A correspondência de Fradique Mendes - 03

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poetica homenagem que eu assim prestava ás suas seducções de homem? Não
sei.--Mas, quando nos erguemos para ir vêr as illuminações do Beiram,
Fradique Mendes, com um modo novo, aberto, quente, quasi intimo, já me
tratava por _vossê_.

As illuminações no Oriente consistem, como as do Minho, de tigellinhas
de barro e de vidro onde arde um pavio ou uma mecha d'estopa. Mas a
descomedida profusão com que se prodigalisam as tigellinhas (quando as
paga o Pachá) torna as velhas cidades meio arruinadas, que assim se
enfeitam em louvor de Allah, realmente deslumbrantes--sobretudo para um
occidental besuntado de litteratura, e inclinado a vêr por toda a parte,
reproduzidas no moderno Oriente, as muito lidas maravilhas d'essas _Mil
e uma noites_ que ninguem jámais leu.
Na celebração do Beiram (custeada pelo Khediva), as tigellinhas eram
incontaveis--e todas as linhas do Cairo, as mais quebradas e as mais
fugidias, resaltavam na escuridão, esplendidamente sublinhadas por um
risco de luz. Longas fieiras de pontos refulgentes marcavam a borda dos
eirados; as portas abriam sob ferraduras de lumes; dos toldos pendia uma
franja que faiscava; um brilho tremia, com a aragem, sobre cada folha
d'arvore; e os minaretes, que a Poesia Oriental classicamente compara
desde seculos aos braços da Terra levantados para o Céo, ostentavam,
como braços em noite de festa, um luxo de braceletes fulgindo na treva
serena. Era (lembrei eu a Fradique) como se durante todo o dia tivesse
cahido sobre a sordida cidade uma grossa poeirada d'ouro, pousando em
cada friso de _moucharabieh_ e em cada grade de varandim, e agora
rebrilhasse, com radiosa saliencia, na negrura da noite calma.
Mas, para mim, a belleza especial e nova estava na multidão festiva que
atulhava as praças e os bazares--e que Fradique, através do rumor e da
poeira, me explicava como um livro de estampas. Com quanta profundidade
e miudeza conhecia o Oriente este patricio admiravel! De todas aquellas
gentes, intensamente diversas desde a côr até ao traje--elle sabia a
raça, a historia, os costumes, o logar proprio na civilisação musalmana.
Devagar, abotoado n'um paletot de flanella, com um chicote de nervo (que
é no Egypto o emblema de Auctoridade) entalado debaixo do braço, ia
apontando, nomeando á minha curiosidade flammejante essas estranhas
figuras, que eu comparava, rindo, ás d'uma mascarada fabulosa, arranjada
por um archeologo em noite de folia erudita para reproduzir as «modas»
dos Semitas e os seus «typos» através das idades:--aqui Fellahs,
ridentes e ageis na sua longa camisa de algodão azul; além Beduinos
sombrios, movendo gravemente os pés entrapados em ligaduras, com o
pesado alfange de bainha escarlate pendurado no peito; mais longe
Abadiehs, de grenha em fórma de mêda, eriçada de longas cerdas de
porco-espinho que os corôam d'uma aureola negra... Estes, de porte
insolente; com compridos bigodes esvoaçando ao vento, armas ricas
reluzindo nas cintas de sêda, e curtos saiotes tufados e encanudados,
eram Arnautas da Macedonia; aquelles, bellas estatuas gregas esculpidas
em ebano, eram homens do Sennar; os outros, com a cabeça envolta n'um
lenço amarello cujas franjas immensas lhes faziam uma romeira de fios
d'ouro, eram cavalleiros do Hedjaz... E quantos ainda elle me fazia
distinguir e comprehender! Judeus immundos, de caracoes frisados; Coptas
togados á maneira de senadores; soldados pretos do Darfour, com fardetas
de linho ennodoadas de poeira e sangue; Ulemas de turbante verde; Persas
de mitra de feltro; mendigos de mesquita, cobertos de chagas; amanuenses
turcos, pomposos e anafados, de collete bordado a ouro... Que sei eu! Um
Carnaval rutilante, onde a cada momento passavam, sacudidos pelo trote
dos burros sobre albardas vermelhas, enormes saccos enfunados--que eram
mulheres. E toda esta turba magnifica e ruidosa se movia entre
invocações a Allah, repiques de pandeiretas, gemidos estridentes
partindo das cordas das _dourbakas_, e cantos lentos--esses cantos
arabes, d'uma voluptuosidade tão dolente e tão aspera, que Fradique
dizia passarem n'alma com uma «caricia rascante». Mas por vezes, entre o
casario decrepito e rendilhado, surgia uma frontaria branca, casa rica
de Sheik ou de Pachá, com a varanda em arcarias, por onde se avistavam
lá dentro, n'um silencio de harem, sêdas colgantes, recamos d'ouro, um
tremor de lumes no crystral dos lustres, fórmas airosas sob véos
claros... Então a multidão parava, emmudecia, e de todos os labios sahia
um grande _ah!_ languido e maravilhado.
