A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 11

Total number of words is 4610
Total number of unique words is 1904
30.2 of words are in the 2000 most common words
41.9 of words are in the 5000 most common words
48.9 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
brancas e seccas as ultimas farripas da zaracotea. Soprou novamente e o
ar sahia sem estorvo pelo ouvido com um sibillo egual. Parecia
satisfeito, e cantarolava, _mezza voce_:

_Agora, agora, agora,
Luizinha, agora._

Armou a clavina, aparafusou as braçadeiras, a culatra e a fecharia,
introduzindo a agulha. Aperrou e desfechou o cão repetidas vezes,
acompanhando o movimento com o dedo pollegar, para certificar-se de que
o desarmador, a caxêta e o fradête trabalhavam harmonicamente.
Levantou o fusil de aço que fez um som rijo na mola e friccionou-o com
polvora fina; e, com o bordo de um navalhão de cabo de chifre, lascou
a aresta da pederneira que faiscava.
--Valha-me a Virgem! valha-me a Virgem!--soluçava a mulher.
E elle, zangado com as lastimas da mulher, com expansão raivosa, n'um
_sfogato_:

_E viva a nossa rainha,
Luizinha,
Que é uma linda capitôa_...

--Vai á loja atraz da ceira dos figos e traz o masso dos cartuchos e
uma cabacinha de polvora de escorvar que está ao canto.
A mulher dava-lhe as coisas, a tremer, e fazia invocações ao Bom Jesus
de Braga, e ás almas santas bemditas. Elle encarou-a de esconso, e
regougou:--Máo! ... máo!...
Carregou a clavina com a polvora de um cartucho; bateu com a cronha no
sobrado, e deu algumas palmadas na recamara para fazer descer a polvora
ao ouvido. Fez duas buxas do papel do cartucho, bateu-as com a vareta
ligeiramente, uma sobre a polvora e a outra sobre a bala.

