A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 07

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o seu Verissimo, não o deixava nem á quinta facada.
--Nós deviamos ir todos para o Brazil--lembrou o Torquato, que tinha
meditado n'um recolhimento extraordinario.
--E chelpa?--perguntou a Libania.
--Se tu quizeres, Verissimo, dentro de um mez temos um conto de réis.
--Boa!...--disse o outro.--Bem se vê que as duas garrafas deram o que
podiam dar--uma fantazia de um conto de réis. Por dous tostões é
barato.
--Estás disposto a ouvir-me sem interrupção de chalaça? Eu não
estou bebedo, palavra de honra!
Libania pôz a face entre as mãos e os cotovellos na toalha suja de
vinho e migalhas, com os olhos muito fitos e rutilantes na cara do
Nunes. O Verissimo atirou com as pernas para cima da banca, accendeu um
charuto de 10 réis e disse que fallasse á vontade.
--Tu sabes que te pareces muito com D. Miguel?
--Começas bem. Temos asneira.
--Máo! não me falles á mão.
--Já sei onde queres chegar. Vais dizer-me que me faça acclamar rei,
e, para evitar effusão de sangue, venda a minha sobrinha D. Maria 2.ª
os meus direitos á corôa por um conto de réis. Dou-os mais em conta.
--Adeus minha vida!--retrucou o Nunes impaciente. Ámanhã
conversaremos.
--Deixa fallar o homem!--interveio a Libania.--Ora diga lá, ó sê
Nunes.
O Torquato expôz a sua theoria do conto de réis, desfez atritos,
removeu difficuldades, convenceu afinal. Tinham de partir para o Alto
Minho, os dois. Libania iria para Ramalde trabalhar nos teares da
Grainha que lhe dava comida, cama e doze vintens por dia. Venderiam a
um adeleiro da rua Chã os trastes para o Verissimo se enroupar de panno
piloto, quinzena e calças com alguma decencia, roupa branca, reforma
das botas cambadas, chapéu de fêltro e um paletó de agazalho.
Na quinta-feira gorda, a Libania, com exemplar coragem, foi para
Ramalde. A Grainha negociava em teias, ia vendêl-as ao Douro, tinha
visto em Gouvinhas o limpo trabalho da rapariga, e quando a encontrou no
Porto:--Olhe, môça, quando quizer ganhar a vida honradamente lá
estamos em Ramalde. Uma de doze, comer como eu e lençoes lavados na
cama.
O Nunes e o Verissimo foram juntos até perto de Braga. Ahi, o de Calvos
seguiu para casa, e o outro no sabbado gordo partiu para a Povoa de
Lanhoso.

[Nota de rodapé 6: Segundo as informações textuaes do já referido
José Joaquim Ferreira de Mello e Andrade o dialogo da auctoridade e do
preso correu assim: "Sendo apresentado ao governador civil e respondendo
a varias perguntas disse:
"Que era das immediações de Villa Real, em Traz-os-Montes, e um dos
amnistiados em Evora Monte, na qualidade de sargento do exercito
realista;
"Que n'uma sortida que fizeram os do Porto fôra ferido n'um quarto por
uma bala, ficando um pouco côxo: mas que não deixára ainda assim o
serviço;
"Que achando-se no ultimo carnaval no logar de S. Gens, ali tomára
parte nos folguedos do povo com o abbade da freguezia, o qual o
convidára no fim para sua casa;
"Que o tratára muito bem, e que, passados alguns dias, lhe disséra,
depois de ceia, de uma maneira muito recolhida e sonsa: que desconfiava
ter em sua casa sua magestade el-rei o snr. D. Miguel I (por que elle
era em tudo um fac-simile);
"Que nem lhe negára, nem confessára, mas que, passados dias, á mesma
hora, lhe repetira aquella suspeita; porém que ainda d'essa vez lhe
respondêra com uma evasiva.
_Auctoridade_
"Que utilidade tirava em manter o abbade n'essa illusão?
