A correspondência de Fradique Mendes - 06

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do general Terran-d'Azy. Fradique, que soffria de repugnancias
intolerantes, não se quiz cobrir com o agasalho d'aquelle official
rabugento e catarrhoso, e atravessou a praça da Concordia a pé, de
casaca, até ao club da _Rue Royale_. A noite estava sêcca e clara, mas
cortada por uma d'essas brizas subtis, mais tenues que um halito, que
durante leguas se afiam sobre planicies nevadas do norte, e já eram
comparadas pelo velho André Vasali a «um punhal traiçoeiro». Ao outro
dia acordou com uma tosse leve. Indifferente porém aos resguardos,
seguro d'uma robustez que affrontára tantos ares inclementes, foi a
Fontainebleau com amigos no alto d'um _mail-coach_. Logo n'essa noite,
ao recolher, teve um longo e intenso arripio; e trinta horas depois, sem
soffrimento, tão serenamente que durante algum tempo Smith o julgou
adormecido, Fradique, como diziam os antigos, «tinha vivido». Não acaba
mais dôcemente um bello dia de verão.
O dr. Labert declarou que fôra uma fórma rarissima de pleuriz. E
accrescentou, com um exacto sentimento das felicidades
humanas:--«_Toujours de la chance, ce Fradique!_»
Acompanharam a sua passagem derradeira pelas ruas de Paris, sob um céo
cinzento de neve, alguns dos mais gloriosos homens de França nas coisas
do saber e da arte. Lindos rostos, já pisados pelo tempo, o choraram, na
saudade das emoções passadas. E, em pobres moradas, em torno a lares sem
lume, foi decerto tambem lamentado este sceptico de finas letras, que
cuidava dos males humanos envolto em cabaias de sêda.
Jaz no _Père-Lachaise_, não longe da sepultura de Balzac, onde no dia
dos Mortos elle mandava sempre collocar um ramo d'essas violetas de
Parma que tanto amára em vida o creador da _Comedia Humana_. Mãos fieis,
por seu turno, conservam sempre perfumado de rosas frescas o marmore
simples que o cobre na terra.


VI

O erudito moralista que assigna _Alceste_ na _Gazette de Paris_ dedicou
a Fradique Mendes uma Chronica em que resume assim o seu espirito e a
sua acção:--«Pensador verdadeiramente pessoal e forte, Fradique Mendes
não deixa uma obra. Por indifferença, por indolencia, este homem foi o
dissipador d'uma enorme riqueza intellectual. Do bloco d'ouro em que
poderia ter talhado um monumento imperecivel--tirou elle durante annos
curtas lascas, migalhas, que espalhou ás mãos cheias, conversando, pelos
salões e pelos clubs de Paris. Todo esse pó d'ouro se perdeu no pó
commum. E sobre a sepultura de Fradique, como sobre a do grego
desconhecido de que canta a Anthologia, se poderia escrever:--«Aqui jaz
o ruido do vento que passou derramando perfume, calor e sementes em
vão...»
Toda esta chronica vem lançada com a usual superficialidade e
inconsideração dos francezes. Nada menos reflectido que as designações
de _indolencia_, _indifferença_, que voltam repetidamente, n'essa pagina
bem ornada e sonora, como para marcar com precisão a natureza de
Fradique. Elle foi ao contrario um homem todo de paixão, de acção, de
tenaz labor. E escassamente póde ser accusado de _indolencia_, de
_indifferença_, quem, como elle, fez duas campanhas, apostolou uma
religião, trilhou os cinco continentes, absorveu tantas civilisações,
percorreu todo o saber do seu tempo.
O chronista da _Gazette de Paris_ acerta porém, singularmente,
affirmando que d'esse duro obreiro não resta uma obra. Impressas e dadas
ao mundo só d'elle conhecemos com effeito as poesias das Lapidarias,
publicadas na _Revolução de Setembro_--e esse curioso poemeto em latim
barbaro, _Laus Veneris Tennebrosae_, que appareceu na _Revue de Poésie
et d'Art_, fundada em fins de 69 em Paris por um grupo de poetas
symbolistas. Fradique porém deixou manuscriptos. Muitas vezes, na rua de
Varennes, os entrevi eu dentro d'um cofre hespanhol do seculo XIV, de
ferro lavrado, que Fradique denominava a _valla commum_. Todos esses
papeis (e a plena disposição d'elles) foram legados por Fradique áquella
_Libuska_ de quem elle largamente falla nas suas cartas a Madame de
Jouarre, e que se nos torna tão familiar e real «com os seus velludos
brancos de Veneziana e os seus largos olhos de Juno».
