A correspondência de Fradique Mendes - 10

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empregado na Alfandega. (E tudo isto por tres mil reis de soldada). Ao
almoço ha dois pratos, sãos e fartos, de ovos e bifes. O vinho vem do
lavrador, vinhinho leve e precoce, feito pelos veneraveis preceitos das
Georgicas, e semelhante decerto ao vinho da Rethia--_quo te carmine
dicam, Rethica?_ A torrada, tratada pelo lume forte, é incomparavel. E
os quatro paineis que ornam a sala, um retrato de Fontes (estadista, já
morto, que é tido pelos portuguezes em grande veneração), uma imagem de
Pio IX sorrindo e abençoando, uma vista da varzea de Collares, e duas
donzellas beijocando uma rôla, inspiram as salutares idéas, tão
necessarias, de Ordem Social, de Fé, de Paz campestre, e de Innocencia.
A patrôa, D. Paulina Soriana, é uma Madama de quarenta outonos,
frescalhota e roliça, com um pescoço muito nedio, e toda ella mais
branca que o chambre branco que usa por sobre uma saia de sêda roxa.
Parece uma excellente senhora, paciente e maternal, de bom juizo e de
boa economia. Sem ser rigorosamente viuva--tem um filho, já gordo
tambem, que roe as unhas e segue o curso dos lyceus. Chama-se Joaquim,
e, por ternura, Quinzinho; soffreu esta primavera não sei que duro mal
que o forçava a infindaveis orchatas e semicupios; e está destinado por
D. Paulina á Burocracia que ella considera, e muito justamente, a
carreira mais segura e a mais facil.
--O essencial para um rapaz (affirmava ha dias a apreciavel senhora,
depois do almoço, traçando a perna) é ter padrinhos e apanhar um
emprego; fica logo arrumado; o trabalho é pouco e o ordenadosinho está
certo ao fim do mez.
Mas D. Paulina está tranquilla com a carreira do Quinzinho. Pela
influencia (que é toda-poderosa n'estes Reinos) d'um amigo certo, o snr.
conselheiro Vaz Netto, ha já no Ministerio das Obras Publicas ou da
Justiça uma cadeira de amanuense, reservada, marcada com lenço, á espera
do Quinzinho. E mesmo como o Quinzinho foi reprovado nos ultimos exames,
já o snr. conselheiro Vaz Netto lembrou que, visto elle se mostrar assim
desmazelado, com pouco gosto pelas letras, o melhor era não teimar mais
nos estudos e no Lyceu, e entrar immediatamente para a repartição...
--Que ainda assim (ajuntou a boa senhora, quando me honrou com estas
confidencias) gostava que o Quinzinho acabasse os estudos. Não era pela
necessidade, e por causa do emprego, como v. exc.^a vê: era pelo gosto.
Quinzinho tem pois a sua prosperidade agradavelmente garantida. De resto
supponho que D. Paulina junta um peculio prudente. Na casa, bem
afreguezada, ha agora sete hospedes--e todos fieis, solidos, gastando,
com os extras, de quarenta e cinco a cincoenta mil reis por mez. O mais
antigo, o mais respeitado (e aquelle que eu precisamente já conheço) é o
Pinho--o Pinho brazileiro, o commendador Pinho. É elle quem todas as
manhãs annuncia a hora do almoço (o relogio do corredor ficou
desarranjado desde o Natal) sahindo do seu quarto ás dez horas,
pontualmente, com a sua garrafa d'agua de Vidago, e vindo occupar á
mesa, já posta, mas ainda deserta, a sua cadeira, uma cadeira especial
de verga, com almofadinha de vento. Ninguem sabe d'este Pinho nem a
idade, nem a familia, nem a terra de provincia em que nasceu, nem o
trabalho que o occupou no Brazil, nem as origens da sua commenda. Chegou
uma tarde de inverno n'um paquete da Mala Real; passou cinco dias no
Lazareto; desembarcou com dois bahús, a cadeira de verga, e cincoenta e
seis latas de dôce de tijolo; tomou o seu quarto n'esta casa de
hospedes, com janella para a travessa; e aqui engorda, pacifica e
risonhamente, com o seis por cento das suas inscripções. É um sujeito
atochado, baixote, de barba grisalha, a pelle escura, toda em tons de