_Preso_ (cynico)
"Que a tirava toda, porque só assim podia continuar no goso da
commodidade que se lhe offerecia;
"Que d'ahi por diante lhe ficara dando o tratamento de Magestade, como
coisa decidida, e lhe revelára o desejo de que o elevasse á dignidade
de seu capellão-mór, ao que annuira;
"Que, passados alguns dias, lhe propozera a admissão á sua presença
nocturna e clandestina d'alguns ecclesiasticos e tambem seculares,
consummados realistas, no que concordara;
"Que d'esse dia por diante principiaram a concorrer ali, por alta noute,
um até dois por vez, pedindo-lhe todos, depois de lhe beijarem a mão,
commendas, beneficios, logares civis, postos militares e até
prelazias--o que elle tudo lhes concedeu de bom grado.
_Auctoridade_
E depois?
_Preso_
"Depois? que lá se aviessem, porque o seu fim era conservar aquella
commoda situação, _maxime_ quando as suas finanças estavam no maior
apuro."]
[Nota de rodapé 7: _Nota erudita_. A historia, aliás exacta, que o
fidalgo de Alvações contava, acha-se nos Nobiliarios, e está gravada
no escudo d'esta familia. Lopo Rodrigues Camêlo foi moço da estribeira
d'el-rei D. Sebastião, e muito querido de seu real amo. Viajára muito
e era primoroso em pontos de cortezia. Uma vez acompanhára o rei a
Coimbra; e, na passagem de S. Marcos para Tentugal, encontraram a ponte
do Mondego cahida. O rei quiz passar a váo, e o estribeiro observou-lhe
que o passo alli era perigoso. D. Sebastião redarguiu: "Então passai
vós primeiro."--Se vossa alteza me engana,--volveu o cortezão--ditoso
engano é esse.--E, mettendo-se á vala espapada de limos e lodo,
submergiu-se a ponto de ficar só com a cabeça e um braço de fóra.
El-rei acudiu-lhe, tomando-o pela mão, e tirando-o com valente pulso
para a margem. Lopo Rodrigues, afim de que os seus descendentes lêssem
este caso no marmore do seu brazão de armas, pediu a el-rei que lhe
mandasse reformar o escudo em lembrança de tal successo.
E assim lhe foi debuxado o escudo: _Em campo verde uma ribeira de prata
ondeada. D'esta ribeira emerge um braço vestido de azul, do qual pega
outro vestido de brocado com lettras de negro que dizem R E Y. Este
braço real sahe da banda direita do escudo, na esquerda está uma
estrella de oiro de oito raios, e no canto direito de baixo uma flôr de
liz de ouro. Timbre o braço vestido de azul com a estrella nos dedos_.
A carta foi registada no "Livro dos Privilegios", no anno de 1574.
Marcial fez rir os romanos á custa de um genealogico esquadrinhador de
tal casta, que, não tendo já humanas gerações que espanejar do lixo
dos seculos, entrou a deslindar os remotos avoengos de um cavallo
chamado Herpino. Passarei tambem ás caudelarias quando o brazão subir
da tenda ao sport, e derivar dos especieiros esparramados ás bestas
elegantes.]


XI

O Torquato, antes de entrar em casa, foi á residencia. Ia mysterioso,
circumvagava uns olhares cautelosos:--se ninguem o ouviria?--perguntava
ao abbade Marcos.
E o abbade, entrepondo as cangalhas nas paginas do breviario,--pôde
fallar, que estou sósinho. Que é?
--D. Miguel I está em Portugal--disse, curvando-se-lhe ao ouvido, com
uma voz guttural.
--Você que me diz?! Como sabe isso? Pataratas!
--Chego agora do Porto; estive com o escrivão fidalgo, o Ferreira
Rangel e com o abbade Gonçalo Christovão. El-rei está n'esta
provincia. Desconfia-se que é em Braga, e o José Alvo Balsemão
disse-me que talvez eu o visse brevemente no nosso concelho, porque o
levantamento ha-de começar por aqui.