Esta senhora, que se chamava Varia Lobrinska, era da velha familia russa
dos Principes de Palidoff. Em 1874 seu marido Paulo Lobrinski, diplomata
silencioso e vago, que pertencera ao regimento das Guardas Imperiaes, e
escrevia _capitaine_ com _t_, _e_, (_capiténe_) morrera em Paris, por
fins d'outono, ainda moço, de uma languida e longa anemia.
Immediatamente Madame Lobrinska, com solemne magoa, cercada d'aias e de
crépes, recolheu ás suas vastas propriedades russas perto de Starobelsk,
no governo de Karkoff. Na primavera, porém, voltou com as flôres dos
castanheiros,--e desde então habitava Paris em luxuosa e risonha viuvez.
Um dia, em casa de Madame de Jouarre, encontrou Fradique, que, enlevado
então no culto das Litteraturas slavas, se occupava com paixão do mais
antigo e nobre dos seus poemas, o _Julgamento de Libuska_, casualmente
encontrado em 1818 nos archivos do castello de Zelene-Hora. Madame
Lobrinska era parenta dos senhores de Zelene-Hora, condes de
Colloredo--e possuia justamente uma reproducção das duas folhas de
pergaminho que contêm a velha epopeia barbara.
Ambos leram esse texto heroico--até que o dôce instante veio em que,
como os dois amorosos de Dante, «não leram mais no dia todo». Fradique
dera a Madame Lobrinska o nome de _Libuska_, a rainha que no
_Julgamento_ apparece «vestida de branco e resplandecente de sapiencia».
Ella chamava a Fradique _Lucifer_. O poeta das Lapidarias morreu em
novembro:--e dias depois Madame Lobrinska recolhia de novo á melancolia
das suas terras, junto de Starobelsk, no governo de Karkoff. Os seus
amigos sorriram, murmuraram com sympathia que Madame Lobrinska fugira,
para chorar entre os seus moujiks a sua segunda viuvez--até que
reflorecesse os lilazes. Mas d'esta vez _Libuska_ não voltou, nem com as
flôres dos castanheiros.
O marido de Madame Lobrinska era um Diplomata que estudava e praticava
sobretudo os _menus_ e os _cotillons_. A sua carreira foi portanto
irremediavelmente subalterna e lenta. Durante seis annos jazeu no Rio de
Janeiro, entre os arvoredos de Petropolis, como Secretario, esperando
aquella legação na Europa que o Principe Gortchakoff, então Chanceller
Imperial, affirmava pertencer a Madame Lobrinska _par droit de beauté et
de sagesse_. A legação na Europa, n'uma capital mundana, culta, sem
bananeiras, nunca veio compensar aquelles exilados que soffriam das
saudades da neve:--e Madame Lobrinska, no seu exilio, chegou a aprender
tão completamente a nossa dôce lingua de Portugal, que Fradique me
mostrou uma traducção da elegia de Lavoski, _A Collina do Adeus_,
trabalhada por ella com superior pureza e relevo. Só ella pois,
realmente, d'entre todas as amigas de Fradique, podia apreciar como
paginas vivas, onde o pensador depozera a confidencia do seu pensamento,
esses manuscriptos que para as outras seriam apenas sêccas e mortas
folhas de papel, cobertas de linhas incomprehendidas.
Logo que comecei a colleccionar as cartas dispersas de Fradique Mendes,
escrevi a Madame Lobrinska contando o meu empenho em fixar n'um estudo
carinhoso as feições d'esse transcendente espirito--e implorando, se não
alguns extractos dos seus manuscriptos, ao menos algumas revelações
_sobre a sua natureza_. A resposta de Madame Lobrinska foi uma recusa,
bem determinada, bem deduzida,--mostrando que decerto sob «os claros
olhos de Juno» estava uma clara razão de Minerva. «Os papeis de Carlos
Fradique (dizia em summa) tinham-lhe sido confiados, a ella que vivia
longe da publicidade, e do mundo que se interessa e lucra na
publicidade, com o intuito de que para sempre conservassem o caracter
intimo e secreto em que tanto tempo Fradique os mantivera: e n'estas
condições o _revelar a sua natureza_ seria manifestamente contrariar o
recatado e altivo sentimento que dictára esse legado...» Isto vinha
escripto, com uma letra grossa e redonda, n'uma larga folha de papel
aspero, onde a um canto brilhava a ouro, sob uma corôa d'ouro, esta
divisa--Per terram ad coelum.
