coisa hedionda:
--Sim, está d'escachar!
E ainda o torpe som não morrera, já uma afflicção me lacerava, por esta
«chulice» de esquina de tabacaria assim atabalhoadamente lançada como um
pingo de sêbo sobre o supremo artista das Lapidarias, o homem que
conversára com Hugo á beira-mar!... Entrei no quarto atordoado, com
bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra
phrase sobre o calor, bem trabalhada, toda scintillante e nova! Nada! Só
me acudiam sordidezes parallelas, em calão teimoso:--«é de rachar»!
«está de ananazes»! «derrete os untos»!... Atravessei alli uma d'essas
angustias atrozes e grotescas, que, aos vinte annos, quando se começa a
vida e a litteratura, vincam a alma--e jámais esquecem.
Felizmente Fradique desapparecera por traz d'um reposteiro de alcova.
Só, limpando o suor, considerando que altos pensadores se exprimem
assim, com uma simplicidade rude,--serenei. E á perturbação succedeu a
curiosidade de descobrir em torno, pelo aposento, algum vestigio da
originalidade intensa do homem que o habitava. Vi apenas cançadas
cadeiras de reps azul-ferrete, um lustre embuçado em tulle, e uma
console, de altos pés dourados, entre as duas janellas que respiravam
para o rio. Sómente, sobre o marmore da console, e por meio dos livros
que atulhavam uma velha mesa de pau preto, pousavam soberbos ramos de
flôres: e a um canto afofava-se um espaçoso divan, installado decerto
por Fradique com colchões sobrepostos, que dois cobrejões orientaes
revestiam de côres estridentes. Errava além d'isso em toda a sala um
aroma desconhecido, que tambem me pareceu oriental, como feito de rosas
de Smyrna, mescladas a um fio de canella e mangerona.
Fradique Mendes voltára de dentro, vestido com uma cabaia chineza!
Cabaia de mandarim, de sêda verde, bordada a flôres de amendoeira--que
me maravilhou e que me intimidou. Vi então que tinha o cabello
castanho-escuro, fino e levemente ondeado sobre a testa, mais polida e
branca que os marfins de Normandia. E os olhos, banhados agora n'uma luz
franca, não apresentavam aquella negrura profunda que eu comparára ao
onyx, mas uma côr quente de tabaco escuro da Havana. Accendeu uma
cigarrette e ordenou a «soda e limão» a um creado surprehendente, muito
louro, muito grave, com uma perola espetada na gravata, largas calças de
xadrez verde e preto, e o peito florido por tres cravos amarellos!
(Percebi que este servo magnifico se chamava Smith). O meu enleio
crescia. Por fim Fradique murmurou, sorrindo, com sincera sympathia:
--Aquelle Marcos é uma flôr!
Concordei, contei a velha estima que me prendia a Vidigal, desde o
primeiro anno de Coimbra, dos nossos tempos estouvados de Concertina e
_Sebenta_. Então, alegremente, recordando Coimbra, Fradique perguntou-me
pelo Pedro Penedo, pelo Paes, por outros lentes ainda, do antigo typo
fradesco e bruto; depois pelas tias Camêlas, essas encantadoras velhas,
que escrupulosamente, através de lascivas gerações d'estudantes, tinham
permanecido virgens, para poderem no céo, ao lado de Santa Cecilia,
passar toda uma eternidade a tocar harpa... Era uma das suas memorias
melhores de Coimbra essa taverna das tias Camêlas, e as ceias
desabaladas que custavam setenta reis, comidas ruidosamente na penumbra
fumarenta das pipas, com o prato de sardinhas em cima dos joelhos, por
entre temerosas contendas de Metaphysica e d'Arte. E que sardinhas! Que
arte divina em frigir o peixe! Muitas vezes em Paris se lembrára das
risadas, das illusões e dos piteus d'então!...
Tudo isto vinha n'um tom muito moço, sincero, singelo--que eu
mentalmente classificava de _crystallino_. Elle estirára-se no divan; eu
ficára rente da mesa, onde um ramo de rosas se desfolhava ao calor sobre
volumes de Darwin e do Padre Manoel Bernardes. E então, dissipado o
acanhamento, todo no appetite de revolver com aquelle homem genial idéas
de Litteratura, sem me lembrar que, como Bacon, elle desejava esconder o
seu genio poetico, ou artista insatisfeito nunca reconheceria a obra
imperfeita,--alludi ás Lapidarias.