--Que me diz você, amigo Torquato?--sacudia os braços, fazia estalar
os dedos como castanholas, tinha gestos mudos de exultação
extatica--que ia escrever ao abbade de Priscos, que indagasse, que
apparecesse...--É preciso trabalhar, preparar os animos...
--_Chiton_!--acudiu o Nunes com o dedo a prumo sobre o nariz. Nada de
espalhafato! Não ferva em pouca agua, abbade. Se dér á lingua,
esbarronda-se o negocio. O rei só ha-de apparecer aos seus amigos
quando os generaes entrarem pela Gallisa. Não falla a ninguem; não se
dá a conhecer. Diz que só fallára em Lisboa com o conde de Pombeiro e
com o Bobadella, e no Porto com o José Antonio, o morgado do Bom
Jardim, e mais com o padre Luiz do Torrão... O abbade conhece.
--Pois não conheço? como as minhas mãos; é o vice-rei nas provincias
do norte ... o nosso bom padre Luiz de Souza que pelos modos está
nomeado patriarcha de Lisboa... Que pechincha, hein?
--É esse mesmo... Bem! até logo; vou vêr a mulher e os filhos a casa,
que ainda lá não fui. Um abraço, amigo abbade! Parabens! A choldra
vai cahir! Vida nova! D'aqui a um mez está todo esse Minho em armas, e
el-rei á frente dos seus vassallos. Outro abraço, e viva el-rei!
Lagrimas jubilosas, como contas de vidro sujas, tremeluziam nas
palpebras inflammadas do abbade.
--Jante comigo, Nunes, jante comigo! Vai-se abrir uma de 1815, á saude
d'el-rei!
--Parece que me estoira a pelle! Não estou em mim!--Que ia vêr a
mulher e que voltava já.
Na noite de sabbado para domingo de carnaval, o Verissimo pernoitou na
Povoa de Lanhoso, na estalagem do Rêlhas.
Disse ao estalajadeiro que era de longe e andava a viajar pela
provincia. Perguntou se por ali não se festejava o entrudo. O
bodegueiro informou que na Povoa havia guerra de laranjadas e ás vezes
pancadaria de senhor Deus misericordia; mas que na freguezia de Calvos
havia comedias nos tres dias de entrudo, por signal que o seu filho, um
barbado que ali estava, com uma cara angulosa muito alvar, fazia de
namorado no _Medico fingido_, um entremez coisa rica, que era de um
homem malhar de costas n'aquelle chão a rir--que se elle quizesse vêr
as comedias, podia ir com o seu rapaz, que lhe arranjava lá uma cadeira
de casa do abbade.

O scenario para a representação do _Medico fingido_ arranjou-se na
eira do Gonçalves, muito espaçosa e ageitada, porque as figuras
entravam e sabiam, conforme a rubrica, do palheiro que tinha tres
portas. O palco, barrado de ferro, ainda humido, estava ao abrigo de
cobertas de chita alinhavadas umas nas outras, retezadas nas pontas por
postes de pinho que rematavam em forquilhas para receberem uns varaes
lançados transversalmente. Havia dous mastros de castanheiro
descascados, afestoados de buxos, alecrim e camelias, coroados por
bandeiras vermelhas esburacadas. Parte dos mastros tinha uma listra em
zig-zag pintada a zargão que se ia espiralando pelo pau acima, com
cercadura de cruzinhas:--era obra de Chêta, um trôlha inspirado que
já tinha pintado um painel das _Alminhas_, onde havia almas do sexo
fraco com grandes têtas lambidas por lavaredas, e um rei coroado com a
bôca aberta no acto de berrar queimado, e tamanha bôca que só cedia
á de um bispo mitrado, muito impertigado, com o seu baculo. O trôlha
ensaiára o entremez, e não entrava, porque lhe tinha morrido o pai,
havia quinze dias, contava elle a um senhor de fóra, desconhecido, que
tinha vindo com o _galan_, o filho do estalajadeiro da Povoa.
