A correspondência de Fradique Mendes - 01

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Eça de Queiroz


A CORRESPONDENCIA
DE
FRADIQUE MENDES

(MEMORIAS E NOTAS)

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1900


Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao cidadão
Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que para a garantia
que lhe offerece a lei n.^o 496 de 1 d'Agosto de 1898, fez o competente
deposito na Bibliotheca nacional, segundo a determinação do art. 13.^o
da mesma Lei.

_Porto--Imprensa Moderna_


A CORRESPONDENCIA DE FRADIQUE MENDES

FRADIQUE MENDES
(MEMORIAS E NOTAS)


I

A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela
Paschoa,--justamente na semana em que elle regressára da sua viagem á
Africa Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admiravel datava
de Lisboa, do anno remoto de 1867. Foi no verão d'esse anno, uma tarde,
no café Martinho, que encontrei, n'um numero já amarrotado da _Revolução
de Setembro_, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por
baixo de versos que me maravilharam.
Os themas («os motivos emocionaes», como nós diziamos em 1867) d'essas
cinco ou seis poesias, reunidas em folhetim sob o titulo de Lapidarias,
tinham logo para mim uma originalidade captivante e bemvinda. Era o
tempo em que eu e os meus camaradas de Cenaculo, deslumbrados pelo
Lyrismo Epico da _Légende des Siècles_, «o livro que um grande vento nos
trouxera de Guernesey»--decidiramos abominar e combater a rijos brados o
Lyrismo Intimo, que, enclausurado nas duas pollegadas do coração, não
comprehendendo d'entre todos os rumores do Universo senão o rumor das
saias d'Elvira, tornava a Poesia, sobretudo em Portugal, uma monotona e
interminavel confidencia de glorias e martyrios de amor. Ora Fradique
Mendes pertencia evidentemente aos poetas novos que, seguindo o Mestre
sem-igual da _Légende des Siècles_, iam, n'uma universal sympathia
buscar motivos emocionaes fóra das limitadas palpitações do coração--á
Historia, á Lenda, aos Costumes, ás Religiões, a tudo que através das
idades, diversamente e unamente, revela e define o Homem. Mas além
d'isso Fradique Mendes trabalhava um outro filão poetico que me
seduzia--o da Modernidade, a notação fina e sobria das graças e dos
horrores da Vida, da Vida ambiente e costumada, tal como a podemos
testemunhar ou presentir nas ruas que todos trilhamos nas moradas
visinhas das nossas, nos humildes destinos deslizando em torno de nós
por penumbras humildes.
Esses poemetos das Lapidarias desenrolavam com effeito themas
magnificamente novos. Ahi um Santo allegorico, um Solitario do seculo
VI, morria uma tarde sobre as neves da Silesia, assaltado e domado por
uma tão inesperada e bestial rebellião da Carne, que, á beira da
Bemaventurança, subitamente a perdia, e com ella o fructo divino e
custoso de cincoenta annos de penitencia e d'ermo: um corvo, facundo e
velho além de toda a velhice, contava façanhas do tempo em que seguira
pelas Gallias, n'um bando alegre, as legiões de Cesar, depois as hordas
de Alarico rolando para a Italia, branca e toda de marmores sob o azul:
o bom cavalleiro Percival, espelho e flôr d'Idealistas, deixava por
cidades e campos o sulco silencioso da sua armadura d'ouro, correndo o
mundo, desde longas éras, á busca do San-Gral, o mystico vaso cheio de
sangue de Christo, que, n'uma manhã de Natal, elle vira passar e
lampejar entre nuvens por sobre as torres de Camerlon: um Satanaz de
feitio germanico, lido em Spinosa e Leibnitz, dava n'uma viella de
cidade medieval uma serenada ironica aos astros, «gottas de luz no frio
ar geladas»... E, entre estes motivos de esplendido symbolismo, lá vinha
o quadro de singela modernidade, as _Velhinhas_, cinco velhinhas, com
chales de ramagens pelos hombros, um lenço ou um cabaz na mão, sentadas
sobre um banco de pedra, n'um longo silencio de saudade, a uma restea de
sol d'outono.