D'este modo se estabeleceu a obscuridade em torno dos manuscriptos de
Fradique. Que continha realmente esse cofre de ferro, que Fradique com
desconsolado orgulho denominava a _valla commum_, por julgar pobres e
sem brilho no mundo os pensamentos que para lá arrojava?
Alguns amigos pensam que ahi se devem encontrar, se não completas, ao
menos esboçadas, ou já coordenadas nos seus materiaes, as duas obras a
que Fradique alludia como sendo as mais captivantes para um pensador e
um artista d'este seculo--uma _Psychologia das Religiões_ e uma _Theoria
da Vontade_.
Outros (como J. Teixeira d'Azevedo) julgam que n'esses papeis existe um
romance de realismo epico, reconstruindo uma civilisação extincta, como
a _Salammbô_. E deduzem essa supposição (desamoravel) d'uma carta a
Oliveira Martins, de 1880, em que Fradique exclamava, com uma ironia
mysteriosa:--«Sinto-me resvalar, caro historiador, a praticas culpadas e
vãs! Ai de mim, ai de mim, que me foge a penna para o mal! Que demonio
malfazejo, coberto do pó das Idades, e sobraçando in-folios
archeologicos, me veio murmurar uma d'estas noites, noite de duro
inverno e de erudição decorativa:--«Trabalha um romance! E no teu
romance resuscita a antiguidade asiatica!»? E as suas suggestões
pareceram-me dôces, amigo, d'uma doçura lethal!... Que dirá vossê,
dilecto Oliveira Martins, se um dia desprecavidamente no seu lar receber
um tomo meu, impresso com solemnidade, e começando por estas
linhas:--«_Era em Babylonia, no mez de Sivanù, depois da colheita do
balsamo?..._» Decerto, vossê (d'aqui o sinto) deixára pender a face
aterrada entre as mãos tremulas, murmurando:--«Justos céos! Ahi vem
sobre nós a descripção do templo das Sete-Espheras, com todos os seus
terraços! a descripção da batalha de Halub, com todas as suas armas! a
descripção do banquete de Sennacherib, com todas as suas iguarias!...
Nem os bordados d'uma só tunica, nem os relevos d'um só vaso nos serão
perdoados! E é isto um amigo intimo!»
Ramalho Ortigão, ao contrario, inclina a crêr que os papeis de Fradique
contêm _Memorias_--porque só a _Memorias_ se póde coherentemente impôr a
condição de permanecerem secretas.
Eu por mim, d'um melhor e mais contínuo conhecimento de Fradique,
concluo que elle não deixou um livro de Psychologia, nem uma Epopeia
archeologica (que certamente pareceria a Fradique uma culpada e vã
ostentação de saber pittoresco e facil), nem _Memorias_--inexplicaveis
n'um homem todo de idéa e de abstracção, que escondia a sua vida com tão
altivo recato. E affirmo afoutamente que n'esse cofre de ferro, perdido
n'um velho solar russo, não existe uma _obra_--porque Fradique nunca foi
verdadeiramente um _auctor_.
Para o ser não lhe faltaram decerto as idéas--mas faltou-lhe a certeza
de que ellas, pelo seu valor _definitivo_, merecessem ser registradas e
perpetuadas: e faltou-lhe ainda a arte paciente, ou o querer forte, para
produzir aquella fórma que elle concebera em abstracto como a unica
digna, por bellezas especiaes e raras, de encarnar as suas idéas.
