A correspondência de Fradique Mendes - 04

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abrindo, não se offerecendo todo, senão nas funcções da Intelligencia.
Por isso talvez, mais que nenhum outro homem, elle exerceu sobre mim
imperio e seducção.


IV

O que impressionava logo na Intelligencia de Fradique, ou antes na sua
maneira de se exercer, era a suprema liberdade junta á suprema audacia.
Não conheci jámais espirito tão impermeavel á tyrannia ou á insinuação
das «idéas feitas»: e decerto nunca um homem traduziu o seu pensar
original e proprio com mais calmo e soberbo desassombro. «Apesar de
trinta seculos de geometria me affirmarem (diz elle n'uma carta a J.
Teixeira d'Azevedo) que _a linha recta é a mais curta distancia entre
dois pontos_, se eu achasse que, para subir da porta do Hotel Universal
á porta da Casa Havaneza, me sahia mais directo e breve rodear pelo
bairro de S. Martinho e pelos altos da Graça, declararia logo á secular
geometria--que a distancia mais curta entre dois pontos é uma _curva_
vadia e delirante!». Esta independencia da Razão, que Fradique assim
apregôa com desordenada Phantasia, constitue uma qualidade rara:--mas o
animo de a affirmar intemeratamente diante da magestosa Tradição, da
Regra, e das conclusões oraculares dos Mestres, é já uma virtude, e
rarissima, de radiosa excepção!
Fradique (n'outra carta a J. Teixeira d'Azevedo) falla d'um polaco, G.
Cornuski, professor e critico, que escrevia na _Revista Suissa_, e que
(diz Fradique) «constantemente sentia o seu gosto, muito pessoal e muito
decidido, rebellar-se contra obras de Litteratura e de Arte que a
unanimidade critica, desde seculos, tem consagrado como magistraes--a
_Gerusalemme Liberata_ do Tasso, as telas do Ticiano, as tragedias de
Racine, as orações de Bossuet, os nossos _Lusiadas_, e outros monumentos
canonizados. Mas, sempre que a sua probidade de Professor e de Critico
lhe impunha a proclamação da verdade, este homem robusto, sanguineo, que
heroicamente se batera em duas insurreições, tremia, pensava:--«Não!
Porque será o meu criterio mais seguro que o de tão finos entendimentos
através dos tempos? Quem sabe? Talvez n'essas obras exista a
sublimidade--e só no meu espirito a impotencia de a comprehender». E o
desgraçado Cornuski, com a alma mais triste que um crepusculo d'outono,
continuava, diante dos córos da _Athalie_ e das nudezes do Ticiano, a
murmurar desconsoladamente:--«Como é bello!»
Raros soffrem estas angustias criticas do desditoso Cornuski. Todos
porém, com risonha inconsciencia, praticam o seu servilismo
intellectual. Já, com effeito, porque o nosso espirito não possua a
viril coragem de affrontar a auctoridade d'aquelles a quem
tradicionalmente attribue um criterio mais firme e um saber mais alto;
já porque as idéas estabelecidas, fluctuando diffusamente na nossa
memoria, depois de leituras e conversas, nos pareçam ser as nossas
proprias; já porque a suggestão d'esses conceitos se imponha e nos leve
subtilmente a concluir em concordancia com elles--a lamentavel verdade é
que hoje todos nós servilmente tendemos a pensar e sentir como antes de
nós e em torno de nós já se sentiu ou pensou.
