A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 10

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braços, n'uma syncope. Um d'elles accende um palito phosphorico no lume
do charuto, e disse que o tenente-coronel tinha o rosto inchado e muito
vermelho. Chamavam-o, sacudiam-no; não dava signal de vida; nem um
ronquido estertoroso. Inclinaram-o sobre um combro de matto molhado;
não lhe acharam pulso; a bôca entortára-se, e os olhos muito abertos
com umas istrias sanguineas. Estava morto, fulminado pela apoplexia
alcoolica.
A respeito d'este desastroso remate do ebrio illustre, escrevo Pinho
Leal: _N'esta retirada pelas duas ou tres horas da noite, morreu em
marcha com uma apoplexia fulminante o P...[11] Coitado! quando me lembra
isto ainda tenho cá meus remorsos de consciencia. Quem sabe se seria eu
a causa da morte d'aquelle pobre diabo? Consola-me porém a certeza de
que--mesma que eu fosse a causa indirecta da morte do fidalgote, poupei
muitas vidas de gente moça (e a minha que era o principal para mim); e
o morto já poucos annos podia durar, pois estava no calçado
velho_.[12]
Zeferino e alguns homens da comitiva do Cerveira passaram o restante da
noite á beira do cadaver do fidalgo de Quadros. Á claridade fusca da
manhã invernosa viram-lhe o semblante que mettia pavor. Quizeram
cerrar-lhe as palpebras que resistiam á distensão, coriaceas, n'um
retezamento orgastico. A maxilla inferior parecia deslocada e torta,
repuxando a commissura direita dos labios n'um esgar de escarneo ou de
angustia dilacerante. A côr do rosto era agora d'uma amarellidão de
barro, molhado pelo orvalho que se filtrára atravez do lenço com que
lh'o cobriram. Tinha os dedos aduncos, inflexiveis e uma das mãos
afincada como garra nas correias da pasta.
O Zeferino disse que o seu tenente-coronel devia trazer um cinturão com
dinheiro em ouro; mas ninguem ousou desabotoar a farda do morto
defendido pelo sagrado terror da morte. Apenas uma das sentinellas,
intanguidas de frio, votou que se bebesse o resto da genebra. Assim que
foi dia claro, o Zeferino desceu á egreja proxima, a Margaride, avisar
o parocho que tinha morrido na estrada um fidalgo do exercito do snr. D.
Miguel. O padre, estremunhado e liberal, respondeu que não era coveiro;
que se dirigisse ao regedor. A auctoridade, sem as delongas dos
processos legaes, depositou o cinturão com as peças na mão do
administrador, e mandou abrir uma cova no adro da egreja, onde o
baldearam com um responso economico. Passavam jornaleiros para as
roças. Punham as enxadas no chão e encostavam ás mãos callosas as
caras contemplativas. O regedor contava que lhe acharam mais de um conto
de réis em ouro.
--Toma!--disse um dos jornaleiros--um conto de réis! E inclinando-se á
orelha d'outro jornaleiro:--Ó Tonio, se temos ido mais cedo para o
monte ... e topamos o morto...
--Que pechincha!...
Restos de virtudes antigas. Estavam a fazer um idyllio em prosa.
O Zeferino acompanhou a guerrilha até que mataram o general em
Traz-os-Montes os soldados do Vinhaes; depois passou com alguns chefes
realistas para a Junta do Porto; e, acabada a lucta, foi para casa e
entregou a espada ao pai, que o recebeu com estas caricias:--Eu sempre
te disse que eras uma cavalgadura! Que te não fiasses no bebado de
Quadros; que não sahisses a campo sem lá vêr o morgado de Barrimáo.
Agora, pedaço d'asno, torna a começar com as paredes, e tem cuidado
que te não deitem a unha. Lembra-te que prendeste o regedor de
Villalva, e quizeste agarrar o brazileiro de Prazins que tem agora de
mais a mais o irmão regedor. Olha se te lembras... A mãe do José Dias
anda por ahi a berrar que a Martha e mais tu lhe mataste o filho. Lume
no olho, homem, lume no olho!