Desconfiança de si como pensador, cujas conclusões, renovando a
philosophia e a sciencia, podessem imprimir ao espirito humano um
movimento inesperado; desconfiança de si como escriptor e creador d'uma
Prosa, que só por si propria, e separada do valor do pensamento,
exercesse sobre as almas a acção ineffavel do absolutamente bello--eis
as duas influencias negativas que retiveram Fradique para sempre inedito
e mudo. Tudo o que da sua intelligencia emanasse queria elle que
perpetuamente ficasse actuando sobre as intelligencias pela definitiva
verdade ou pela incomparavel belleza. Mas a critica inclemente e sagaz
que praticava sobre os outros, praticava-a sobre si, cada dia, com
redobrada sagacidade e inclemencia. O sentimento, tão vivo n'elle, da
Realidade fazia-lhe distinguir o seu proprio espirito tal como era, na
sua real potencia e nos seus reaes limites, sem que lh'o mostrassem mais
potente ou mais largo esses «fumos da illusão litteraria»--que levam
todo o homem de letras, mal corre a penna sobre o papel, a tomar por
faiscantes raios de luz alguns sujos riscos de tinta. E concluindo que,
nem pela idéa, nem pela fórma, poderia levar ás intelligencias persuasão
ou encanto que definitivamente marcassem na evolução da razão ou do
gosto--preferiu altivamente permanecer silencioso. Por motivos
nobremente diferentes dos de Descartes, elle seguiu assim a maxima que
tanto seduzia Descartes--_bene vixit qui bene latuit_.
Nenhum d'estes sentimentos elle me confessou; mas todos lh'os
surprehendi, transparentemente, n'um dos derradeiros Nataes que vim
passar á rua de Varennes, onde Fradique pelas festas do anno me
hospedava com immerecido esplendor. Era uma noite de grande e ruidoso
inverno: e desde o café, com os pés estendidos á alta chamma dos
madeiros de faia que estalavam na chaminé, conversavamos sobre a Africa
e sobre religiões Africanas. Fradique recolhera na região do Zambeze
notas muito flagrantes, muito vivas, sobre os cultos nativos--que são
divinisações dos chefes mortos, tornados pela morte _Mulungus_,
Espiritos dispensadores das coisas boas e más, com residencia divina nas
cubatas e nas collinas onde tiveram a sua residencia carnal; e,
comparando os ceremoniaes e os fins d'estes cultos selvagens da Africa
com os primitivos ceremoniaes liturgicos dos Aryas em Septa-Sandou,
Fradique concluia (como mostra n'uma carta d'esse tempo a Guerra
Junqueiro) que na religião o que ha de real, essencial, necessario e
eterno é o Ceremonial e a Liturgia--e o que ha de artificial, de
supplementar, de dispensavel, de transitorio é a Theologia e a Moral.
Todas estas coisas me prendiam irresistivelmente, sobretudo pelos traços
de vida e de natureza africana com que vinham illuminadas. E sorrindo,
seduzido:
--Fradique! porque não escreve vossê toda essa sua viagem á Africa?
Era a vez primeira que eu suggeria ao meu amigo a idéa de compôr um
livro. Elle ergueu a face para mim com tanto espanto como se eu lhe
propozesse marchar descalço, através da noite tormentosa, até aos
bosques de Marly. Depois, atirando a cigarette para o lume, murmurou com
lentidão e melancolia:
--Para que?... Não vi nada na Africa, que os outros não tivessem já
visto.
E como eu lhe observasse que vira talvez d'um modo differente e
superior; que nem todos os dias um homem educado pela philosophia, e
saturado de erudição, faz a travessia da Africa; e que em sciencia uma
só verdade necessita mil experimentadores--Fradique quasi se
impacientou:
--Não! Não tenho sobre a Africa, nem sobre coisa alguma n'este mundo,
conclusões que por alterarem o curso do pensar contemporaneo valesse a
pena registrar... Só podia apresentar uma série de impressões, de
paizagens. E então peor! Porque o verbo humano, tal como o fallamos, é
ainda impotente para encarnar a menor impressão intellectual ou
reproduzir a simples fórma d'um arbusto... Eu não sei escrever! Ninguem
sabe escrever!
Protestei, rindo, contra aquella generalisação tão inteiriça, que tudo
varria, desapiedadamente. E lembrei que a bem curtas jardas da chaminé
que nos aquecia, n'aquelle velho bairro de Paris onde se erguia a
Sorbonna, o Instituto de França e a Escóla Normal, muitos homens
houvera, havia ainda, que possuiam do modo mais perfeito a «bella arte
de dizer».
--Quem? exclamou Fradique.
Comecei por Bossuet. Fradique encolheu os hombros, com uma irreverencia
violenta que me emmudeceu. E declarou logo, n'um resumo cortante, que
nos dois melhores seculos da litteratura franceza, desde o _meu_ Bossuet
até Beaumarchais, nenhum prosador para elle tinha relevo, côr,
intensidade, vida... E nos modernos nenhum tambem o contentava. A
distenção retumbante de Hugo era tão intoleravel como a flaccidez oleosa
de Lamartine. A Michelet faltava gravidade e equilibrio; a Renan solidez
e nervo; a Taine fluidez e transparencia; a Flaubert vibração e calor. O
pobre Balzac, esse, era d'uma exuberancia desordenada e barbarica. E o
preciosismo dos Goncourt e do seu mundo parecia-lhe perfeitamente
indecente...
