A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 12

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Martha, a beata, a senhora _brazileira de Prazins_, como lhe chamavam as
regateiras das drogas da salvação, fornecera-se de tudo em duplicado;
mas sobre todos os devocionarios o da sua leitura dilecta era o
_Peccador convertido ao caminho da verdade_, edição do seu confessor
varatojano, fr. João de Borba da Montanha.
São impenetraveis os segredos revelados no tribunal da penitencia por
Martha ao seu director espiritual. O padre Osorio, não obstante,
suspeitava que a penitente revelasse, com escrupulosa consciencia,
solicitada por miudas averiguações do missionario, saudades,
reminiscencias sensualistas, carnalidades que se lhe formalisavam no
espirito dementado, emfim, visões e sonhos com o José Dias. Inferia o
padre a sua conjectura, sabendo que frei João lhe mandára lêr no
_Peccador convertido_, tres vezes por dia, o capitulo 33, intitulado
_Resistencia ás tentações contra a castidade_. Fortalecia esta
hypothese ter dito Martha a D. Thereza que a alma de José Dias lhe
apparecia em sonhos; e ás vezes, mesmo acordada, lhe parecia sentil-o
na cama á sua beira; e então mordia o travesseiro para que o tio a
não ouvisse chorar. Póde ser que estas revelações, communicadas ao
confessor, um simplorio incapaz de destrinçar entre doença e peccado,
fossem acompanhadas de particularidades sensitivas que Martha por
vergonha não contava á sua amiga. É certo que a confessada do
varatojano lia, declamando, deante do seu oratorio, tres vezes por dia,
a _Resistencia ás tentações contra a castidade_.
A oração dizia assim:
_Senhor amorosissimo, não vos escondais, não me deixeis sósinha, que
me cerca o leão para me devorar; os seus rugidos me atormentam para que
não goste as suavidades do vosso amor. Cercarei todo o mundo, subirei
aos ceos, não descançarei emquanto não achar o meu amor. Conjuro-vos,
filhas de Jerusalém, creaturas da terra que, se encontrares o meu
amado, lhe digaes que morro d'amor. E, se quereis os signaes para
conhecêl-o, ouvi. O meu amado é candido e rubicundo, escolhido entre
milhares; candido por divino, e rubicundo por humano, candido porque
innocente, e rubicundo por chagado. Ai! doce amor, onde vos escondestes?
Tende compaixão de quem vos busca. Estes signaes que de vós tenho só
servem de avivar-me a saudade, são settas que me ferem; morro,
desfalleço, se vos não acho._
_Os cabellos da sua cabeça são como o ouro mais puro e mais precioso,
são como palmitos e pretos como o corvo. Se não entendeis, filhas de
Jerusalém, nem eu vo'l'o saberei explicar; o que vos digo e que os seus
cabellos são fortes laços que bastam para prender a todo o mundo,
bastam para abrazar tudo de amor. Ai! amado do meu coração, se as
admirações do que sois abrazam a alma, que vos vê por enigmas, que
será quando vos vir claramente! Os seus olhos são como pombas sobre
correntes de aguas, mansos, puros, suaves, benignos, amorosos. Que
magestosos, que humildes, que graves, que serenos, que doces, que
suaves! Oh dulcissimo amor, já que tanto fechais os olhos para não
serem vistos, ao menos não os fecheis para me não verem! As suas faces
são como canteiros de flores aromaticas, sempre bellas, sempre
cheirosas; passam os dias, os mezes e os annos, e os seculos, e as faces
do meu amor sempre são flores, nem o sol as murcha nem o frio as corta,
nem a agua as corrompe, nem o vento as desfolha; são rosas, são
assucenas, são brancas e encarnadas. Oh! quem me dera uma gota da agua
que as rega, um grão do calor que as vivifica; quem me dera que o