Assim caminhavamos, quando, ao sahir do Moujik, Fradique Mendes parou,
e, muito gravemente, trocou com um moço pallido, de esplendidos olhos, o
_salam_--essa saudação oriental em que os dedos tres vezes batem a
testa, a bôca e o coração. E como eu, rindo, lhe invejava aquella
intimidade com um «homem de tunica verde e de mitra persa»:
--É um Ulema de Bagdad, disse Fradique, d'uma casta antiga,
superiormente intelligente... Uma das personalidades mais finas e mais
seductoras que encontrei na Persia!
Então, com a familiaridade que se ia entre nós accentuando, perguntei a
Fradique o que o detivera assim na Persia um anno inteiro e um dia como
nos contos de fadas. E Fradique, com toda a singeleza, confessou que se
demorára tanto nas margens do Euphrates por se achar casualmente ligado
a um movimento religioso que, desde 1849, tomava na Persia um
desenvolvimento quasi triumphal, e que se chamava o _Babismo_. Attrahido
para essa nova seita por curiosidade critica, para observar como nasce e
se funda uma Religião, chegára pouco a pouco a ganhar pelo Babismo um
interesse militante--não por admiração da doutrina, mas por veneração
dos apostolos. O Babismo (contou-me elle, seguindo por uma viella mais
solitaria e favoravel ás confidencias) tivera por iniciador certo
Mirza-Mohamed, um d'esses Messias que cada dia surgem na incessante
fermentação religiosa do Oriente, onde a religião é a occupação suprema
e querida da vida. Tendo conhecido os Evangelhos Christãos por contacto
com os Missionarios; iniciado na pura tradição mosaista pelos judeus do
Hiraz; sabedor profundo do Guebrismo, a velha religião nacional da
Persia--Mirza-Mohamed amalgamára estas doutrinas com uma concepção mais
abstracta e pura do Mahometismo, e declarára-se _Bab_. Em persa _Bab_
quer dizer _Porta_. Elle era, pois, a _porta_--a unica _porta_ através
da qual os homens poderiam jámais penetrar na absoluta Verdade. Mais
litteralmente, Mirza-Mohamed apresentava-se como o grande _porteiro_, o
homem eleito entre todos pelo Senhor para abrir aos crentes a porta da
Verdade--e portanto do Paraiso. Em resumo era um Messias, um Christo.
Como tal atravessou a classica evolução dos Messias: teve por primeiros
discipulos, n'uma aldeia obscura, pastores e mulheres: soffreu a sua
tentação na montanha: cumpriu as penitencias expiadoras: prégou
parabolas: escandalisou em Méca os doutores: e padeceu a sua Paixão,
morrendo, não me lembro se degolado, se fuzilado, depois do jejum do
Rhamadan, em Tabriz.