«O homem do seculo XIX, o Europeu, porque só elle é essencialmente do
seculo XIX (diz Fradique n'uma carta a Carlos Mayer), vive dentro d'uma
pallida e morna _infecção de banalidade_, causada pelos quarenta mil
volumes que todos os annos, suando e gemendo, a Inglaterra, a França e a
Allemanha depositam ás esquinas, e em que interminavelmente e
monotonamente reproduzem, com um ou outro arrebique sobreposto, as
quatro idéas e as quatro impressões legadas pela Antiguidade e pela
Renascença. O Estado por meio das suas escólas canalisa esta infecção. A
isto, oh Carolus, se chama _educar_! A creança, desde a sua primeira
«Selecta de Leitura» ainda mal soletrada, começa a absorver esta camada
do Logar-Commum--camada que depois todos os dias, através da vida, o
Jornal, a Revista, o Folheto, o Livro lhe vão atochando no espirito até
lh'o empastarem todo em banalidade, e lh'o tornarem tão inutil para a
producção como um sólo cuja fertilidade nativa morreu sob a areia e
pedregulho de que foi barbaramente alastrado. Para que um Europeu
lograsse ainda hoje ter algumas idéas novas, de viçosa originalidade,
seria necessario que se internasse no Deserto ou nos Pampas; e ahi
esperasse pacientemente que os sopros vivos da Natureza, batendo-lhe a
Intelligencia e d'ella pouco a pouco varrendo os detritos de vinte
seculos de Litteratura, lhe refizessem uma virgindade. Por isso eu te
affirmo, oh Carolus Mayerensis, que a Intelligencia, que altivamente
pretenda readquirir a divina potencia de gerar, deve ir curar-se da
Civilisacão litteraria por meio d'uma residencia tonica, durante dois
annos, entre os Hottentotes e os Patagonios. A Patagonia opéra sobre o
Intellecto como Vichy sobre o figado--desobstruindo-o, e permittindo-lhe
o são exercicio da funcção natural. Depois de dois annos de vida
selvagem, entre o Hottentote nú movendo-se na plenitude logica do
Instincto,--que restará ao civilisado de todas as suas idéas sobre o
Progresso, a Moral, a Religião, a Industria, a Economia Politica, a
Sociedade e a Arte? Farrapos. Os pendentes farrapos que lhe restarão das
pantalonas e da quinzena que trouxe da Europa, depois de vinte mezes de
matagal e de brejo. E não possuindo em torno de si Livros e Revistas que
lhe renovem uma provisão de «idéas feitas», nem um benefico Nunes
Algibebe que lhe forneça uma outra andaina de «fato feito»--o Europeu
irá insensivelmente regressando á nobreza do estado primitivo, nudez do
corpo e originalidade da alma. Quando de lá voltar é um Adão forte e
puro, virgem de litteratura, com o craneo limpo de todos os conceitos e
todas as noções amontoadas desde Aristoteles podendo proceder
soberbamente a um exame inedito das coisas humanas. Carlos, espirito que
distillas _espiritos_, queres remergulhar nas Origens e vir commigo á
inspiradora Hottentocia? Lá, livres e nús, estirados ao sol entre a
palmeira e o regato que tutelarmente nos darão o sustento do corpo, com
a nossa lança forte cravada na relva, e mulheres ao lado vertendo-nos
n'um canto dôce a porção de poesia e de sonho que a alma
precisa--deixaremos livremente as ilhargas crestadas estalarem-nos de
riso á idéa das grandes Philosophias, e das grandes Moraes, e das
grandes Economias, e das grandes Criticas, e das grandes Pilherias que
vão por essa Europa, onde densos formigueiros de chapéos altos se
atropellam, estonteados pelas superstições da civilisação, pela illusão
do ouro, pelo pedantismo das sciencias, pelas mistificações dos
reformadores pela escravidão da rotina, e pela estupida admiração de si
mesmos!...»
Assim diz Fradique. Ora este «exame inedito das coisas humanas», só
possivel, segundo o poeta das Lapidarias, ao Adão renovado que
regressasse da Patagonia com o espirito escarolado do pó e do lixo de
longos annos de Litteratura--tentou-o elle, sem deixar os muros
classicos da rua de Varennes, com incomparavel vigor e sinceridade. E
n'isto mostrava intrepidez moral. No mundo a que irresistivelmente o
prendiam os seus gostos e os seus habitos--mundo mediano e regrado, sem
invenção e sem iniciativa intellectual, onde as Idéas, para agradar,
devem ser como as Maneiras, «geralmente adoptadas» e não individualmente
creadas--Fradique, com a sua indocil e brusca liberdade de Juizos,
affrontava o perigo de passar por um petulante rebuscador de
originalidade, avido de gloriola e de excessivo destaque. Um espirito
inventivo e novo, com uma força de pensar muito propria, deixando
transbordar a vida abundante e multipla que o anima e enche--é mais
desagradavel a esse mundo do que o homem rudemente natural que não regre
e limite dentro das «Conveniencias» a espessura da cabelleira, o
estridor das risadas, e o franco mover dos membros grossos. D'esse
espirito indisciplinado e creador, logo se murmura com desconfiança:
«Pretencioso! busca o effeito e o destaque!» Ora Fradique nada detestava
mais intensamente do que o _effeito_ e o _destaque excessivo_. Nunca lhe
conheci senão gravatas escuras. E tudo preferiria a ser apontado como um
d'esses homens, que, sem odio sincero a Diana e ao seu culto e só para
que d'elles se falle com espanto nas praças, vão, em plena festa,
agitando um grande facho, incendiar-lhe o templo em Epheso. Tudo
preferiria--menos (como elle diz n'uma carta a Madame de Jouarre) «ter
de vestir a Verdade nos armazens do Louvre para poder entrar com ella em
casa de Anna de Varle, duqueza de Varle e d'Orgemont. A entrar hei de
levar a minha amiga núa, toda núa, pisando os tapetes com os seus pés
nús, enristando para os homens as pontas fecundas dos seus nobres seios
nús. _Amicus Mundus, sed magis amica Veritas!_ Este bello latim
significa, minha madrinha, que eu, no fundo, julgo que a originalidade é
agradavel ás mulheres e só desagradavel aos homens--o que duplamente me
leva a amal-a com pertinacia».
