A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 01
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COLECÇÃO LUSITÂNIA
CAMILLO CASTELLO BRANCO
A BRAZILEIRA DE PRAZINS
[Illustração: Camillo Castello Branco]
CAMILLO CASTELLO BRANCO
A BRAZILEIRA DE PRAZINS
SCENAS DO MINHO
Edição conforme a 1ª, revista pelo Auctor
LIVRARIA LÉLO, LIMITADA--EDITORA
144, Rua das Carmelitas--PORTO
AILLAUD & LÉLOS, Limitada--R. N. do Carmo, 80 a 84--LISBOA
INDICE
INTRODUCÇÃO
CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII
CAPITULO XVIII
CAPITULO XIX
CAPITULO XX
CONCLUSÃO
P.S.
INTRODUCÇÃO
Entre as diversas molestias significativas da minha velhice, o amor aos
livros antigos--a mais dispendiosa--leva-me o dinheiro que me sobra da
botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de
pilulas e tizanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me
illustro com os archaismos, arruino o estomago e enferrujo o cerebro em
uma caturrice academica.
Constou-me aqui ha dias que a snr.ª Joaquina de Villalva tinha um gigo
de livros velhos entre duas pipas na adéga, e que as pipas, em vez de
malhaes de pão, assentavam sobre missaes. O meu informador denomina
_missaes_ todos os livros grandes; aos pequenos chama _cartilhas_.
Mandei perguntar á snr.ª Joaquina se dava licença que eu visse os
livros. Não só m'os deixou vêr, mas até m'os deu todos--que
escolhesse, que levasse. Examinei-os com alvoroço de bibliomano. Elles,
gordurosos, humidos, empoeirados, pareciam-me seductores como ao leitor
delicadamente sensual se lhe figura a face da mulher querida, oleosa de
cold-cream, pulverisada de bismutho.
Havia sermonarios latinos, um _Marco Marullo_, tres rhetoricas, muitas
theologias moraes, um _Euclides_, commentarios de versões litteraes de
Tito Livio e Virgilio. Deixei tudo na benemerita podridão, tirante uma
versão castelhana do mantuano por Diego Lopez e um muito raro
_Entendimento literal e constrviçam portugueza de todas as obras de
Horacio, por industria de Francisco da Costa_, impresso em 1639.
Disse-me a dadivosa viuva de Villalva que os livros estavam na adéga,
havia mais de trinta annos, desde que seu cunhado, que estudava para
padre, morrêra ethico; que o seu homem--Deus lhe falle n'alma--mandára
calear o quarto onde o estudante acabára, e atirou para as lojas tudo o
que era do defunto--trastes, roupa e livralhada. Contou-me isto
seccamente do extincto cunhado, ao mesmo tempo que roçava com a mão
fagueira o ventre gravido de uma gata malteza que lhe resbunava no
regaço, passando-lhe pela cara a cauda em attritos d'uma flacidez de
arminho. E eu que dedico aos bichos um affecto nostalgico, uma
sensibilidade retroactiva, um atavismo que me retrocede aos meus
saudosos tempos de gorilha, olhava para a gata que me piscava um olho
com uma meiguice antiga--a das meninas da minha mocidade que piscavam.
Onde isto vai!
A snr.ª Joaquina, para me obrigar a um eterno reconhecimento,
offereceu-me uma das crias da sua gata que andava para cada hora e se
chamava _Velhaca_--ajuntou com a satisfação de quem completa um
esclarecimento interessante. Agradeci o por vindouro filho da _Velhaca_,
fiz uma caricia no dorso crespo da mãe, que m'a recebeu familiarmente,
e sahi com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e 1817 que
a snr.ª Joaquina, com um riso sceptico, indisciplinado, me disse serem
do tempo dos Affonsinhos.--Porque o seu sogro, accrescentou, era um asno
ás direitas que comprava a bula para poder comer carne em dia de jejum;
e, sem que eu a provocasse a vomitar heresias, disse que os padres
vendiam a bula e compravam a carne; e, ajuntando á heresia um anexim de
limpeza muito duvidosa, disse o que quer que fosse a respeito dos
peccados que entram pela bocca.