Ora, dizia Fradique, no mundo musulmano ha duas divisões religiosas--os
Sieds e os Sunis. Os Persas são Sieds, como os Turcos são Sunis. Estas
differenças porém, no fundo, têm um caracter mais politico e de raça, do
que theologico e de dogma; ainda que um fellah do Nilo desprezará sempre
um persa do Euphrates como _heretico_ e _sujo_. A discordancia resalta,
mais viva e teimosa, logo que Sieds ou Sunis necessitem pronunciar-se
perante uma nova interpretação de doutrina ou uma nova apparição de
propheta. Assim o Babismo entre os Sieds, topára com uma hostilidade que
se avivou até á perseguição:--a isto desde logo indicava que seria
acolhido pelos Sunis com deferencia e sympathia.
Partindo d'esta idéa, Fradique, que em Bagdad se ligára familiarmente
com um dos mais vigorosos e auctorisados apostolos do Babismo,
Said-El-Souriz (a quem salvára o filho d'uma febre paludosa com
applicações de _Fruit-salt_), suggerira-lhe um dia, conversando ambos no
eirado sobre estes altos interesses espirituaes, a idéa de apoiar o
Babismo nas raças agricolas do valle do Nilo e nas raças nómadas da
Libya. Entre homens de seita Suni, o Babismo encontraria um campo facil
ás conversões; e, pela tradicional marcha dos movimentos sectarios, que
no Oriente, como em toda a parte, sobem das massas sinceras do povo até
ás classes cultas, talvez essa nova onda de emoção religiosa, partindo
dos Fellahs e dos Beduinos, chegasse a penetrar no ensino de alguma das
mesquitas do Cairo, sobretudo na mesquita de El-Azhar, a grande
Universidade do Oriente, onde os ulemas mais moços formam uma cohorte de
enthusiastas sempre disposta ás innovações e aos apostolados
combattentes. Ganhando ahi auctoridade theologica, e litterariamente
polido, o Babismo poderia então atacar com vantagem as velhas fortalezas
do Musulmanismo dogmatico. Esta idéa penetrára profundamente em
Said-El-Souriz. Aquelle moço pallido, com quem elle trocára o _salam_,
fôra logo mandado como emissario babista a Medinet-Abou (a antiga
Thebas), para sondar o Sheik Ali-Hussein, homem de decisiva influencia
em todo o valle do Nilo pelo seu saber e pela sua virtude: e elle,
Fradique, não tendo agora no Occidente occupações attractivas, cheio de
curiosidade por este pittoresco Advento, partia tambem para Thebas,
devendo encontrar-se com o babista, á lua mingoante, em Beni-Soueff, no
Nilo...
Não recordo, depois de tantos annos, se estes eram os factos certos. Só
sei que as revelações de Fradique, lançadas assim através do Cairo em
festa, me impressionaram indizivelmente. Á medida que elle fallava do
Bab, d'essa missão apostolica ao velho Sheik de Thebas, de uma outra fé
surgindo no mundo musulmano com o seu cortejo de martyrios e d'extasis,
da possivel fundação de um imperio Babista--o homem tomava aos meus
olhos proporções grandiosas. Não conhecera jámais ninguem envolvido em
coisas tão altas: e sentia-me ao mesmo tempo orgulhoso e aterrado de
receber este segredo sublime. Outra não seria minha commoção, se, nas
vesperas de S. Paulo embarcar para a Grecia, a levar a Palavra aos
gentilicos, eu tivesse com elle passeado pelas ruas estreitas de
Seleucia, ouvindo-lhe as esperanças e os sonhos!
Assim conversando, penetrámos no adro da mesquita de El-Azhar onde mais
fulgurante e estridente tumultuava a festa do Beiram. Mas já não me
prendiam as surprezas d'aquelle arraial musulmano--nem _almées_ dançando
entre brilhos de vermelho e d'ouro; nem poetas do deserto recitando as
façanhas d'Antar; nem Derviches, sob as suas tendas de linho, uivando em
cadencia os louvores d'Allah... Calado, invadido pelo pensamento do Bab,
revolvia commigo o confuso desejo de me aventurar n'essa campanha
espiritual! Se eu partisse para Thebas com Fradique?... Porque não?