Fradique Mendes tirou a cigarette dos labios para rir--com um riso que
seria genuinamente galhofeiro, se de certo modo o não contradissesse um
laivo de vermelhidão que lhe subira á face côr de leite. Depois declarou
que a publicação d'esses versos, _com a sua assignatura_, fôra uma
perfidia do leviano Marcos. Elle não considerava _assignaveis_ esses
pedaços de prosa rimada, que decalcára, havia quinze annos, na idade em
que se imita, sobre versos de Lecomte de Lisle, durante um verão de
trabalho e de fé, n'uma trapeira do Luxemburgo, julgando-se a cada rima
um innovador genial...
Eu acudi affirmando, todo em chamma, que depois da obra de Baudelaire
nada em Arte me impressionára como as Lapidarias! E ia lançar a minha
esplendida phrase, burilada n'essa noite com paciente cuidado:--«A fórma
de v. exc.^a é um marmore divino...» Mas Fradique deixára o divan e
pousava em mim os olhos finos de onix, com uma curiosidade que me
_verrumava_:
--Vejo então, disse elle, que é um devoto do maganão das _Flôres do
Mal_!
Córei, áquelle espantoso termo de _maganão_. E, muito grave, confessei
que para mim Baudelaire dominava, á maneira d'um grande astro, logo
abaixo d'Hugo, na moderna Poesia. Então Fradique, sorrindo
paternalmente, afiançou que bem cedo eu perderia essa illusão!
Baudelaire (que elle conhecera) não era verdadeiramente um poeta. Poesia
subentendia emoção: e Baudelaire, todo intellectual, não passava d'um
psychologo, d'um analysta--um dissecador subtil d'estados morbidos. As
_Flôres do Mal_ continham apenas resumos criticos de torturas moraes que
Baudelaire muito finamente comprehendera, mas nunca pessoalmente
_sentira_. A sua obra era como a d'um pathologista, cujo coração bate
normal e serenamente, emquanto descreve, á banca, n'uma folha de papel,
pela erudição e observação accumuladas, as perturbações temerosas d'uma
lesão cardiaca. Tanto assim que Baudelaire compuzera primeiro em prosa
as _Flôres do Mal_--e só mais tarde, depois de rectificar a justeza das
analyses, as passára a verso, laboriosamente, com um diccionario de
rimas!... De resto em França (accrescentou o estranho homem) não havia
poetas. A genuina expressão da clara intelligencia franceza era a prosa.
Os seus mais finos conhecedores prefeririam sempre os poetas cuja poesia
se caracterisasse pela precisão, lucidez, sobriedade--que são qualidades
de prosa; e um poeta tornava-se tanto mais popular quanto mais
visivelmente possuia o genio de prosador. Boileau continuaria a ser um
classico e um immortal, quando já ninguem se lembrasse em França do
tumultuoso lyrismo de Hugo...
Dizia estas coisas enormes n'uma voz lenta, penetrante--que ia
recortando os termos com a certeza e a perfeição d'um buril. E eu
escutava, varado! Que um Boileau, um pedagogo, um lambão de côrte,
permanecesse nos cimos da Poesia Franceza, com a sua _Ode á tomada de
Namur_, a sua cabelleira e a sua ferula, quando o nome do poeta da
_Lenda dos Seculos_ fosse como um suspiro do vento que
passou--parecia-me uma d'essas affirmações, de rebuscada originalidade,
com que se procura assombrar os simples, e que eu mentalmente
classificava de _insolente_. Tinha mil coisas, abundantes e esmagadoras,
a contestar: mas não ousava, por não poder apresental-as n'aquella fórma
translucida e geometrica do poeta das Lapidarias. Essa cobardia, porém,
e o esforço para reter os protestos do meu enthusiasmo pelos Mestres da
minha mocidade, suffocava-me, enchia-me de mal-estar: e anciava só por
abalar d'aquella sala onde, com tão bolorentas opiniões classicas, tanta
rosa nas jarras e todas as molles exhalações de canella e mangerona,--se
respirava conjuntamente um ar abafadiço de Serralho e de Academia.