jardineiro que as compõe me quizera semear umas flores no meu jardim e
tomar á sua conta compôl-as e regal-as, que o meu amado gosta muito de
flores. Dizei-me, aves do ar, flores do campo, peixes do mar, viventes
da terra, dizei-me se sabeis onde assiste este jardineiro. Mas que digo,
se este mesmo é o amado a quem busco e não mereço achar! Ó saudade
ardente, ó sede matadora, ó setta penetrante, ó amor escondido! Que
fareis, Senhor, que fareis, se o vosso empenho é ser amado, por que a
minha ventura está em vos ter amor, como escondeis o mesmo que me havia
de enamorar? Os seus labios são lirios, que distillam myrra excellente,
lirios de pureza d'onde sahem palavras que inflammam no amor da
mortificação. Oh! se fôra tão ditosa minha alma que recebêra alguma
parte da myrra que distillam teus lirios! Oh! se foram tão felizes meus
olhos que viram a engraçada côr de taes labios! Aonde estaes
escondido, amado do meu coração? Não sahem por esses labios as
palavras com que andais chamando pelas ruas, fortalezas e muros da
cidade: «Se algum é pequenino venha para mim?» Logo, como vos
escondeis d'esta pequenina pobre e necessitada que com tanto empenho vos
busca? Suas mãos são como de ouro feitas ao torno e cheias de jacintos,
todas perfeitas, todas preciosas; mas reparai, filhas de Jerusalém, e
por aqui vos será mais facil conhecêl-o, que, no meio do ouro e
jacintos, tem em cada mão um precioso rubi que a passa de uma para a
outra. O seu peito e entranhas são de marfim ornadas de safiras, dando
a conhecer a côr celeste da safira, a branca do marfim e sua dureza,
que os seus affectos são puros, candidos, castos, virginaes, fortes,
celestiaes e divinos, sinceros, compostos, solidos e constantes. Ó
peito de amor, entranhas de piedade, como assim vos fechaes para quem
vos ama? Aqui deve de haver mysterio! Gostaes talvez de me vêr afflicta
para provar se sou amante! Quereis que me custe muito o que muito vale,
porque, se o lograr a pouco custo, farei talvez pouco caso do que não
tem preço. Mas aí, amado meu, que, se me não dizeis aonde passaes a
sesta ao meio dia, temo que, andando vagabunda, venha a cahir nas mãos
dos vossos contrarios! A sua apparencia é como a do Libano, a sua
composição como a do cedro; em Judéa o monte mais formoso é o
Libano, no Libano a arvore mais excellente é o cedro: assim é o meu
amado entre os filhos dos homens. A sua garganta é suavissima, porque
sahem por ella as vozes, as respirações do peito, que é archivo de
amores e suavidades; em fim todo é formoso, todo perfeito, todo amavel.
Tal é o meu amado, este é o meu amigo, filhas de Jerusalém, creaturas
da terra; se o achardes, dizei-lhe que morro d'amor_...

Martha dizia a oração em voz alta, em modulações cantadas, n'um
arrobamento de _preghiera_. Aquelles dizeres, alinhavados pelo
varatojano, são extractos e imitações das escandecencias erothicas do
poema dramatico da _Sulamita_ no «Cantico dos Canticos»--os trêchos
mais lyricamente sensuaes da antiguidade hebraica. Elles deram o tom de
todas as exaltações nevroticas, desde os extasis hystericos de Thereza
de Jesus até ás allucinações da beata Maria Alacoque e da portugueza
madre Maria do Céo, a cantora dos passarinhos de Villar de Frades.
D'esta peçonha doce, elanguecente, vibratil e enervante, cheia de
meiguices epidermicas de um corpo nú em frouxeis de arminhos, é que se
fizeram uns Manuaes modernos em França por onde as adolescentes
principiam a conversar com Jesus e a comprehendêl-o em linhas
correctas, sob plasticas macias, a esperal-o, a desejal-o, como lh'o
figuram com todas as pulsações, redondezas e flexibilidades da carne.