Aturdido, rindo, perguntei áquelle «feroz insatisfeito» que prosa pois
concebia elle, ideal e miraculosa, que merecesse ser escripta. E
Fradique, emocionado (porque estas questões de fórma desmanchavam a sua
serenidade) balbuciou que queria em prosa «alguma coisa de crystallino,
de avelludado, de ondeante, de marmoreo, que só por si, plasticamente,
realisasse uma absoluta belleza--e que expressionalmente, como verbo,
tudo podesse traduzir desde os mais fugidios tons de luz até os mais
subtis estados d'alma...»
--Emfim, exclamei, uma prosa como não póde haver!
--Não! gritou Fradique, uma _prosa como ainda não ha!_
Depois, ajuntou, concluindo:
--E como ainda a não ha, é uma inutilidade escrever. Só se podem
produzir fórmas sem belleza: e dentro d'essas mesmas só cabe metade do
que se queria exprimir, porque a outra metade não é reductivel ao verbo.
Tudo isto era talvez especioso e pueril, mas revelava o sentimento que
mantivera mudo aquelle superior espirito--possuido da sublime ambição de
só produzir verdades absolutamente definitivas por meio de fórmas
absolutamente bellas.
Por isso, e não por indolencia de meridional como insinua
_Alceste_,--Fradique passou no mundo, sem deixar outros vestigios da
formidavel actividade do seu sêr pensante além d'aquelles que por longos
annos espalhou, á maneira do sabio antigo, «em conversas com que se
deleitava, á tarde, sob os platanos do seu jardim, ou em cartas, que
eram ainda conversas naturaes com os amigos de que as ondas o
separavam...» As suas conversas, o vento as levou--não tendo, como o
velho dr. Johnson, um Boswell, enthusiasta e paciente, que o seguisse
pela cidade e pelo campo, com as largas orelhas attentas, e o lapis
prompto a tudo notar e tudo eternizar. D'elle pois só restam as suas
cartas--leves migalhas d'esse ouro de que falla _Alceste_, e onde se
sente o brilho, o valor intrinseco, e a preciosidade do bloco rico a que
pertenceram.


VII

Se a vida de Fradique foi assim governada por um tão constante e claro
proposito de abstenção e silencio--eu, publicando as suas Cartas, pareço
lançar estouvada e traiçoeiramente o meu amigo, depois da sua morte,
n'esse ruido e publicidade a que elle sempre se recusou por uma rigida
probidade de espirito. E assim seria--se eu não possuisse a evidencia de
que Fradique incondicionalmente approvaria uma publicação da sua
Correspondencia, organisada com discernimento e carinho. Em 1888, n'uma
carta em que lhe contava uma romantica jornada na Bretanha, alludia eu a
um livro que me acompanhára e me encantára, a _Correspondencia de Xavier
Doudan_--um d'esses espiritos recolhidos que vivem para se aperfeiçoar
na verdade e não para se glorificar no mundo, e que, como Fradique, só
deixou vestigios da sua intensa vida intellectual na sua
Correspondencia, colligida depois com reverencia pelos confidentes do
seu pensamento.
Fradique, na carta que me volveu, toda occupada dos Pyrenéos onde
gastára o verão, accrescentava n'um _post-scriptum_:--«A Correspondencia
de Doudan é realmente muito legivel; ainda que através d'ella apenas se
sente um espirito naturalmente limitado, que desde novo se entranhou no
doutrinarismo da escola de Genebra, e que depois, cahido em solidão e
doença, só pelos livros conheceu a vida, os homens e o mundo. Li em todo
o caso essas cartas--como leio todas as collecções de Correspondencias,
que, não sendo didacticamente preparadas para o publico (como as de
Plinio), constituem um estudo excellente de psychologia e de historia.