_Agora, agora, agora,
Luizinha, agora._

Depois, pegou da clavina pela guarda-matta, e poz-se a fazer pontarias
vagamente, passeando um olho, com o outro fechado, desde a mira ao
ponto.
A mulher fôra sentar-se no sobrado, á beira da enxerga de tres filhos
a chorar; o mais novo esperneava, dava vagidos na cama a procural-a. O
_Alma negra_ fôra dentro beber uns tragos de aguardente, voltou
enroupado n'um capote de militar, despojo das batalhas da _Maria da
Fonte_.--Ora agora--disse elle--ouvistes? porta da cozinha e a cancella
da horta aberta, porque eu venho pelo lado do pinhal.
--Vai com Nossa Senhora--disse a mulher--e poz-se de joelhos a uma
estampa do Bom Jesus a rezar muitos _Padre-nossos_, a fio.
Era uma noite de fevereiro, de nevoa cerrada, um céo de carvão
pulverisado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse uma
estrella. Não se agitava um galho de arvore nua movido pelo ar nem
ondulava uma erva. Era a serenidade negra e immota das catacumbas. Ás
vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das
carvalheiras a fuga rapida das hardas, dos toirões e das raposas que se
avisinhavam do povoado a fariscarem as capoeiras. O Joaquim Melro
estremecia e punha o dedo no gatilho. O restolhar d'um gato bravo, o pio
da coruja no campanario distante punham arrepios de medo na espinha
d'aquelle homem que ia matar outro--chamal-o á janella e varal-o á
traição com uma bala.--Era o traçado.
--Que raio de escuro!--dizia, esbarrando nos espinheiros perfurantes.
Em noites assim, o universo seria o immenso vacuo precedente ao _Fiat_
genesiaco, se os viandantes não esbarrassem com as arvores e não
escorregassem nos silvêdos das ribanceiras. O noctivago sente na sua
individualidade, nos seus callos e no seu nariz, a doce impressão
pantheista das arvores e dos calháos. Que este globo está muito bem
feito. Os transgressores do descanço que Deus estatuiu nas horas
tenebrosas, os scelerados das aldeias que larapeam o presunto do
visinho, que fisgam a moça incauta ou empunham o trabuco homicida, se
não temem encontrar as patrulhas civicas das grandes municipalidades,
encontram os troncos hostilmente nodosos das arvores que são as
patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mephisto a quem
venderam a alma pelo preço da consciencia eleitoral, ou mais barata,
chegam incolumes ao delicto, passando illesos como o lobo e o javali por
entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, hirtas, com os galhos a
esbracejarem retorcidos n'uma agonia patibular.
O Melro, como o porco montez e o lobo cerval, embrenhára-se por pinhaes
e carvalheiras; ás vezes, parava a orientar-se pelo cucuritar dos
gallos tresnoitados e latir dos cães. Ao fundo das bouças ladeirentas,
rugia o rio Pelle nos açudes das azenhas e nas guardas dos pontilhões.
Lamellas era da parte d'além. Mas o rio, de monte a monte, rugia
intransitavel nas pequenas pontes. Foi á de Landim, uma aldeia
engravatada, onde ainda se avistavam clarões de luz nas vidraças das
familias distinctas que jogavam a bisca em ricos saráos do _faubourg
Saint-Honoré_, com uns deboches sardanapalescos de sueca a feijões.
Havia também um rumorejo de vozes que altercavam na taverna do Chasco.
Tinha dinheiro lá dentro. Jogava-se o monte.
O Melro cuidou ouvir proferir o nome do Zeferino. Abeirou-se, pé ante
pé, do postigo da taverna, e convenceu-se de que estava ali o pedreiro.
Era elle quem reclamava um quartinho que puzéra de _porta_, e o
banqueiro recolhêra com as paradas que estavam _dentro_, quando tirou a
contraria _de cara_.
--Que não admittia ladroeiras!
E o banqueiro desfeiteado observava-lhe que nada de chalaças a respeito
de ladroeiras; que todos os que estavam d'aquella porta para dentro eram
cavalheiros. O Zeferino replicava que não queria saber de cavalheiros;
que queria o seu quartinho ou que se acabava ali o mundo. Que quem
queria roubar que fosse para a Terra Negra.
A allusão era muito certeira e inconveniente. Estavam na roda dos
cavalheiros alguns veteranos da antiga quadrilha do Faisca, na Terra
Negra, muito desfalcada pelo degredo e pela forca. Travou-se a lucta a
sôco e páo; havia lampejos de navalhas que davam estalos nas mollas; o
Tagarro de Monte Cordova tinha feito afocinhar o banqueiro sobre os dois
galhos do baralho com um murro herculeo, phenomenal. O taberneiro abriu
a porta para escoar o turbilhão. Elles sahiram de roldão; e, quando
entestaram com a treva exterior, quedaram-se cegos como n'um antro de
caverna. Um, porém, dos que estavam, não sahiu; encostára-se ao
mostrador com as mãos no baixo ventre, gritando que o mataram; e,
vergando sobre os joelhos, n'um escabujar angustioso, cahiu de bruços,
quando o taberneiro e o Tagarro o seguravam pelos sovacos. Era o
Zeferino.

Quando, á meia noute, o _Alma-negra_ entrava em casa pela porta do
quintal, encontrou a mulher ainda de joelhos diante da estampa do Bom
Jesus do Monte. Ao lado d'ella estavam duas filhas a rezar tambem, a
tiritar, embrulhadas em uma manta esburacada, aquecendo as mãos com o
bafo.
O Melro mandou deitar as filhas, e foi á loja contar á mulher, livida
e tremula, como o Zeferino morreu sem elle pôr para isso prego nem
estopa. Ella poz as mãos com transporte e disse que fôra milagre do
Bom Jesus; que estivera tres horas de joelhos diante da sua divina
imagem. O marido objectava contra o milagre--que o compadre não lhe
dava a casa, visto que não fôra elle quem vindimára o Zeferino; e a
mulher--que levasse o demo a casa; que elles tinham vivido até então
na choupana alugada e que o Bom Jesus os havia de ajudar.
Ao outro dia, o Joaquim Melro convenceu-se do milagre, quando o
compadre, depois de lhe ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:
--Emfim, você ganha a casa, compadre, porque mátava Zéférino, se os
outros não matam elle, hein?