Martha, entre o Deus incomprehensivel e o Christo-homem, via um ser
tangivel, o seu unico termo de comparação--o José Dias, esposo da sua
alma e dominador dos seus nervos reaccendidos e abraseados pela saudade.
Nas apostrophes a Jesus, palpitavam-lhe nitidas as curvas do amante que
a ouvia de entre as nuvens, n'uma clareira azul, com a sua lividez
marmorea e os anneis dos cabellos louros esparsos como nas cabeças dos
cherubins. Tinha aquelle namoro no céo quando abria a pagina do livro
com que o confessor lhe dissera que havia de exorcisar as tentações
voluptuosas da sua alma e do seu corpo.


XIX

Frei João não se entendia já com a sua confessada. Deviam ser
grandemente disparatadas as revelações de Martha para que o varatojano
desconfiasse que ella estava obsessa e que as suas visões deviam ser
malfeitorias de demonio incubo. Feliciano discordava da opinião do
inexoravel exorcista, quando elle o interrogava sobre miudezas de
alcôva. O marido contava singelamente que sua mulher passava a maior
parte do dia a rezar pelo livro no oratorio; que tinha dias de comer bem
e outros dias de não comer nada; que não dava palavra ás creadas, nem
se mettia no governo da casa; que com elle tambem fallava pouco, e não
desatremava. Que dormia bem e sempre na mesma cama com elle. Verdade era
que ás vezes elle acordava e a via sentada com os olhos postos no
tecto.
--Pois é isso...--atalhava o varatojano.
--É isso quê, snr. frei João?--perguntava o marido.
O confessor não podia explicar-se. O seu praxiste Brognolio, ampliado
pelo padre-mestre arrabido frei José de Jesus Maria, admoestava-o a
occultar de terceiras pessoas os signaes evidentes da obsessão de uma
alma, sem estar devidamente apparelhado para o combate e na presença do
inimigo. O apparelho, n'este caso, era a estola, a agua-benta, o
latim--uma lingua familiar ao diabo. Além dos preceitos da arte, havia
a inviolabilidade do segredo da confissão; e uma caridade decente
aconselhava que Feliciano ignorasse as tentativas adulteras do demonio
incubo, figurado na pessoa espectral do José Dias. Com o vigario de
Caldellas foi menos reservado o exorcista. Asseverou-lhe que a
brazileira de Prazins estava possessa, muito gravemente energumena. O
padre Osorio abriu um sorriso importuno, d'estes que vem de dentro em
golfos involuntarios como a nausea d'um embarcadiço enjoado. O egresso
reparou no tregeito heretico da bocca do padre, e perguntou-lhe se tinha
alguma duvida a pôr.
--Uma pequena duvida, snr. frei João, respondeu intemeratamente o
vigario.--Não posso acceitar que o diabo, sendo filho de Deus, seja o
ente perverso que faz soffrer a pobre Martha...
--_O diabo, filho de Deus_!--interrompeu o varatojano, levando as
mãos inclavinhadas á testa. Padre Osorio, o snr. disse uma blasfemia
enorme... Santo nome de Jesus! O _diabo filho de Deus_! Anathema!
--Anathema á logica, ao raciocinio, por tanto!--contraveio sereno e
risonho o outro.
--A logica? a logica de Calvino, de Voltaire.
--Não, senhor, a logica do professor que m'a ensinou no seminario
bracharense. Creador não é pai?
--É sim, e d'ahi?
--Deus é pai de todas as suas creaturas; ora o diabo é creatura de
Deus; logo: Deus é pai do diabo.
--_Distinguo_!--contrariou o varatojano.
E o vigario, sem attender á interrupção escolastica:
--Se Deus é bom, as suas creaturas não podem ser más; ora, o demonio
é máo: logo, o demonio não póde ser creatura de Deus; mas, se o
diabo não é creatura de Deus, pergunto eu o mesmo que um negro da
Africa perguntava ao missionario: Quem é o pai do diabo?