tijolo e de café, sempre vestido de casimira preta, com uma luneta
d'ouro pendente d'uma fita de sêda, que elle, na rua, a cada esquina,
desemmaranha do cordão d'ouro do relogio para lêr com interesse e
lentidão os cartazes dos theatros. A sua vida tem uma d'essas prudentes
regularidades que tão admiravelmente concorrem para crear a ordem nos
Estados. Depois de almoço calça as botas de cano, lustra o chapéo de
sêda, e vai muito devagar até á rua dos Capellistas, ao escriptorio
terreo do corretor Godinho, onde passa duas horas pousado n'um môcho,
junto do balcão, com as mãos cabelludas encostadas ao cabo do
guarda-sol. Depois entala o guarda-sol debaixo do braço, e pela rua do
Ouro, com uma pachorra saboreada, parando a contemplar alguma senhora de
sêdas mais tufadas ou alguma vittoria de librés mais lustrosas, alonga
os passos para a tabacaria Sousa, ao Rocio, onde bebe um copo de agua de
Caneças, e repousa até que a tarde refresque. Segue então para a
Avenida, a gozar o ar puro e o luxo da cidade, sentado n'um banco; ou dá
a volta ao Rocio, sob as arvores, com a face erguida e dilatada em
bem-estar. Ás seis recolhe, despe e dobra a sobrecasaca, calça os
chinelos de marroquim, enverga uma regalada quinzena de ganga, e janta,
repetindo sempre a sopa. Depois do café dá um «hygienico» pela Baixa,
com demoras pensativas, mas risonhas, diante das vitrines de confeitaria
e de modas; e em certos dias sobe o Chiado, dobra a esquina da rua Nova
da Trindade, e regateia, com placidez e firmeza, uma senha para o
Gymnasio. Todas as sextas-feiras entra no seu banco, que é o _London
Brazilian_. Aos domingos, á noitinha, com recato, visita uma moça gorda
e limpa que mora na rua da Magdalena. Cada semestre recebe o juro das
suas inscripcões.
Toda a sua existencia é assim um pautado repouso. Nada o inquieta, nada
o apaixona. O universo, para o commendador Pinho, consta de duas unicas
entidades--elle proprio, Pinho, e o Estado que lhe dá o seis por cento:
portanto o universo todo está perfeito, e a vida perfeita, desde que
Pinho, graças ás aguas de Vidago, conserve appetite e saude, e que o
Estado continue a pagar fielmente o coupon. De resto, pouco lhe basta
para contentar a porção d'Alma e Corpo de que apparentemente se compõe.
A necessidade que todo o sêr vivo (mesmo as ostras, segundo affirmam os
Naturalistas) tem de communicar com os seus semelhantes por meio de
gestos ou sons, é em Pinho pouco exigente. Pelos meados d'abril, sorri e
diz, desdobrando o guardanapo--«temos o verão comnosco»: todos concordam
e Pinho goza. Por meados d'outubro, corre os dedos pela barba e
murmura--«temos comnosco o inverno»: se outro hospede discorda, Pinho
emmudece, porque teme controversias. E esta honesta permutação de idéas
lhe basta. Á mesa, comtanto que lhe sirvam uma sopa succulenta, n'um
prato fundo, que elle possa encher duas vezes--fica consolado e disposto
a dar graças a Deus. O _Diario de Pernambuco_, o _Diario de Noticias_,
alguma comedia do Gymnasio, ou uma Magica, satisfazem e de sobra essas
outras necessidades de intelligencia e de imaginação, que Humboldt
encontrou mesmo entre os Botecudos. Nas funcções do sentimento Pinho só
pretende modestamente (como revelou um dia ao meu primo) «não apanhar
uma doença». Com as coisas publicas está sempre agradado, governe este
ou governe aquelle, comtanto que a policia mantenha a ordem, e que não
se produzam nos principios e nas ruas disturbios nocivos ao pagamento do
coupon. E emquanto ao destino ulterior da sua alma, Pinho (como elle a
mim proprio me assegurou)--«só deseja depois de morto que o não enterrem
vivo». Mesmo ácerca d'um ponto tão importante, como é para um
commendador o seu mausoléo, Pinho pouco requer:--apenas uma pedra lisa e
decente, com o seu nome, e um singelo _orai por elle_.