XVII

Celebrou-se o casamento na capella da quinta da Retorta. Foi o vigario
de Caldellas o ministro do sacramento, D. Thereza madrinha, e o padrinho
veio do Porto, o barão do Rabaçal, um gordo, casado com as brancas
carnes velludosas da filha do Eusebio Macario. O padrinho, muito
faceiro, dizia ao Feliciano:--Mi pérdoe, amigo Prázins, você si casa
com minina mágrita, muito sêcca di encontros. A mi mi dá na tineta
para gostar das redondinhas, hein? É a minha philosophia. A mulher si
quer roliça, de manêras que a gente ache nos braços ella.
O devasso fazia córar o casto noivo. A Martha, á sobremesa, não lhe
percebia umas graçolas obrigatorias em bodas canalhas, que faziam
nauseas á aristocratica D. Thereza, muito pontilhosa em não admittir
equivocos. O vigario achava no barão a salôbra brutalidade que faz nos
intelligentes a cocega do riso que o Cervantes, o Rabelais, o Swift e o
portuguez snr. Luiz d'Araujo nem sempre conseguem quando querem.
A Martha, n'uma tristeza inalteravel, desde que sahiu da egreja. Ao fim
da tarde, fechou-se com D. Thereza no seu quarto, abriu o bahu, e tirou
do fundo o pacotinho das cartas do José Dias, e disse-lhe:--A senhora
ha-de guardal-as; e, quando eu morrer, queime-as, sim?
--E se eu morrer adiante de ti?--perguntou D. Thereza risonha.
--Diga então ao snr. padre Osorio que as queime: porque olhe--e
abraçou-se n'ella a chorar, a soluçar--eu ... eu morro, ou endoudeço.
Cheguei a esta desgraça; estou casada para fazer a vontade a meu pai,
cuidando que elle morria; não sei como hei-de sahir d'isto senão
acabando de vez ou perdendo o juizo como a minha mãe ... bem sabe como
ella acabou.
D. Thereza Osorio banalmente a consolava com o vulgarismo das coisas que
se dizem ao commum das meninas casadas com maridos repugnantes e
ricos.--Que se havia de affazer, que tudo esquecia com o tempo. Ella, um
pouco aristocrata por bastardia, não acreditava em melindres de
sentimentalidade na filha do lavrador parrana e da Genoveva da vida
airada. O apaixonar-se pelo Dias, um bonito rapaz d'aldeia, parecia-lhe
trivial; tentar suicidar-se quando elle morreu, para uma senhora lida em
novellas romanticas, era um caso ordinario e pouco significativo;
porém, condescender com a vontade do pai, casando com o tio,
pareceu-lhe um acto de condição plebea, a natureza reles da filha do
Simeão que afinal dominava estupidamente as indecisas manifestações
de uma indole artificialmente delicada.
O padre comprehendia mais humanamente Martha, dizendo á irmã:--Ella
quando consentiu em casar com o tio já estava doente da molestia
nervosa que a ha-de levar ao suicidio. D. Thereza, com o seu criterio um
pouco adulterado pelas excentricas heroinas de Sue e Dumas, não podia
entroncar aquella rapariga d'uma aldeia minhota na genealogia d'essas
parisienses naufragadas em romanescas tempestades. E de mais, se Martha,
como o irmão dizia, estava sob a influencia da loucura, a sua desgraça
parecia-lhe uma doença e não uma tragedia, segundo as exigencias de
uma senhora que tinha lido o mais selecto da bibliotheca romantica
franceza desde 1835 a 1845--tudo o que ha de mais falso e tolo na
litteratura da Europa. D. Thereza queria mais drama na desgraça de
Martha; porque, se alguma poesia elegiaca lhe concedêra pela tentativa
de matar-se, toda se resolvia em chilra prosa pelo facto de a imaginar
no thalamo conjugal com o arganaz do tio.

Eram horas de deitar. O padre tinha ido para Caldellas a fim de dizer a
missa de madrugada, e deixára a irmã a pedido de Martha; o barão do
Rabaçal escancarava a bocca n'uns bocejos ruidosos e levantava uma
perna espreguiçando-se; o noivo olhava para o mostrador do relogio
collado aos olhos; e Martha, muito aconchegada de D. Thereza.
queixava-se de caimbras; que lhe zuniam coisas nos ouvidos, que via
faiscas no ar, e tinha muito calor na cabeça. D. Thereza dizia-lhe que
se fosse deitar, que precisava de recolher-se. Martha pedia-lhe que a
deixasse ir dormir ao pé d'ella, pedia-lh'o pela alma de sua mãe, pela
vida de seu irmão.
A hospeda comprehendia, compadecia-se, receava o ataque epileptico,
precedido sempre das faiscas e caimbras de que se queixava a noiva; mas
não sabia como dirigir-se ao marido de Martha a pedir-lhe que se fosse
deitar sósinho. Nos seus numerosos romances não achára um episodio
d'esta especie. Interveio na critica conjunctura o Simeão, dizendo á
filha:
--São horas de ir á deita. O teu marido está a cahir com somno.
Martha fixou o pai com os seus olhos esmeraldinos rutilantes de colera,
n'um arremesso de cabeça erguida, e com os labios a crisparem. Era a
nevrose epileptica. Seguiram-se as convulsões, o espumar da bocca, um
paroxismo longo de vinte minutos. D. Thereza pediu que a ajudassem a
leval-a para a sua cama, e disse com fidalga impertinencia ao Simeão
que a deixassem com ella, e não lhe fallassem no marido. Simeão
coçava-se com grande desgosto. O brasileiro contava ao barão que a sua
sobrinha era atreita áquelles ataques; mas que o cirurgião lhe dissera
que lhe haviam de passar em casando. O do Rabaçal notou que o remedio
então bom era, e seria bom começal-o quanto antes. Disse mais
chalaças a proposito e foi-se deitar. Feliciano ainda foi saber como
estava a esposa; mas já não havia luz no quarto de D. Thereza.
Reoolheu-se á cama, e continuou mais uma noite no seu leito solitario,
virginalmente.