--_Distinguo_!--insistiu o varatojano apoiado nas velhas formulas da
dialectica esmagadora--Deus creou os anjos; d'estes houve alguns que se
rebellaram contra o seu creador, e foram precipitados do céo: são os
espiritos infernaes. Alguns d'esses anjos não desceram ás trevas
inferiores, e permanecem para flagello do genero humano no ar
caliginoso. _Aer caliginosus est quasi carcer dœmonibus usque in diem
judicii_, diz S. Agostinho. Deus permitte que os demonios vexem as
creaturas, pelo bem que póde resultar ás creaturas d'esse vexame. É o
que se colhe do Evangelho de S. João: _Omnia per ipsum facta sunt_. Por
tanto, Deus permitte o mal? logo: este mal é bom, por que Deus é o
Summo Bem. Verdade é que os males não são bens...
--Ia eu dizer...--atalhou o padre Osorio; ao que o missionario acudiu
prestes e victoriosamente:
--Mas Deus tira os bens d'esses mesmos males, como diz S. Thomaz:
_Bonum invenire potest sine malo, sed malum non potest invenire sine
bono_. Logo: Deus permitte o mal como causa do bem; _id est_, permitte
o demonio como exercitação saudavel do genero humano. _Melius
judicavit Deus de malis bona facere, quam mala nulla esse permittere_,
diz D. Agostinho: e S. Thomaz ainda é mais claro e persuasivo: «A
divina sabedoria permitte que os demonios façam mal pelo bem que d'ahi
resulta.» _Divina sapientia pennittit aliqua mala tieri per malos
Angelos propler bona quæ ex eis elicit_. São doze as causas por que
Deus permitte que os demonios atormentem as creaturas humanas. Primeira:
para que o homem obstinado na culpa seja n'este mundo e no outro
atormentado; segunda...
--Estou convencido, snr. frei João--atalhou o vigario,--vossa
reverencia já esclareceu a minha duvida. É o caso que Deus permitte
demonios flagellantes para depurar com elles os peccadores,--uns e
outros creaturas da sua divina justiça.
--É isso mesmo.
--O espirito do máo homem--do peccador que é em si um demonio interno,
depura-se pela acção de outro demonio externo, ambos creaturas do seu
divino amor... Percebi. Estou convencido... Deus é como um pai que
azorraga o seu filho querido a vêr se elle recebe as mortificações
como caricias. Rico pai!--E accrescentou com amargura:--Ah! meu frei
João, receio muito que as superstições venham a desabar o
catholicismo que deve a sua existencia á victoria que alcançou sobre
as mentiras da idolatria com as armas da verdade. _Ego sum veritas_.
Frei João ia fulminar segunda vez a argumentação do padre Osorio,
quando os outros missionarios chegavam, para assistirem ao jantar de
despedida em casa da brazileira.
Fechára-se a missão; os padres iam d'ali para Barcellos; mas frei
João, empenhado em desendemoninhar a pobre Martha, hospedou-se na
quinta da Revolta, em cuja capella celebrava missa e confessava as suas
filhas espirituaes insaciaveis do pão dos anjos, que digeriam n'uma
vadiagem dorminhoca, amesendadas nos adros das egrejas e nos soalheiros,
catando as proprias pulgas e as vidas alheias.
Frei João andava apercebido com todos os utensilios infestos ao diabo.
Resolvido a dar-lhe batalha, armou a energumena das mais provadas armas
nos seus triumphos sobre o inferno. Lançou-lhe ao pescoço um santo
lenho, um breve da Marca, a veronica do S. Bento, o Symbolo de Santo
Athanasio, cruzinhas de Jerusalém, veronica com a cabeça de Santo
Anastacio, reliquias de varios santos, umas esquirolas de ossos
grudadas em farrapinhos, orações manuscriptas da lavra do varatojano,
mettidas em saquinhos surrados da transpiração d'outras obsessas.