O Verissimo foi admittido aos camarins onde estavam sentados em caixas
de milho e na salgadeira, os figurantes á espera da sua vez, já
vestidos. Viam-se os personagens do entremez. Mathilde, amante de
_Almenio_, uma ingenua, a protogonista da peça, _a doente namorada_,
que levou o pai a trazer-lhe a casa o amante, o _medico fingido_. Este
papel fôra confiado a um latagão official de carpinteiro, com os
pulsos cabelludos e os nós dos dedos com umas protuberancias callosas
que pareciam castanhas piladas antigas. Nas maçãs do rosto mascarrára
duas zonas de carmim, que pareciam a distancia umas chagas de mendigo de
romaria aperfeiçoadas. Trajava um vestido de setim branco da fidalga
velha de Rio Caldo, feito em 1824 para um baile que houve em Braga aos
annos de D. João VI. O peito chato do carpinteiro ficava á altura dos
quadris da fidalga, e as claviculas espipavam as hombreiras do corpête,
prendendo os movimentos ao desgraçado _Mathilde_. Posto que a scena
fosse a _Casa de Astolfo_, pai da doente fingida, a velhaca estava de
chapéu de palhinha com enorme telha enconchada e plumas brancas muito
amarellecidas do môfo. O vestido era-lhe curto, mas lucravam com isso
as pernas que se deixavam vêr até cima do jarrete, cingidas de fitas
cruzadas que subiam d'uns sapatos de duraque sem tacões, feitos de
proposito e em concordancia com os angulos reintrantes e salientes dos
pés. Era o grotesco do horror. A creada de _Mathilde_, a _Laberca_,
tambem vestia de setim azul-ferrete, um pouco menos antigo, emprestimo
das senhoras de S. Crau, que o assoalhavam de vez em quando para os
entremezes. Não tinha chapéu nem sapatos de duraque: obedecia mais á
caracterisação natural. Na cabeça usava touca de folhos com laços de
fita escarlate e nos pés os butes do amo com ponteira de verniz; elle
era o creado do juiz de direito substituto; gosava creditos de
representar papeis de lacaia fazendo rebentar a gente.
O Verissimo fez os seus cumprimentos ás duas damas, e manteve uma
seriedade verdadeiramente real. O _Almenio_ era o filho do estalajadeiro
da Povoa de Lanhoso, o Rêlhas. Calças brancas, quinzena de velludilho,
bengala de castão de prata, chapéu branco de castor e oculos. Disse ao
Verissimo que punha os oculos para fingir de medico. Estava a um canto o
gallego, o _Gonçalo_, aguadeiro da casa. Como não havia em Calvos o
costume rigoroso dos aguadeiros, o trôlha ensaiador vestiu-o de
almocreve, com as botas refegadas, faixa branca e em mangas de camisa,
com uma monteira comprada em Tuy. A cara era ao proprio, d'uma verdade
typica. O _Pantufo_, um saloio rico que queria casar com _Mathilde_, e
foi bigodeado pelo fingido medico, vestia a melhor andaina de fato do
presidente da camara, um apaixonado pelos entremezes, que a gravidade
das suas funcções impedia de representar; mas emprestava a roupa e a
intelligencia dramatologica. Havia mais duas figuras, o _Falsete_, e o
_Astolfo_, que se estavam vestindo lá dentro, por detraz d'um ripado,
que os deixava vêr em camisa enfiando as pernas sujas nas pantalonas,
emquanto o trôlha lhes rebocava de vermelhão as caras.
O Nunes atravessára a eira, e endireitára para o palheiro, quando lhe
disse o Gonçalves que estava lá dentro um fidalgo de longe.
Encostou-se ao batente da porta, trocou um lance de olhos com o
Verissimo, e sahiu apressadamente, arranjando pelo caminho uma
physionomia cheia de alvoroço, de surpreza.
Entrou pela residencia, muito esbofado:
--Ó abbade, já esteve na eira do Gonçalves?
--Não; estou a acabar de jantar, e lá vou vêr essa borracheira da
comedia. Você vem aganado!