Não asseguro todavia a nitidez d'estas bellas reminiscencias. Desde essa
sésta de agosto, no Martinho, não encontrei mais as Lapidarias: e, de
resto, o que n'ellas então me prendeu, não foi a Idéa, mas a Fórma--uma
fórma soberba de plasticidade e de vida, que ao mesmo tempo me lembrava
o verso marmoreo de Lecomte de Lisle com um sangue mais quente nas veias
do marmore, e a nervosidade intensa de Baudelaire vibrando com mais
norma e cadencia. Ora precisamente, n'esse anno de 1867, eu, J. Teixeira
de Azevedo e outros camaradas tinhamos descoberto no céo da Poesia
Franceza (unico para que nossos olhos se erguiam) toda uma pleiade
d'estrellas novas onde sobresahiam, pela sua refulgencia superior e
especial, esses dois sóes--Baudelaire e Lecomte de Lisle. Victor Hugo, a
quem chamavamos já «papá Hugo» ou «Senhor Hugo-Todo-Poderoso», não era
para nós um astro--mas o Deus mesmo, inicial e immanente, de quem os
astros recebiam a luz, o movimento e o rythmo. Aos seus pés Lecomte de
Lisle e Baudelaire faziam duas constellações de adoravel brilho: e o seu
encontro fôra para nós um deslumbramento e um amor! A mocidade d'hoje,
positiva e estreita, que pratíca a Politica, estuda as cotações da
_Bolsa_ e lê George Ohnet, mal póde comprehender os santos enthusiasmos
com que nós recebiamos a iniciação d'essa Arte Nova, que em França, nos
começos do Segundo Imperio, surgira das ruinas do Romantismo como sua
derradeira encarnação, e que nos era trazida em Poesia pelos versos de
Lecomte de Lisle, de Baudelaire, de Coppée, de Dierx, de Mallarmé, e
d'outros menores: e menos talvez póde comprehender taes fervores essa
parte da mocidade culta que logo desde as escolas se nutre de Spencer e
de Taine, e que procura com ancia e agudeza exercer a critica, onde nós
outr'ora, mais ingenuos e ardentes, nos abandonavamos á emoção. Eu mesmo
sorrio hoje ao pensar n'essas noites em que, no quarto de J. Teixeira
d'Azevedo, enchia de sobresalto e duvida dois conegos que ao lado
moravam, rompendo por horas mortas a clamar a _Charogne_ de Baudelaire,
tremulo e pallido de paixão:
Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
Do outro lado do tabique sentiamos ranger as camas dos ecclesiasticos, o
raspar espavorido de phosphoros. E eu, mais pallido, n'um extase
tremente:
Alors, oh ma beauté, dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!
Certamente Baudelaire não valia este tremor e esta pallidez. Todo o
culto sincero, porém, tem uma belleza essencial, independente dos
merecimentos do Deus para quem se evola. Duas mãos postas com legitima
fé serão sempre tocantes--mesmo quando se ergam para um Santo tão
affectado e postiço como S. Simeão Stylita. E o nosso transporte era
candido, genuinamente nascido do Ideal satisfeito, só comparavel áquelle
que outr'ora invadia os navegadores peninsulares ao pisarem as terras
nunca d'antes pisadas, Eldorados maravilhosos, ferteis em delicias e
thesouros, onde os seixos das praias lhes pareciam logo diamantes a
reluzir.
Li algures que Juan Ponce de Leon, enfastiado das cinzentas planicies de
Castella-a-Velha, não encontrando tambem já encanto nos pomares
verde-negros da Andaluzia--se fizera ao mar, para buscar outras terras,
e _mirar algo nuevo_. Tres annos sulcou incertamente a melancolia das
aguas atlanticas: mezes tristes errou perdido nos nevoeiros das
Bermudas: toda a esperança findára, já as prôas gastas se voltavam para
os lados onde ficára a Hespanha. E eis que n'uma manhã de grande sol, em
dia de S. João, surgem ante a armada extatica os esplendores da Florida!