Martha devia jejuar, como preparatorio. Parece que o demonio se compraz
de habitar estomagos confortados na quentura do bôlo alimenticio. O
exorcista jejuava tambem conforme o preceito dos praxistas, e
aconselhava ao Feliciano que jejuasse, em harmonia com o texto de Jesus
que dissera pela bocca de S. Matheus que «taes diabos, sem jejum nem
oração, não sahiam do corpo:» _Hoc genus demoniorum in nullo potest
exire nisi oratione et jejuino_. O Feliciano dizia que sim, que jejuava;
mas, ás escondidas do frade, comia bifes de presunto com ovos;
começava a revelar idéas egoistas, um cuidado da sua alimentação e
do seu repouso, certo desprezo cynico pela parte que o diabo tomára na
sua familia.
Frei João de Borba da Montanha expendeu ao vigario de Caldellas os
fortes symptomas que Martha apresentava de estar possessa. Eram muitos,
e bastava-lhe citar os seguintes:
Ouvir a voz de José Dias que a chamava, no sonho e na vigilia. E
mostrava o texto: _quando patiens audit quasdam voces se vocantes_. Por
que aborrecia a carne e o pão, e tinha grande fastio. O Osorio
lembrava-lhe que seriam enôjos peculiares da gravidez; mas o varatojano
confundia-o com o latim. _Quando quis non potuit gustare panem aut
carnem_. Ella digeria com muita difficuldade os alimentos. Era obra do
diabo, por que o livro dizia,--bem vê--mostrava frei João ao padre
Osorio: _Quando quis sanus cibum digerere non potest in stomacho_.
Chorava e não dizia por que chorava. Diabrura com toda a
certeza:--_Quando lacrymas plorat et nescit quid ploret_. Havia um
artigo que accentuava as mais fortes presumpções da obsessão incuba
de Martha. Parece que ella no confissionario se accusava de
repugnancias, de concessões violentadas, de resistencias ás caricias
do esposo: e talvez revelasse que a imagem de José Dias intervinha
n'essas luctas da alcova. É o que se deprehende do _Signal_ decimo
terceiro que frei João mostrava com o dêdo no seu _Brognolo_, e vai em
latim, como lá está, para que poucas pessoas possam alegar
intelligencia:--_Quando vir uxori et uxor viro apropinquare non potest,
quia videt aliud corpus intermedium, aut sibi videtur esse_.--Aqui é
onde bate o ponto!--dizia frei João martellando com o dedo indicador na
pagina indecente.
--Mas não será essa visão o introito de uma alienação
mental?--perguntava o de Caldellas.--Não vê, padre João, que esta
rapariga está abatida por uma grande amargura que prende com actos da
sua vida passada? Não a vê tão cahida, tão melancolica...
--Os melancolicos são os mais vexados pelo demonio--replicou o egresso.
Veja Galeno e Avicena, que aqui vem citados.--E folheou o Brognolo, até
encontrar o texto triumphal.
--Aqui tem; leia, verá que a demencia póde ser obra do demonio.
O padre Osorio leu com uma grande ignorancia curiosa: _Os demonios
acommettem mais os melancolicos. Primeiro, porque o humor melancolico
com difficuldade se tira e é de sua natureza inobediente e rebelde.
Segundo, porque o humor melancolico é mais apto para gerar diversas
enfermidades incuraveis, porque, se é muito enxuto, offende as
membranas do cerebro e faz ao homem doudo; se offende os ventriculos
causa apoplexia, e gera raivas, frenesis e odios; e estes effeitos de
melancolia muitas vezes os costuma causar o demonio_, etc.
--O padre Osorio está-se a rir?!--invectivou fr. João abespinhado.