Eis-ahi uma maneira de perpetuar as idéas d'um homem que eu afoutamente
approvo--publicar-lhe a corresponcia! Ha desde logo esta immensa
vantagem:--que o valor das idéas (e portanto a escolha das que devem
ficar) não é decidido por aquelle que as concebeu, mas por um grupo de
amigos e de criticos, tanto mais livres e mais exigentes no seu
julgamento quanto estão julgando um morto que só desejam mostrar ao
mundo pelos seus lados superiores e luminosos. Além d'isso uma
Correspondencia revela melhor que uma obra a individualidade, o homem; e
isto é inestimavel para aquelles que na terra valeram mais pelo caracter
do que pelo talento. Accresce ainda que, se uma obra nem sempre augmenta
o peculio do saber humano, uma Correspondencia, reproduzindo
necessariamente os costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar
contemporaneo e ambiente, enriquece sempre o thesouro da documentação
historica. Temos depois que as cartas d'um homem, sendo o producto
quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua
philosophia--que é apenas a creação impessoal do seu espirito. Uma
Philosophia offerece meramente uma conjectura mais que se vai juntar ao
immenso montão das conjecturas: uma Vida que se confessa constitue o
estudo d'uma realidade humana, que, posta ao lado de outros estudos,
alarga o nosso conhecimento do Homem, unico objectivo _accessivel_ ao
esforço intellectual. E finalmente como _cartas são palestras escriptas_
(assim affirma não sei que classico), ellas dispensam o revestimento
sacramental da _tal prosa como não ha_... Mas este ponto precisava ser
mais desembrulhado--e eu sinto parar á porta o cavallo em que vou trepar
ao pico de Bigorre».
Foi a lembrança d'esta opinião de Fradique, tão clara e fundamentada,
que me decidiu, apenas em mim se foi calmando a saudade d'aquelle
camarada adoravel, a reunir as suas cartas para que os homens alguma
coisa podessem aprender e amar n'aquella intelligencia que eu tão
estreitamente amára e seguira. A essa carinhosa tarefa devotei um
anno--porque a correspondencia de Fradique, que, desde os quietos
habitos a que se acolhera depois de 1880 aquelle «andador de
continentes», era a mais preferida das suas occupacões, apresenta a
vastidão e a copiosidade da correspondencia de Cicero, de Voltaire, de
Proudhon, e d'outros poderosos remexedores de idéas.
Sente-se logo o prazer com que compunha estas cartas na fórma do
papel--esplendidas folhas de Whatman, eburneas bastante para que a penna
corresse n'ellas com o desembaraço com que a voz corta o ar; vastas
bastante para que n'ellas coubesse o desenrolamento da mais complexa
idéa; fortes bastante, na sua consistencia de pergaminho, para que não
prevalecesse contra ellas o carcomer do tempo. «Calculei já, ajudado
pelo Smith (affirma elle a Carlos Mayer), que cada uma das minhas
cartas, n'este papel, com enveloppe e estampilha, me custa 250 reis. Ora
suppondo vaidosamente que cada quinhentas cartas minhas contêm uma
idéa--resulta que cada idéa me fica por _cento e vinte e cinco mil
reis_. Este méro calculo bastará para que o Estado, e a economica
Classe-Média que o dirige, empeçam com ardor a educação--provando, como
inilludivelmente prova, que fumar é mais barato que pensar...
Contrabalanço _pensar_ e _fumar_, porque são, ó Carlos, duas operações
identicas que consistem em atirar pequenas nuvens ao vento».
Estas dispendiosas folhas têm todas a um canto as iniciaes de
Fradique--F. M.--minusculas e simples, em esmalte escarlate. A letra que
as enche, singularmente desigual, offerece a maior similitude com a
conversação de Fradique: ora cerrada e fina, parecendo morder o papel
como um buril para contornar bem rigorosamente a idéa; ora hesitante e
demorada, com riscos, separações, como n'aquelle esforço tão seu de
tentear, espiar, cercar a real realidade das coisas: ora mais fluida e
rapida, lançada com facilidade e largueza, lembrando esses momentos de
abundancia e de veia que Fontan de Carmanges denominava _le dégel de
Fradique_, e em que o gesto estreito e sobrio se lhe desmanchava n'um
esvoaçar de flammula ao vento.