«_Gracias te sean, mi S. Juan bendito, que he mirado algo nuevo!_» As
lagrimas corriam-lhe pelas barbas brancas--e Juan Ponce de Leon morreu
de emoção. Nós não morremos: mas lagrimas congeneres com as do velho
mareante saltaram-me dos olhos, quando pela primeira vez penetrei por
entre o brilho sombrio e os perfumes acres das _Flôres do Mal_. Eramos
assim absurdos em 1867!
De resto, exactamente como Ponce de Leon, eu só procurava em Litteratura
e Poesia _algo nuevo que mirar_. E para um meridional de vinte annos,
amando sobretudo a Côr e o Som na plenitude da sua riqueza, que poderia
ser esse _algo nuevo_ senão o luxo novo das fórmas novas? A Fórma, a
belleza inedita e rara da Fórma, eis realmente, n'esses tempos de
delicado sensualismo, todo o meu interesse e todo o meu cuidado! Decerto
eu adorava a Idéa na sua essencia;--mas quanto mais o Verbo que a
encarnava! Baudelaire, mostrando á sua amante na _Charogne_ a carcassa
pôdre do cão e equiparando em ambas as miserias da carne, era para mim
de magnifica surpreza e enlevo: e diante d'esta crespa e atormentada
subtilisação do sentir, que podia valer o facil e velho Lamartine no
_Lago_, mostrando a Elvira a cansada lua, e comparando em ambas a
pallidez e a graça meiga? Mas se este aspero e funebre espiritualismo de
Baudelaire me chegasse expresso na lingua lassa e molle de Casimir
Delavigne--eu não lhe teria dado mais apreço do que a versos vis do
_Almanach de Lembranças_.
Foi sensualmente enterrado n'esta idolatria da Fórma, que deparei com
essas Lapidarias de Fradique Mendes, onde julguei vêr reunidas e
fundidas as qualidades discordantes de magestade e de nervosidade que
constituiam, ou me pareciam constituir, a grandeza dos meus dois
idolos--o auctor das _Flôres do Mal_ e o auctor dos _Poemas Barbaros_. A
isto accrescia, para me fascinar, que este poeta era portuguez,
cinzelava assim preciosamente a lingua que até ahi tivera como joias
acclamadas o _Noivado do Sepulchro_ e o _Avè Cesar!_, habitava Lisboa,
pertencia aos Novos, possuia decerto na alma, talvez no viver, tanta
originalidade poetica como nos seus poemas! E esse folhetim amarrotado
da _Revolução de Setembro_ tomava assim a importancia d'uma revelação
d'Arte, uma aurora de Poesia, nascendo para banhar as almas moças na luz
e no calor especial a que ellas aspiravam, meio adormecidas, quasi
regeladas sob o algido luar do Romantismo. Graças te sejam dadas, meu
Fradique bemdito, que na minha velha lingua _hé mirado algo nuevo!_
Creio que murmurei isto, banhado em gratidão. E, com o numero da
_Revolução de Setembro_, corri a casa de J. Teixeira de Azevedo, á
travessa do Guarda-Mór, a annunciar o advento esplendido!