Tinha a mocidade, tinha o enthusiasmo. Mais viril e nobre seria encetar
no Oriente uma carreira de evangelista, que banalmente recolher á banal
Lisboa, a escrevinhar tiras de papel, sob um bico de gaz, na _Gazeta de
Portugal_! E pouco a pouco d'este desejo, como d'uma agua que ferve, ia
subindo o vapor lento d'uma visão. Via-me discipulo do Bab--recebendo
n'essa noite, do ulema de Bagdad, a iniciação da Verdade. E partia logo
a prégar, a espalhar o verbo babista. Onde iria? A Portugal certamente,
levando de preferencia a salvação ás almas que me eram mais caras. Como
S. Paulo, embarcava n'uma galera: as tormentas assaltavam a minha prôa
apostolica: a imagem do Bab apparecia-me sobre as aguas, e o seu sereno
olhar enchia minha alma de fortaleza indomavel. Um dia, por fim,
avistava terra, e na manhã clara sulcava o claro Tejo, onde ha tantos
seculos não entra um enviado de Deus. Logo de longe lançava uma injuria
ás igrejas de Lisboa, construcções d'uma Fé vetusta e menos pura.
Desembarcava. E, abandonando as minhas bagagens, n'um desprendimento já
divino de bens ainda terrestres, galgava aquella bemdita rua do Alecrim,
e em meio do Loreto, á hora em que os Directores Geraes sobem devagar da
Arcada, abria os braços e bradava:--«Eu sou a _Porta_!»
Não mergulhei no Apostolado babista--mas succedeu que, enlevado n'estas
phantasmagorias, me perdi de Fradique. E não sabia o caminho do Hotel
Sheperd,--nem, para d'elle me informar, outros termos uteis, em arabe,
além de _agua_ e _amor_! Foram angustiosos momentos em que farejei
estonteado pelo largo de El-Azhar, tropeçando nos fogareiros onde fervia
o café, esbarrando inconsideradamente contra rudes beduinos armados. Já
por sobre a turba atirava, aos brados, o nome de Fradique--quando topei
com elle olhando placidamente uma _almée_ que dançava...
Mas seguiu logo, encolhendo os hombros. Nem me permittiu adiante admirar
um poeta, que, em meio de fellahs pasmados e de Moghrebinos arrimados ás
lanças, lia, n'uma toada langorosa e triste, tiras de papel ensebado. A
Dança e a Poesia, affirmava Fradique, as duas grandes artes orientaes,
iam em miserrima decadencia. N'uma e outra se tinham perdido as
tradições do estylo puro. As _almées_, pervertidas pela influencia dos
casinos do Ezbequieh onde se perneia o can-can--já polluiam a graça das
velhas danças arabes, atirando a perna pelos ares á moda vil de
Marselha! E na Poesia triumphava a mesma banalidade, mesclada de
extravagancia. As fórmas delicadas do classicismo persa nem se
respeitavam, nem quasi se conheciam; a fonte da imaginação seccava entre
os musulmanos; e a pobre Poesia Oriental, tratando themas vetustos com
uma emphase preciosa, descambára, como a nossa, n'um _Parnasianismo_
barbaro...
--De sorte, murmurei, que o Oriente...
--Está tão mediocre como o Occidente.
E recolhemos ao hotel, devagar, emquanto Fradique, findando o charuto,
me contava que o espirito oriental, hoje, vive só da actividade
philosophica, agitado cada manhã por uma nova e complicada concepção da
Moral, que lhe offerecem os Logicos dos bazares e os Metaphysicos do
deserto...
