A correspondência de Fradique Mendes - 07

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fórma pois Paris um fóco crepitante de Civilisação que irresistivelmente
fascina a humanidade--e porque tem Chicago apenas sobre a terra o valor
de um rude e formidavel celleiro onde se procura a farinha e o grão?
Porque Paris, além dos palacios, das instituições e das riquezas de que
Chicago tambem justamente se gloría, possue a mais um grupo especial de
homens--Renan, Pasteur, Taine, Berthelot, Coppée, Bonnat, Falguieres,
Gounod, Massenet--que pela incessante produccão do seu cerebro convertem
a banal cidade que habitam n'um centro de soberano ensino. Se as
_Origens do Christianismo_, o _Fausto_, as telas de Bonnat, os marmores
de Falguieres, nos viessem d'além dos mares, da nova e monumental
Chicago--para Chicago, e não para Paris, se voltariam, como as plantas
para o sol, os espiritos e os corações da Terra.
Se uma nação, portanto, só tem superioridade porque tem pensamento, todo
aquelle que venha revelar na nossa patria um novo homem de original
pensar concorre patrioticamente para lhe augmentar a unica grandeza que
a tornará respeitada, a unica belleza que a tornará amada;--e é como
quem aos seus templos juntasse mais um sacrario ou sobre as suas
muralhas erguesse mais um castello.
Michelet escrevia um dia, n'uma carta, alludindo a Anthero de
Quental:--«Se em Portugal restam quatro ou cinco homens como o auctor
das _Odes Modernas_, Portugal continúa a ser um grande paiz vivo...» O
mestre da _Historia de França_ com isto significava--que emquanto viver
pelo lado da Intelligencia, mesmo que jaza morta pelo lado da Acção, a
nossa patria não é inteiramente um cadaver que sem escrupulo se pise e
se retalhe. Ora no Pensamento ha manifestações diversas: e se nem todas
irradiam o mesmo esplendor, todas provam a mesma vitalidade. Um livro de
versos póde sublimemente mostrar que a alma de uma nação vive ainda pelo
Genio Poetico: um conjunto de leis salvadoras, emanando de um espirito
positivo, póde solidamente comprovar que um povo vive ainda pelo Genio
Politico:--mas a revelação de um espirito como o de Fradique assegura
que um paiz vive tambem pelos lados menos grandiosos, mas valiosos
ainda, da graça, da vivaz invenção, da transcendente ironia, da
phantasia, do humorismo e do gosto...
Nos tempos incertos e amargos que vão, Portuguezes d'estes não podem
ficar para sempre esquecidos, longe, sob a mudez de um marmore. Por isso
eu o revelo aos meus concidadãos--como uma consolação e uma esperança.


AS CARTAS


I

AO VISCONDE DE A.-T.

Londres, maio.

_Meu caro patricio._--Só hontem á noite, tarde, ao recolher do campo,
encontrei o bilhete com que consideravelmente me honrou, perguntando á
minha experiencia--«qual é o melhor alfaiate de Londres». Depende isso
inteiramente do fim para que V. necessita esse Artista. Se pretende
meramente um homem que lhe cubra a nudez com economia e conforto, então
recommendo-lhe aquelle que tiver taboleta mais perto do seu Hotel. São
tantos passos que forra--e, como diz o _Ecclesiastes_, cada passo
encurta a distancia da sepultura.
Se porém V., caro patricio, deseja um alfaiate que lhe dê consideração e
valor no seu mundo; que V. possa citar com orgulho, á porta da Havaneza,
rodando lentamente para mostrar o córte ondeado e fino da cinta; que o
habilite a mencionar os Lords que lá encontrou, escolhendo d'alto, com
ponta da bengala, cheviotes para blusas de caça; e que lhe sirva mais
tarde, na velhice, á hora gêba do rheumatismo, como recordação
consoladora de elegancias moças--então com ardente instancia lhe
aconselho o Cook (o Thomaz Cook) que é da mais extremada moda,
absolutamente ruinoso, e falha tudo.
Para subsequentes conselhos de «fornecedores», em Londres ou outros
pontos do Universo, permanece sempre ao seu grato serviço--Fradique
Mendes.


II

A MADAME DE JOUARRE
(_Trad._)[2]

Paris, dezembro.