Encontrei-o, como de costume, nos silenciosos vagares das tardes de
verão, em mangas de camisa, diante de uma bacia que trasbordava de
morangos e de vinho de Torres. Com vozes clamorosas, atirando gestos até
ao tecto, declamei-lhe a _Morte do Santo_. Se bem recordo, este asceta,
ao findar sobre as neves da Silesia, era miserrimamente trahido pela
desleal Natureza! Todos os appetites da paixão e do corpo, tão
laboriosamente recalcados por elle durante meio seculo d'ermo, irrompiam
de repente, á beira da eternidade, n'um tumulto bestial, não querendo
para sempre findar com a carne que ia findar--antes de serem uma vez
satisfeitos! E os anjos que, para o receber, desciam d'aza serena,
sobraçando mólhos de Palmas e cantando os Epithalamios, encontravam, em
vez d'um Santo, um Satyro, senil e grotesco--que de rojos, entre
bramidos sordidos, mordia com beijos vorazes a neve, a macia alvura da
neve, onde o seu delirio furiosamente imaginava nudezes de cortezãs!...
Tudo isto era tratado com uma grandeza sobria e rude que me parecia
sublime. J. Teixeira d'Azevedo achou tambem «sublime--mas bréjeiro». E
concordou que convinha desentulhar Fradique Mendes da obscuridade, e
erguel-o no alto do escudo como o radiante mestre dos Novos.
Fui logo n'essa noite á _Revolução de Setembro_, procurar um companheiro
meu de Coimbra, Marcos Vidigal, que, nos nossos alegres tempos de
Direito Romano e Canonico, ganhára, por tocar concertina, lêr a
_Historia da Musica_ de Scudo, e lançar através da Academia os nomes de
Mozart e de Beethoven, uma soberba auctoridade sobre Musica classica.
Agora, vadiando em Lisboa, escrevia na _Revolução_, aos domingos, uma
«Chronica lyrica»--para gozar gratuitamente o bilhete de S. Carlos.
Era um moço com cabellos ralos e côr de manteiga, sardento, apagado de
idéas e de modos--mas que despertava e se illuminava todo quando lograva
«a _chance_ (como elle dizia) de roçar por um homem celebre, ou de
arranchar n'uma coisa original»; e isto tornára-o a elle, pouco a pouco,
quasi original e quasi celebre. N'essa noite, que era sabbado e de
pesado calor, lá estava á banca, com uma quinzena d'alpaca, suando,
bufando, a espremer do seu pobre craneo, como d'um limão meio sêcco,
gottas d'uma Chronica sobre a Volpini. Apenas eu alludi a Fradique
Mendes, áquelles versos que me tinham maravilhado--Vidigal arrojou a
penna, já risonho, com um clarão alvoroçado na face molle:
--Fradique? Se conheço o grande Fradique? É meu parente! É meu patricio!
É meu parceiro!
--Ainda bem, Vidigal, ainda bem!
Fomos ao Passeio Publico (onde Marcos se ia encontrar com um agiota).
Tomámos sorvetes debaixo das acacias: e pelo chronista da _Revolução_
conheci a origem, a mocidade, os feitos do poeta das Lapidarias.

Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha e rica familia dos Açores;
e descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes, filho segundo da
casa da Troba, e donatario d'uma das primeiras capitanias creadas nas
Ilhas por começos do seculo XVI. Seu pai, homem magnificamente bello,
mas de gostos rudes, morrera (quando Carlos ainda gatinhava) d'um
desastre, na caça. Seis annos depois sua mãi, senhora tão airosa,
pensativa e loura que merecera d'um poeta da Terceira o nome de _Virgem
d'Ossian_, morria tambem d'uma febre trazida dos campos, onde andára
bucolicamente, n'um dia de sol forte, cantando e ceifando feno. Carlos
ficou em companhia e sob a tutela de sua avó materna, D. Angelina
Fradique, velha estouvada, erudita e exotica que colleccionava aves
empalhadas, traduzia Klopstock, e perpetuamente soffria dos «dardos
d'Amor». A sua primeira educação fôra singularmente emmaranhada: o
capellão de D. Angelina, antigo frade benedictino, ensinou-lhe o latim,
a doutrina, o horror á maçonaria, e outros principios solidos; depois um
coronel francez, duro jacobino que se batera em 1830 na barricada de
S^{t}-Merry, veio abalar estes alicerces espirituaes fazendo traduzir ao
rapaz a _Pucelle_ de Voltaire e a _Declaração dos direitos do homem_; e
finalmente um allemão, que ajudava D. Angelina a enfardelar Klopstock na
vernaculidade de Filinto Elysio, e se dizia parente de Emmanuel Kant,
completou a confusão iniciando Carlos, ainda antes de lhe nascer o buço,
na _Critica da Razão pura_ e na heterodoxia metaphysica dos professores
de Tubinguen. Felizmente Carlos já então gastava longos dias a cavallo
pelos campos, com a sua matilha de galgos:--e da anemia que lhe teriam
causado as abstracções do raciocinio, salvou-o o sôpro fresco dos
montados e a natural pureza dos regatos em que bebia.