Errariamos porém, minha querida madrinha, em suppôr que Pinho seja
alheio a tudo quanto seja humano. Não! Estou certo que Pinho respeita e
ama a humanidade. Sómente a humanidade, para elle, tornou-se no decurso
da sua vida excessivamente restricta. Homens, homens serios,
verdadeiramente merecedores d'esse nobre nome, e dignos de que por elles
se mostre reverencia, affecto, e se arrisque um passo que não cance
muito--para Pinho só ha os prestamistas do Estado. Assim, meu primo
Procopio, com uma malicia bem inesperada n'um espiritualista, contou-lhe
ha tempos em confidencia, arregalando os olhos, que eu possuia muitos
papeis! muitas apolices! muitas inscripções!... Pois na primeira manhã
que voltei, depois d'essa revelação, á casa de hospedes, Pinho,
ligeiramente córado, quasi commovido, offereceu-me uma boceta de dôce de
tijolo embrulhada n'um guardanapo. Acto tocante, que explica aquella
alma! Pinho não é um egoista, um Diogenes de rabôna preta, sêccamente
retrahido dentro da pipa da sua inutilidade. Não. Ha n'elle toda a
humana vontade de amar os homens seus semelhantes, e de os beneficiar.
Sómente quem são, para Pinho, os seus genuinos «semelhantes»? Os
prestamistas do Estado. E em que consiste para Pinho o acto de
beneficio? Na cessão aos outros d'aquillo que a elle lhe é inutil. Ora
Pinho não se dá bem com o uso da goiabada--e logo que soube que eu era
um possuidor de inscripções, um seu semelhante, capitalista como elle,
não hesitou, não se retrahiu mais ao seu dever humano, praticou logo o
acto de beneficio, e lá veio, ruborisado e feliz, trazendo o seu dôce
dentro d'um guardanapo.
É o commendador Pinho um cidadão inutil? Não, certamente! Até para
manter em estabilidade e solidez a ordem d'uma nação, não ha mais
prestadio cidadão do que este Pinho, com a sua placidez de habitos, o
seu facil assentimento a todos os feitios da coisa publica, a sua conta
do banco verificada ás sextas-feiras, os seus prazeres colhidos em
hygienico recato, a sua reticencia, a sua inercia. D'um Pinho nunca póde
sahir idéa ou acto, affirmação ou negação, que desmanche a paz do
Estado. Assim gordo e quieto, collado sobre o organismo social, não
concorrendo para o seu movimento, mas não o contrariando tambem, Pinho
apresenta todos os caracteres d'uma excrescencia sebacea. Socialmente,
Pinho é um lobinho. Ora nada mais inoffensivo que um lobinho: e nos
nossos tempos, em que o Estado está cheio de elementos morbidos, que o
parasitam, o sugam, o infeccionam e o sobreexcitam, esta
inoffensibilidade de Pinho póde mesmo (em relação aos interesses da
ordem) ser considerada como qualidade meritoria. Por isso o Estado,
segundo corre, o vai crear barão. E barão d'um titulo que os honra a
ambos, ao Estado e a Pinho, porque é n'elle simultaneamente prestada uma
homenagem graciosa e discreta á Familia e á Religião. O pae de Pinho
chamava-se Francisco--Francisco José Pinho. E o nosso amigo vai ser
feito barão de S. Francisco.