Esta independencia, esta livre elasticidade de espirito e intensa
sinceridade--impedindo que por seducção elle se désse todo a um Systema,
onde para sempre permanecesse por inercia--eram de resto as qualidades
que melhor convinham á funcção intellectual que para Fradique se tornára
a mais continua e preferida. «Não ha em mim infelizmente (escrevia elle
a Oliveira Martins, em 1882) nem um sabio, nem um philosopho. Quero
dizer, não sou um d'esses homens seguros e uteis, destinados por
temperamento ás analyses secundarias que se chamam Sciencias, e que
consistem em reduzir uma multidão de factos esparsos a Typos e Leis
particulares por onde se explicam modalidades do Universo; nem sou
tambem um d'esses homens, fascinantes e pouco seguros, destinados por
genio ás analyses superiores que se chamam Philosophias, e que consistem
em reduzir essas Leis e esses Typos a uma formula geral por onde se
explica a essencia mesma do inteiro Universo. Não sendo pois um sabio,
nem um philosopho, não posso concorrer para o melhoramento dos meus
semelhantes--nem accrescendo-lhes o bem-estar por meio da Sciencia que é
uma productora de riqueza, nem elevando-lhes o bem-sentir por meio da
Metaphysica que é uma inspiradora de poesia. A entrada na Historia
tambem se me conserva vedada:--porque, se, para se produzir Litteratura
basta possuir talentos, para tentar a Historia convém possuir virtudes.
E eu!... Só portanto me resta ser, através das idéas e dos factos, um
homem que passa, infinitamente curioso e attento. A egoista occupação do
meu espirito hoje, caro historiador, consiste em me acercar d'uma idéa
ou d'um facto, deslizar suavemente para dentro, percorrel-o miudamente,
explorar-lhe o inedito, gozar todas as surprezas e emoções intellectuaes
que elle possa dar, recolher com cuidado o ensino ou a parcella de
verdade que exista nos seus refolhos--e sahir, passar a outro facto ou a
outra idéa, com vagar e com paz, como se percorresse uma a uma as
cidades d'um paiz d'arte e luxo. Assim visitei outr'ora a Italia,
enlevado no esplendor das côres e das fórmas. Temporal e espiritualmente
fiquei simplesmente um _touriste_».
Estes _touristes_ da intelligencia abundam em França e em Inglaterra.
Sómente Fradique não se limitava, como esses, a exames exteriores e
impessoaes, á maneira de quem n'uma cidade d'Oriente, retendo as noções
e os gostos de Europeu, estuda apenas o aéreo relevo dos monumentos e a
roupagem das multidões. Fradique (para continuar a sua imagem)
transformava-se em «cidadão das cidades que visitava». Mantinha por
principio que se devia momentaneamente _crêr_ para bem comprehender uma
crença. Assim se fizera babista, para penetrar e desvendar o Babismo.