A avó, tendo imparcialmente approvado estas embrulhadas linhas
d'educacão, decidiu de repente, quando Carlos completou dezeseis annos,
mandal-o para Coimbra que ella considerava um nobre centro d'estudos
classicos e o derradeiro refugio das Humanidades. Corria porém na Ilha
que a traductora de Klopstock, apesar dos sessenta annos que lhe
revestiam a face d'um pêllo mais denso que a hera d'uma ruina, decidira
afastar o neto--para casar com o bolieiro.
Durante tres annos Carlos tocou guitarra pelo _Penedo da Saudade_,
encharcou-se de carrascão na tasca das Camêlas, publicou na _Idéa_
sonetos asceticos, e amou desesperadamente a filha d'um ferrador de
Lorvão. Acabava de ser reprovado em Geometria quando a avó morreu
subitamente, na sua quinta das _Tornas_, n'um caramanchão de rosas, onde
se esquecera toda uma sésta de junho, tomando café, e escutando a viola
que o cocheiro repicava com os dedos carregados d'anneis.
Restava a Carlos um tio, Thadeu Mendes, homem de luxo e de boa mesa, que
vivia em Paris preparando a salvação da Sociedade com Persigny, com
Morny, e com o principe Luiz Napoleão de quem era devoto e crédor. E
Carlos foi para Paris estudar Direito nas cervejarias que cercam a
Sorbonne, á espera da maioridade que lhe devia trazer as heranças
accumuladas do pai e da avó--calculadas por Vidigal n'um farto milhão de
cruzados. Vidigal, filho d'uma sobrinha de D. Angelina, nascido na
Terceira, possuia por legado, conjuntamente com Carlos, uma quinta
chamada o _Corvovello_. D'ahi lhe vinha ser «parente, patricio e
parceiro» do homem das Lapidarias.
Depois d'isto Vidigal sabia apenas que Fradique, livre e rico, sahira do
_Quartier-Latin_ a começar uma existencia soberba e fogosa. Com um
impeto de ave solta, viajára logo por todo o mundo, a todos os sopros do
vento, desde Chicago até Jerusalem, desde a Islandia até ao Sahará.
N'estas jornadas, sempre emprehendidas por uma solicitação da
intelligencia ou por ancia d'emoções, achára-se envolvido em feitos
historicos e tratára altas personalidades do seculo. Vestido com a
camisa escarlate, acompanhára Garibaldi na conquista das Duas-Sicilias.
Encorporado no Estado-Maior do velho Napier, que lhe chamava _the
Portuguese Lion_ (o Leão Portuguez), fizera toda a campanha da
Abyssinia. Recebia cartas de Mazzini. Havia apenas mezes que visitára
Hugo no seu rochedo de Guernesey...
Aqui recuei, com os olhos esbugalhados! Victor Hugo (todos ainda se
lembram), desterrado então em Guernesey, tinha para nós, idealistas e
democratas de 1867, as proporções sublimes e lendarias d'um S. João em
Pathmos. E recuei protestando, com os olhos esbugalhados, tanto se me
afigurava fóra das possibilidades que um portuguez, um Mendes tivesse
apertado nas suas a mão augusta que escrevera a _Lenda dos Seculos_!