Depois informaram-me que esta viuva, bastante estragada no moral e ainda
mais no physico, andára de amores illicitos com um escrivão do juiz de
paz, o Barroso, um dos 7:500 do Mindello, que lêra o _Bom senso_ do
cura João Meslier, e a saturára de má philosophia, e tambem a
esbulhára de parte dos seus bens de raiz e do melhor da sua riqueza--a
Fé, o bordão com que as velhas e os velhos caminham resignados e
contentes para os mysterios da eternidade.
Logo que cheguei a casa, entrei a folhear as paginas dos dous livros,
preparado para o dissabor de encontral-os mutilados, defeituosos, com
folhas de menos, comidas pelas ratazanas collaboradoras roazes do
gallicismo na ruina da boa linguagem quinhentista. Folheei o
_Entendimento literal e constrviçam_ até paginas 154, e aqui achei um
quarto de papel almaço amarellecido, com umas linhas de lettra
esbranquiçada, mas legivel e regularmente escripta. O contheudo do
papel, onde se conheciam vincos de dobras, era o seguinte:
_José, teu irmão, quando eu hoje sahia da Igreja, onde fui pedir a
Nossa Senhora a tua vida ou minha morte, disse-me que eu não tardaria a
pedir a Deus pela tua alma. Eu já não posso chorar mais nem rezar.
Agora o que peço a Deus é que me leve tambem. Se não morrer,
endoudeço. Perdoa-me, José, e pede a Deus que me leve depressa para ao
pé de ti._
Martha.
Não é preciso ser a gente extraordinariamente romantica para
interessar-se, averiguar, querer noticias das duas pessoas que tem
n'estas linhas uma historia qualquer, mais ou menos vulgar. Occorreu-me
logo que o estudante, a quem o livro pertencera, tinha morrido na flôr
dos annos. Além d'isso, na margem superior do frontespicio do volume,
está escripto o nome do possuidor--_José Dias de Villalva_, e a carta
é dirigida a um _José_. Conclui ser o cunhado da viuva quem recebêra
a carta.
Voltei a casa da snr.ª Joaquina, muito açodado, como um
anthropologista que procura um dente pre-historico, e perguntei-lhe se o
seu cunhado se chamava José Dias; e se tinha alguma conversada, quando
morreu.--Que sim, que o cunhado era José Dias e que morrêra pela Maria
da Fonte.
--Pois elle amou a Maria da Fonte?--perguntei com ardente curiosidade
historica, para esclarecer a minha patria com um episodio romanesco das
suas guerras civis. Ella sorriu e respondeu:
--Agora! Quer dizer que o meu cunhado morreu quando por ahi andavam os
da Maria da Fonte a tocar os sinos e a queimar a papellada dos
escrivães, sabe vm.^cê?--Acho que foi então ou por perto. E
ajuntou:--Elle gostava ahi muito d'uma moça, isso é verdade. Era a
Martha...
--Martha?--disse eu com a satisfação de vêr confirmada a assignatura
do bilhete.
Vm.^cê conhece-a?
--Não conheço.
--É a brazileira de Prazins, a mulher do Feliciano da Retorta, que tem
quinze quintas entre grandes e pequenas.
--Bem sei; mas nunca vi essa mulher.
--Não que ella nunca sae do quarto; está assim a modos de atolambada
ha muito tempo. Credo! ha muitos annos que a não vejo. Dá-lhe a gota,
salvo seja, e estrebucha como se tivesse coisa má no interior. É uma
pena. Não sabe o que tem de seu. O Feliciano é o homem meus rico
d'estes arredores, e vivem como os cabaneiros, de caldo e pão de milho.
Elle quando vai ao Porto receber um alqueire de soberanos que lhe vem do
Brazil todos os annos, vai a pé, e mette ao bolso umas côdeas de
borôa e quatro maçãs para não ir á estalagem.
Interrompi com interesse de artista:
--Disse-me que ella endoudecera. Foi logo depois da morte do seu
cunhado?
--Isso já me não escordo. Quando eu vim casar para aqui já meu
cunhado tinha morrido. O que me lembra é dizer-me o meu defunto, que
Deus tem, que o rapaz ganhou doença do peito p'rámôr d'ella. Esses
casos ha muita gente que lh'os conte. Ha por ahi muito homem do seu
tempo. Pergunte isso ao snr. reitor de Caldellas que andou com elle nos
estudos e sabe todas essas trapalhadas.--E n'um tom de noticia
festival:--Olhe que o gatinho nasceu esta noite; lá lh'o mando assim
que estiver creado. Quer que lhe corte as orelhas e o rabito?