Assim se afiliára em Paris a um club revolucionario, _As Pantheras de
Batignolles_, e frequentára as suas sessões, encolhido n'uma quinzena
sordida pregada com alfinetes, com a esperança de lá colher «a flôr de
alguma extravagancia instructiva». Assim se incorporava em Londres aos
Positivistas rituaes, que, nos dias festivos do Calendario Comtista, vão
queimar o incenso e a myrrha na ara da Humanidade e enfeitar de rosas a
Imagem de Augusto Comte. Assim se ligára com os _Theosophistas_,
concorrera prodigamente para a fundação da _Revista Espiritista_, e
presidia as Evocações da rua Cardinet, envolto na tunica de linho, entre
os dois _mediums_ supremos, Patoff e Lady Thorgan. Assim habitára
durante um longo verão Seo-d'Urgel, a catholica cidadella do Carlismo,
«para destrinçar bem (diz elle) quaes são os motivos e as formulas que
fazem um _Carlista_--porque todo o sectario obedece á realidade d'um
motivo e á illusão d'uma formula». Assim se tornára o confidente do
veneravel Principe Koblaskini, para «poder desmontar e estudar peça a
peça o mecanismo d'um cerebro de Nihilista». Assim se preparava (quando
a morte o surprehendeu) a voltar á India, para se tornar budhista
praticante, e penetrar cabalmente o Budhismo, em que fixára a
curiosidade e actividade critica dos seus derradeiros annos. De sorte
que d'elle bem se póde dizer que foi o devoto de todas as Religiões, o
partidario de todos os Partidos, o discipulo de todas as
Philosophias--cometa errando através das idéas, embebendo-se
convictamente n'ellas, de cada uma recebendo um accrescimo de
substancia, mas em cada uma deixando alguma coisa do calor e da energia
do seu movimento pensante. Aquelles que imperfeitamente o conheciam
classificavam Fradique como um _dilettante_. Não! essa séria convicção
(a que os inglezes chamam _earnestness_), com que Fradique se
arremessava ao fundo real das coisas, communicava á sua vida uma valia e
efficacia muito superiores ás que o _dilettantismo_, a diversão sceptica
que tantas injurias arrancou a Carlyle, communica ás naturezas que a
elle deliciosamente se abandonam. O _dilettante_, com effeito, corre
entre as idéas e os factos como as borboletas (a quem é desde seculos
comparado) correm entre as flôres, para pousar, retomar logo o vôo
estouvado, encontrando n'essa fugidia mutabilidade o deleite supremo.
Fradique, porém, ia como a abelha, de cada planta pacientemente
extrahindo o seu mel:--quero dizer, de cada opinião recolhendo essa
«parcella de verdade» que cada uma invariavelmente contém, desde que
homens, depois de outros homens, a tenham fomentado com interesse ou
paixão.
Assim se exercia esta diligente e alta Intelligencia. Qual era porém a
sua qualidade essencial e intrinseca? Tanto quanto pude discernir, a
suprema qualidade intellectual de Fradique pareceu-me sempre ser--uma
percepção extraordinaria da Realidade. «Todo o phenomeno (diz elle n'uma
carta a Anthero de Quental, suggestiva através de certa obscuridade que
a envolve) tem uma Realidade. A expressão de _Realidade_ não é
philosophica; mas eu emprego-a, lanço-a ao acaso e tenteando, para
apanhar dentro d'ella o mais possivel d'um conceito pouco coercivel,
quasi irreductivel ao verbo. Todo o phenomeno, pois, tem relativamente
ao nosso entendimento e á sua potencia de discriminar, uma
Realidade--quero dizer certos caracteres, ou (para me exprimir por uma
imagem, como recommenda Buffon) certos _contornos_ que o limitam, o
definem, lhe dão feição propria no esparso e universal conjunto, e
constituem o seu _exacto_, _real_ e _unico_ modo de ser. Sómente o erro,
a ignorancia, os preconceitos, a tradição, a rotina e sobretudo a
ILLUSÃO, formam em torno de cada phenomeno uma nevoa que esbate e
deforma os seus contornos, e impede que a visão intellectual o divise no
seu _exacto_, _real_ e _unico_ modo de ser. É justamente o que succede
aos monumentos de Londres mergulhados no nevoeiro... Tudo isto vai
expresso d'um modo bem hesitante e incompleto! Lá fóra o sol está
cahindo d'um céo fino e nitido sobre o meu quintal de convento coberto
de neve dura: n'este ar tão puro e claro, em que as coisas tomam um
relevo rigido, perdi toda a flexibilidade e fluidez da technologia
philosophica: só me poderia exprimir por imagens recortadas á tesoura.