--Vinha perguntar-lhe se conhece um sujeito de fóra que lá está na
eira.
--Aqui veio um rapazola da Povoa pedir-me uma cadeira ha coisa de meia
hora para um fidalgo que tinha vindo com elle. Perguntei-lhe quem era o
fidalgo. Diga que não sabe. Esta canalha em vendo um bigorrilhas de
casaco chama-lhe fidalgo.
--Venha já d'ahi comigo... Por quem é, não se demore... Ó abbade,
lembra-se de vêr el-rei em Braga ha treze annos!
--Ora se lembro!... Beijei-lhe a mão tres vezes.
--E, se o vir agora, conhece-o?...
--Parece-me que sim--o padre limpava á pressa os beiços amarellos dos
ovos do arroz dôce.--Mas isso que quer dizer? Você está doido, ou
temos carraspana, amigo Nunes?
--Homem! venha comigo, e depois chame-me doido ou borrachão, lá como
quizer; mas não se demore que eu estou em brazas vivas.
--Ahi vou, ahi vou, não se atrigue. Vai uma pinga do chôco?
--Venha de lá isso.--Bebeu d'um trago, e pediu outro:--Agora, á saude
de el-rei! á saude d'aquelle que talvez esteja bem perto de nós! a cem
passos!
--Toque!--exclamou o abbade.
Pelo caminho, disse-lhe o Nunes que era preciso o maior disfarce, não
olhar muito de frente para elle, e só deviam fallar-lhe, se a occasião
viesse muito a geito.
--Você está a sonhar, homem!
Quando entraram á eira, já tinha começado a festa. Verissimo estava
em pé, com a mão direita apoiada nas costas da cadeira. D'um e d'outro
lado remexia-se a turba, muitas raparigas a rirem dos actores vestidos
de mulheres, e uns rapazes com chalaças de uma graça aparvalhada,
muito local, a que os do palco respondiam á lettra com manguitos, e os
que faziam de mulheres batiam palmadas no trazeiro, voltando-o para o
publico. Cães ladravam ás figuras; os rapazes davam-lhes pauladas e
elles ganiam. As velhas mandavam calar o gentio para poderem perceber as
fallas:--Canalha brava, calaide-vos ahi!--Uma balburdia que parecia um
theatro de cidade de primeira ordem. O tio Gonçalves, o dono da eira,
dizia que estavam todos bebedos, e voltava-se para o desconhecido, como
a pedir desculpa.
--É entrudo, dizia, é entrudo, senhor!
Quando appareceu o padre na cancella da eira, houve silencio com algumas
fungadellas de riso das cachopas, e recomeçou a comedia em obsequio ao
abbade e á Arte ultrajada pela hilaridade bruta da plateia. Notaram
alguns velhos sisudos que o forasteiro das grandes barbas se mantivera
muito sério durante a troça da canalha. Assim o dizia o Gonçalves ao
abbade, perguntando-lhe se conhecia aquelle senhor.
--Não conheço,--e acotovelava o Nunes, segredando-lhe com o
disfarce:--Você adivinhou. É elle...
--Que me diz, abbade?
--É elle.
O Verissimo déra tres passos para accender um cigarro no de um musico
que estava sentado n'um bombo.
--É elle!--repetiu o abbade.--Você não o viu coxear?
--Falle baixo, falle baixo, e não olhe muito para elle, que eu já o vi
deitar-nos os olhos,--acautelou o Nunes.
--Também eu ...
Estalou n'este momento uma gargalhada geral. Verissimo tambem se riu, e
deu palmas.
--Olha! olha! a dar palmas!--notou o abbade com transporte. Aquillo
sensibilisou-o até ás lagrimas! O snr. D. Miguel I a dar palmas ás
figuras do _Medico fingido_ na eira do Gonçalves em S Gens de Calvos!
Tocante!
A risada geral e as palmas e os apupos não eram rigorosamente uma
ovação ao auctor do entremez nem aos curiosos. Eis o caso. Na scena
l.ª o _Astolfo_ pede carinhosamente á filha que côma alguma coisa.