--Faça-me o favor de lhe não cortar nada.
Eu tinha lido, dias antes, a judiciosa critica de uma dama ingleza á
nossa costumeira de desorelhar e derrabar gatos. Ella, lady Jackson,
escreve que lhe fazem compaixão os pobres bichanos que, sem cauda nem
orelhas, estão como que envergonhados de si mesmos. Excellente senhora!
Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldellas na feira de Santo
Thyrso. Achei-lhe um semblante convidativo, animador a entabolar-se com
elle uma indagação de curiosidades sentimentaes.
Fazia respeitavel a sua batina sem nodoas o padre Osorio. Parece que
tambem as não tem na vida. Passa por ser um velho triste, que não teve
mocidade, nem as ambições que supprem os dôces affectos do coração
mutilados pelo calculo ou congelados pelo temperamento. Ha trinta e dous
annos que pastoreia uma das mais pobres freguezias do arcebispado.
Prégou alguns annos com applauso dos entendidos e inutilidade dos
peccadores. A rhetorica é a arte de fallar bem; mas os vicios são a
arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa, embora não se diga.
Como prégava gratuitamente, o vigario de Caldellas era chamado por
todos os mordomos e confrarias festeiras. Quando se esgotavam os
panegyricos dos santos mais ou menos hypotheticos, pediam-lhe que
prégasse da cura milagrosa d'umas maleitas ou d'um leicenço--casos que
a pobre Natureza e o periodico chamado _Esculapio_ só de per si não
poderiam explicar.
O vigario subia ao pulpito e improvisava coisas de grande engenho em
linguagem muito singela. Affirmava que Deus era tão bom, tão
previdente, que dera á condição enfermiça do homem forças vitaes,
sobrecellentes que resistiam á destruição; e que a Natureza, grande
milagre do seu Creador, só de per si era bastante para a si mesma se
restaurar. Ora, um abbade rico, bacharel em theologia, que lhe ouvira
estas idéas assaz naturalistas, perguntou-lhe, á puridade, se elle
negava os milagres. O reitor respondeu que a respeito das sezões e dos
leicenços acreditava mais na lanceta e no sulfato de quinino. Depois,
accrescentou:--Deus fez o supremo milagre da sciencia para centuplicar
as forças á natureza enfraquecida.--O theologo enrugou
scientificamente a fronte cheia de suspeitas e replicou:--O snr. reitor
foi ferido da peste do seculo. Está iscado de Voltaire e de Alexandre
Herculano. Deixou-se contaminar. Mundifique-se. Estude mais e melhor.--O
reitor de Caldellas afastou-se triste, e nunca mais frequentou o
pulpito.
Estas informações e o aspecto lhano, harmonico do padre, animaram-me a
dizer-lhe que solicitara o seu conhecimento para lhe pedir alguns
esclarecimentos a respeito de uma carta encontrada em um livro que
pertencera ao seu condiscipulo José Dias de Villalva. Recorda-se?
perguntei.
--Se me recordo do meu pobre José Dias! Pois não recordo? Parece-me
que ainda sinto n'este braço o peso enorme da sua face morta, e já lá
vão trinta e cinco annos. É preciso ter na alma dolorosas
reminiscencias para se recordar um amigo morto ha tantissimo tempo, não
lhe parece? Como sabe v. que existiu esse obscuro filho de um lavrador?
Mostrei-lhe a carta. O padre olhou para a assignatura, gesticulou
affirmativamente, e, após uma breve pausa de recolhimento com as suas
recordações, disse:
--Fui eu que puz esta carta entre as paginas de um livro do Dias. O meu
pobre condiscipulo, quando este papel lhe foi mandado á cama, já não
o podia lêr. Tinha cahido no torpor, na indifferença que, a meu vêr,
é a compaixão da Providencia pelos que morrem amando e não querendo
morrer. Já não via a vida nem a morte. Li esta carta; e, como elle
nada me perguntou, eu nada lhe disse... Agora me recordo perfeitamente.
Era um commento de Horacio que eu lia nos seus intervallos de modorra,
afim de dar ao meu animo uma folga que me fortalecesse para resistir ao
golpe final. Já sei pois o que você deseja. Quer saber se esta Martha
está no caso de merecer a consagração romantica que Bernardin de
Saint-Pierre usurpou ás dôres verdadeiras, para coroar d'uma eterna
aureola a sua phantastica Virginia.