_Minha querida madrinha._--Hontem, em casa de Madame de Tressan, quando
passei, levando para a ceia Libuska, estava sentada, conversando
comsigo, por debaixo do atroz retrato da Marechala de Mouy, uma mulher
loura, de testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez por lhe
presentir, apesar de tão indolentemente enterrada n'um divan, uma rara
graça no andar, graça altiva e ligeira de Deusa e de ave. Bem differente
da nossa sapiente Libuska, que se move com o esplendido peso de uma
estatua! E do interesse por esse outro passo, possivelmente alado e
_dianico_ (de Diana), provém estas garatujas.
Quem era? Supponho que nos chegou do fundo da provincia, d'algum velho
castello do Anjou com herva nos fossos, porque me não lembro de ter
encontrado em Paris aquelles cabellos fabulosamente louros como o sol de
Londres em dezembro--nem aquelles hombros descahidos, dolentes,
_angelicos_, imitados de uma madona de Montegna, e inteiramente
desusados em França desde o reinado de Carlos X, do _Lyrio no Valle_, e
dos corações incomprehendidos. Não admirei com igual fervor o vestido
preto, onde reinavam coisas escandalosamente amarellas. Mas os braços
eram perfeitos; e nas pestanas, quando as baixava, parecia pender um
romance triste. Deu-me assim a impressão, ao começo, de ser uma elegiaca
do tempo de Chateaubriand. Nos olhos porém surprehendi-lhe depois uma
faisca de vivacidade sensivel--que a datava do seculo XVIII. Dirá a
minha madrinha:--«como pude eu abranger tanto, ao passar, com Libuska ao
lado fiscalisando?» É que voltei. Voltei, e da hombreira da porta
readmirei os hombros dolentes de virgem do seculo XIII; a massa de
cabellos que o mólho de velas por traz, entre as orchideas, nimbava
d'ouro; e sobretudo o subtil encanto dos olhos--dos olhos finos e
languidos... Olhos _finos e languidos_. É a primeira expressão em que
hoje apanho decentemente a realidade.
Porque é que não me adiantei, e não pedi uma «apresentação?» Nem sei.
Talvez o requinte em _retardar_, que fazia com que La-Fontaine,
dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse sempre o caminho mais
longo. Sabe o que dava tanta seducção ao palacio das Fadas, nos tempos
do rei Arthur? Não sabe. Resultados de não lêr Tennyson... Pois era a
immensidade d'annos que levava a chegar lá, através de jardins
encantados, onde cada recanto de bosque offerecia a emoção inesperada
d'um _flirt_, d'uma batalha, ou d'um banquete... (Com que morbida
propensão acordei hoje para o estylo asiatico!) O facto é que, depois da
contemplação junto á hombreira, voltei a cear ao pé da minha radiante
tyranna. Mas por entre o banal sandwich de _foie-gras_, e um copo de
Tokay em nada parecido com aquelle Tokay que Voltaire, já velho, se
recordava de ter bebido em casa de Madame d'Etioles (os vinhos dos
Tressans descendem em linha varonil dos venenos da Brinvilliers), vi,
constantemente _vi_, os _olhos finos e languidos_. Não ha senão o homem,
entre os animaes, para misturar a languidez d'um olhar fino a fatias de
_foie-gras_. Não o faria decerto um cão de boa raça. Mas seriamos nós
desejados pelo «ephemero feminino» se não fosse esta providencial
brutalidade? Só a porção de Materia que ha no homem faz com que as
mulheres se resignem á incorrigivel porção d'Ideal que n'elle ha
tambem--para eterna perturbação do mundo. O que mais prejudicou
Petrarcha aos olhos de Laura--foram os _Sonetos_. E quando Romeu, já com
um pé na escada de sêda, se demorava, exhalando o seu extasi em
invocações á Noite e á Lua--Julietta batia os dedos impacientes no
rebordo do balcão, e pensava: «Ai, que palrador que és, filho dos
Montaigus!» Este detalhe não vem em Shakspeare--mas é comprovado por
toda a Renascença. Não me amaldiçôe por esta sinceridade de meridional
sceptico, e mande-me dizer que nome tem, na sua parochia, a loura
castellã do Anjou. A proposito de castellos: cartas de Portugal
annunciam-me que o kiosque por mim mandado erguer em Cintra, na minha
quintarola, e que lhe destinava como «seu pensadoiro e retiro nas horas
de sésta»--abateu. Tres mil e oitocentos francos achatados em entulho.
Tudo tende á ruina n'um paiz de ruinas. O architecto que o construiu é
deputado, e escreve no _Jornal da Tarde_ estudos melancolicos sobre as
Finanças! O meu procurador em Cintra aconselha agora, para reedificar o
kiosque, um estimavel rapaz, de boa familia, que entende de construcções
e que é empregado na Procuradoria Geral da Corôa! Talvez se eu
necessitasse um Jurisconsulto me propozessem um trolha. É com estes
elementos alegres que nós procuramos restaurar o nosso imperio d'Africa!
Servo humilde e devoto--Fradique.