Correspondencia com Mazzini, camaradagem com Garibaldi, vá! Mas na ilha
sagrada, ao rumor das ondas da Mancha, passear, conversar, scismar com o
vidente dos _Miseraveis_--parecia-me a impudente exaggeração d'um ilhéo
que me queria intrujar...
--Juro! gritou Vidigal, levantando a mão veridica ás acacias que nos
cobriam.
E immediatamente, para demonstrar a verosimilhança d'aquella gloria, já
altissima para Fradique, contou-me outra, bem superior, e que cercava o
estranho homem d'uma aureola mais refulgente. Não se tratava já de ser
estimado por um homem excelso--mas, coisa preciosa entre todas, de ser
amado por uma excelsa mulher. Pois bem! Durante dois annos, em Paris,
Fradique fôra o eleito de Anna de Léon, a gloriosa Anna de Léon, a mais
culta e bella cortezã (Vidigal dizia «o melhor bocado») do Segundo
Imperio, de que ella, pela graça especial da sua voluptuosidade
intelligente, como Aspasia no seculo de Pericles, fôra a expressão e a
flôr!
Muitas vezes eu lêra no _Figaro_ os louvores de Anna de Léon, e sabia
que poetas a tinham celebrado sob o nome de _Venus Victoriosa_. Os
amores com a cortezã não me impressionaram decerto tanto como a
intimidade com o homem das _Contemplações_: mas a minha incredulidade
cessou--e Fradique assumiu para mim a estatura d'um d'esses sêres que,
pela seducção ou pelo genio, como Alcibiades ou como G[oe]the, dominam
uma civilisação, e d'ella colhem deliciosamente tudo o que ella póde dar
em gostos e em triumphos.
Foi por isso talvez que córei, intimidado, quando Vidigal, reclamando
outro sorvete de leite, se offereceu para me levar ao surprehendente
Fradique. Sem me decidir, pensando em Novalis que tambem assim hesitava,
enleado, ao subir uma manhã em Berlim as escadas d'Hegel--perguntei a
Vidigal se o poeta das Lapidarias residia em Lisboa... Não! Fradique
viera de Inglaterra visitar Cintra, que adorava, e onde comprára a
quinta da _Saragoça_, no caminho dos Capuchos, para ter de verão em
Portugal um repouso fidalgo. Estivera lá desde o dia de Santo
Antonio:--e agora parára em Lisboa, no Hotel Central, antes de recolher
a Paris, seu centro e seu lar. De resto, accrescentou Marcos, não havia
como Fradique ninguem tão simples, tão alegre, tão facil. E, se eu
desejava conhecer um homem genial, que esperasse ao outro dia, domingo,
ás duas, depois da missa do Loreto, á porta da Casa Havaneza.
--Valeu? Ás duas, religiosamente, depois da missa!
Bateu-me o coração. Por fim, com um esforço, como Novalis no patamar
d'Hegel, afiancei, pagando os sorvetes, que ao outro dia, ás duas,
religiosamente, mas sem missa, estaria no portal da Havaneza!


II

Gastei a noite preparando phrases, cheias de profundidade e belleza,
para lançar a Fradique Mendes! Tendiam todas á glorificação das
Lapidarias. E lembro-me de ter, com amoroso cuidado, burilado e repolido
esta:--«A fórma de v. exc.^a é um marmore divino com estremecimentos
humanos!»
De manhã apurei requintadamente a minha _toilette_ como se, em vez de
Fradique, fosse encontrar Anna de Léon--com quem já n'essa madrugada,
n'um sonho repassado de erudição e sensibilidade, eu passeára na Via
Sagrada que vai de Athenas a Eleusis, conversando, por entre os lyrios
que desfolhavamos, sobre o ensino de Platão e a versificação das
Lapidarias. E ás duas horas, dentro de uma tipoia, para que o macadam
regado me não maculasse o verniz dos sapatos, parava na Havaneza,
pallido, perfumado, commovido, com uma tremenda rosa de chá na lapella.