--Não vou tão longe, respondi com a modestia genial dos escriptores
que immortalisam. A brazileira de Prazins não póde contar com o seu
immortalisador em mim, nem me parece bastante fecundo o assumpto. Sei
que temos um namoro de uma menina com um estudante, o estudante morre e
a menina casa com um sujeito que tem quinze quintas. Se não ha mais do
que isto...
O cura interrompeu:--Vejo que sabe quem é Martha; mas não a conhece
bem. Virginia e Francesca e Julieta não são mais dignas de piedade nem
de romance. Parece-me que o amor que enlouquece e permitte que se abram
intercadencias de luz no espirito para que a saudade rebrilhe na
escuridão da demencia, é incomparavelmente mais funesto que o amor
fulminante. O que é vulgar é morrer logo ou esquecer quinze dias
depois. Quando eu tinha uma irmã que lia novellas, á custa de lh'as
ouvir analysar com um enthusiasmo digno de melhor emprego, achei-me
envolvido na litteratura de Sue, de Soulié e de Balzac, a ponto de
fazer presente do meu santo Affonso Maria de Ligorio e da minha
Theologia moral de Pizelli a um padre bom e atinado que me prophetisou
que minha irmã havia de morrer doudas a scismar nas patacuadas das
novellas. Ella não morreu douda; mas pensava em romancear a historia de
Martha, porque dizia ella que, tendo lido trezentos volumes de novellas,
não encontrára caso imitante.--E, dando-me o bilhete de Martha: Este
quarto de papel é o exordio de uma agonia original.
Como a exposição do reitor sahiu muito enfeitada de joias
sentimentaes--detestavel especie archeologica que ninguem tolera,--farei
quanto em mim couber por, uma a uma, ir mondando e refugando as flores
de modo que as scenas dramaticas se exponham aridas, bravias como sêrro
de montanha por onde lavrou incendio, sem deixar bonina, sequer folhinha
de giesta em que a aurora imperle uma lagrima. A Aurora a chorar! de que
tempo isto é! Como a gente, sem querer, mostra n'uma idéa a sua
certidão de idade e uma reliquia testemunhal da idade de pedra! Oh! os
bigodes tingem-se; mas as phrases--madeixas do espirito--são
refractarias ao rejuvenescimento dos vernizes.
I
Martha era filha de um lavrador mediano que tinha em Pernambuco um
irmão rico de quem dizia o diabo. Chamava-lhe ladrão porque, no
espaço de vinte annos, lhe mandara tres moedas, com os seguintes
encargos: á mãe 6$000 réis fortes, ás almas do Purgatorio, de
Negrellos, 3$000 réis tambem fortes, que lh'os promettera quando
embarcou, e o resto para elle--«5$400 réis, dizia, é que o maroto,
podre de rico, me mandou em vinte annos!»
A rapariga conversou diversos mancebos, uns da lavoura, outros da arte,
e, afinal, quando o pai lhe negociava o casamento com um pedreiro,
mestre de obras, muito endinheirado e já maduro, appareceu o José
Dias, filho d'um lavrador rico de Villalva, a namoriscal-a. Este rapaz
estudava latim para clerigo; mas, como era fraco, de poucas carnes e
amarello, o cirurgião disse ao pai que o moço não lhe fazia bem
puxar pelas memorias. Os padres do Minho, n'aquelle tempo, não puxavam
quasi nada pelas memorias; ordenavam-se tão alheios ás faculdades da
alma que, sem memoria nem entendimento, e ás vezes sem vontade, eram
soffriveis sacerdotes, davam poucas syllabadas no Missal e liam os
psalmos do Breviario com uma grande incerteza do que queria dizer o
penitente David. Pois, assim mesmo, sendo tão facil a ordenação--uma
coisa que se fazia com uma perna ás costas, diziam certos vigarios--sem
precisão absoluta de puxar pelas memorias, o Joaquim Dias quiz tirar o
filho do _latim_ que lhe ensinava um egresso da Ordem Terceira, o Fr.
Roque. Este padre-mestre tinha uma irmã paralytica; sabia lêr, e
prendas de costura, marcava, fizera um pavão de missanga, não
desconhecia o crochet e ensinava raparigas para se distrahir.