Adeus, minha querida madrinha! Vamos no nosso decimo oitavo dia de
chuva! Desde o começo de junho e das rosas, que n'este paiz de sol sobre
azul, na terra trigueira da oliveira e do louro, queridos a Phebo, está
chovendo, chovendo em fios d'agua cerrados, continuos, imperturbados,
sem sopro de vento que os ondule, nem raio de luz que os diamantise,
formando das nuvens ás ruas uma trama molle de humidade e tristeza, onde
a alma se debate e definha como uma borboleta presa nas teias d'uma
aranha. Estamos em pleno versiculo XVII, do capitulo VII do Genesis. No
caso d'estas aguas do céo não cessarem, eu concluo que as intenções de
Jehovah, para com este paiz peccador, são diluvianas; e, não me julgando
menos digno da Graça e da Alliança divina do que Noé, vou comprar
madeira e betume, e fazer uma Arca segundo os bons modelos hebraicos ou
assyrios. Se por acaso d'aqui a tempos uma pomba branca fôr bater com as
azas á sua vidraça, sou eu que aportei ao Havre na minha Arca, levando
commigo, entre outros animaes, o Pinho e a D. Paulina, para que mais
tarde, tendo baixado as aguas, Portugal se repovoe com proveito, e o
Estado tenha sempre Pinhos a quem peça dinheiro emprestado, e Quinzinhos
gordos com quem gaste o dinheiro que pediu a Pinho. Seu afilhado do
coração--Fradique.


XI

A MR. BERTRAND B.
_Engenheiro na Palestina_

Paris, abril.

_Meu caro Bertrand._--Muito ironicamente, hoje, n'este Domingo de
Paschoa em que os céos contentes, se revestiram paschalmente d'uma
chasula d'ouro e d'azul, e os lilazes novos perfumam o meu jardim para o
santificar, me chega a tua horrenda carta, contando que findaste o
traçado do _Caminho de Ferro de Jaffa a Jerusalem_! E triumphas!
Decerto, á porta de Damasco, com as botas fortes enterradas no pó de
Josaphat, o guarda-sol pousado sobre uma pedra tumular de propheta, o
lapis ainda errante sobre o papel, sorris, todo te dilatas, e através
das lunetas defumadas contemplas, marcada por bandeirinhas, a «linha»
onde em breve, fumegando e guinchando, rolará da velha Jeppo para a
velha Sião o negro comboio da tua negra obra! Em redor os empreiteiros,
limpando o grosso suor da façanha, desarrolham as garrafas da cerveja
festiva! E por traz de vós o Progresso, hirto contra as muralhas de
Herodes, todo engonçado, todo aparafusado, tambem triumpha, esfregando,
com estalidos asperos, as suas rigidas mãos de ferro fundido.
Bem o sinto, bem o comprehendo o teu escandaloso traçado, oh filho
dilecto e fatal da Escóla de Pontes e Calçadas! Nem necessitava esse
plano com que me deslumbras, todo em linhas escarlates, parecendo golpes
d'uma faca vil por cima d'uma carne nobre. É em Jaffa, na antiquissima
Jeppo, já heroica e santa antes do Diluvio, que a tua primeira Estação
com os alpendres, e a carvoeira, e as balanças, e a sineta, e o chefe de
bonet agaloado, se ergue entre esses laranjaes, gabados pelo Evangelho,
onde S. Pedro, correndo aos brados das mulheres, resuscitou Dorcas, a
boa tecedeira, e a ajudou a sahir do seu sepulchro. D'ahi a locomotiva,
com a sua 1.^a classe forrada de chita, rola descaradamente pela
planicie de Saaron, tão amada do céo, que, mesmo sob o bruto pisar das
hordas philistinas, nunca n'ella murchavam anemonas e rosas. Corta
através de Beth-Dagon, e mistura o pó do seu carvão de Cardiff ao
vetusto pó do Templo de Baal, que Samsão, mudo e repassado de tristeza,
derrocou movendo os hombros. Corre por sobre Lydda, e atrôa com guinchos
o grande S. Jorge, que ainda couraçado, emplumado, e o guante sobre a
espada, alli dorme o seu somno terrestre. Toma agua, por um tubo de
couro, do Poço Santo d'onde a Virgem na fugida para o Egypto, repousando
sob o figueiral, deu de beber ao Menino. Pára em Ramleh, que é a velha
Arymathea (_Arymathea, quinze minutos de demora!_), a aldeia dos dôces
hortos e do homem dôce que enterrou o Senhor. Fura, por tunneis
fumarentos, as collinas de Judá, onde choraram os prophetas. Rompe por
entre ruinas que foram a cidadella e depois a sepultara dos Machabeus.