--Se alguem embarrar por mim, dou-lhe cabo da casta!--protestava o
pedreiro cortando com o braço e punho fechado punhadas aereas.--Se me
matarem ... até lh'o agradeço!--E com desalento: Sou o maior infeliz e
desgraçado que cobre a rosa do sol! Veja você: ha tres annos que não
tenho uma migalha de estifação, c'um raio de diabos! Isto acaba mal,
digo-lh'o eu! Você verá, sôr pai, que ou me matam ou eu acabo n'uma
forca pr'ámor d'aquella rapariga que foi o diabo que m'appareceu, e
não me passa d'aqui!--e apertava o gorgomilo nodoso entre dois dedos
como quem apanha uma pulga.

Os administradores de concelho receberam ordem de recolherem as
espingardas reiunas que se encontrassem nas aldeias, em poder do povo.
Para as cabeças dos districtos ramificaram-se destacamentos afim de
coadjuvarem a auctoridade. Simeão de Prazins, como regedor, foi chamado
a Famalicão e incumbido de dirigir a diligencia militar que devia dar
um assalto a Lamellas, a casa do Zeferino, onde se haviam denunciado as
espingardas com que alguns miguelistas se tinham recolhido, contra as
condições estipuladas no protocolo de Gramido. O regedor comprehendeu
o perigo da empreza; pediu que o demittissem; mas a auctoridade
impoz-lhe com azedume o cumprimento dos seus deveres, e negou-lhe a
demissão.
Quando o Zeferino, succumbido á carga dos revezes, indifferente á vida
e á morte, se chamava _infeliz_ e _desgraçado_, o destino implacavel
preparava-lhe novo desastre. Elle, ao romper da manhã, depois de uma
insomnia febril, sonhava que era sargento-mór das Lamellas e assistia
á formatura do regimento de milicias de Barcellos debaixo do solar de
D. Maria Pinheiro. Na janella gothica do velho edificio da época de D.
Affonso IV estava D. Miguel I assistindo ao desfilar do seu exercito
vencedor, em que havia muitas musicas marciaes, de fulgurantes trompas,
tocando o _Rei-chegou_: e o abbade de Calvos, dentro de um carroção e
vestido de pontifical, borrifava o povo com hyssopadas de agua-benta,
cantando o _Bemdito_. As tropas estendiam-se até Barcellinhos, e pelo
Cavado abaixo velejavam muitos barquinhos embandeirados de galhardetes
com as bandas musicaes de S. Thiago d'Antas e de Ruivães tocando a
_Cana-verde_ e _Agua leva o regadinho_. Em um d'esses bergantins com
pavilhão de colchas vermelhas vinha sentada a irmã do padre Roque,
mestre de latim, com os seus oculos, a fazer meia; e ao lado d'ella,
vestida de setim branco e borzeguins vermelhos dourados, com os cabellos
soltos, vestida como os anjos da procissão da Senhora da Burrinha em
Braga, a Martha de Prazins. Elle estava na ponte, absorto na visão da
noiva que chegava pelo Cavado para se casar quando um visinho lhe bateu
com o cabo da sachola na janella tres pancadas. Saltou da cama
atordoado.
--Que fugisse pelo quintal que já estavam soldados a entrar nas
Lamellas com o regedor.
Zeferino ganhou de prompto os desvios d'um pinhal, e por detraz d'um
socalco enxergou o Simeão ao lado do sargento da escolta parar em
frente da sua casa e apontar para as janellas. Ouviu bater estrondosas
cronhadas no portal, e viu alguns soldados invadirem depois o quintal, e
entrarem pela porta da cozinha que ficara aberta. Depois avistou a
escolta a retirar-se com dous homens carregados de armas.
O velho alferes, entrevado, estava muito afflicto quando o filho entrou.