Mas vossê decerto comprehenderá, Anthero excellente e subtil! Já esteve
em Londres, no outono, em novembro? Nas manhãs de nevoeiro, n'uma rua de
Londres, ha difficuldade em distinguir se a sombra densa que ao longe se
empasta é a estatua d'um heroe ou o fragmento d'um tapume. Uma
pardacenta illusão submerge toda a cidade--e com espanto se encontra
n'uma taverna quem julgára penetrar n'um templo. Ora para a maioria dos
espiritos uma nevoa igual fluctua sobre as realidades da vida e do
mundo. D'ahi vem que quasi todos os seus passos são transvios, quasi
todos os seus juizos são enganos; e estes constantemente estão trocando
o Templo e a Taberna. Raras são as visões intellectuaes bastante agudas
e poderosas para romper através da neblina e surprehender as linhas
exactas, o verdadeiro contorno da Realidade. Eis o que eu queria
tartamudear».
Pois bem! Fradique dispunha de uma d'essas visões privilegiadas. O
proprio modo que tinha de pousar lentamente os olhos e _detalhar em
silencio_--como dizia Oliveira Martins--revelava logo o seu processo
interior de concentrar e applicar a Razão, á maneira de um longo e
pertinaz dardo de luz, até que, desfeitas as nevoas, a Realidade pouco a
pouco lhe surgisse na sua rigorosa e _unica_ fórma.
A manifestação d'esta magnifica força que mais impressionava--era o seu
poder de _definir_. Possuindo um espirito que _via_ com a maxima
exactidão; possuindo um verbo que _traduzia_ com a maxima concisão--elle
podia assim dar resumos absolutamente profundos e perfeitos. Lembro que
uma noite, na sua casa da rua de Varennes, em Paris, se discutia com
ardor a natureza da Arte. Repetiram-se todas as definições de Arte,
enunciadas desde Platão: inventaram-se outras, que eram, como sempre, o
phenomeno visto limitadamente através d'um temperamento. Fradique
conservou-se algum tempo mudo, dardejando os olhos para o vago. Por fim,
com essa maneira lenta (que para os que incompletamente o conheciam
parecia professoral) murmurou, no silencio deferente que se
alargára:--«A Arte é um resumo da Natureza feito pela imaginação».
Certamente, não conheço mais completa definição d'Arte! E com razão
affirmava um amigo nosso, homem de excellente phantasia, que «se o bom
Deus, um dia, compadecido das nossas hesitações, nos atirasse lá de
cima, do seu divino ermo, a final explicação da Arte, nós ouviriamos
resoar entre as nuvens, soberba como o rolar de cem carros de guerra, a
definição de Fradique!»

A superior intelligencia de Fradique tinha o apoio de uma cultura forte
e rica. Já os seus instrumentos de saber eram consideraveis. Além d'um
solido conhecimento das linguas classicas (que, na sua idade de Poesia e
de Litteratura decorativa, o habilitára a crear em latim barbaro
poemetos tão bellos como o _Laus Veneris tenebrosae_)--possuia
profundamente os idiomas das tres grandes nações pensantes, a França, a
Inglaterra e a Allemanha. Conhecia tambem o arabe, que (segundo me
affirmou Riaz-Effendi, chronista do sultão Abdul-Aziz) fallava com
abundancia e gosto.
As sciencias naturaes eram-lhe queridas e familiares; e uma insaciavel e
religiosa curiosidade do Universo impellira-o a estudar tudo o que
divinamente o compõe, desde os insectos até aos astros. Estudos
carinhosamente feitos com o coração--porque Fradique sentia pela
Natureza, sobretudo pelo animal e pela planta, uma ternura e uma
veneração genuinamente budhistas. «Amo a Natureza (escrevia-me elle em
1882) por si mesma, toda e individualmente, na graça e na fealdade de
cada uma das fórmas innumeraveis que a enchem: e amo-a ainda como
manifestação tangivel e multipla da suprema Unidade, da Realidade
intangivel, a que cada Religião e cada Philosophia deram um nome diverso
e a que eu presto culto sob o nome de Vida. Em resumo adoro a Vida--de
que são igualmente expressões uma rosa e uma chaga, uma constellação e
(com horror o confesso) o conselheiro Acacio. Adoro a Vida e portanto
tudo adoro--porque tudo é viver, mesmo morrer. Um cadaver rigido no seu
esquife vive tanto como uma aguia batendo furiosamente o vôo. E a minha
religião está toda no credo de Athanasio, com uma pequena
variante:--«Creio na _Vida_ toda-poderosa, creadora do céo e da
terra...»