Ao mesmo tempo julgava humilhante ter soltado apenas, n'aquella
conversação com o familiar de Mazzini e d'Hugo, miudos reparos sobre o
Pedro Penedo e o carrascão das Camêlas. E na justa ambição de deslumbrar
Fradique com um resumo critico, provando as minhas finas letras, recorri
á phrase, á lapidada phrase, sobre a fórma do seu verso. Sorrindo,
retorcendo o buço, murmurei:--«Em todo o caso a fórma de v. exc.^a é um
marmore...» Subitamente, á porta que se abrira com estrondo, surgiu
Vidigal:
--Tudo prompto! gritou. Despachei o defunto!
O ministro, homem de poesia, e de eloquencia, interessára-se francamente
por aquella mumia d'um «collega», e jurára logo poupar-lhe o opprobrio
de ser tarifada como peixe salgado. S. exc.^a tinha mesmo
ajuntado:--«Não, senhor! não, senhor! Ha de entrar livremente, com todas
as honras devidas a um classico!» E logo de manhã Pentaour deixaria a
Alfandega, de tipoia!
Fradique riu d'aquella designação de _classico_ dada a um hierogrammata
do tempo de Ramèzes--e Vidigal, triumphante, abancando ao piano, entoou
com ardor a _Grã-Duqueza_. Então eu, tomado estranhamente, sem razão,
por um sentimento de inferioridade e de melancolia, estendi a mão para o
chapéo. Fradique não me reteve; mas os dois passos com que me acompanhou
no corredor, o seu sorriso e o seu _shake-hands_, foram perfeitos.
Apenas na rua, desabafei:--«Que pedante!»
Sim, mas inteiramente _novo_, dessemelhante de todos os homens que eu
até ahi conhecera! E á noite, na travessa do Guarda-Mór (occultando a
escandalosa apologia de Boileau, para nada d'elle mostrar imperfeito),
espantei J. Teixeira d'Azevedo com _um_ Fradique idealisado, em que tudo
era irresistivel, as idéas, o verbo, a cabaia de sêda, a face marmorea
de Lucrecio moço, o perfume que esparzia, a graça, a erudição e o gosto!
J. Teixeira d'Azevedo tinha o enthusiasmo difficil e lento em fumegar. O
homem deu-lhe apenas a impressão de ser postiço e theatral. Concordou no
emtanto que convinha ir estudar «um machinismo de _pose_ montado com
tanto luxo»!
Fomos ambos ao Central, dias depois, no fundo d'uma tipoia. Eu,
engravatado em setim, de gardenia ao peito. J. Teixeira d'Azevedo,
caracterisado de «Diogenes do seculo XIX», com um pavoroso cacete
ponteado de ferro, chapéo braguez orlado de sêbo, jaquetão encardido e
remendado que lhe emprestára o creado, e grossos tamancos ruraes!...
Tudo isto arranjado com trabalho, com despeza, com intenso nojo, só para
horrorisar Fradique--e diante d'esse homem de sceptismo e de luxo,
altivamente affirmar, como democrata e como idealista, a grandeza moral
do remendo e a philosophica austeridade da nodoa! Eramos assim em 1867!
Tudo perdido! Perdida a minha gardenia, perdida a immundicie estoica do
meu camarada! O snr. Fradique Mendes (disse o porteiro) partira na
vespera n'um vapor que ia buscar bois a Marrocos.


III

Alguns annos passaram. Trabalhei, viajei. Melhor fui conhecendo os
homens e a realidade das coisas, perdi a idolatria da Fórma, não tornei
a lêr Baudelaire. Marcos Vidigal, que, através da _Revolução de
Setembro_, trepára da Chronica Musical á Administração Civil, governava
a India como Secretario Geral, de novo entregue, n'esses ocios asiaticos
que lhe fazia o Estado, á _Historia da Musica_ e á concertina: e levado
assim esse grato amigo do Tejo para o Mandovi eu não soubera mais do
poeta das Lapidarias. Nunca porém se me apagára a lembrança do homem
singular. Antes por vezes me succedia de repente _vêr_, claramente
_vêr_, n'um relevo quasi tangivel--a face eburnea e fresca, os olhos côr
de tabaco insistentes e verrumando, o sorriso sinuoso e sceptico onde
viviam vinte seculos de litteratura.