O sargento quizera levar-lhe a sua espada; e compadecera-se d'elle
quando o vira a chorar e a dizer-lhe que era um alferes do antigo
exercito, e que o deixasse morrer ao lado da sua espada, já que elle
não podia defendel-a porque estava tolhido.
O Zeferino perguntou pacificamente:
--E o Simeão que dizia?
--Não dizia nada. Eu é que lhe disse... _Arrieiros somos, na estrada
andamos_, visinho Simeão.
O pedreiro quedou-se longo tempo sentado com as mãos afincadas na
cabeça: olhava para o canto em que tivera duas duzias de espingardas
compradas pelo Cerveira Leite, e dizia com resignação contrafeita:
--Ellas assim com'ássim já não serviam de nada... A guerra acabou ...
Que leve o diabo tudo...--E, passados alguns segundos de recolhida
angustia:--Veja você, sôr pai! O Simeão dá-me a filha, depois diz
que m'a não dá; isto não se fazia a um homem que põe navalha na
cara... Eu levava a minha vida muito direita, estava muito bem, você
bem sabe; deitei-me a trabalhar quanto podia; e vai depois, por causa da
minha paixão, fiquei areado do juizo, deixei a arte, andei por esse
mundo a gastar á minha custa, ao frio e ao calor, em términos de me
levar o diabo com uma bala; e vai agora o Simeão entra-me pela porta
dentro, leva-me as armas, e, se me pilha, mettia-me uma baioneta no
corpo...
--Homem--atalhou o pai com juizo--não fosses tu lá a Prazins embirrar
com o brazileiro...
--Eu tenho a minha paixão--objectou o filho com transporte--tinha cá
dentro do peito esta navalha de ponta espetada; e elle ... que mal lhe
fiz eu p'ra me querer mal?... Sabe você que mais?... Assim com'ássim,
estou perdido...
Sahiu arrebatadamente e foi para o Monte Cordova conversar com o
Patarro, um velho scelerado que se batêra em Braga com a cavallaria do
Casal e pudéra salvar-se com o sacrificio de tres dedos e do nariz
acutilados.

Na semana seguinte, quarta-feira, era o mercado de Famalicão. O regedor
tinha comprado duas juntas de bois para o caseiro da Retorta, uma quinta
solarenga, torreada, com o brazão dos Brandões, que o brazileiro
comprára a um fidalgo de Afife. O negocio deitára a tarde. Simeão
sahira ao desfazer da feira com o caseiro da Retorta e mais dous
lavradores d'outra freguezia que montavam eguas andadeiras de muitos
brios. O Simeão cavalgava a sua velha russa, d'uma pachorra mansa,
invulneravel á espora. Recebia as chibatadas encolhendo os quadris e
andando para traz. Ella não podia manifestar de um modo mais sensivel
a sua repugnancia pelas pressas. O dono gabava-se de só ter cahido
juntamente com ella poucas vezes. Sahiram da feira conversando a
respeito de Martha. Constava aos outros que ella se quizera matar á
conta do José Dias. O Simeão achava que sim, que ella quizera
atirar-se ao rio; mas que estava quasi boa em Caldellas; que o vigario e
mais a irmã lhe tinham dado um geito ao miôlo; e logo que ella
estivesse fina, casava com o tio.
--E elle quél-a? — perguntou o Bento de Penso.
--Pois então!... Tomára-a elle já.
--Emfim--tornou o Bento--você ha-de perdoar que eu lhe diga o que tenho
cá no sentido. O povo diz que o Dias entrava lá de noute. Eu não vi,
mas é o que diz o povo. Ora um home sempre se atriga de casar com
mulher de maus cretos. O seu brazileiro pelos modos é de bô comer...
--Tem bô estomago, é o que é--confirmou o Belchior da Rechousa.
O Simeão não estranhava estas franquezas muito triviaes nas aldeias
ainda immaculadas do resguardo das conveniencias; mas defendia a honra
da filha, attribuindo ao Zeferino as calumnias que espalhava para se
vingar.