Galga, n'uma ponte de ferro, a torrente em que David errante escolhia
pedras para a sua funda derrubadora de monstros. Colleia e arqueja pelo
valle melancolico que habitou Jeremias. Suja ainda Emmauz, vara o
Cedron, e estaca emfim, suada, azeitada, sordida de felugem, no valle de
Hennom, no _terminus_ de Jerusalem!
Ora, meu bom Bertrand, eu que não sou das Pontes e Calçadas, nem
accionista da _Companhia dos Caminhos de Ferro da Palestina_, apenas um
peregrino saudoso d'esses logares adoraveis, considero que a tua obra de
civilisação é uma obra de profanação. Bem sei, engenheiro! S. Pedro
resuscitando a velha Dorcas; a florescencia miraculosa das roseiras de
Saaron; o Menino bebendo, na fuga para o Egypto, á sombra das arvores
que os anjos iam adiante semeando,--são fabulas... Mas são fabulas que
ha dois mil annos dão encanto, esperança, abrigo consolador, e energia
para viver a um terço da Humanidade. Os logares onde se passaram essas
historias, decerto muito simples e muito humanas, que depois, pela
necessidade que a alma tem do Divino, se transformaram na tão linda
mythologia christã, são por isso veneraveis. N'elles viveram,
combateram, ensinaram, padeceram, desde Jacob até S. Paulo, todos os
sêres excepcionaes que hoje povoam o céo. Jehovah só entre esses montes
se mostrava, com terrifico esplendor, no tempo em que visitava os
homens. Jesus desceu a esses valles pensativos para renovar o mundo.
Sempre a Palestina foi a residencia preferida da Divindade. Nada de
Material devia pois desmanchar o seu recolhimento Espiritual. E é penoso
que a fumaraça do Progresso suje um ar que conserva o perfume da
passagem dos anjos, e que os seus trilhos de ferro revolvam o sólo onde
ainda não se apagaram as pégadas divinas.
Tu sorris, e accusas precisamente a velha Palestina de ser uma
incorrigivel fonte de Illusão. Mas a illusão, Bertrand amigo, é tão util
como a certeza: e na formação de todo o espirito, para que elle seja
completo, devem entrar tanto os Contos de Fadas como os Problemas de
Euclides. Destruir a influencia religiosa e poetica da Terra Santa,
tanto nos corações simples como nas intelligencias cultas, é um
retrocesso na Civilisação, na verdadeira, n'aquella de que tu não és
obreiro, e que tem por melhor esforço aperfeiçoar a Alma do que reforçar
o Corpo, e, mesmo pelo lado da utilidade, considera um Sentimento mais
util do que uma Machina. Ora, locomotivas manobrando pela Judéa e
Galiléa, com a sua materialidade de carvão e ferro, o seu
desenvolvimento inevitavel de hoteis, omnibus, bilhares e bicos de gaz,
destroem irremediavelmente o poder emotivo da Terra-dos-Milagres, porque
a modernisam, a industrialisam, a banalisam...