No quinteiro do padre-mestre Roque foi que o José de Villalva se affez
a reparar na Martha de Prazins, uma rapariga muito alva, magrinha, de
cabello atado, muito limpa, com a sua saia de chita amarella com dois
folhos, jaqueta de fazenda azul com o forro dos punhos escarlates, muito
séria com proposito de mulher e ares muito sonsos--diziam as outras,
que lhe chamavam a _songuinha_. Os outros estudantes, rapazolas
vermelhaços, refeitos, grandes parvajolas, com grandes nacos de borôa
nas algibeiras das vesteas de saragoça de varas, e os velhos Virgilios
ensebados em saquitos de estopa suja, diziam graçolas a
Martha--chamavam-lhe boa pequena, franga e peixão. O José Dias,
arredado do grupo dos trocistas alvares, via-a passar silenciosa,
indifferente aos gracejos, olhos no chão, e um grande resguardo na
barra da saia quando subia a escada. Os rapazes, aquelles embriões de
abbades, como a escada de pedra era ingreme e aberta do lado do
quinteiro, punham-se a espreitar as pernas das alumnas da paralytica,
pela maior parte raparigas entre doze e dezeseis annos, muito
musculosas, com pés grandes e os tecidos repuxados e cheios pelo
exercicio dos carrêtos nas safras da lavoira.
Martha ia nos quatorze quando o pai a quiz tirar da mestra. Chegára-lhe
aos ouvidos que os estudantes, má canalha, lhe impeticavam com a filha.
Queixou-se a Fr. Roque.
O egresso, resfolegando honradas coleras e pulverisações de
esturrinho, mandou enfileirar os gargajolas na quadra da aula, e chamou
a Martha.
--Qual foi d'estes tratantes o que implicou comtigo, cachopa?--perguntou
o padre-mestre olhando-a por cima dos oculos, orbiculares, com as hastes
oxidadas d'um cobre antigo. E, apontando para o primeiro da fileira que
era o José de Villalva:
--Foi este?
--Esse nunca me disse nada--respondeu com a voz tremula, toda vermelha,
a rapariga.
--Foi este?
Martha não ergueu os olhos nem respondeu.
--Então, môça? qual foi dos nove? Dize lá. Tu que te queixaste é
que algum embarrou por ti.
--Eu não me queixei...--murmurou a interrogada.
Verdadeiramente ella não se queixára. Foi o Zeferino, o filho do
alferes da Lamella, o mestre pedreiro que andando a construir um
canastro na eira do padre-mestre, observára que os estudantes rentavam
á cachopa, e ageitavam-se em attitudes abrejeiradas, como de quem
espreita, quando ella subia a escada.
O denunciante ao pai de Martha foi elle, o pedreiro abastado, não
porque o espicaçassem n'essa denuncia o zelo dos bons costumes, e um
justo odio ás concupiscentes espionagens dos rapazes, mas por que
gostava, devéras, da môça. Elle passava já dos trinta e dois e era a
primeira vez que sentia no coração as alvoradas do amor, Fr. Roque,
averiguado o caso, advertiu o pedreiro que não fosse má lingua, que
não andasse a difamar os seus discipulos, que se preparavam para o
sacerdocio--uma coisa séria. O episodio acabaria assim menos mal, se
dois dos estudantes, que se preparavam para o sacerdocio, mais fortes no
fueiro que nas conjugações, desistissem de o moer a pauladas, uma
noute, n'um pinhal. O mestre d'obras iniciou-se pelo martyrio obscuro
n'um amor que principiava bastante mal. Elle nunca soube ao certo quem
lhe batêra, e attribuiu a sova a émulos na arte, covardes e
mysteriosos, por causa da construcção de uma egreja que elle
desdenhára, citando as regras do Vignola. Vinha a ser o desastre uma
tenda por motivos de architectura--um martyrio de artista. Invejas. Por
causa da Arte padecêra o seu collega Affonso Domingues, o architecto da
Batalha, e João de Castilho, o do convento de Thomar, e já tinha
padecido seu mestre, o Manoel Chasco, a quem inimigos quebraram a
cabeça na feira dos 21, por que elle, desfazendo na obra d'um collega,
dissera que o botaréo d'um cunhal estava torto.