D. Thereza sentia-se mal, n'um embaraço quasi ridiculo, n'aquelle meio.
Martha não a largava, parecia uma creança espavorida, agarrada ao
vestido da mãe, assim que ouvia os passos do tio. Elle, muito
carinhoso, com o monoculo no olho direito, a offerecer-lhe castanhas
d'ovos, toicinho do céo, a pegar-lhe da mão e a fazer-lhe festas no
rosto muito córado de pudor. D. Thereza discretamente deixou-os
sósinhos. A Martha ficou a olhar para a porta por onde a amiga se
evadira, e fazia uns gestos de quem meditava raspar-se; mas o marido
tinha-a segura pelas mãos mimosas, beijando-lh'as ambas com uma
sensualidade delicada, um pouco babada, mas muito commedida, estendendo
os beijos quentes e humidos até aos pulsos lacteos e redondinhos.
Martha, n'uma impassibilidade, não se recusava ás caricias, e pareceu
mesmo inclinar um pouco o rosto quando o esposo com um bom sorriso do
amor dos quinze annos lhe pediu um beijinho, que foi mais demorado do
que era de esperar da sua candura e da inexperiencia de taes delicias.
Estavam ambos rosados; mas o rubor de Martha era carminado de mais e nos
seus olhos havia uma rutilação vaga pela extensão da grande sala.
Ella via a sombra de José Dias: era o José Dias em pessoa, dizia ella
depois a D. Thereza, quando recuperou os sentidos, e não sabia como a
transportaram para a cama da sua amiga. Apenas se lembrava de que o tio,
depois que a beijára no rosto, a levára pelo braço e entrára com
ella no seu quarto, apertando-a muito ao peito, levantando-a nos braços
com muita força, não a deixando fugir e suffocando-lhe os suspiros com
os beijos. Não se lembrava de mais nada. E D. Thereza, quanto cabia na
sua alçada, contava-lhe o resto imperfeitamente; isto é que o marido a
fôra chamar ao laranjal, um pouco afflicto, dizendo que a sua esposa
estava na cama sem sentidos; e pedia vinagre para lhe chegar ao nariz.
Padre Osorio veio jantar e buscar a irmã. Observou no aspecto do
brazileiro uma irradiação de felicidade, o jubilo de um homem que se
sentia impavidadamente completo, na integridade da sua missão
phyloginia. Foi então que o padre assentou as suas theorias um pouco
fluctuantes ácerca das vantagens da castidade em beneficio das
impurezas alheias.
O Feliciano, quando o cirurgião chegou á tarde, contou-lhe com pouco
recato de pudicicia conjugal as circumstancias, particularidades
occasionadas no «fanico da sua esposa», dizia elle. O facultativo, um
velho patausco, disse que não se admirava, porque a snr.ª D. Martha
era muito nervosa, imperfeita ainda na sua organisação, e que as
impressões desconhecidas e um pouco violentas nas constituições fracas
produziam extraordinarias perturbações; mas que não se assustasse,
que não era nada; que as segundas naturezas se faziam com o
habito.--Banhos de mar, aconselhava, bife na grelha e vinho do Porto,
quanto mais chôco melhor. O que se quer cá fóra é um rapaz; não ha
como um filho para fortalecer a compleição d'uma mulher debil; um
filho, quando sae do ventre da mãe, traz comsigo para fóra os máos
nervos, e acabam os cheliques. Ande-me com um rapagão p'rá frente!