Esse poder, essa influencia espiritual da Palestina, de que provinha? De
ella se ter conservado, através d'estes quatro mil annos, immutavelmente
_biblica_ e _evangelica_... Decerto sobrevieram mudanças em Israel; a
administração turca tem menos esplendor que a administração romana; dos
vergeis e jardins que cercavam Jerusalem, só resta penhasco e ortiga; as
cidades, esboroadas, perderam o seu heroismo de cidadellas; o vinho é
raro; todo o saber se apagou; e não duvido que aqui e além, em Sião,
n'algum terraço de mercador levantino, se assobie ao luar a valsa de
_Madame Angot_.
Mas a vida intima, na sua fórma rural, urbana ou nomada, as maneiras, os
costumes, os ceremoniaes, os trajes, os utensilios,--tudo permanece como
nos tempos de Abrahão e nos tempos de Jesus. Entrar na Palestina é
penetrar n'uma Biblia viva. As tendas de pelle de cabra plantadas á
sombra dos sycomoros; o pastor apoiado á sua alta lança, seguido do seu
rebanho; as mulheres, veladas de amarello ou branco, cantando, a caminho
da fonte, com o seu cantaro no hombro; o montanhez atirando a funda ás
aguias; os velhos sentados, pela frescura da tarde, á porta das villas
muradas; os claros terraços cheios de pombas; o escriba que passa, com o
seu tinteiro dependurado da cinta; as servas moendo o grão; o homem de
longos cabellos nazarenos que nos saúda com a palavra de _paz_, e que
conversa comnosco por parabolas; a hospedeira que nos acolhe, atirando,
para passarmos, um tapete ante o limiar da sua morada; e ainda as
procissões nupciaes, e as danças lentas ao rufe-rufe das pandeiretas, e
as carpideiras em torno aos sepulchros caiados,--tudo transporta o
peregrino á velha Judéa das Escripturas, e de um modo tão presente e
real, que a cada momento duvidamos se aquella ligeira e morena mulher,
com largas argolas d'ouro e um aroma de sandalo, que conduz um cordeiro
preso pela ponta do manto, não será ainda Rachel, ou se, entre os homens
sentados além, á sombra da figueira e da vinha, aquelle de curta barba
frisada, que ergue o braço, não será Jesus ensinando.
Esta sensação, preciosa para o crente, é preciosa para o intellectual,
porque o põe n'uma communhão flagrante com um dos mais maravilhosos
momentos da Historia Humana. Decerto seria igualmente interessante (mais
interessante talvez) que se podesse colher a mesma emoção na Grecia, e
que ahi encontrassemos ainda nos seus trajes, nas suas maneiras, na sua
sociabilidade, a grande Athenas de Pericles. Infelizmente, essa Athenas
incomparavel jaz morta, para sempre soterrada, desfeita em pó, sob a
Athenas romana, e a Athenas byzantina, e a Athenas barbara, e a Athenas
musulmana, e a Athenas constitucional e sordida. Por toda a parte o
velho scenario da historia está assim esfrangalhado e em ruinas. Os
proprios montes perderam, ao que parece, a configuração classica: e
ninguem póde achar no Lacio o rio e o fresco valle que Virgilio habitou
e tão virgilianamente cantou. Um unico sitio na terra permanecia ainda
com os aspectos, os costumes, com que o tinham visto, e de que tinham
partilhado, os homens que deram ao mundo uma das suas mais altas
transformações:--e esse sitio era um pedaço da Judéa, da Samaria e da
Galiléa. Se elle fôr grosseiramente modernisado, nivelado ao prototypo
social, querido do seculo, que é o districto de Liverpool ou o
departamento de Marselha, e se assim desapparecer para sempre a
opportunidade educadora de _vêr_ uma grande imagem do Passado, que
profanação, que devastação bruta e barbara! E por perder essa fórma
sobrevivente das civilisações antigas, o thesouro do nosso saber e da
nossa inspiração fica irreparavelmente diminuido.