Sabe o snr. que mais? Eu já tinha ouvido dizer ao abbade de S. Thiago
d'Antas que o snr. padre vigario de Caldellas não era muito seguro em
materia de fé; que tinha um bocado de fedor heretico nas suas predicas,
e que dava mais importancia á quina do que aos santos milagrosos na
cura das maleitas.
--Se isso fede a heresia, então, snr. frei João, estou de todo
pôdre--obtemperou Osorio, e continuou deixando impar de espantada
indignação o missionario.--A respeito da enfermidade de Martha, sou a
dizer-lhe que em vez de exorcismos quereria eu que lhe ministrassem
banhos de chuva, calmantes, distracções; e, baldados estes recursos,
que a internassem n'um hospital de alienadas, porque esta mulher é
filha de uma douda, é neta de outros doudos, e pouco ha-de viver quem a
não vir de todo mentecapta. Além de herege sou propheta, meu caro
senhor frei João. A sua energumena tem infelizmente o demonio que raras
vezes a sciencia vence--o demonio da demencia hereditaria que a não se
curar com a agua em chuveiro, também se não cura com a agua benta.
Seria bom que vossa reverencia, antes de pôr á prova os exorcismos,
ouvisse a opinião dos medicos.
--Eu sei o que dizem os medicos--e sorria com menospreço da pobre
medicina. Eu, aqui onde me vê, com os exorcismos, com este remedio que
não inventei, mas que a egreja de nosso Senhor Jesus Christo me deixou,
e que elle mesmo, o divino Mestre usou, como o senhor padre Osorio deve
ter lido nos seus Evangelhos ... ou nega a auctoridade dos Evangelhos?
Nega que Jesus Christo expulsava demonios?
--Não senhor, eu sei a historia da legião que se metteu nos porcos...
--E outras; os livros sagrados estão cheios d'esses _factos_ a que o
padre Osorio chama _historias_; não são historias, são factos.
--Ah! snr. frei João! Jesus Christo, a sua vida e os seus milagres não
são historia? não pertencem á historia? Máo é isso então!
A polemica prolongou-se um tanto azeda; Osorio escandalisava os pios
ouvidos do egresso que, pondo as mãos no peito e os olhos no céo,
exclamava com S. Paulo que era necessario que houvesse escandalos.
Interrompera-os o brazileiro dizendo que a sua sobrinha estava com um
ataque e que lhe dera no jardim. Frei João entrou na alcôva para onde
a tinham levado em braços, e o padre Osorio ficou ouvindo a revelação
da governanta, que lhe dizia:
--A desgraçadinha está de todo varrida! Eu estava no tanque a passar
uns lenços por agua quando ella entrou no pomar sem fazer caso de mim,
como se ali não estivesse viva alma. E vae depois poz-se a cortar rosas
e a dizer que eram para o seu amado José Alves, para o seu esposo José
Alves. V. S.ª não me dirá quem diacho, Deus me perdôe, é este José
Alves?
--E depois?
--Depois, sentou-se debaixo da ramada, esteve a chorar com o ramo das
rosas muito chegado á cara e d'ahi a pouco cahiu para o lado a dar aos
braços e a espernear. Eu então chamei a cozinheira e levamol-a para o
quarto com os sentidos perdidos! O José Alves, quanto a mim, acho que
foi derriço que ella teve em solteira. Já ouvi dizer que a casaram com
o arenque do tio contra vontade... É o que tem estes casamentos...
O padre Osorio não illucidou a governante. Assim que o Feliciano lhe
disse que se iam lêr os exorcismos, retirou-se, pretextando deveres
parochiaes, e observou-lhe:
--Não deixe mortificar muito sua sobrinha com os exorcismos, snr.
Prazins. O demonio que ella tem é a doença. Faça o que lhe disse o
padre mestre Roque que é um velho illustrado e virtuoso. Vá dar um
giro com ella. Leve-a á capital; demore-se por lá; e, quando a vir
distrahida, contente e com bom appetite, volte para sua casa.