Ao outro dia acompanhei Fradique a Boulak, onde elle ia embarcar para o
Alto Egypto. O seu _debarieh_ esperava, amarrado á estacaria, rente das
casas do Velho Cairo, entre barcas d'Assouan, carregadas de lentilha e
de cana dôce. O sol mergulhava nas areias libycas: e ao alto, o céo
adormecia, sem uma sombra, sem uma nuvem, puro em toda a sua
profundidade como a alma d'um justo. Uma fila de mulheres coptas, com o
cantaro amarello pousado no hombro, descia cantando para a agua do Nilo,
bemdita entre todas as aguas. E os ibis, antes de recolher aos ninhos,
vinham, como no tempo em que eram Deuses, lançar por sobre os eirados,
com um bater d'azas contentes, a benção crepuscular.
Baixei, atraz de Fradique, ao salão do _debarieh_, envidraçado,
estofado, com armas penduradas para as manhãs de caça, e rumas de livros
para as séstas de estudo e de calma quando lentamente se navega á sirga.
Depois, durante momentos, no convés, contemplámos silenciosamente
aquellas margens que, através das compridas idades, têm feito o enlevo
de todos os homens, por todos sentirem que n'ellas a vida é cheia de
bens maiores e de doçura suprema. Quantos, desde os rudes Pastores que
arrazaram Thanis, aqui pararam como nós, alongando para estas aguas,
para estes céos, olhos cobiçosos, extaticos ou saudosos: Reis de Judá,
Reis de Assyria, Reis da Persia; os Ptolomeus magnificos; Prefeitos de
Roma e Prefeitos de Byzancio; Amrou enviado de Mahomet, S. Luiz enviado
de Christo; Alexandre-o-Grande sonhando o imperio do Oriente, Bonaparte
retomando o immenso sonho; e ainda os que vieram só para contar da terra
adoravel, desde o loquaz Herodoto até ao primeiro Romantico, o homem
pallido de grande _pose_ que disse as dôres de «Réné»! Bem conhecida é
ella, a paizagem divina e sem igual. O Nilo corre, paternal e fecundo.
Para além verdejam, sob o vôo das pombas, os jardins e os pomares de
Rhodah. Mais longe as palmeiras de Giseh, finas e como de bronze sobre o
ouro da tarde, abrigam aldeias que têm a simplicidade de ninhos. Á orla
do deserto, erguem-se, no orgulho da sua eternidade, as tres Pyramides.
Apenas isto--e para sempre a alma fica presa e lembrando, e para viver
n'esta suavidade e n'esta belleza os povos travam entre si longas
guerras.
Mas a hora chegára: abracei Fradique com singular emoção. A vela fôra
içada á briza suave que arripiava a folhagem das mimosas. Á prôa o
arraes, espalmando as mãos para o céo, clamou:--«Em nome de Allah que
nos leve, clemente e misericordioso!» Ao redor, d'outras barcas, vozes
lentas murmuraram:--«Em nome de Allah que vos leve!» Um dos remadores,
sentado á borda, feriu as cordas da _dourbaka_, outro tomou uma flauta
de barro. E entre bençãos e cantos a vasta barca fendeu as aguas
sagradas, levando para Thebas o meu incomparavel amigo.


III

Durante annos não tornei a encontrar Fradique Mendes, que concentrára as
suas jornadas dentro da Europa Occidental--emquanto eu errava pela
America, pelas Antilhas, pelas republicas do golfo do Mexico. E quando a
minha vida emfim se aquietou n'um velho condado rural de Inglaterra,
Fradique, retomado por essa «bisbilhotice ethnographica» a que elle
allude n'uma carta a Oliveira Martins, começava a sua longa viagem ao
Brazil, aos Pampas, ao Chili e á Patagonia.
Mas o fio de sympathia, que nos unira no Cairo, não se partiu; nem nós,
apesar de tão tenue, o deixámos perder por entre os interesses mais
fortes das nossas fortunas desencontradas. Quasi todos os tres mezes
trocavamos uma carta--cinco ou seis folhas de papel que eu
tumultuosamente atulhava de imagens e impressões, e que Fradique
miudamente enchia de idéas e de factos. Além d'isto, eu sabia de
Fradique por alguns dos meus camaradas, com quem, durante uma residencia
mais intima em Lisboa, do outono de 1875 ao verão de 1876, elle creára
amizades onde todos encontraram proveito intellectual e encanto.