III

A OLIVEIRA MARTINS

Paris, maio.

_Querido amigo._--Cumpro emfim a promessa feita na sua erudita ermida
das Aguas-Ferreas, n'aquella manhã de Março em que conversavamos ao sol
sobre o caracter dos Antigos,--e remetto, como documento, a photographia
da mumia de Ramèzes II (que o francez banal, continuador do grego banal,
teima em chamar Sezostris), recentemente descoberta nos sarcophagos
reaes de Medinet-Abou pelo professor Maspero.
Caro Oliveira Martins, não acha V. picarescamente suggestivo este
facto--_Ramèzes photographado_?... Mas ahi está justificada a
mumificação dos cadaveres, feita pelos bons Egypcios com tanta fadiga e
tanta despeza, para que os homens gozassem na sua fórma terrena, segundo
diz o Escriba, «as vantagens da Eternidade!» Ramèzes, como elle
acreditava e lhe affirmavam os metaphysicos de Thebas, resurge
effectivamente «com todos os seus ossos e a pelle que era sua» n'este
anno da Graça de 1886. Ora 1886, para um Pharaoh da decima-nona
dynastia, mil e quatrocentos annos anterior a Christo, representa muito
decentemente a _Eternidade_ e a _Vida-Futura_. E eis-nos agora podendo
contemplar as «proprias feições» do maior dos Ramezidas, tão realmente
como Hokem seu Eunuco-Mór, ou Pentaour seu Chronista-Mór, ou aquelles
que outr'ora em dias de triumphos corriam a juncar-lhe o caminho de
flôres, trazendo «os seus chinós de festa e a cutis envernizada com
oleos de Segabai». Ahi o tem V. agora diante de si, em photographia, com
as palpebras baixas e sorrindo. E que me diz a essa face real? Que
humilhantes reflexões não provoca ella sobre a irremediavel degeneração
do homem! Onde ha ahi hoje um, entre os que governam povos, que tenha
essa soberana fronte de calmo e incommensuravel orgulho; esse superior
sorriso de omnipotente benevolencia, d'uma ineffavel benevolencia que
cobre o mundo; esse ar de imperturbada e indomavel força; todo esse
esplendor viril que a treva de um hypogeo, durante tres mil annos, não
conseguiu apagar? Eis-ahi verdadeiramente um _Dono de homens_! Compare
esse semblante augusto com o perfil sôrno, obliquo e bigodoso d'um
Napoleão III; com o focinho de _bull-dog_ acorrentado d'um Bismarck; ou
com o carão do Czar russo, um carão parado e affavel que podia ser o do
seu Copeiro-Mór. Que chateza, que fealdade tacanha d'estes rostos de
poderosos!
D'onde provém isto? De que a alma modela a face como o sopro do antigo
oleiro modelava o vaso fino:--e hoje, nas nossas civilisações, não ha
logar para que uma alma se affirme e se produza na absoluta expansão da
sua força. Outr'ora um simples homem, um feixe de musculos sobre um
feixe d'ossos, podia erguer-se e operar como um elemento da Natureza.
Bastava ter o illimitado querer--para d'elle tirar o illimitado poder.
Eis-ahi em Ramèzes um sêr que tudo quer e tudo póde, e a quem Phtah, o
Deus sagaz, diz com espanto: «a tua vontade dá a vida e a tua vontade dá
a morte!» Elle impelle a seu bel-prazer as raças para norte, para sul ou
para leste; elle altera e arraza, como muros n'um campo, as fronteiras
dos reinos; as cidades novas surgem das suas pegadas; para elle nascem
todos os fructos da terra, e para elle se volta toda a esperança dos
homens; o logar para onde volve os seus olhos é bemdito e prospéra, e o
logar que não recebe essa luz benefica jaz como «o torrão que o Nilo não
beijou»; os deuses dependem d'elle, e Amnon estremece inquieto quando,
diante dos pylones do seu templo, Ramèzes faz estalar as tres cordas
entrançadas do seu latego de guerra! Eis um _homem_--e que seguramente
póde affirmar no seu canto triumphal:--«Tudo vergou sob a minha força:
eu vou e venho com as passadas largas d'um leão; o rei dos deuses está á
minha direita e tambem á minha esquerda; quando eu fallo o céo escuta;
as coisas da terra estendem-se a meus pés, para eu as colher com mão