O brazileiro disse que bem sabia que os exorcismos eram chérinolas; mas
que o frade se lhe mettera em casa, e dizia que não se ia embora sem
curar ella. Accrescentou que não podia agora sahir do Minho porque
estava á espera que os filhos do Cerveira de Quadros perdessem na
batota do Porto a sua parte de alguns contos de réis, que acharam por
morte do pai;--que lhe convinha muito comprar a quinta da Ermida que
partia com a d'elle, e havia outro brazileiro que a trazia d'olho. Que a
respeito da sobrinha tencionava leval-a a banhos do mar, e havia de
comprar o Manual do Raspail, a vêr o que elle dizia da molestia, porque
em Pernambuco toda a casta de doença se curava pelo Raspail, e que
levasse o diabo o frade e mais a caiporice dos exorcismos.
--Que sim, que comprasse o Manual do Raspail--concordou o padre Osorio,
e sahiu muito cançado--dizia elle á irmã--de lidar com as duas
cavalgaduras.


XX

Martha estava no quarto, onde tinha o seu oratorio de pau preto com
frizos dourados, e dentro uma antiga esculptura em marfim d'um Christo
dignamente representado na sua agonia humana. De cada lado da cruz ardia
uma vela de cêra benzida. Frei João entrára de sobrepeliz e estola:
seguiam-no o Feliciano com uma vela de arratel acceza, e o Simeão com
a caldeirinha da agua-benta. Martha, com um pavor na vista, tremia, de
pé, encostada á commoda. O exorcista sentou-se, e chamou a energumena
com um gesto imperativo de cabeça. Ella aproximou-se hesitante e
ajoelhou. Fr. João compoz o semblante e deu á voz uma toada lugubre em
conformidade com a rubrica de Brognolo--_com grave aspecto e voz
horrivel_, diz o demonómano. Começou por exercitar o _Preceito
provativo_, a vêr se havia effectivamente demonio. E então bradou,
fazendo estremecer Martha: _In nomine Jesu Christi. Ego Joannes est
minister Christi_... Vinha a dizer, em vulgar, ao demonio ou aos
espiritos immundos, _vet vobis spiritis immundis_, que, se estavam no
corpo d'aquella creatura, dessem logo um signal evidente, ou vexando-a,
ou movendo-lhe os humores, segundo o seu costume, pelo modo que por Deus
lhe fosse permittido _eo modo quod a Deo juerit permissum_. Martha
estava retranzida d'um sagrado horror, posto que não percebesse do
latim do padre senão _demonio_ e _espiritos immundos_. Nunca lhe tinham
dito que ella estava endemoninhada, e á sua mentalidade faltava-lhe
n'este alance a força convincente e a energia da palavra para combater
o engano do seu confessor. Não tinha vigor de caracter nem rudimentos
de intelligencia para reagir. Educada em melhores condições,
succumbiria com a mesma vontade inerte sob a violencia do confessor. Ha
condescendentes humildades mais vergonhosas sem o diagnostico da
demencia que as desculpe. Ella estava de joelhos; mas, não podendo
suster-se, sentou-se n'um arfar de suspiros, anciada, até que as
lagrimas lhe explodiram n'uma torrente.
Frei João fez um tregeito de satisfação, um agouro de victoria, e
poz-lhe o _Preceito lenitivo_: «Que a vexação cessasse
immediatamente--impunha elle aos demonios malditos--e toda a afflicção
causada por elles» _et omnia afflictio a vobis causata_. E atacou logo
os demonios com o _Preceito instructivo_ «que immediatamente a
prostrassem na presença d'elle, se ella estava possessa» _et statim
coram me illam prosternatis_. Martha, com effeito, estava prostrada, com
a face no pavimento, estirando os braços no paroxismo epileptico, e o
collo e o tronco hirtos n'uma inflexibilidade tetanica.