Em 1871 percorri o Egypto. Uma occasião, em Memphis, ou no sitio em que
foi Memphis, navegava nas margens inundadas do Nilo, por entre
palmeiraes que emergiam da agua, e reproduziam sobre um fundo radiante
de luar oriental, o recolhimento e a solemnidade triste de longas
arcarias de claustros. Era uma solidão, um vasto silencio de terra
morta, apenas dôcemente quebrado pela cadencia dos remos e pelo canto
dolente do arraes... E eis que subitamente (sem que recordação alguma
evocasse até esta imagem)--_vejo_, nitidamente _vejo_, avançando com o
barco, e com elle cortando as faxas de luz e sombra, o quarto do Hotel
Central, o grande divan de côres estridentes, e Fradique, na sua cabaia
de sêda, celebrando por entre o fumo da cigarette a immortalidade de
Boileau! E eu mesmo já não estava no Oriente, nem em Memphis, sobre as
immoveis aguas do Nilo; mas lá, entre o reps azul, sob o lustre embuçado
em tulle, diante das duas janellas que miravam o Tejo, sentindo em baixo
as carroças de ferragens rolarem para o Arsenal. Perdera porém o
acanhamento que então me enleava. E, durante o tempo que assim remámos
n'esta decoração pharaonica para a morada do Sheik de Abou-Kair, fui
argumentando com o poeta das Lapidarias, e enunciando emfim, na defeza
de Hugo e Baudelaire, as coisas finas e tremendas com que o devia ter
emmudecido n'aquella tarde de agosto! O arraes cantava os vergeis de
Damasco. Eu berrava mentalmente:--«Mas veja v. exc.^a nos _Miseraveis_ a
alta lição moral...»
Ao outro dia, que era o da festa do Beiram, recolhi ao Cairo pela hora
mais quente; quando os _muezzins_ cantam a terceira oração. E ao apear
do meu burro, diante do Hotel Sheperd, nos jardins do Ezbekieh, quem hei
de eu avistar? Que homem, d'entre todos os homens, avistei eu no
terraço, estendido n'uma comprida cadeira de vime, com as mãos cruzadas
por traz da nuca, o _Times_ esquecido sobre os joelhos, embebendo-se
todo de calor e de luz? Fradique Mendes.
Galguei os degraus do terraço, lançando o nome de Fradique, por entre um
riso de transbordante prazer. Sem desarranjar a sua beatitude, elle
descruzou apenas um braço que me estendeu com lentidão. O encanto do seu
acolhimento esteve na facilidade com que me reconheceu, sob as minhas
lunetas azues, e o meu vasto chapéo panamá:
--«Então como vai desde o Hotel Central?... Ha quanto tempo pelo Cairo?»
Teve ainda outras palavras indolentes e affaveis. N'um banco ao seu
lado, todo eu sorria, limpando o pó que me empastára a face com uma
espessura de mascara. Durante o curto e dôce momento que alli
conversámos, soube que Fradique chegára havia uma semana de Suez, vindo
das margens do Euphrates e da Persia, por onde errára, como nos contos
de fadas, um anno inteiro e um dia; que tinha um _debarieh_, com o lindo
nome de _Rosa das Aguas_, já tripulado e amarrado á sua espera no caes
de Boulak; e que ia n'elle subir o Nilo até ao Alto Egypto, até á Nubia,
ainda para além de Ibsambul...
Todo o sol do Mar Vermelho e das planicies do Euphrates não lhe tostára
a pelle lactea. Trazia, exactamente como no Hotel Central, uma larga
quinzena preta e um collete branco fechado por botões de coral. E o laço
da gravata de setim negro representava bem, n'aquella terra de roupagens
soltas e rutilantes, a precisão formalista das idéas occidentaes.
Perguntou-me pela pachorrenta Lisboa, por Vidigal que burocratisava
entre os palmares brahmanicos... Depois, como eu continuava a esfregar o
suor e o pó, aconselhou que me purificasse n'um banho turco, na piscina
que fica ao pé da Mesquita de El-Monyed, e que repousasse toda a tarde,
para percorrermos á noite as illuminações do Beiram.
Mas em logar de descançar, depois do banho lustral, tentei ainda, ao
trote dôce de um burro, através da poeira quente do deserto libyco,
visitar fóra do Cairo as sepulturas dos Kalifas. Quando á noite, na sala
do Sheperd, me sentei diante da sopa de «rabo de boi», a fadiga
tirára-me o animo de pasmar para outras maravilhas musulmanas. O que me
appetecia era o leito fresco, no meu quarto forrado de esteiras, onde
tão romanticamente se ouviam cantar no jardim as fontes entre os rosaes.