--Emfim--disse o Belchior--você tinha-lh'a dado por quinze centos. É o
que diz o povo, e palavra d'home não torna a traz.
--Isso cá da minha parte foi chalaça...--defendia-se o Simeão, quando
tres homens, mascarados com lenços, fincando as argolas dos paus no
caminho, saltaram de uma ribanceira, á frente das tres eguas que
caminhavam a passo. Um dos tres jogou uma paulada á cabeça do Simeão
e derrubou-o.
Os dois lavradores das eguas travadas deram de calcanhares e pareciam
dois duendes de comedia magica vistos á luz crepuscular. O caseiro
abandonou as sôgas dos bois, galgou paredes e searas em desapoderada
fuga até Famalicão, e á entrada da villa gritou--aqui d'el-rei
ladrões! Contou o successo ao povo alvorotado, acudiu a auctoridade,
encheu-se a estrada de gente em cata de Simeão e da malta dos ladrões.
Acharam-o prostrado, de costas, arquejando, com a cara empastada de
sangue que borbotava empoçando-se dos dois lados da cabeça. A egua
rilhava entre os dentes e o freio umas vergonteas tenras de tojo, e de
vez em quando tossia a sua pulmoeira com os ilhaes enfolipados. O
Futrica, um ferrador da Terra Negra, examinou a cabeça do ferido, e
disse que tinha o miôlo á vista; não podia durar muito, que lhe
dessem a santa uncção. Pediu-se uma padiola ao lavrador mais proximo e
levaram-o para Prazins promettendo duas de doze a dous jornaleiros. O
caseiro montou a egua para ir a Santo Thyrso chamar o Baptista, o
cirurgião da casa; mas a burra estranhando as esporas dos tamancos,
levantou-se com o cavalleiro, deixou-se cahir sobre os jarretes
trazeiros, voltou-se de lado como quem se ageita para dormir: foi
necessario levantal-a. O povo dava risadas estridentes quando o caseiro
puxava debaixo do ventre da egua a perna entalada, muito cabelluda; e
alli perto estava a padiola com um velho gemente, agonisante, a pedir a
confissão.
Assim que a padiola entrou em Prazins, foi aviso á Martha que o pai
estava a morrer com pancadas que lhe deram os ladrões de estrada. D.
Thereza e o prior acompanharam-a. Quando chegaram, sahia o parocho de o
confessar e tocava o sino ao viatico. Havia uma agitação de angustiosa
curiosidade no povo que confluia á egreja chamado pelo signal. Dizia-se
que eram ladrões que sahiram ao lavrador em S. Thiago d'Antas; havia
opiniões mais individualistas: segredava-se o nome do pedreiro; um
pastor de cabras dizia que vira passar de madrugada para as Lamellas o
Patarro de Monte Cordova e mais outro mal encarado; mas todos é uma
diziam que não tinham visto nada, nem queriam saber de desgraças, com
medo á malta do Zeferino.
O Simeão estava ainda com a face arregoada de sangue, vestido sobre a
cama, resfolegando com muita anciedade, gemendo com dôres, e a cabeça
um pouco elevada sobre um magro travesseiro muito comprido dobrado em
tres pelo vigario. Esperava-se o cirurgião. A filha teve um desmaio
quando viu a cara ensanguentada do pai, á luz mortiça de uma vela de
cebo n'uma placa de lata. D. Thereza com a Martha nos braços, disse ao
irmão:--Que miseria de casa! Pede luzes e agua para se lavar aquelle
sangue.--E, assim que Martha voltou a si, levou-a para o seu
quarto,--que a viria chamar quando o pai a pudésse vêr. Queria
retiral-a do espectaculo dos paroxismos.
Quando chegou a extrema-uncção com o prestito clamoroso do _Bemdito_ e
o tilintar espacejado da campainha, Martha carpia-se em altos gritos, e
pedia que a deixassem despedir-se de seu pai.