--Não ha que duvidar--disse o exorcista ao marido e ao pai da
possessa.--Levem-na d'aqui e depois continuaremos.
Martha, passado o lethargo, disse ao tio que mal se lembrava do que
passára no oratorio com o snr. frei João; mas que lhe tinha mêdo, que
não queria mais confessar-se com elle.
--Cada vez mais provado que está obsessa. Já não é ella quem falla;
é o demonio que me teme!--exclamou o exorcista com uma santa basofia,
refutando as vacillações um pouco scepticas do brazileiro; ao passo
que o Simeão asseverava que a filha tinha o demonio; porque a sua
defunta mulher tambem o tinha, e se deitára ao rio porque nunca quizera
que lhe fizessem as rezas.
Ao outro dia, vencidas as repugnancias de Martha, continuou o exorcista,
carranqueando cada vez mais e pondo vibrações horrorosas na larynge.
Deu-lhe a ella o seu Brognolo para que lêsse em voz alta os _Preceitos
que a creatura vexada pôde pôr ao demonio_. Martha, de joelhos, diante
do oratorio, leu: _Demonio maldito, eu como racional creatura de Deus,
redimida com o seu precioso sangue, depois que para me salvar se
humanou, cheia de fé, te mando em virtude do santissimo nome de Jesus,
que logo me obedeças e me atormentes levemente, ou fazendo tremer o meu
corpo ou lançando-o em terra, deixando me em meu juizo_.
O corpo de Martha visivelmente tremia; ella deu o livro ao exorcista com
um arremesso impaciente, e murmurou soluçante:
--Deixem-me, deixem-me pelas chagas de Christo!
Frei João sorriu-se, e resmuneou á orelha do Feliciano--o maldito
serve-se do nome de Christo para me afastar! Eu vou escangalhar-te,
Satanaz!
E lançou mão do gladio das _Objurgações_. As objurgações são
perguntas feitas ao diabo, á má cara, e latinamente. _Dize, maldito
demonio, serpente insidiosa, conheces que existe Deus? Conheces que
foste creado anjo allumiado de muitas prendas, e que pela tua soberba te
perdestes? Sabes que, repulso do paraiso, perdeste para sempre a graça
de Deus_? Pergunta-lha a final, depois de muitas injurias, se reconhece
n'elle um ministro de Deus, e como ousará a não manifestar-se?
_Quomodo igitur poteris contra estimulum calcitrare_?
O demonio não respondeu ainda; mas o frade ia apertal-o, mandando que
se ajoelhassem todos. Elle então, n'uma postura seraphica, braços
cruzados no peito e olhos no Christo, declamou:
_Veni, sancte spiritus: reple tuorum corda fidelium, et tui amores in
eis ignem accende_. Pedia ao Espirito Santo que descesse a encher os
corações dos seus fieis, e abrazal-os no fogo do seu amor. Depois:
_Dominus vobiscum_.
--_É de co espirituó_--respondeu o Simeão, que sabia ajudar á missa.
Seguiram-se varios _Oremos_ e deprecações, e a _Ladainha de Nossa
Senhora_; mais outros _Oremus_, e a _detestação_ da energumena, uma
estirada que principiava: _E tu, demonio maldito, com que auctoridade
intentas possuir jamais meu corpo ou molestar-me por modo algum_? Martha
rejeitou o livro, e disse que não podia lêr nem estar de joelhos; que
tinha vágados e que se queria ir deitar. Mas o exorcista, severo e
formidavel no seu ministerio--que não, que não se ia deitar, que não
lhe fugia, que se puzesse de joelhos a seus pés! Elle então, segundo
a rubrica do livro director, _sentou-se, cobriu-se, voz grave e
horrivel, virado contra o demonio, como juiz para tal réo já
convencido_, aspergiu a possessa de agua-benta, ululando: _Asperge me,
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