Passado tempo, Martha sahiu prompta da mestra. Lia a cartilha do
Salamondi e o _Grito das almas_, decifrava menos mal umas sentenças
velhas que havia na casa de Prazins, monumentos das ruinas de antigas
demandas, e escrevia regularmente. A primeira carta que escreveu por
pauta foi para o tio de Pernambuco, o tio Feliciano. Pedia-lhe a sua
benção e duas moedas de ouro para umas arrecadas. Era o pai que lhe
ditava a carta, cheia de lastimas mendigas, mentirosas, historietas
velhacas de penhoras, as grandes decimas, a ferrugem das oliveiras, o
bicho da batata, o gorgulho que pegára no milho, muitas alicantinas.
--Que era a vêr se o ladrão mandava alguma coisa, dizia elle, pondo
cuspo na obreia vermelha para fechar a carta.
A segunda carta, que ella escreveu já sem pauta, foi a José Dias, ao
estudante, que já não estudava por causa das memorias nocivas á sua
saude fraca, um pelém.
N'este tempo já o Zeferino da Lamella se tinha declarado com o Simeão
de Prazins, de um modo quasi original.
--Você quanto deve, ó tio Simeão?--perguntou.
--Quanto devo? Você quer pagar-me as dividas?
--Pôde ser. Você deve á Irmandade de N. Senhora de Negrellos um conto
e cem mil réis; você deve de tornas a seu irmão quatrocentos. Ha-de
andar lá para um conto e quinhentos, p'ra riba que não p'ra baixo.
--É isso; você sabe a minha vida melhor que eu a sua--um conto e
quinhentos e pico.
--Quanto é o pico?
--Obra de dez moedas, mais pinto menos pinto. Miudezas na loja ao
mercador e um réstito da vacca amarella que comprei ao Tarracha na
feira dos 13.
--Você quer fazer um cambalacho?--tornou o pedreiro recuando o chapéu
para a nuca e pondo-lhe as mãos espalmadas com força nos hombros.
--Se pintar... Já sei o que você quer... Não me serve. Você quer
comprar-me o lameiro da azenha--não vendo.
--Eu ainda lhe não disse o que queria, tio Simeão. Olhe bem para mim.
Você está a fallar c'um home. Pago-lhe as dividas, você não fica a
dever nada, e eu caso com a sua Martha. Póde dar os bens ao outro filho
que eu não lhe quero uma de X.
--Você falla serio, ó sôr Zeferino?
--Se fallo serio?! Então você não sabe com quem é trata.
--Ora bem--entendamo'-nos--é a rapariga que você quer, a rapariga
estreme, sem dote nem escriptura?
--Eu não tenho senão uma palavra. Já lhe disse que sim.
--A rapariga é sua.
Negociára a filha com o Zeferino como tinha negociado com o Tarracha a
vacca amarella na feira dos 13. Eis um caso exquisito de aldeia que pela
torpeza parece acontecido n'uma cidade culta. Conversou-se este dialogo
debaixo de um castanheiro frondoso, com um pavilhão de folhagem
gorgeado de passaros, com uns tons de luz esverdeada, na dôce placidez
crepuscular de uma tarde de agosto, entre dous homens de tamancos,
arremangados, com os peitos cabelludos a negrejar d'entre os peitilhos
da camisa surrada de suor e poeira, brutos no gesto e na phrase.
Analogas passagens, com estylo pouco melhor, tem sido dramatisadas nas
salas, entre homens da melhor polpa e casca social--uns que mandaram
ensinar ás filhas os verbos francezes e são assignantes do _Journal
des Dames_ que marca ás meninas a balisa até onde póde chegar o
arrojo da lingua franceza e os seus mais avançados destinos. Da outra
parte, homens ricos, de figado engorgitado, fatigados, sedentos de
senhoras finas que ponham no luxo das suas salas os tons vivos da carne
constellada de diamantes. É o epilogo de vinte annos de lavra dura, o
_substratum_ da compra de negras a milhares:--comprar uma branca, das
que o amor pobre e o talento esteril não podem negociar. O contracto
feito em Prazins--eis a differença--por parte do pedreiro era um
heroismo: dava o seu dinheiro por aquella mulher; daria mais depressa o
seu sangue. Era uma paixão das que não pegam com os dentes anavalhados
em corações civilisados, quasi desfeitos. Ora, os pedreiros que vem
d'além-mar, e se vestiram no Pool ou no Keil, não amam nem compram
assim. Fazem o dote economico, comezinho á esposa. Compram uma machina
de propagação, condicionalmente. Se, extincto o comprador, a machina,
não deteriorada, tiver pretendente, o substituto que a compre. O
defunto prefere que a sua viuva, adelgaçada e espiritualisada por
jejuns, lhe converse com a alma.