Quando começou porém a nossa intimidade, em 1880, o seu inquieto
espirito mergulhava de preferencia nas sciencias sociaes, aquellas
sobretudo que pertencem á Pre-historia--a Anthropologia, a Linguistica,
o estudo das Raças, dos Mythos e das Instituições Primitivas. Quasi
todos os tres mezes, altas rumas de livros enviadas da casa Hachette,
densas camadas de Revistas especiaes, alastrando o tapete de Caramania,
indicavam-me que uma nova curiosidade se apoderára d'elle com
intensidade e paixão. Conheci-o assim successiva e ardentemente occupado
com os monumentos megalithicos da Andaluzia; com as habitações
lacustres; com a mythologia dos povos Aryanos; com a magia Chaldaica;
com as raças Polynesias; com o direito costumario dos Cafres; com a
christianisação dos Deuses Pagãos... Estas aferradas investigações
duravam emquanto podia extrahir d'ellas «alguma emoção ou surpreza
intellectual». Depois, um dia, Revistas e volumes desappareciam, e
Fradique annunciava triumphalmente alargando os passos alegres por sobre
o tapete livre:--«Sorvi todo o Sabeismo!», ou «Esgotei os Polynesios!»
O estudo porém a que se prendeu ininterrompidamente, com especial
constancia, foi o da Historia. «Desde pequeno (escrevia elle a Oliveira
Martins, n'uma das suas ultimas cartas, em 1886) tive a paixão da
Historia. E adivinha vossê porquê, Historiador? Pelo confortavel e
conchegado sentimento que ella me dava da solidariedade humana. Quando
fiz onze annos, minha avó, de repente, _para me habituar ás coisas duras
da vida_ (como ella dizia), arrancou-me ao pachorrento ensino do padre
Nunes, e mandou-me a uma escóla chamada _Terceirense_. O jardineiro
levava-me pela mão: e todos os dias a avó me dava com solemnidade um
pataco para eu comprar na tia Martha, confeiteira da esquina, bolos para
a minha merenda. Este creado, este pataco, estes bolos, eram costumes
novos que feriam o meu monstruoso orgulho de morgadinho--por me descerem
ao nivel humilde dos filhos do nosso procurador. Um dia, porém,
folheando uma _Encyclopedia de Antiguidades Romanas_, que tinha
estampas, li, com surpreza, que os rapazes em Roma (na grande Roma!) iam
tambem de manhã para a escóla, como eu, pela mão d'um servo--denominado
o _Capsarius_; e compravam tambem, como eu, um bolo n'uma tia Martha do
Velabro ou das Carinas, para comerem á merenda--que chamavam o
_Ientaculum_. Pois, meu caro, no mesmo instante a veneravel antiguidade
d'esses habitos tirou-lhes a vulgaridade toda que n'elles me humilhava
tanto! Depois de os ter detestado por serem communs aos filhos do Silva
procurador--respeitei-os por terem sido habituaes nos filhos de Scipião.
A compra do bolo tornou-se como um rito que desde a Antiguidade todos os
rapazes de escóla cumpriam, e que me era dado por meu turno celebrar
n'uma honrosa solidariedade com a grande gente togada. Tudo isto,
evidentemente, não o sentia com esta clara consciencia. Mas nunca entrei
d'ahi por diante na tia Martha, sem erguer a cabeça, pensando com uma
vangloria heroica:--«Assim faziam tambem os romanos!» Era por esse tempo
pouco mais alto que uma espada gôda, e amava uma mulher obesa que morava
ao fim da rua...»
N'essa mesma carta, adiante, Fradique accrescenta:--«Levou-me pois
effectivamente á Historia o meu amor da Unidade--amor que envolve o
horror ás interrupções, ás lacunas, aos espaços escuros onde se não sabe
o que ha. Viajei por toda a parte viajavel, li todos os livros de
explorações e de travessias--porque me repugnava não conhecer o globo em
que habito até aos seus extremos limites, e não sentir a contínua
solidariedade do pedaço de terra que tenho sob os pés com toda a outra
terra que se arqueia para além. Por isso, incansavelmente exploro a
Historia, para perceber até aos seus derradeiros limites a Humanidade a
que pertenço, e sentir a compacta solidariedade do meu sêr com a de
todos os que me precederam na vida. Talvez vossê murmure com
desdem--«mera bisbilhotice!» Amigo meu, não despreze a bisbilhotice!
Ella é um impulso humano, de latitude infinita, que, como todos, vai do
reles ao sublime. Por um lado leva a escutar ás portas--e pelo outro a
descobrir a America!»