Fradique Mendes já estava jantando, n'uma mesa onde flammejava, entre as
luzes, um ramo enorme de cactos. Ao seu lado pousava de leve, sobre um
escabello mourisco, uma senhora, vestida de branco, a quem eu só via a
massa esplendida dos cabellos louros, e as costas, perfeitas e
graciosas, como as d'uma estatua de Praxiteles que usasse um collete de
Madame Marcel; defronte, n'uma cadeira de braços, alastrava-se um homem
gordo e molle, cuja vasta face, de barbas encaracoladas, cheia de força
tranquilla como a de um Jupiter, eu já decerto encontrára algures, ou
viva ou em marmore. E cahi logo n'esta preoccupação. Em que rua, em que
museu admirára eu já aquelle rosto olympico, onde apenas a fadiga do
olhar, sob as palpebras pesadas, trahia a argilla mortal?
Terminei por perguntar ao negro de Seneh que servia o macarrão. O
selvagem escancarou um riso de faiscante alvura no ebano do carão
redondo, e, através da mesa, grunhiu com respeito:--_Cé-le-diêu_...
Justos céos! _Le Dieu!_ Intentaria o negro affirmar que aquelle homem de
barbas encaracoladas _era um Deus_--_o Deus_ especial e conhecido que
habitava o Sheperd! Fôra pois n'um altar, n'uma téla devota, que eu vira
essa face, dilatada em magestade pela absorpção perenne do incenso e da
prece? De novo interroguei o Nubio quando elle voltou erguendo nas mãos
espalmadas uma travessa que fumegava. De novo o Nubio me atirou, em
syllabas claras, bem feridas, dissipando toda a incerteza--_C'est le
Dieu!_
Era um Deus! Sorri a esta idéa de litteratura--um Deus de rabona,
jantando á mesa do Hotel Sheperd. E, pouco a pouco, da minha imaginação
esfalfada foi-se evolando não sei que sonho, esparso e tenue, como o
fumo que se eleva de uma brazeira meio apagada. Era sobre o Olympo, e os
velhos Deuses, e aquelle amigo de Fradique que se parecia com Jupiter.
Os Deuses (scismava eu, colhendo garfadas lentas da salada de tomates)
não tinham talvez morrido: e desde a chegada de S. Paulo á Grecia,
viviam refugiados n'um valle da Laconia, outra vez entregues, nos ocios
que lhes impozera o Deus novo, ás suas occupações primordiaes de
lavradores e pastores. Sómente, já pelo habito que os Deuses nunca
perderam de imitar os homens, já para escapar aos ultrajes d'uma
Christandade pudibunda, os olympicos abafavam sob saias e jaquetões o
esplendor das nudezas que a Antiguidade adorára: e como tomavam outros
costumes humanos, ora por necessidade (cada dia se torna mais difficil
ser Deus), ora por curiosidade (cada dia se torna mais divertido ser
Homem), os Deuses iam lentamente consummando a sua humanisação. Já por
vezes deixavam a doçura do seu valle bucolico; e com bahús, com saccos
de tapete, viajavam por distracção ou negocios, folheando os _Guias
Bedecker_. Uns iam estudar nas cidades, entre a Civilisação, as
maravilhas da Imprensa, do Parlamentarismo e do Gaz; outros,
aconselhados pelo erudito Hermes, cortavam a monotonia dos longos estios
da Attica bebendo as aguas em Vichy ou em Carlsbad: outros ainda, na
saudade imperecivel das omnipotencias passadas, peregrinavam até ás
ruinas dos templos onde outr'ora lhes era offertado o mel e o sangue das
rezes. Assim se tornava verosimil que aquelle homem, cuja face cheia de
magestade e força serena reproduzia as feições com que Jupiter se
revelou á Escóla d'Athenas--fosse na realidade Jupiter, o Tonante, o
Fecundador, pai inesgotavel dos Deuses, creador da Regra e da Ordem. Mas
que motivo o traria alli, vestido de flanella azul, pelo Cairo, pelo