Ninguem mais do que eu, decerto, aprecia e venera um caminho de ferro,
meu Bertrand;--e ser-me-ia penoso ter de jornadear de Paris a Bordeus,
como Jesus subia do valle de Jerichó para Jerusalem, escarranchado n'um
burro. As coisas mais uteis, porém, são importunas, e mesmo
escandalosas, quando invadem grosseiramente logares que lhes não são
congeneres. Nada mais necessario na vida do que um restaurante: e
todavia ninguem, por mais descrente ou irreverente, desejaria que se
installasse um restaurante com as suas mesas, o seu tinir de pratos, o
seu cheiro a guisados,--nas naves de Norte-Dame ou na velha Sé de
Coimbra. Um caminho de ferro é obra louvavel entre Paris e Bordeus.
Entre Jerichó e Jerusalem basta a egua ligeira que se aluga por dois
drachmas, e a tenda de lona que se planta á tarde entre os palmares, á
beira de uma agua clara, e onde se dorme tão santamente sob a paz
radiante das estrellas da Syria.
E são justamente essa tenda, e o camello grave que carrega os fardos, e
a escolta flammejante de beduinos, e os pedaços de deserto onde se
galopa com a alma cheia de liberdade, e o lyrio de Salomão que se colhe
nas fendas d'uma ruina sagrada, e as frescas paragens junto aos poços
biblicos, e as rememorações do Passado á noite em torno á fogueira do
acampamento, que fazem o encanto da jornada, e attrahem o homem de gosto
que ama as emoções delicadas de Natureza, Historia e Arte. Quando de
Jerusalem se partir para a Galiléa n'um wagon estridente e cheio de pó,
talvez ninguem emprehenda a peregrinação magnifica--a não ser o destro
_commis-voyageur_ que vai vender pelos Bazares chitas de Manchester ou
pannos vermelhos de Sedan. O teu negro comboio rolará vazio. Que pura
alegria essa para todos os entendimentos cultos--que não sejam
accionistas dos _Caminhos de Ferro da Palestina_!...
Mas socega, Bertrand, engenheiro e accionista! Os homens, mesmo os que
melhor servem o Ideal, nunca resistem ás tentações sensualistas do
Progresso. Se d'um lado, á sahida de Jaffa, a propria caravana da Rainha
de Sabá, com os seus elephantes e onagros, e estandartes, e lyras, e os
arautos coroados de anemonas, e todos os fardos abarrotados de pedrarias
e balsamos, infindavel em poesia e lenda, se offerecesse ao homem do
seculo XIX para o conduzir lentamente a Jerusalem e a Salomão--e do
outro lado um comboio, silvando, de portinholas abertas, lhe promettesse
a mesma jornada, sem soalheiras nem solavancos, a vinte kilometros por
hora, com bilhete d'ida e volta, esse homem, por mais intellectual, por
mais eruditamente artista, agarraria a sua chapelleira e enfiaria
sofregamente para o wagon, onde podesse descalçar as botas, e dormitar
de ventre estendido.
Por isso a tua obra maligna prosperará pela propria virtude da sua
malignidade. E, dentro de poucos annos, o occidental positivo que de
manhã partir da velha Jeppo, no seu wagon de 1.^a classe, e comprar na
estação de Gaza a _Gazeta Liberal do Sinai_, e jantar divertidamente em
Ramleh no _Grand-Hotel dos Machabeus_--irá, á noite, em Jerusalem,
através da _Via Dolorosa_ illuminada pela electricidade, beber um bock e
bater tres carambolas no _Casino do Santo Sepulchro_!
Será este o teu feito--e o fim da lenda christã.
Adeus, monstro!--Fradique.


XII

A MADAME DE JOUARRE

Quinta de Refaldes (Minho).