livre; e para sempre estou erguido sobre o throno do mundo!»
«O mundo», está claro, era aquella região, pela maior parte arenosa, que
vai da cordilheira Libyca á Mesopotamia: e nunca houve mais petulante
emphase do que nas Panegyrias dos Escribas. Mas o homem é, ou suppõe
ser, inigualavelmente grande. E esta consciencia da grandeza, do
incircumscripto poder vem necessariamente resplandecer na physionomia e
dar essa altiva magestade, repassada de risonha serenidade, que Ramèzes
conserva mesmo além da vida, resequido, mumificado, recheado de betume
da Judêa.
Veja V. por outro lado as condições que cercam hoje um poderoso do typo
Bismarck. Um desgraçado d'esses não está acima de nada e depende de
tudo. Cada impulso da sua vontade esbarra com a resistencia d'um
obstaculo. A sua acção no mundo é um perpetuo bater de craneo contra
espessuras de portas bem defendidas. Toda a sorte de convenções, de
tradições, de direitos, de preceitos, de interesses, de principios, se
lhe levanta a cada instante diante dos passos como marcos sagrados. Um
artigo de jornal fal-o estacar, hesitante. A rabulice d'um legista
obriga-o a encolher precipitadamente a garra que já ia estendendo. Dez
burguezes nedios e dez professores guedelhudos, votando dentro d'uma
sala, estatelam por terra o alto andaime dos seus planos. Alguns florins
dentro d'um sacco tornam-se o tormento das suas noites. É-lhe tão
impossivel dispôr d'um cidadão como d'um astro. Nunca póde avançar d'uma
arrancada, erecto e seguro: tem de ser ondeante e rastejante. A
vigilancia ambiente impõe-lhe a necessidade vil de fallar baixo e aos
cantos. Em vez de «recolher as coisas da terra, com mão
livre»--surripia-as ás migalhas, depois de escuras intrigas. As
irresistiveis correntes de idéas, de sentimentos, de interesses,
trabalham por baixo d'elle, em torno d'elle: e parecendo dirigil-as,
pelo muito que braceja e ronca d'alto, é na realidade por ellas
arrastado. Assim um omnipotente do typo Bismarck vai por vezes em
apparencia no cimo das grandes coisas;--mas como a boia solta vai no
cimo da torrente.
Miseravel omnipotencia! E o sentimento d'esta miseria não póde deixar de
influenciar a physionomia dos nossos poderosos dando-lhe esse feitio
contrafeito, crispado, torturado, azedado e sobretudo _amolgado_ que se
nota na cara de Napoleão, do czar, de Bismarck, de todos os que reunem a
maior somma de poder contemporaneo--o feitio _amolgado_ d'uma coisa que
rola aos encontrões, batendo contra muralhas.
Em conclusão:--a mumia de Ramèzes II (unica face authentica do homem
antigo que conhecemos) prova que, tendo-se tornado impossivel uma vida
humana vivida na sua maxima liberdade e na sua maxima força, sem outros
limites que os do proprio querer--resultou perder-se para sempre, no
typo physico do homem, a summa e perfeita expressão da grandeza. Já não
ha uma face sublime: ha carantonhas mesquinhas onde a bilis cava rugas
por entre os recortes do pêllo. As unicas physionomias nobres são as das
feras, genuinos Ramèzes no seu deserto, que nada perderam da sua força,
nem da sua liberdade. O homem moderno, esse, mesmo nas alturas sociaes,
é um pobre Adão achatado entre as duas paginas d'um codigo.
Se V. acha todo isto excessivo e phantasista, attribua-o a que jantei
hontem, e conversei inevitavelmente, com o seu correligionario P.,
conselheiro d'estado, _e muchas cosas más_. _Más_ em hespanhol; e _más_
também em portuguez no sentido de pessimas. Esta carta é a reacção
violenta da conversa conselheiral e conselheirifera. Ah, meu amigo,
desditoso amigo, que faz V. depois de receber o fluxo labial d'um
conselheiro? Eu tomo um banho por dentro--um banho lustral, immenso
banho de phantasia, onde despejo como perfume idoneo um frasco de
Shelley ou de Masset. Amigo certo _et nunc et semper_--Fradique Mendes.