Eramos assim em 1867!
Marcos Vidigal já me esperava, impaciente, roendo o charuto. Saltou para
a tipoia; e batemos através do Loreto, que escaldava ao sol do agosto.
Na rua do Alecrim (para combater a pueril emoção que me enleava)
perguntei ao meu companheiro quando publicaria Fradique as Lapidarias.
Por entre o barulho das rodas Vidigal gritou:
--Nunca!
E contou que a publicação d'aquelles trechos na _Revolução de Setembro_
quasi occasionára, entre Fradique e elle, «uma pega intellectual». Um
dia, depois de almoço, em Cintra, emquanto Fradique fumava o seu
_chibouk_ persa, Vidigal, na sua familiaridade, como patricio e como
parente, abrira sobre a mesa uma pasta de velludo negro. Descobrira,
surprehendido, largas folhas de versos, n'uma tinta já amarellada. Eram
as Lapidarias. Lêra a primeira, a _Serenada de Satan aos astros_. E,
maravilhado, pedira a Fradique para publicar na _Revolução_ algumas
d'essas estrophes divinas. O primo sorrira, consentira--com a rigida
condição de serem firmadas por um pseudonymo. Qual?... Fradique
abandonava a escolha á phantasia de Vidigal. Na redacção, porém, ao
revêr as provas, só lhe acudiram pseudonymos decrepitos e safados, o
_Independente_, o _Amigo da Verdade_, o _Observador_--nenhum bastante
novo para dignamente firmar poesia tão nova. Disse comsigo:--«Acabou-se!
Sublimidade não é vergonha. Ponho-lhe o nome!» Mas quando Fradique viu a
_Revolução de Setembro_ ficou livido, e chamou regeladamente a Vidigal
«indiscreto, burguez e philisteu»!--E aqui Vidigal parou para me pedir a
significação de _philisteu_. Eu não sabia; mas archivei gulosamente o
termo, como amargo. Recordo até que logo n'essa tarde, no Martinho,
tratei de _philisteu_ o auctor consideravel do _Avè César!_
--De modo que, rematou Vidigal, é melhor não lhe fallares nas
Lapidarias!
Sim! pensava eu. Talvez Fradique, á maneira do chanceller Bacon e
d'outros homens grandes pela acção, deseje esconder d'este mundo de
materialidade e de força o seu fino genio poetico! Ou talvez essa ira,
ao vêr o seu nome impresso debaixo de versos com que se orgulharia
Lecomte de Lisle, seja a do artista nobremente e perpetuamente
insatisfeito que não aceita ante os homens como sua a obra onde sente
imperfeições! Estes modos de ser, tão superiores e novos, cahiam na
minha admiração como oleo n'uma fogueira. Ao pararmos no Central tremia
d'acanhamento.
Senti um allivio quando o porteiro annunciou que o snr. Fradique Mendes,
n'essa manhã, cedo, tomára uma caleche para Belem. Vidigal empallideceu,
de desespero:
--Uma caleche! Para Belem!... Ha alguma coisa em Belem?
Murmurei, n'uma idéa d'Arte, que havia os Jeronymos. N'esse instante uma
tipoia, lançada a trote, estacou na rua, com as pilecas fumegando. Um
homem desceu, ligeiro e forte. Era Fradique Mendes.
Vidigal, alvoroçado, apresentou-me como um «poeta seu amigo». Elle
adiantou a mão sorrindo--mão delicada e branca onde vermelhejava um
rubi. Depois, acariciando o hombro do primo Marcos, abriu uma carta que
lhe estendia o porteiro.