Hotel Sheperd, comendo um macarrão que profanadoramente se prendia ás
barbas divinas por onde a ambrosia escorrera? Certamente o dôce motivo
que através da Antiguidade, em Céo e Terra, sempre inspirára os actos de
Jupiter--do frascario e femeeiro Jupiter. O que o podia arrastar ao
Cairo senão _alguma saia_, esse desejo esplendidamente insaciavel de
deusas e de mulheres que outr'ora tornava pensativas as donzellas da
Hellenia ao decorarem na Cartilha Pagã as datas em que elle batera as
azas de Cysne entre os joelhos de Leda, sacudira as pontas de touro
entre os braços d'Europa, gottejára em pingos d'ouro sobre o seio de
Danae, pulára em linguas de fogo até aos labios d'Egina, e mesmo um dia,
enojando Minerva e as damas sérias do Olympo, atravessára toda a
Macedonia com uma escada ao hombro para trepar ao alto eirado da morena
Seméle? Agora, evidentemente, viera ao Cairo passar umas férias
sentimentaes, longe da Juno molle e conjugal, com aquella viçosa mulher,
cujo busto irresistivel provinha das artes conjuntas de Praxiteles e de
Madame Marcel. E ella, quem seria ella? A côr das suas tranças, a suave
ondulação dos seus hombros, tudo indicava claramente uma d'essas
deliciosas Nymphas das Ilhas da Ionia, que outr'ora os Diaconos
Christãos expulsavam dos seus frescos regatos, para n'elles baptisar
centuriões cacheticos e comidos de dividas, ou velhas matronas com pêllo
no queixo, tropegas do incessante peregrinar aos altares de Aphrodite.
Nem elle nem ella porém podiam esconder a sua origem divina: através do
vestido de cassa o corpo da Nympha irradiava uma claridade; e,
attendendo bem, vêr-se-hia a fronte marmorea de Jupiter arfar em
cadencia, no calmo esforço de perpetuamente conceber a Regra e a Ordem.
Mas Fradique? Como se achava alli Fradique, na intimidade dos Immortaes,
bebendo com elles champagne Clicquot, ouvindo de perto a harmonia
ineffavel da palavra de Jove? Fradique era um dos derradeiros crentes do
Olympo, devotamente prostrado diante da Fórma, e transbordando de
alegria pagã. Visitára a Laconia; fallava a lingua dos Deuses; recebia
d'elles a inspiração. Nada mais consequente do que descobrir Jupiter no
Cairo, e prender-se logo ao seu serviço, como _cicerone_, nas terras
barbaras de Allah. E certamente com elle e com a Nympha da Ionia ia
Fradique subir o Nilo, na _Rosa das Aguas_, até aos derrocados templos
onde Jupiter poderia murmurar, pensativo, e indicando minas d'aras com a
ponta do guarda-sol:--«Abichei aqui muito incenso!»
Assim, através da salada de tomates, eu desenvolvia e coordenava estas
imaginações--decidido a convertel-as n'um Conto para publicar em Lisboa
na _Gazeta de Portugal_. Devia chamar-se _A derradeira campanha de
Jupiter_:--e n'elle obtinha o fundo erudito e phantasista para incrustar
todas as notas de costumes e de paizagens colhidas na minha viagem do
Egypto. Sómente, para dar ao conto um relevo de modernidade e de
realismo picante, levaria a Nympha das aguas, durante a jornada do Nilo,
a enamorar-se de Fradique e a trahir Jupiter! E eil-a aproveitando cada
recanto de palmeiral e cada sombra lançada pelos velhos pilones d'Osiris
para se pendurar do pescoço do poeta das Lapidarias, murmurar-lhe coisas
em grego mais dôces que os versos de Hesiodo, deixar-lhe nas flanellas o
seu aroma de ambrosia, e ser por todo esse valle do Nilo immensamente
_cochonne_--emquanto o Pai dos Deuses, cofiando as barbas encaracoladas,
continuaria imperturbavelmente a conceber a Ordem, supremo, augusto,
perfeito, ancestral e cornudo!