II
Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira
via, 48$000 réis, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12$000 réis
para as arrecadas da sobrinha, e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava
a liquidar para vir, emfim, descançar de vez,--que já tinha para os
feijões. Recommendava-lhe que fosse deitando o olho a uma ou duas
quintas que se vendessem até trinta ou quarenta mil cruzados; que se
ainda houvesse conventos á venda, os fosse apalavrando até elle
chegar.
--Quarenta mil cruzados, com um raio de diabos!--exclamou o Simeão, e
foi mostrar a carta ao padre-mestre Roque, ao Trêpa de Santo Thyrso e
ao ex-capitão mór de Landim; e, como encontrasse na feira o dono do
mosteiro dos benedictinos, o Pinto Soares, um deputado gordo--a
rhetorica viva do silencio mais facundo que a lingua, d'uma grande
pacificação somnolenta--perguntou-lhe se queria vender as quintas dos
frades, que tinha comprador. O Pinto Soares, como um homem que acorda
com espirito e um pouco de atheismo, respondeu-lhe que não vendia para
não transmittir ao comprador a excommunhão que arranjára comprando
bens das ordens religiosas. Mas o Simeão, em materia e raios do
Vaticano, tinha na sua estupidez a invenção de Franklin. Continuava a
perguntar a toda a gente se sabiam de conventos á venda, ou quintas ahi
para quarenta mil cruzados.
O Zeferino das Lamellas, o pedreiro que se julgava noivo por ter o
negocio fechado em um conto, quinhentos e pico, procurou o lavrador para
se cuidar dos banhos. O velhaco, depois de o ouvir com ares de
abstracção palerma, disse-lhe a mastigar as palavras:
--Home, o caso mudou muito de figura. Então você pelos modos ainda
não sabe que vem ahi o meu irmão de Pernambuco comprar quintas e
conventos?
E começou a desenrolar o nastro gorduroso de uma carteira de coiro em
que tinha recibos da decima, um aviso da junta de parochia para pagar a
congrua, uma conta de azeviche contra maus olhados, uma oração
manuscripta contra as maleitas, um officio antigo que o nomeava regedor,
de que fôra demittido pelos Cabraes, uma velha resalva de recrutamento,
uns versos que elle recitara no natal, em um Auto do nascimento do
Menino, onde elle fazia de rei mago, e finalmente o livrinho de Santa
Barbara, muito cebaceo, com um lustro azulado de graxa e a carta do
Feliciano tão suja que parecia ter estado em infusão de pingue.
--Você ainda não ouviu fallar d'esta carta!?--perguntou com
sobranceria impertinente, dando saliva aos dedos para a desdobrar.--Não
se falla n'outra causa. Toda a gente sabe que vem ahi do Brazil o meu
Feliciano para comprar quintas.
--Já me constou--disse o pedreiro,--mas você roe a corda á conta
d'isso, acho eu...--E como o lavrador hesitasse:--O negocio da
rapariga está feito ou não está feito? Os homens conhecem-se pela
palavra e os bois pelos cornos. Ponha p'ra'hi o que tem no interior.
O Simeão mascava, torcia-se, mettia com dois dedos a carta estafada na
carteira e resmungava:
--Você, emfim, isto é um modo de fallar, como o outro que diz; você
bem entende que ... sim...
--O que eu entendo physicamente fallando é que você não me dá a
rapariga.
--Deixe vêr, deixe vêr o que diz o meu irmão--tartamudeava.
--Sabe você que mais?--volveu iracundo o architecto dando com o ôlho
do machado n'um canhoto.--Você é de má casta. Não tem palavra nem
vergonha n'essa cara estanhada. Você é da geração dos Travessas da
Serra Negra, e basta... Não lhe digo mais nada...--Allusão pungente a
um tio do Simeão, o Bernabé, capitão das maltas de salteadores que
infestaram em 1835 aquella serra.
--Veja lá como falla...--interrompeu o lavrador ferido na sua
linhagem.--Você não me deite a perder...
E o outro, n'um impeto de consciencia robusta:
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