Pude então, á vontade, contemplar o cinzelador das Lapidarias, o
familiar de Mazzini, o conquistador das Duas-Sicilias, o bem-adorado de
Anna de Léon! O que me seduziu logo foi a sua esplendida solidez, a sã e
viril proporção dos membros rijos, o aspecto calmo de poderosa
estabilidade com que parecia assentar na vida, tão livremente e tão
firmemente como sobre aquelle chão de ladrilhos onde pousavam os seus
largos sapatos de verniz resplandecendo sob polainas de linho. A face
era do feitio aquilino e grave que se chama _cesareano_, mas sem as
linhas empastadas e a espessura flaccida que a tradição das Escólas
invariavelmente attribue aos Cesares, na tela ou no gesso, para os
revestir de magestade; antes pura e fina como a d'um Lucrecio moço, em
plena gloria, todo nos sonhos da Virtude e da Arte. Na pelle, d'uma
brancura lactea e fresca, a barba, por ser pouca decerto, não deixava
depois de escanhoada nem aspereza nem sombra; apenas um buço crespo e
leve lhe orlava os labios que, pela vermelhidão humida e pela
sinuosidade subtil, pareciam igual e superiormente talhados para a
Ironia e para o Amor. E toda a sua finura, misturada de energia, estava
nos olhos--olhos pequenos e negros, brilhantes como contas de onyx,
d'uma penetração aguda, talvez insistente de mais, que perfurava, se
enterrava sem esforço, como uma verruma d'aço em madeira molle.
Trazia uma quinzena solta, d'uma fazenda preta e macia, igual á das
calças que cahiam sem um vinco: o collete de linho branco fechava por
botões de coral pallido: e o laço da gravata de setim negro, dando
relevo á alvura espelhada dos collarinhos quebrados, offerecia a
perfeição concisa que já me encantára no seu verso.
Não sei se as mulheres o considerariam _bello_. Eu achei-o um varão
magnifico--dominando sobretudo por uma graça clara que sahia de toda a
sua força mascula. Era o seu viço que deslumbrava. A vida de tão varias
e trabalhosas actividades não lhe cavára uma prega de fadiga. Parecia
ter emergido, havia momentos, assim de quinzena preta e barbeado, do
fundo vivo da Natureza. E apesar de Vidigal me ter contado que Fradique
festejára os «trinta e tres» em Cintra, pela festa de S. Pedro, eu
sentia n'aquelle corpo a robustez tenra e agil de um ephebo, na infancia
do mundo grego. Só quando sorria ou quando olhava se surprehendiam
immediatamente n'elle vinte seculos de litteratura.
Depois de lêr a carta, Fradique Mendes abriu os braços, n'um gesto
desolado e risonho, implorando a misericordia de Vidigal. Tratava-se,
como sempre, da Alfandega, fonte perenne das suas amarguras! Agora tinha
lá encalhado um caixote, contendo uma mumia egypcia...
--Uma mumia...?
Sim, perfeitamente, uma mumia historica, o corpo veridico e veneravel de
Pentaour, escriba ritual do Templo de Amnon em Thebas, e chronista de
Ramèzes II. Mandára-o vir de Paris para dar a uma senhora da Legação
d'Inglaterra, Lady Ross, sua amiga d'Athenas, que em plena frescura e
plena ventura, colleccionava antiguidades funerarias do Egypto e da
Assyria... Mas, apesar d'esforços sagazes, não conseguia arrancar o
defunto letrado aos armazens da Alfandega--que elle enchera de confusão
e de horror. Logo na primeira tarde, quando Pentaour desembarcára,
enfaixado dentro do seu caixão, a Alfandega aterrada avisou a policia.
Depois, calmadas as desconfianças d'um crime, surgira uma insuperavel
difficuldade:--que artigo da pauta se poderia applicar ao cadaver d'um
hierogrammata do tempo de Ramèzes? Elle Fradique suggerira o artigo que
taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que é um arenque
defumado senão a mumia, sem ligaduras e sem inscripções, d'um arenque
que viveu? Ter sido peixe ou escriba nada importava para os effeitos
fiscaes. O que a Alfandega via diante de si era o corpo d'uma creatura,
outr'ora palpitante, hoje seccada ao fumeiro. Se ella em vida nadava
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