Ella tinha ouvido dizer a uma das visinhas que lhe invadiram a
alcôva:--quem lhe bateu, ó mulheres, não foi outro senão o Zeferino
das Lamellas. Juro que não foi outro.--Esta affirmativa cravou-lhe no
coração o remorso de ser ella a causa da morte do pai. Queria ir
pedir-lhe perdão; rogava á sua amiga que pelas chagas de Christo a
deixasse ir ajoelhar-se á beira de seu desgraçado pai. D. Thereza
conteve-a, receando novo ataque de loucura; que esperasse que se fizesse
o curativo; que o cirurgião não queria no quarto senão o barbeiro que
lhe estava a rapar a cabeça.
Pouco depois chegava o tio Feliciano da quinta da Retorta, onde residia
assistindo ás obras. Vinha aterrado. Disse ao Osorio que já estava
arrependido de comprar a quinta; que Portugal era uma ladroeira e um
bando de faccinoras; que se ia embora muito breve. E, entrando no quarto
onde a sobrinha chorava, disse-lhe consternadamente que, se morresse o
pai, fizesse de conta que tinha em seu tio um segundo pai.
O cirurgião sahiu desconfiado do ferimento. Uma das pauladas despegara
um pedaço de tegumento, deixando descoberto o craneo que o ferrador da
Terra Negra chamára o miôlo. A hemorrhagia era grande, e havia receio
de commoção cerebral. O facultativo, depois de o sangrar, mandou-lhe
pôr pannos molhados na cabeça, de quarto em quarto de hora. Martha e
Thereza não abandonaram um momento o catre do enfermo; o padre Osorio
passou a noite na saleta attendendo o brazileiro que lhe fallava muito
na sobrinha, na paixão que ella tivera pelo José Dias, e não lh'o
levava a mal, pelo contrario.
Ahi pela madrugada o ferido sentiu-se muito angustiado, tinha
estremecimentos, dizia disparates; queria arrancar os pachos da cabeça,
bracejava, e puxava para o peito a face da filha lavada em lagrimas. O
padre acudiu e mais o Feliciano; receavam que elle estivesse agonisando.
Depois aquella agitação esmoreceu n'um dormitar sobresaltado, com a
cabeça no regaço de Martha que brandamente lhe compunha o pacho na
ferida. Quando espertou da modorra conheceu a filha, e repelliu-a.
Fallou no pedreiro que o matára, e recahiu no estado comatoso. O padre
Osorio attribuia aquella somnolencia a derramamento de sangue no craneo,
um symptoma de morte provavel. O cirurgião veio de madrugada,
mandou-lhe deitar sanguesugas atraz das orelhas, e disse ao vigario do
Caldellas que estava mal encarado o negocio; que aquelle diabo de somno
lhe parecia de máo agouro. Que ia vêr uns doentes e voltava logo.
Martha fazia muitas promessas á Senhora da Saude; dez voltas de joelhos
ao redor da sua capella, um resplendor de prata, jejuar a pão e agua
seis mezes a fio, não comer carne durante um anno, ir descalça á
romaria da milagrosa Senhora. Com estas promessas sentia-se menos
opprimida do seu remorso; o pai estava ali a morrer por causa d'ella, e
a Maria de Villalva já dizia tambem que fôra ella a causa da morte do
seu filho. Uma desgraçada, que vinha assim a causar a morte do noivo e
do pai.
O ferido teve uma intermittencia de repousada vigilia. Olhou para a
filha, e disse-lhe que morria, que a deixava sem pai nem mãe. O
Feliciano acudiu:
--Isso não lhe dê cuidado, mano Simeão. Nada lhe ha-de faltar. É
minha sobrinha; não tenho mais ninguem n'este mundo.
--Eu morria contente--balbuciou o Simeão lacrimoso--se ella fosse sua
mulher...
Fez-se um silencio exquisito. Martha abaixou os olhos; a D. Thereza
olhou para o irmão a vêr o que elle dizia; o padre Osorio olhava para
o brazileiro a vêr como se expressavam as suas idéas; o Feliciano
esperava que os outros dissessem alguma coisa. E então o pai de Martha,
aconchegando-a de si, com muita ternura:
--Casas com o teu tio, minha filha? É o ultimo pedido que te faço...