Todos, apesar das dissimilhanças de temperamentos ou das maneiras
differentes de conceber a vida--tinham como eu sentido a seducção
d'aquelle homem adoravel. D'elle me escrevia em novembro de 1877 o
auctor do _Portugal Contemporaneo_:--«Cá encontrei o teu Fradique, que
considero o portuguez mais interessante do seculo XIX. Tem curiosas
parecenças com Descartes! É a mesma paixão das viagens, que levava o
philosopho a fechar os livros «para estudar o grande livro do Mundo»; a
mesma attracção pelo luxo e pelo ruido, que em Descartes se traduzia
pelo gosto de frequentar as «côrtes e os exercitos»; o mesmo amor do
mystério, e das subitas desapparições; a mesma vaidade, nunca
confessada, mas intensa, do nascimento e da fidalguia; a mesma coragem
serena; a mesma singular mistura de instinctos romanescos e de razão
exacta, de phantasia e de geometria. Com tudo isto falta-lhe na vida um
fim sério e supremo, que estas qualidades, em si excellentes
concorressem a realisar. E receio que em logar do _Discurso sobre o
Methodo_ venha só a deixar um _vaudeville_». Ramalho Ortigão, pouco
tempo depois, dizia d'elle n'uma carta carinhosa:--«Fradique Mendes é o
mais completo, mais acabado producto da civilisação em que me tem sido
dado embeber os olhos. Ninguem está mais superiormente apetrechado para
triumphar na Arte e na Vida. A rosa da sua botoeira é sempre a mais
fresca, como a idéa do seu espirito é sempre a mais original. Marcha
cinco leguas sem parar, bate ao remo os melhores remadores de Oxford,
mette-se sósinho ao deserto a caçar o tigre, arremette com um chicote na
mão contra um troço de lanças abyssinias:--e á noite n'uma sala, com a
sua casaca do Cook, uma perola negra no esplendor do peitilho, sorri ás
mulheres com o encanto e o prestigio com que sorrira á fadiga, ao perigo
e á morte. Faz armas como o cavalleiro de Saint-Georges, e possue as
noções mais novas e as mais certas sobre Physica, sobre Astronomia,
sobre Philologia e sobre Metaphysica. É um ensino, uma lição de alto
gosto, vêl-o no seu quarto, na vida intima de _gentleman_ em viagem,
entre as suas malas de couro da Russia, as grandes escovas de prata
lavrada, as cabaias de sêda, as carabinas de Winchester, preparando-se,
escolhendo um perfume, bebendo golos de chá que lhe manda o Gran-Duque
Vladimir, e dictando a um creado de calção, mais veneravelmente correcto
que um mordomo de Luiz XIV, telegrammas que vão levar noticias suas aos
_boudoirs_ de Paris e de Londres. E depois de tudo isto fecha a sua
porta ao mundo--e lê Sophocles no original».
O poeta da _Morte de D. João_ e da _Musa em Ferias_ chamava-lhe «um
Sainte-Beuve encadernado em Alcides». E explicava assim, n'uma carta
d'esse tempo que conservo, a sua apparição no mundo: «Deus um dia
agarrou n'um bocado de Henri Heine, n'outro de Chateaubriand, n'outro de
Brummel, em pedaços ardentes d'aventureiros da Renascença, e em
fragmentos resequidos de sabios do Instituto de França, entornou-lhe por
cima _champagne_ e tinta de imprensa, amassou tudo nas suas mãos
omnipotentes, modelou á pressa Fradique, e arrojando-o á Terra disse:
Vai, e veste-te no Poole!» Emfim Carlos Mayer, lamentando como Oliveira
Martins que ás multiplas e fortes aptidões de Fradique faltasse
coordenação e convergencia para um fim superior, deu um dia sobre a
personalidade do meu amigo um resumo sagaz e profundo: «O cerebro de
Fradique está admiravelmente construido e mobilado. Só lhe falta uma
idéa que o alugue, para vivar e governar lá dentro. Fradique é um genio
com escriptos!»