Mathilde diz que não póde, _que não está em si; que lhe acuda, que
lhe acuda, porque um suor frio lhe faz perder os sentidos_.
O gargajola esperava ser amparado pelo outro, em harmonia com a rubrica
que diz: _Finge desmaio, e Astolfo a sustem nos braços_. Mas ou porque
se antecipasse a desmaiar, ou porque _Astolfo_ se demorasse a amparal-a,
_Mathilde_ escorregou de costas sobre o barro ainda fresco do
palco; e, no acto de se erguer debaixo dos apupos da multidão,
arregaçaram-se-lhe as saias e saiotes até á cintura. Ora a _Mathilde_
não usava calcinhas. Um escandalo.
Verissimo Borges não pôde sustentar a gravidade competente á sua
pessoa. A natureza rebentou por elle fóra n'umas casquinadas convulsas
que poderiam custar-lhe uma môcada, se a deflagração do riso não
fosse geral.
_Mathilde_ fugiu do palco, enfiou pelo palheiro e não voltou á scena.
O ensaiador, o trôlha, sahiu ao terreiro a explicar ao publico a
suspensão do entremez n'estas palavras:--Aquelle alma do diabo despiu
a farpella, e diz que raios o parta, se cá tornar. Vocês póde ir á
sua vida que não ha hoje treato.
Começou a debandar o auditorio em grande algazarra. Verissimo parecia
esperar que o galã, o Rêlhas Junior, se despisse para se retirar. O
Gonçalves perguntava-lhe:--e que tal esteve a chalaça, senhor! Má mez
pr'ó homem, que se mais tivesse mais punha ó léo!--e voltando-se para
o abbade que, a pedido do Nunes, guardava respeitosa distancia:--ó snr.
abbade! coisa assim não consta! Eu, se me succedesse uma d'aquellas,
mettia a cabeça n'um folle.
--São acasos, disse Verissimo com indulgencia.--Não se lembrou que
estava vestido de senhora.
O abbade ganhou animo, abeirou-se do Gonçalves, cumprimentando o outro
cerimoniosamente, e disse:
--O entremez não presta para nada. Se o homem não cahisse, ninguem se
ria.--Provavelmente...--assentiu o Verissimo, correspondendo á cortezia
do Torquato Nunes que parecia aproximar-se mais acanhado.--Estes casos
de escorregar, accrescentou o desconhecido, acontecem nos primeiros
theatros do mundo e até nas salas onde se dança; e de ordinario as
senhoras que desastradamente cahem são verdadeiras senhoras. É muito
peor e mais melindroso.
O abbade e o Nunes com muitos gestos affirmativos--que sim, que era
muito peor, e mais melindroso, muito mais.
Derivou a conversação para as bellezas naturaes do Minho. O
desconhecido sentia ter vindo no inverno, quando apenas se adivinhavam
as pompas da primavera.
Principiava a choviscar. O abbade offereceu a sua casa ao forasteiro,
emquanto não estiava a chuva. Verissimo acceitou por momentos, visto
que não se prevenira com guarda-chuva--um traste que detestava. Os
aguaceiros repetiram-se com pequenas intercadencias, varejados pelo sul;
por fim, as christãs da serrania empardeceram, as nuvens rolavam pelos
declives como escarceus a despenharem-se, fechou-se o horisonte sem uma
nesga, e a chuva não parava. O abbade não permittiu que o hospede
sahisse com tal tempo e já perto da noite.
Durante a ceia, appareceram algumas raparigas mascaradas com lençoes,
abraçando a Senhorinha que servia á mesa, e dizendo em falsete
pilherias ao Nunes a quem chamavam _Trocatles_ e _précurador de causas
perdidas_. Verissimo mostrava-se contente e dizia:
--Bom povo! excellente povo! Este Minho é o bom coração de Portugal,
e os seus habitantes, segundo me consta, possuem os melhores corações
do reino. Eram dignos de ser mais felizes do que são, carregados por
tributos, esmagados pelo peso dos empregados publicos que são o
flagello de Portugal...