Martha fez um gesto affirmativo, e cahiu de joelhos, curvada sobre o
leito, a soluçar; depois, deu um grito e escorregou para o chão, em
convulsões, com o rosto muito escarlate e a bocca a espumar. D. Thereza
e o irmão conduziram-a ao seu quarto. Deitaram-a já socegada, mas
n'uma rigidez insensivel, com a bocca ligeiramente torta.
O cirurgião chegava n'esta conjunctura e disse que a rapariga herdára
a molestia da mãe, que eram ataques epilepticos; e ao tio Feliciano
disse-lhe particularmente que o peior da herança não era a epilepsia;
era a demencia que levou a mãe ao suicidio. Que a rapariga era fraca, e
tinha sido creada com umas mimalhices de menina da cidade, que estragam
o corpo e a alma; que era preciso ter muito cuidado com ella, não a
affligir, distrahil-a, casal-a, emfim, que seria bom casal-a, e dar-lhe
vinagre a cheirar, quando viesse outro ataque, e ter cuidado que ella
não apanhasse a lingua entre os dentes; que lhe mettessem um panno
entre os dois queixos, quando lhe désse outro ataque.

--Elle disse que o melhor era casar-se--lembrou o Feliciano ao padre
Osorio.

[Nota de rodapé 9: Era o meu actual e pregado amigo Augusto Soares
d'Azevedo Barbosa de Pinho Leal, auctor do "Portugal antigo e moderno".]
[Nota de rodapé 10: Carta de 10 de junho de 1877.]
[Nota de rodapé 11: Quando Pinho Leal publicar as suas _Memorias_,
então se saberá o verdadeiro nome do morto.]
[Nota de rodapé 12: Carta citada.]


XVI

Relatava o vigario de Caldellas:
--O cerebro do Simeão, se era refractario aos golpes da dignidade, não
era mais sensivel ás commoções das pauladas. Duas vezes feliz quanto
á cabeça: nem honra nem predisposições inflammatorias. Cicatrisou a
ferida; começou a comer gallinhas com a fome de um cannibal e com o
prazer carnivoro d'uma raposa. Dera tacitamente Martha o consentimento
de casar com o tio; esperava em soturno abatimento que a casassem; e, se
minha irmã lhe tocava n'esse assumpto, dizia: «Façam de mim o que
quizerem... Para o que eu hei-de viver ... tanto' me faz...» Quanto ao
casamento, proseguiu o padre Osorio, eu scismava se a primeira noite
nupcial seria a véspera de escandalosas desavenças, arrependimentos,
choradeiras, divorcio, vergonhas, coisas; mas occorria-me que Feliciano
me confessára repetidamente que sahira da sua aldeia aos doze annos e
tornára casto e puro como sahira. E eu então, attendendo a que a
castidade, além de ser em si e virtualmente uma coisa boa, tem umas
ignorancias anatomicas, e umas inconscientes condescendencias com as
impurezas alheias, descançava, tranquillisava o meu espirito
escrupuloso. Uma falsa comprehensão da honra alheia ás vezes me
aconselhava que mandasse o brazileiro conversar sobre o assumpto com o
operario que o luar enganára em certa noite; mas a honra, como a
consciencia, não são quantidades constantes no geral das pessoas; são
condições da alma tão variaveis como a materia exposta ás mudanças
climatericas. Ora as condições mentaes e moraes de Feliciano Prazins
eram as melhores e as mais garantidas para a sua felicidade. Com que
direito ia eu estragar aquelle excellente organismo?
Até aqui o padre Osorio com a sua grande pratica ethnologica dos usos e
costumes dos maridos sertanejos do Minho.