Tambem Fradique, n'esse inverno, conheceu o pensador das _Odes
Modernas_, de quem, n'uma das suas cartas a Oliveira Martins, falla com
tanta elevação e carinho. E o ultimo companheiro da minha mocidade que
se relacionou com o antigo poeta das Lapidarias foi J. Teixeira
d'Azevedo, no verão de 1877, em Cintra, na quinta da _Saragoça_, onde
Fradique viera repousar da sua jornada ao Brazil e ás republicas do
Pacifico. Tinham ahi conversado muito, e divergido sempre. J. Teixeira
d'Azevedo, sendo um nervoso e um apaixonado, sentia uma insuperavel
antipathia pelo que elle chamava o _lymphatismo critico_ de Fradique.
Homem todo de emoção não se podia fundir intellectualmenle com aquelle
homem todo de analyse. O extenso saber de Fradique tambem não o
impressionava. «As noções d'esse guapo erudito (escrevia elle em 1879)
são bocados do Larousse diluidos em agua de Colonia». E emfim certos
requintes de Fradique (escovas de prata e camisas de sêda), a sua voz
mordente recortando o verbo com perfeição e preciosidade, o seu habito
de beber champagne com _soda-water_, outros traços ainda, causavam uma
irritação quasi physica ao meu velho camarada da Travessa do Guarda-Mór.
Confessava porém, como Oliveira Martins, que Fradique era o portuguez
mais interessante e mais suggestivo do seculo XIX. E correspondia-se
regularmente com elle--mas para o contradizer com acrimonia.
Em 1880 (nove annos depois da minha peregrinação no Oriente), passei em
Paris a semana da Paschoa. Uma noite, depois da Opera, fui cear
solitariamente ao Bignon. Tinha encetado as ostras e uma chronica do
_Temps_, quando por traz do jornal que eu encostára á garrafa assomou
uma larga mancha clara, que era um collete, um peitilho, uma gravata,
uma face, tudo de incomparavel brancura. E uma voz muito serena
murmurou: «Separámo-nos ha annos no caes de Boulak...» Ergui-me com um
grito, Fradique com um sorriso;--e o _maitre-d'hotel_ recuou assombrado
diante da meridional e ruidosa effusão do meu abraço. D'essa noite em
Paris datou verdadeiramente a nossa intimidade intellectual--que em oito
annos, sempre igual e sempre certa, não teve uma intermissão, nem uma
sombra que lhe toldasse a pureza.
Determinadamente lhe chamo _intellectual_, porque esta intimidade nunca
passou além das coisas do espirito. Nas alegres temporadas que com elle
convivi em Paris, em Londres e em Lisboa, de 1880 a 1887, na nossa
copiosa correspondencia d'esses annos privei sempre, sem reserva, com a
intelligencia de Fradique--e interrompidamente assisti e me misturei á
sua vida pensante: nunca porém penetrei na sua vida affectiva de
sentimento e de coração. Nem, na verdade, me atormentou a curiosidade de
a conhecer--talvez por sentir que a rara originalidade de Fradiqoe se
concentrava toda no sêr pensante, e que o outro, o sêr sensivel, feito
da banal argilla humana, repetia sem especial relevo as costumadas
fragilidades da argilla. De resto, desde essa noite de Paschoa em Paris
que iniciou as nossas relações, nós conservámos sempre o habito
especial, um pouco altivo, talvez estreito, de nos considerarmos dois
puros espiritos. Se eu então concebesse uma Philosophia original, ou
preparasse os mandamentos d'uma nova Religião, ou surripiasse á Natureza
distrahida uma das suas secretas Leis--de preferencia escolheria
Fradique como confidente d'esta actividade espiritual; mas nunca, na
ordem do Sentimento, iria a elle com a confidencia d'uma esperança ou
d'uma desillusão. E Fradique igualmente manteve commigo esta attitude de
inaccessivel recato--não se manifestando nunca aos meus olhos senão na
sua funcção intellectual.