O saber historico de Fradique surprehendia realmente pela amplexidade e
pelo detalhe. Um amigo nosso exclamava um dia, com essa ironia affavel
que nos homens de raça celtica sublinha e corrige a admiração:--«Aquelle
Fradique! Tira a charuteira, e dá uma synthese profunda, d'uma
transparencia de crystal, sobre a guerra do Peloponeso;--depois accende
o charuto, e explica o feitio e o metal da fivela do cinturão de
Leonidas!» Com effeito, a sua forte capacidade de comprehender
philosophicamente os movimentos collectivos, o seu fino poder de evocar
psychologicamente os caracteres individuaes--alliava-se n'elle a um
minucioso saber archeologico da vida, das maneiras, dos trajes, das
armas, das festas, dos ritos de todas as idades, desde a India Vedica
até á França Imperial. As suas cartas a Oliveira Martins (sobre o
Sebastianismo, o nosso Imperio no Oriente, o Marquez de Pombal)[1] são
verdadeiras maravilhas pela sagaz intuição, a alta potencia synthetica,
a certeza do saber, a força e a abundancia das idéas novas. E, por outro
lado, a sua erudição archeologica repetidamente esclareceu e auxiliou,
na sabia composição das suas telas, o paciente e fino reconstructor dos
Costumes e das Maneiras da Antiguidade Classica, o velho Suma-Rabêma.
Assim m'o confessou uma tarde Suma-Rabêma, regando as roseiras, no seu
jardim de Chelsea.
Fradique era de resto ajudado por uma prodigiosa memoria que tudo
recolhia e tudo retinha--vasto e claro armazem de factos, de noções, de
fórmas, todos bem arrumados, bem classificados, promptos sempre a
servir. O nosso amigo Chambray affirmava que, comparavel á memoria de
Fradique, como «installação, ordem e excellencia do _stock_», só
conhecia a adega do café Inglez.
A cultura de Fradique recebia um constante alimento e accrescimo das
viagens que sem cessar emprehendia, sob o impulso de admirações ou de
curiosidades intellectuaes. Só a Archeologia o levou quatro vezes ao
Oriente:--ainda que a sua derradeira residencia em Jerusalem, durante
dezoito mezes, foi motivada (segundo me affirmou o consul Raccolini) por
poeticos amores com uma das mais esplendidas mulheres da Syria, uma
filha de Abraham Côppo, o faustoso banqueiro de Aleppo, tão
lamentavelmente morta depois, sobre as tristes costas de Chypre, no
naufragio do _Magnolia_. A sua aventurosa e aspera peregrinação pela
China, desde o Thibet (onde quasi deixou a vida, tentando temerariamente
penetrar na cidade sagrada de Lahsá) até á alta Manchuria, constitue o
mais completo estudo até hoje realisado por um homem da Europa sobre os
Costumes, o Governo, a Ethica e a Litteratura d'esse povo «profundo
entre todos, que (como diz Fradique) conseguiu descobrir os tres ou
quatro unicos principios de moral capazes, pela sua absoluta força, de
eternisar uma civilisação».
O exame da Russia e dos seus movimentos sociaes e religiosos
trouxeram-no prolongados mezes pelas provincias ruraes d'entre o Dnieper
e o Volga. A necessidade d'uma certeza sobre os Presidios Penaes da
Siberia impelliu-o a affrontar centenas de milhas de steppes e de neves,
n'uma rude telega, até ás minas de prata de Nerchinski. E proseguiria
n'este activo interesse, se não recebesse subitamente, ao chegar á
costa, a Archangel, este aviso do general Armankoff, chefe da IV secção
da policia imperial:--_Monsieur, vous nous observez de trop près, pour
que votre jugement n'en soit faussé; je vous invite donc, sur votre
intérêt, et pour avoir de la Russie une vue d'ensemble plus exacte,
d'aller la regarder de plus loin, dans votre belle maison de
Paris!_--Fradique abalou para Vasa, sobre o golfo de Bothnia. Passou
logo á Suecia, e mandou de lá, sem data, este bilhete ao general
Armankoff:--_Monsieur, j'ai reçu votre invitation où il y a beaucoup
d'intolerance et trois fautes de français._
Os mesmos interesses de espirito e «necessidades de certeza» o levaram
na America do Sul desde o Amazonas até ás areias da Patagonia, o levaram
na Africa Austral desde o Cabo até aos Montes de Zokunga... «Tenho
folheado e lido attentamente o mundo como um livro cheio de idéas. Para
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