IV

A MADAME S.

Paris, fevereiro.

_Minha cara amiga._--O hespanhol chama-se D. Ramon Covarubia, mora na
Passage Saulnier, 12, e como é aragonez, e portanto sobrio, creio que
com dez francos por lição se contentará amplamente. Mas se seu filho já
sabe o castelhano necessario para entender os _Romanceros_, o _D.
Quichote_, alguns dos «Piccarescos», vinte paginas de Quevedo, duas
comedias de Lope de Vega, um ou outro romance de Galdós, que é tudo
quanto basta lêr na litteratura de Hespanha,--para que deseja a minha
sensata amiga que elle pronuncie esse castelhano que sabe com o accento,
o sabor, e o sal d'um madrileno nascido nas veras pedras da Calle-Mayor?
Vai assim o dôce Raul desperdiçar o tempo que a Sociedade lhe marcou
para adquirir idéas e noções (e a Sociedade a um rapaz da sua fortuna,
do seu nome e da sua belleza, apenas concede, para esse abastecimento
intellectual, sete annos, dos onze aos dezoito)--em quê? No luxo de
apurar até a um requinte superfino, e superfluo, o mero instrumento de
adquirir noções e idéas. Porque as linguas, minha boa amiga, são apenas
instrumentos do saber--como instrumentos de lavoura. Consumir energia e
vida na aprendizagem de as pronunciar tão genuina e puramente que pareça
que se nasceu dentro de cada uma d'ellas, e que por meio de cada uma se
pediu o primeiro pão e agua da vida--é fazer como o lavrador, que em vez
de se contentar, para cavar a terra, com um ferro simples encabado n'um
pau simples, se applicasse, durante os mezes em que a horta tem de ser
trabalhada, a embutir emblemas no ferro e esculpir flôres e folhagens ao
comprido do pau. Com um hortelão assim, tão miudamente occupado em
alindar e requintar a enxada, como estariam agora, minha senhora, os
seus pomares Touraine?
Um homem só deve fallar, com impeccavel segurança e pureza, a lingua da
sua terra:--todas as outras as deve fallar mal, orgulhosamente mal, com
aquelle accento chato e falso que denuncía logo o estrangeiro. Na lingua
verdadeiramente reside a nacionalidade;--e quem fôr possuindo com
crescente perfeição os idiomas da Europa vai gradualmente soffrendo uma
desnacionalisação. Não ha já para elle o especial e exclusivo encanto da
_falla materna_ com as suas influencias affectivas, que o envolvem, o
isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente
lhe dá o cosmopolitismo do caracter. Por isso o polyglota nunca é
patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no
organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu
patriotismo desapparece, diluido em estrangeirismo. _Rue de Rivoli_,
_Calle d'Alcalá_, _Regent Street_, _Wilhem Strasse_--que lhe importa?
Todas são ruas, de pedra ou de macadam. Em todas a falla ambiente lhe
offerece um elemento natural e congenere onde o seu espirito se move
livremente, espontaneamente, sem hesitações, sem attritos. E como pelo
Verbo, que é o instrumento essencial da fusão humana, se póde fundir com
todas--em todas sente e aceita uma Patria.
Por outro lado, o esforço contínuo de um homem para se exprimir, com
genuina e exacta propriedade de construcção e de accento, em idiomas
estranhos--isto é, o esforço para se confundir com gentes estranhas no
que ellas têm de essencialmente caracteristico, o Verbo--apaga n'elle
toda a individualidade nativa. Ao fim de annos esse habilidoso, que
chegou a fallar absolutamente bem outras linguas além da sua, perdeu