Muito bem me lembro eu d'uma resplandecente manhã de maio em que
atravessavamos, conversando por sob os castanheiros em flôr, o jardim
das Tulherias. Fradique, que se encostára ao meu braço, vinha
vagarosamente desenvolvendo a idéa de que a extrema democratisação da
Sciencia, o seu universal e illimitado derramamento através das plebes,
era o grande erro da nossa civilisação, que com elle preparava para bem
cedo a sua catastrophe moral... De repente, ao transpôrmos a grade para
a praça da Concordia, o Philosopho que assim lançava, por entre as
tenras verduras de maio, estas predicções de desastre e de fim--estaca,
emmudece! Diante de nós, ao trote fino d'uma egoa de luxo, passára
vivamente, para os lados da rua Royale, um coupé onde entrevi, na
penumbra dos setins que o forravam, uns cabellos côr de mel. Vivamente
tambem, Fradique sacode o meu braço, balbucia um «adeus!», acena a um
fiacre, e desapparece ao galope arquejante da pileca para os lados do
cães d'Orsay. «Mulher!», pensei eu. Era, com effeito, a mulher e o seu
tormento; e como se deprehende d'uma carta a Madame de Jouarre (datada
de «Maio, sabbado», e começando: «Hontem philosophava com um amigo no
jardim das Tulherias...») Fradique corria n'esse fiacre a uma desillusão
bem rude e mortificante. Ora n'essa tarde, ao crepusculo, fui (como
combinára) buscar Fradique á rua de Varennes, ao velho palacio dos
Tredennes, onde elle installára desde o Natal os seus aposentos com um
luxo tão nobre e tão sobrio. Apenas entrei na sala que denominavamos a
«Heroica», porque a revestiam quatro tapeçarias de Luca Cornelio
contando os _Trabalhos de Hercules_, Fradique deixa a janella d'onde
olhava o jardim já esbatido em sombra, vem para mim serenamente, com as
mãos enterradas nos bolsos d'uma quinzena de sêda. E, como se desde essa
manhã _nenhum outro_ cuidado o absorvesse senão o seu thema do jardim
das Tulherias:
--Não lhe acabei de dizer ha pouco... A Sciencia, meu caro, tem de ser
recolhida como outr'ora aos Santuarios. Não ha outro meio de nos salvar
da anarchia moral. Tem de ser recolhida aos Santuarios, e entregue a um
sacro collegio intellectual que a guarde, que a defenda contra as
curiosidades das plebes... Ha a fazer com esta idéa um programma para as
gerações novas!
Talvez na face, se eu tivesse reparado, encontrasse restos de pallidez e
de emoção: mas o tom era simples, firme, d'um critico genuinamente
occupado na deducção do seu conceito. Outro homem que, como aquelle,
tivesse soffrido horas antes uma desillusão tão mortificante e rude,
murmuraria ao menos, n'um desafogo generico e impessoal:--«Ah, amigo,
que estupida é a vida!» Elle fallou da Sciencia e das
Plebes,--desenrolando determinadamente diante de mim, ou impondo talvez
a si mesmo, os raciocinios do seu cerebro, para que os meus olhos não
penetrassem de leve, ou os seus não se detivessem demais, nas amarguras
do seu coração.
N'uma carta a Oliveira Martins, de 1883, Fradique diz:--«O homem, como
os antigos reis do Oriente, não se deve mostrar aos seus semelhantes
senão unica e serenamente _occupado no officio de reinar--isto é, de
pensar_». Esta regra, d'um orgulho apenas permissivel a um Spinosa ou a
um Kant, dirigia severamente a sua conducta. Pelo menos commigo assim se
comportou immutavelmente, através da nossa activa convivencia, não se
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