O mano lavrador não era mais apontado em melindres de pundonor. Assim
como curára em silencio o coração, golpeado pelas deslealdades da
defunta Genoveva, do mesmo modo se acommodára com os estragos soffridos
nos tegumentos da cabeça. Dizia-lhe o administrador que querelasse
contra o Zeferino, porque havia testemunhas indicativas que faziam
prova. Não quiz.--Depois é que me dão cabo do canastro;--dizia com um
dom prophetico, e circumspecção admiravel em um homem sem instrucção
primaria.
No entanto, Zeferino debatia-se n'um azedume de desesperado, muito má
lingua, insano de paixão, a degenerar para faccinora em theorias de
escavacar meio mundo. Começou a superar-lhe nas entranhas o vicio do
pai com sêdes ardentes de vinho do Porto e genebra. Sentia allivios,
consolações ineffaveis, quando se embebedava; rejuvenescia; a vida
encarava-se-lhe melhor. Arranchava com vadios nas noitadas das tavernas
onde se jogava esquineta e monte. Trocava na mesa da tavolagem peças de
duas caras que comprára no tempo em que amealhára dez mil cruzados com
dez annos de trabalho. Os parceiros roubavam-no. Vinham de noite de
Famalicão a Landim, perto das Lamellas, jogadores professos, armar a
forquinha ao pedreiro com cartas marcadas e pêgo. Depois das perdas,
quando se via atascado na esterqueira do jogo e da borracheira,
embriagava-se de novo, e n'essas allucinações ia a Prazins, de clavina
ao hombro, com o Tagarro de Monte Cordova, e fallava alto, com
petulancia, para que Martha o ouvisse. O brazileiro e o Simeão
tinham-lhe medo e não abriam as janellas depois do sol-posto.
Espalhou-se então a noticia de que o brazileiro ia effectivamente casar
com a sobrinha.
O Zeferino escreveu ao Feliciano uma carta anonyma, que era um traslado
augmentado do depoimento do pedreiro que vira o José Dias saltar da
janella. E por fim ameaçava-o--_que se casasse com a Martha, não a
havia de gosar muito tempo_. O Feliciano mostrou a carta ao irmão.
Concordaram que era o pedreiro com a sua paixão, damnado de raiva. O
brazileiro entrou a scismar que o scelerado era capaz de levar a
vingança ao cabo--bater-lhe, matal-o. Os tiros desfechados á sua honra
de marido de Martha resvalavam-lhe na coiraça da consciencia: «eu sei
o que faço» dizia elle; mas a idéa de um tiro ao seu physico,
inquietava-o devéras. «É preciso dar cabo d'este ladrão» dizia o
brazileiro ao mano, n'um grande mysterio.
Lembrou-lhe o seu compadre, o Francisco Melro da Pena, um taverneiro de
olhos estrabicos, d'alcunha o _Alma-negra_, um que o tinha avisado,
quando a malta da patuleia tencionava agarral-o. O Melro rompera
relações com o Zeferino, por causa da partilha de uns dinheiros
apanhados na mala do correio de Guimarães, e dizia hyperbolicamente ao
seu compadre que o Zeferino, quando andára na patuleia, era ladrão
como rato.
O Melro era má bisca. Estivera tres annos na Relação como cumplice em
um homicidio que se fizera na sua tasca. Vivia apertadamente com mulher
e quatro filhos, e não cessava de pedir emprestimos ao compadre desde
que o avisara. Quando o Simeão foi espancado, o Melro logo lhe disse em
segredo que quem lhe batêra fôra o Zeferino, com as costas guardadas
por dois pimpões do Monte Cordova. E accrescentou:--Elle bem sabe a
quem as faz. Havia de ser commigo eu com pessoa que me doesse...

O Feliciano deu um passeio para os lados da Pena, onde morava o
compadre. Disse-lhe que ia vêr a quinta da Commenda que se vendia; que
lh'a fosse mostrar. Conversaram; e, no regresso, pararam em frente de
uma casa com tres janellas e um quintal espaçoso.
--É aqui, disse o Melro.