toda a originalidade de espirito--porque as suas idéas forçosamente
devem ter a natureza incaracteristica e neutra que lhes permitta serem
indifferentemente adaptadas ás linguas mais oppostas em caracter e
genio. Devem, de facto, ser como aquelles «corpos de pobre» de que tão
tristemente falla o povo--«que cabem bem na roupa de toda a gente».
Além d'isso, o proposito de pronunciar com perfeição linguas
estrangeiras constitue uma lamentavel sabujice para com o estrangeiro.
Ha ahi, diante d'elle, como o desejo servil de _não sermos nós mesmos_,
de nos fundirmos n'elle, no que elle tem de mais seu, de mais proprio, o
Vocabulo. Ora isto é uma abdicação de dignidade nacional. Não, minha
senhora! Fallemos nobremente mal, patrioticamente mal, as linguas dos
outros! Mesmo porque aos estrangeiros o polyglota só inspira
desconfiança, como sêr que não tem raizes, nem lar estavel--sêr que rola
através das nacionalidades alheias, successivamente se disfarça n'ellas,
e tenta uma installação de vida em todas porque não é tolerado por
nenhuma. Com effeito, se a minha amiga percorrer a Gazeta dos Tribunaes
verá que o perfeito polyglotismo é um instrumento da alta _escroquerie_.
E aqui está como, levado pelo dilettantismo das idéas, em vez d'um
endereço eu lhe forneço um tratado!... Que a minha garrulice ao menos a
faça sorrir, pensar, e poupar ao nosso Raul o trabalho medonho de
pronunciar _Viva la Gracia!_ e _Benditos sean tus ojos!_
exactissimamente como se vivesse a uma esquina da _Puerta del Sol_, com
uma capa de bandas de velludo, chupando o cigarro de Lazarillo. Isto
todavia não impede que se utilisem os serviços de D. Ramon. Elle, além
de Zorrillista, é guitarrista; e póde substituir as lições na lingua de
Quevedo por lições na guitarra de Almaviva. O seu lindo Raul ganhará
ainda assim uma nova faculdade de exprimir--a faculdade de exprimir
emoções por meio de cordas de arame. E este dom é excellente! Convem
mais na mocidade, e mesmo na velhice, saber, por meio das quatro cordas
d'uma viola, desafogar a alma das coisas confusas e sem nome que n'ella
tumultuam, do que poder, através das estalagens do mundo, reclamar com
perfeição o pão e o queijo--em sueco, hollandez, grego, bulgaro e
polaco.
E será realmente indispensavel mesmo para prover, através do mundo,
estas necessidades vitaes d'estomago e alma--o trilhar, durante annos,
pela mão dura dos mestres, «os descampados e atoleiros das grammaticas e
pronuncias», como dizia o velho Milton? Eu tive uma admiravel tia que
fallava unicamente o portuguez (ou antes o minhoto) e que percorreu toda
a Europa com desafôgo e conforto. Esta senhora, risonha mas dyspeptica,
comia simplesmente ovos--que só conhecia e só comprehendia sob o seu
nome nacional vernaculo de _ovos_. Para ella _huevos_, _oeufs_, _eggs_,
_das ei_, eram sons da Natureza bruta, pouco differençaveis do coaxar
das rãs, ou d'um estalar de madeira. Pois quando em Londres, em Berlim,
em Paris, em Moscow, desejava os seus ovos--esta expedita senhora
reclamava o famulo do Hotel, cravava n'elle os olhos agudos e bem
explicados, agachava-se gravemente sobre o tapete, imitava com o rebolar
lento das saias tufadas uma gallinha no chôco, e gritava _ki-ki-ri-ki!_
_kó-kó-ri-ki!_ _kó-ró-kó-kó!_ Nunca, em cidade ou região intelligente do
Universo, minha tia deixou de comer os seus ovos--e superiormente
frescos!
Beijo as suas mãos, benevola amiga--Fradique.