Enthusiasmado, já construia a primeira linha do Conto: «Era no Cairo,
nos jardins de Choubra, depois do jejum do Ramadan...»--quando vi
Fradique adiantar-se para mim, com a sua chavena de café na mão. Jupiter
tambem se erguera, cançadamente. Pareceu-me um Deus pesado e molle, com
um principio de obesidade, arrastando a perna tarda, bem proprio para o
ultrage que eu lhe preparava na _Gazeta de Portugal_. Ella porém tinha a
harmonia, o aroma, o andar, a irradiação d'uma Deusa!... Tão realmente
divina que resolvi logo substituir-me a Fradique no Conto, ser eu o
_cicerone_, e com os Immortaes vogar á véla e á sirga sobre o rio de
immortalidade! Junto á minha face, não á de Fradique, balbuciaria ella,
desfallecendo de paixão entre os granitos sacerdotaes de Medinet-Abou,
as coisas mais dôces da _Anthologia_! Ao menos, em sonho, realisava uma
triumphal viagem a Thebas. E faria pensar aos assignantes da _Gazeta de
Portugal_:--«O que elle por lá gozou!»
Fradique sentára-se, recebendo, de Jove e da Nympha que passavam, um
sorriso cuja doçura tambem me envolveu. Vivamente puxei a cadeira para o
poeta das Lapidarias:
--Quem é este homem? Conheço-lhe a cara...
--Naturalmente, de gravuras... É Gautier!
Gautier! Theophilo Gautier! O grande Theo! O mestre impeccavel! Outro
ardente enlevo da minha mocidade! Não me enganára pois inteiramente. Se
não era um Olympico--era pelo menos o derradeiro Pagão, conservando,
n'estes tempos de abstracta e cinzenta intellectualidade, a religião
verdadeira da Linha e da Côr! E esta intimidade de Fradique com o auctor
de _Mademoiselle de Maupin_, com o velho paladino de _Hernani_,
tornou-me logo mais precioso este compatriota que dava á nossa gasta
Patria um lustre tão original! Para saber se elle preferia aniz ou
genebra acariciei-lhe a manga com meiguice. E foi em mim um extase
ruidoso, diante da sua agudeza, quando elle me aclarou o grunhir do
negro de Seneh. O que eu tomára pelo annuncio d'uma presença divina
significava apenas--_c'est le deux!_ Gautier no hotel occupava o quarto
numero dois. E, para o barbaro, o plastico mestre do Romantismo era
apenas--_o dois!_
Contei-lhe então a minha phantasia pagã, o Conto que ia trabalhar, os
perfeitos dias de paixão que lhe destinava na viagem para a Nubia. Pedi
mesmo permissão para lhe dedicar a _Derradeira Campanha de Jupiter_.
Fradique sorriu, agradeceu. Desejaria bem (confessou elle) que essa
fosse a realidade, porque não se podia encontrar mulher de mais genuina
belleza e de mais aguda seducção do que essa Nympha das aguas, que se
chamava Jeanne Morlaix, e era comparsa dos _Delassements-Comiques_. Mas,
para seu mal, a radiosa creatura estava caninamente namorada de um
Sicard, corretor de fundos, que a trouxera ao Cairo, e que fôra n'essa
tarde, com banqueiros gregos, jantar aos jardins de Choubra...
--Em todo o caso, accrescentou o originalissimo homem, nunca esquecerei,
meu caro patricio, a sua encantadora intenção!
Descartes, zombando, creio eu, da physica Epicuriana ou atomista, falla
algures das affeiçoes produzidas pelos _Atomes crochus_, atomos
recurvos, em fórma de colchete ou d'anzol, que se engancham
invisivelmente de coração a coração, e formam essas _cadeias_,
resistentes como o bronze de Samothracia, que para sempre ligam e fundem
dois sêres, n'uma constancia vencedora da Sorte e sobrevivente á Vida.
Um qualquer _nada_ provoca esse fatal ou providencial enlaçamento
d'atomos. Por vezes um olhar, como desastradamente em Verona succedeu a
Romeu e Julieta: por vezes o impulso de duas creanças para o mesmo
fructo, n'um vergel real, como na amizade classica de Orestes e Pylades.
Ora, por esta theoria (tão satisfatoria como qualquer outra em
Psychologia affectiva), a esplendida aventura de amor, que eu tão
generosamente reservára a Fradique na _Ultima campanha de Jupiter_,
seria a causa mysteriosa e inconsciente, o _nada_ que determinou a sua
primeira sympathia para commigo, desenvolvida, solidificada depois em
seis annos de intimidade intellectual.
Muitas vezes, no decurso da nossa convivencia, Fradique alludiu
gratamente a essa minha _encantadora intenção_ de lhe atar em torno do
pescoço os braços de Jeanne Morlaix. Fôra elle captivado pela sinuosa e
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