O padre escutava-o com religiosa attenção; o Nunes beliscava a côxa
do abbade que tomára a presidencia da mesa e puzera o hospede á sua
direita.
No fim da ceia, o padre Marcos com o copo na mão, e de pé, disse que
fazia uma saude ao seu hospede, porque lhe parecia que tinha a honra de
beber á saude de um realista, d'um partidario de sua magestade o snr.
D. Miguel 1.° que Deus guardasse! O hospede agradeceu, declarando que
mesmo n'uma roda de liberaes não negaria os seus sentimentos politicos:
que era realista, e como tal brindava á saude de todos os amigos do
principe proscripto.
O Nunes dava canelões intelligentes e ás vezes dolorosos no abbade,
que o encarava de esconso como quem diz:--percebo; não faça de mim
asno; sei que estou fallando com el-rei.
A creada deu parte que estava prompta a cama;--quando _Vossoria_
quizer--disse ella ao hospede. Verissimo sorriu-se agradavelmente:
--Que incommodo estou dando a esta excellente familia... Irei
descançar, snr. abbade, e snr. Torquato ... parece-me que lhe ouvi
chamar _Torquato_...
--Nunes Elias, um creado de vossa...--e susteve-se.
Dizia-lhe depois o abbade no quinteiro:--Você ia-se estendendo, Nunes!
Esteve por um triz a dizer, _um criado de vossa magestade_, não esteve?
--Por um triz, abbade, que me estendia! Tal é a certeza de que está
el-rei n'esta casa!--E com transporte olhando para as janellas:--Onde
está pernoitando o snr. D. Miguel l.°! o rei amado dos portuguezes, na
pobre residencia de S. Gens de Calvos! Isto parece um sonho!

A segunda-feira de entrudo foi um chover desabalado. Não houve entremez
nem se via viva alma no cruzeiro. O abbade não consentiu que o hospede
se retirasse; e, aconselhado por Nunes, mandou á Povoa buscar a
bagagem. Era um bahú de lata amolgado na tampa com um cadeado roído de
ferrugem. O legitimista ainda não tinha dado nome algum, nem os outros
ousavam abrir ensejo a que elle tivesse de o inventar. Seria
indelicadeza obrigal-o a mentir. Além de que, o padre Marcos,
tratando-o sempre por _senhor_,--o _senhor_ isto, o _senhor_
aquillo--entendia que se aproximava do tratamento que se deve aos reis,
e ao mesmo tempo ia insinuando ao real hospede que já o conhecia.--Bom
é que elle se vá persuadindo que não somos patêgos--dizia o abbade
ao Nunes.--Sim, bom é que se persuada ... você percebe... E piscava
com esperteza.
--Ora, se percebo! O abbade tem andado com uma cabula muito fina. Eu é
que me custa a ter mão em mim. A minha vontade era deitar-me de joelhos
aos pés d'elle, e dizer-lhe: «Real senhor, nada de disfarces! Aqui
estão dois vassallos de vossa magestade que lhe offerecem o seu
sangue!»
--Deixe estar, acommodava o padre, deixe estar, Nunes... As coisas não
vão assim... Quando fôr tempo, eu lh'o direi... Nada de espantar a
caça.
O Verissimo pediu ao abbade algum livro para se entreter, e não o
obrigar a atural-o. O padre levou-o ao seu quarto onde havia uma estante
de pinho com tres lotes de livros. Mostrou-lhe o _Punhal dos Corcundas_,
a _Defesa de Portugal_ do padre Alvito Buela, a _Besta esfolada_, os
_Burros_, e o _Novo Principe_. O Verissimo levou-os para o seu quarto,
excepto os _Burros_; disse que não gostava de poesia. Fallou com louvor
do padre José Agostinho e de Fr. Fortunato de S. Boaventura--columnas
do altar e do throno, que tinham deixado dois vacuos impreenchiveis na
phalange realista. Perguntou-lhe o abbade se os tinha conhecido
pessoalmente.--Que sim, como as suas mãos... E sorria, como o principe
proscripto, se lhe fizessem semelhante pergunta.