_Minha querida madrinha._--Estou vivendo pinguemente em terras
ecclesiasticas, porque esta quinta foi de frades. Agora pertence a um
amigo meu, que é, como Virgilio, poeta e lavrador, e canta piedosamente
as origens heroicas de Portugal emquanto amanha os seus campos e engorda
os seus gados. Rijo, viçoso, requeimado dos soes, tem oito filhos, com
que vai povoando estas cellas monasticas forradas de cretones claros. E
eu justamente voltei de Lisboa a estes milheiraes do Norte para ser
padrinho do derradeiro, um famoso senhor de tres palmos, côr de tijolo,
todo roscas e regueifas, com uma careca de melão, os olhinhos luzindo
entre rugas como vidrilhos, e o ar profundamente sceptico e velho. No
sabbado, dia de S. Bernardo, sob um azul que S. Bernardo tornára
especialmente vistoso e macio, ao repicar dos sinos claros, entre aromas
de roseira, e jasmineiro, lá o conduzimos, todo enfeitado de laçarotes e
rendas, á Pia, onde o Padre Theotonio inteiramente o lavou da fetida
crosta de Peccado Original, que desde a bolinha dos calcanhares até á
moleirinha o cobria todo, pobre senhor de tres palmos que ainda não
vivera da alma, e já perdera a alma... E desde então, como se Refaldes
fosse a ilha dos Latophagios, e eu tivesse comido em vez da couve-flôr
da horta a flôr do Lotus, por aqui me quedei, olvidado do mundo e de
mim, na doçura d'estes ares, d'estes prados, de toda esta rural
serenidade, que me affaga e me adormece.
O casarão conventual que habitamos, e onde os conegos Regrantes de Santo
Agostinho, os ricos e nedios Cruzios, vinham preguiçar no verão, prende
por um claustro florido de hydrangeas e a uma egreja lisa e sem arte,
com um adro assombreado por castanheiros, pensativo, grave, como são
sempre os do Minho. Uma cruz de pedra encima o portão, onde pende ainda
da corrente de ferro a vetusta e lenta sineta fradesca. No meio do
pateo, a fonte, de boa agua, que canta adormecidamente cahindo de concha
em concha, tem no topo outra cruz de pedra, que um musgo amarellento
reveste de melancolia secular. Mais longe, n'um vasto tanque, lago
caseiro orlado de bancos, onde decerto os bons Cruzios se vinham embeber
pelas tardes de frescura e repouso, a agua das regas, limpida e farta,
brota dos pés de uma santa de pedra, hirta no seu nicho, e que é talvez
Santa Rita. Adiante ainda, na horta, outra santa franzina, sustentando
nas mãos um vaso partido, preside, como uma nayade, ao borbulhar de
outra fonte, que por quelhas de granito vai luzindo e fugindo através do
feijoal. Nos esteios de pedra que sustentam a vinha ha por vezes uma
cruz gravada, ou um coração sagrado, ou o monogramma de Jesus. Toda a
quinta, assim santificada por signos devotos, lembra uma sacristia onde
os tectos fossem de parra, a relva cobrisse os soalhos, por cada fenda
borbulhasse um regato, e o incenso sahisse dos cravos.
Mas, com todos estes emblemas sacros, nada ha que nos môva; ou
severamente nos arraste, aos renunciamentos do mundo. A quinta foi
sempre, como agora, de grossa fartura, toda em campos de pão, bem arada
e bem regada, fecunda, estendida ao sol como um ventre de Nimpha antiga.
Os frades excellentes que n'ella habitaram amavam largamente a terra e a
vida. Eram fidalgos que tomavam serviço na milicia do Senhor, como os
seus irmãos mais velhos tomavam serviço na milicia d'El-rei--e que, como
elles, gozavam risonhamente os vagares, os privilegios e a riqueza da
sua Ordem e da sua Casta. Vinham para Refaldes, pelas calmas de julho,
em seges e com lacaios. A cozinha era mais visitada que a egreja--e
todos os dias os capões alouravam no espeto. Uma poeira discreta velava
a livraria, onde apenas por vezes algum conego rheumatisante e retido
nas almofadas da sua cella mandava buscar o _D. Quichote_, ou as _Farças
de D. Petronilla_. Espanejada, arejada, bem catalogada, com rotulos e
notas traçadas pela mão erudita dos Abbades--só a adega...
Não se procure pois, n'esta morada de monges, o precioso sabor das
tristezas monasticas; nem as quebradas de serra e valle, cheias de ermo
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