O brazileiro poz o monoculo e leu um bilhete pregado na porta com quatro
tachas: _Domingo, ás 10 da manhã, depois da missa, vai á praça a
quem mais dér sobre a avaliação judicial de 500$000 réis esta casa,
dizima a Deus, para partilhas_. O Feliciano leu, retirou-se apressado
para que o não vissem, murmurando quaesquer palavras a que o compadre
Melro respondeu:
--Vossoria então está a lêr! Tão certo tivesse eu o céo como tenho
a casa...
Feliciano seguiu para Prazins e o Melro disse aos freguezes da taverna
que o seu compadre ia comprar a quinta da Commenda, e que estivera a
lêr o escripto da casa do Cambado que se vendia, e dissera que talvez
a comprasse para a dar a um afilhado ...
--Ao teu pequeno?!--perguntavam.
--Pois a quem ha-de ser! Aquillo é que é um homem ás direitas!
--Elle não sabe o que tem de seu. Tanto lhe monta dar-te a casa como a
mim pagar-te um quarteirão d'aguardente--encareceu um pedreiro.--Anda
agora a trabalhar no palacio da Retorta. Que riqueza! Parece um
mosteiro. Pelos modos vai para lá viver logo que case com a Martha. Lá
o mestre Zeferino rebenta que o leva os diabos! Isso diz que dá cada
arranco...
--O Zeferino, a fallar a verdade, tem razão--disse o Melro.--O Simeão
tinha-lh'a promettido. Gente sem palavra que a leve o diabo! Eu, se
fosse commigo... Mas, emfim, é irmão do meu compadre ... não devo
dizer nada. Que se governem.

O Melro, ás 8 da noite, quando os freguezes desalojaram, fechou a
taverna; e, espreitando se os pequenos dormiam, disse á mulher:--A casa
do Cambado é nossa, mas é preciso vindimar o Zeferino...
--Credo!--exclamou a mulher com as mãos na cabeça.--Nossa Senhora nos
acuda!
--Leva rumor!--e punha o dedo no nariz.
--Ó Joaquim, ó marido da minha alma, alembra-te dos tres annos que
penaste na cadeia! Olha para aquelles quatro filhos!...
--Já te disse que me não cantes--e relançava-lhe o seu formidavel
olhar vêsgo incendido com os lampejos da candeia em que afogueava o
cachimbo de páo. Depois, foi tirar d'entre a cama de bancos e a parede
uma velha clavina. Sentou-se á lareira e disse á mulher que tivesse
mão na candeia. Enroscou o sacatrapo na ponta da vareta de ferro e
descarregou a arma, tirando primeiro a bucha de musgo, e depois,
voltando o cano, vazou o chumbo na palma da mão.
--Ó Joaquim, vê lá o que vaes fazer!--insistia a mulher, limpando os
olhos com a estopa da camisa. E elle, assobiando o hymno da Maria da
Fonte, despejava a polvora da escorva, desaparafusava a culatra e tirava
as duas braçadeiras. A mulher soluçava, e elle cantando n'uma surdina
rouca:

_Leva ávante, portuguezes,
Leva ávante, e não temer_...

--Pelas chagas de Nosso Senhor, lembra-te dos nossos pequenos.
E o Melro n'uma distracção lyrica:

_Pela santa liberdade,
Triumphar ou padecer_...

Depois, bufava para dentro do cano e punha o dedo indicador no ouvido da
culatra para sentir a pressão do sopro, que fazia um fremito aspero
impedido pelas escorias nitrosas. Pediu á mulher umas febras d'algodão
em rama, enroscou-as n'uma agulha de albarda e escarafunchou o ouvido do
cano.--Está suja--disse elle--dá cá um todo--nada de aguardente.
--Joaquim, vamo-n'os deitar, pelas almas. Não te desgraces!
--Traz aguardente e cala-te, já t'o disse, mulher, com dez diabos!--E
poz-se a assobiar a _Luizinha_. Enroscou algodão embebido em aguardente
no sacatrapo e esfregou repetidas vezes o interior do cano até sahirem
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