--Que prazer teria o padre José Agostinho, se hoje vivesse e pudesse
vêr el-rei!...--meditou o abbade com a sua grande perspicacia
observadora.
--Decerto...--concordava o Verissimo indolentemente.--Mas quem tem agora
esperanças de vêr D. Miguel em Portugal?
--Eu, senhor, eu!--respondeu o padre batendo na arca do peito com as
mãos ambas--Eu!
O Verissimo folheava o _Punhal dos Corcundas_, e parecia não perceber a
vehemencia do padre.
--Bons desejos, bons desejos do caro abbade...
--E de quasi toda a nação portugueza, senhor! D. Miguel l.° nunca
deixou de reinar nos corações do seu povo. Eu tenho na minha alma o
retrato d'elle desde que o vi ha treze annos em Braga e lhe beijei as
suas reaes mãos!--Escandecia-se o enthusiasmo, punha as mãos,
chammejavam-lhe nos olhos reflexos do fogo interno; e o Verissimo
continuava a folhear o _Punhal dos Corcundas_.
--Então viu-o, abbade?
--Sim, meu senhor, vi-o com estes olhos, toquei-lhe com estas mãos.
--Ainda se recorda das suas feições?
--Perfeitamente.
--Ah! se o visse hoje, decerto o não conhecia... Está muito acabado...
--Conhecia, conhecia...
O abbade sentiu um raio de dramatisação que o vibrou todo.
Eriçaram-se-lhe os cabellos, e coou-lhe pela espinha uma faisca
electrica. Fez um passo atraz, e quando o Verissimo repetiu: «Era
impossivel conhecêl-o» o padre pôz um joelho em terra, estendeu o
braço direito, e com o dedo indicador em riste, exclamou:
--Eil-o! eil-o!
--Ó abbade! o snr. está allucinado! Por quem é, levante-se! Eu não
sou quem pensa!
--Estou como devo estar deante do meu rei!--teimou o abbade, com os
dous joelhos no sobrado.
--Levante-se que vem gente!--dizia o outro, ouvindo passos na escada.
Era o Nunes.
--Entre, amigo!--disse o abbade, respondendo ao visinho que pedia
licença.
Torquato encontrou o abbade de Joelhos e o Verissimo esforçando-se por
levantal-o.
--Ajoelhe a meu lado, Nunes! que eu estou aos pés d'el-rei!--exclamou o
padre.
E o outro, ajoelhando:
--Eu já o sabia, real senhor!

Foi assim que se inaugurou a côrte de D. Miguel I em S. Gens de Calvos,
segunda-feira de entrudo de 1845, ás 3 horas da tarde.


XII

Depois, bem sabem, senhores, como aquelle padre Rocha despenhou
abruptamente o desfecho da farça, cuidando que vingava a moral e punia
com degredo o scelerado que infamava o sacratissimo nome de el-rei D.
Miguel. No transito para a Relação, a meia legua, na estrada do Porto,
o Verissimo com delicadas maneiras e o seu aspecto veneravel, obteve que
o sargento da escolta lhe permittisse alugar a mula de um almocreve que
seguia a mesma direcção. Cavalgou na albarda da mula arreatada com
chocalho, sem estribos; empunhou a corda do cabresto, e ladeado de doze
praças do 8, entrou ao cahir da tarde em Famalicão.
O Torres de Castellões, o administrador, legitimista no fundo, bom
lavrador, mandou-lhe cama para a cadeia e permittiu-lhe que ceasse com
um amigo que o seguira de longe. Era o Nunes, o Pylades das horas certas
e incertas. Orestes estava desanimado; queixava-se das phantasias do
outro, considerava-se perdido.--Pobre Libania!--deplorava, quando ella
souber que eu estou na Relação!
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