V

A GUERRA JUNQUEIRO

Paris, maio.

_Meu caro amigo._--A sua carta transborda de illusão poetica. Suppôr,
como V. candidamente suppõe, que trespassando com versos (ainda mesmo
seus, e mais rutilantes que as flechas de Apollo) a Igreja, o Padre, a
Liturgia, as Sacristias, o jejum da sexta-feira e os ossos dos Martyres,
se póde «desentulhar Deus da alluvião sacerdotal», e elevar o Povo (no
Povo V. decerto inclue os conselheiros de Estado) a uma comprehensão
toda pura e abstracta da Religião--a uma religião que consista apenas
n'uma Moral apoiada n'uma Fé--é ter da Religião, da sua essencia e do
seu objecto, uma sonhadora idéa de sonhador teimoso em sonhos!
Meu bom amigo, uma Religião a que se elimine o Ritual
desapparece--porque as Religiões para os homens (com excepção dos raros
Metaphysicos, Moralistas e Mysticos) não passa d'um conjunto de Ritos
através dos quaes cada povo procura estabelecer uma communicação intima
com o seu Deus e obter d'elle favores. Este, só este, tem sido o fim de
todos os cultos, desde o mais primitivo, do culto de Indra, até ao culto
recente do coração de Maria, que tanto o escandalisa na sua parochia--oh
incorrigivel beato do idealismo!
Se V. o quer verificar historicamente, deixe Vianna do Castello, tome um
bordão, e suba commigo por essa antiguidade fóra até um sitio bem
cultivado e bem regado que fica entre o rio Indo, as escarpas do
Hymalaia, e as arêas d'um grande deserto. Estamos aqui em Septa-Sindhou,
no paiz das Sete-Aguas, no Valle Feliz, na terra dos Aryas. No primeiro
povoado em que pararmos V. vê, sobre um outeiro, um altar de pedra
coberto de musgo fresco: em cima brilha pallidamente um fogo lento: e em
torno perpassam homens, vestidos de linho, com os longos cabellos presos
por um aro d'ouro fino. São padres, meu amigo! São os primeiros
capellães da humanidade,--e cada um d'elles está, por esta quente
alvorada de maio, celebrando um rito da missa Aryana. Um limpa e
desbasta a lenha que ha de nutrir o lume sagrado; outro pisa dentro d'um
almofariz, com pancadas que devem resoar «como tambor de victoria», as
hervas aromaticas que dão o _Sômma_; este, como um semeador, espalha
grãos de aveia em volta da Ara; aquelle, ao lado, espalmando as mãos ao
céo, entoa um cantico austero. Estes homens, meu amigo, estão executando
um Rito que encerra em si toda a Religião dos Aryas, e que tem por
objecto propiciar Indra--Indra, o sol, o fogo, a potencia divina que
póde encher de ruina e dôr o coração do Arya, sorvendo a agua das regas,
queimando os pastos, desprendendo a pestilencia das lagôas, tornando
Septa-Sindhou mais esteril que o «coração do mau»; ou póde, derretendo
as neves do Hymalaia, e soltando com um golpe de fogo «a chuva que jaz
no ventre das nuvens», restituir a agua aos rios, a verdura aos prados,
a salubridade ás lagôas, a alegria e abundancia á morada do Arya.
Trata-se pois simplesmente de convencer Indra a que, sempre propicio,
derrame sobre Septa-Sindhou todos os favores que póde appetecer um povo
rural e pastoral.
Não ha aqui Metaphysica, nem Ethica--nem explicações sobre a natureza
dos deuses, nem regras para a conducta dos homens. Ha meramente uma
Liturgia, uma totalidade de Ritos, que o Arya necessita observar para
que Indra o attenda--uma vez que, pela experiencia de gerações, se
comprovou que Indra só o escutará, só concederá os beneficios rogados,
quando em torno ao seu altar certos velhos, de certa casta, vestidos de
linho candido, lhe erguerem canticos dôces, lhe offertarem libações, lhe
amontoarem dons de fructa, mel e carne d'anho. Sem dons, sem libações,
sem canticos, sem anho, Indra, amuado e sumido no fundo do Invisivel e
do Intangivel, não descerá á terra a derramar-se na sua bondade. E se
vier de Vianna do Castello um Poeta tirar ao Arya o seu altar de musgo,
o seu pau sacrosanto, o almofariz, o crivo e o vaso do _Sômma_, o Arya
ficará sem meios de propiciar o seu Deus, desattendido do seu Deus--e
será na terra como a creancinha que ninguem nutre e a que ninguem ampara
os passos.
Esta Religião primordial é o typo absoluto e inalteravel das Religiões,
que todas por instincto repetem--e em que todas (apesar dos elementos
estranhos de Theologia, de Metaphysica, de Ethica que lhe introduzem os
espiritos superiores) terminam por se resumir, com reverencia. Em todos
os climas, em todas as raças, ou divinisando as forças da Natureza, ou
divinisando a Alma dos mortos, as Religiões, amigo meu, consistiram
sempre praticamente n'um conjunto de praticas, pelas quaes o homem
simples procura alcançar da amizade de Deus os bens supremos da saude,
da forca, da paz, da riqueza. E mesmo quando, já mais crente no esforço
proprio, pede esses bens á hygiene, á ordem, á lei e ao trabalho, ainda
persiste nos ritos propiciadores para que Deus _ajude_ o seu esforço.
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