Fradique nunca datava as suas cartas: e, se ellas vinham de moradas
familiares aos seus amigos, notava méramente o nome do mez. Existem
assim cartas innumeraveis com esta resumida indicação--_Paris, Julho_;
_Lisboa, Fevereiro_... Frequentemente, tambem, restituia aos mezes as
alcunhas naturalistas do kalendario republicano--_Paris, Floreal_;
_Londres, Nivoze_. Quando se dirigia a mulheres substituia ainda o nome
do mez pelo da flôr que melhor o symbolisa; e possuo assim cartas com
esta bucolica data--_Florença, primeiras violetas_ (o que indica fins de
fevereiro); _Londres, chegada dos Chrysanthemos_ (o que indica começos
de setembro). Uma carta de Lisboa offerece mesmo esta data
atroz--Lisboa, _primeiros fluxos da verborreia parlamentar!_ (Isto
denuncia um janeiro triste, com lama, tipoias no largo de S. Bento, e
bachareis em cima bolsando, por entre injurias, fézes de velhos
compendios).
Não é portanto possivel dispôr a Correspondencia de Fradique por uma
ordem chronologica: nem de resto essa ordem importa desde que eu não
edito a sua Correspondencia completa e integral, formando uma historia
continua e intima das suas idéas. Em cartas que não são d'um _auctor_ e
que não constituem, como as de Voltaire ou de Proudhon, o corrente e
constante commentario que acompanha e illumina a obra, cumpria sobretudo
destacar as paginas que com mais saliencia revelassem a
_personalidade_--o conjunto de idéas, gostos, modos, em que
tangivelmente se sente e se palpa o homem. E por isso, n'estes pesados
maços das cartas de Fradique, escolho apenas algumas, soltas, d'entre as
que mostram traços de caracter e relances da existencia activa; d'entre
as que deixam entrevêr algum instructivo episodio da sua vida de
coração; d'entre as que, revolvendo noções geraes sobre a litteratura, a
arte, a sociedade e os costumes, caracterisam o feitio do seu
pensamento; e ainda, pelo interesse especial que as realça, d'entre as
que se referem a coisas de Portugal, como as suas «impressões de
Lisboa», transcriptas com tão maliciosa realidade para regalo de Madame
de Jouarre.
Inutil seria decerto, n'estas laudas fragmentaes, procurar a summa do
alto e livre Pensar de Fradique ou do seu Saber tão fundo e tão certo. A
correspondencia de Fradique Mendes, como diz finamente Alceste--_c'est
son genie qui mousse_. N'ella, com effeito, vemos apenas a espuma
radiante e ephemera que fervia e transbordava, emquanto em baixo jazia o
vinho rico e substancial que não foi nunca distribuido nem serviu ás
almas sedentas. Mas, assim ligeira e dispersa, ella mostra todavia, em
excellente relevo, a imagem d'este homem tão superiormente interessante
em todas as suas manifestações de pensamento, de paixão, de
sociabilidade e de acção.

Além do meu desejo que os contemporaneos venham a amar este espirito que
tanto amei--eu obedeço, publicando as cartas de Fradique Mendes, a um
intuito de puro e seguro patriotismo.
Uma nação só vive porque pensa. _Cogitat ergo est._ A Força e a Riqueza
não bastam para provar que uma nação vive d'uma vida que mereça ser
glorificada na Historia--como rijos musculos n'um corpo e ouro farto
n'uma bolsa não bastam para que um homem honre em si a Humanidade. Um
reino d'Africa, com guerreiros incontaveis nas suas aringas e
incontaveis diamantes nas suas collinas, será sempre uma terra bravia e
morta, que, para lucro da Civilisação, os Civilisados pisam e retalham
tão desassombradamente como se sangra e se corta a rez bruta para nutrir
o animal pensante. E por outro lado se o Egypto ou Tunis formassem
resplandecentes centros de Sciencias, de Litteraturas e de Artes, e,
através de uma serena legião de homens geniaes, incessantemente
educassem o mundo--nenhuma nação, mesmo n'esta idade de ferro e de
força, ousaria occupar como um campo maninho e sem dono esses sólos
augustos d'onde se elevasse, para tornar as almas melhores, o enxame
sublime das Idéas e das Fórmas.
Só na verdade o Pensamento e a sua creação suprema, a Sciencia, a
Litteratura, as Artes, dão grandeza aos Povos, attrahem para elles
universal reverencia e carinho, e, formando dentro d'elles o thesouro de
verdades e de bellezas que o mundo precisa, os tornam perante o mundo
sacrosantos. Que differença ha, realmente, entre Paris e Chicago? São
duas palpitantes e productivas cidades--onde os palacios, as
instituições, os parques, as riquezas, se equivalem soberbamente. Porque
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