Na ausencia de D. Thereza, a melancolia de Martha cerrava-se de dia para
dia. O governo da casa era-lhe de todo indifferente, como se fosse
hospeda. O marido não a compellia a interessar-se n'esses arranjos de
que, dizia o Simeão, ella nunca quizera saber em Prazins. O barão do
Rabaçal mandára-lhe do Porto cozinheira e governante. Martha sahia
raras vezes de uma saleta onde tinha um oratorio que trouxera de casa.
Confessava-se mensalmente a frei Roque, o irmão da sua mestra, e
professor do de Villalva, e demorava-se no confissionario com perguntas
desvairadas a respeito da alma de José Dias, por que dizia ella ao
padre-mestre que o via muitas vezes em corpo e alma, e até o ouvia
fallar e lhe sentia as mãos no seu corpo. O frade, sem revelar o sigilo
da confissão, dizia á irmã que a Martha dava em douda como a mãe.
O Feliciano ficou espavorido quando a mulher, n'um dos paroxismos
epilepticos, se pôz a rir para elle com os olhos espasmodicos e a
chamar-lhe _José, seu Josésinho_. Passada a nevrose, quando ela
imergia num torpor physico e mental, o marido contou-lhe o caso de lhe
chamar _Josésinho_. Ella parecia esforçar-se muito para recordar-se, e
dizia que não se lembrava de nada. Vinha o cirurgião a miudo:--que era
hysterismo, e consolava o marido com a esperança no tal rapagão,
esperanças bem fundadas, segundo as confidencias do pai; mas,
consultado pelo padre Osorio, o Pedrosa, um grande clinico, dizia que
a brazileira não tinha simplesmente a gota coral; que havia ali
epilepsia complicada com delirio, alienação mental intermittente, um
estado de inconsciencia ou consciencia anormal, e que verdadeiramente
se não podiam determinar bem quais eram os seus actos de lucidez
intercorrente.
--Ella está gravida--observou o vigario de Caldellas.--Parece que este
facto denota uma tal ou qual normalidade de consciencia, uma concepção
racional dos deveres de esposa...
--Não denota nada--refutou o medico.--Faça de conta que é uma
somnambula. E, como a sua demencia é funccional e não organica, não
ha desorganisações physicas que a estorvem de ser mãe. O meu collega
que lhe assistiu á ultima vertigem disse-me que, alguns minutos antes
do ataque, ella, n'uma grande irritabilidade, lhe dissera que fugia para
Villalva, que queria vêr o José Dias... O marido felizmente fôra
n'essa occasião prover-se de vinagre á dispensa. Eu considero-a
perdida, a menos que se lhe não dê uma prompta e completa diversão ao
espirito, e nem assim se consegue senão temporariamente desherdar os
desgraçados que tiveram mãe e avó como esta Martha. Eu assisti ao
primeiro e ao ultimo periodo da Genoveva. Repetiram-se as vertigens,
veio a decadencia gradual da razão, delirios, idéas confusas,
concepção difficil, nevroses vesanicas, e por fim, suicidou-se já
n'um estado de demencia epileptica, que os especialistas consideram a
mais incuravel. Este me parece o itinerario da Martha, e o casal-a com o
tio deixou de ser um acto immoral para ser um estupido arranjo de
fortuna por lado do pai e de luxuria por parte do marido. Esta pequena
tinha de vir a isto, e ha-de ir á demencia, mesmo sem drama nem
paixão. Tem o cerebro defeituoso assim como podia ter a espinha
vertebral rachitica. Como se faz a perda da vista? Pela paralysia dos
nervos opticos; pois a perda da vista normal da alma é tambem a
paralysia d'uma porção de massa encephalica. Bem sei que isto
embaraça um pouco os senhores theologos-methaphysicos, mas lá se
avenham: a verdade é esta.


XVIII

Chegaram por este tempo, vindos das terras de Basto a Requião, os tão
almejados missionarios, interrompidos no seu esteril apostolado pela
revolução da Maria da Fonte. Martha ouviu a noticia com alvoroço, e
disse que queria seguir os sermões,--que precisava de salvar a sua
alma. O Feliciano viera um pouco estragado de Pernambuco a respeito de
religião; mas respeitava as crenças alheias, e não contrariava as
devoções da sobrinha. O padre Roque era de parecer que se não
deixasse Martha entrar muito pela mystica; aconselhava o marido que
fosse viajar com a mulher, que a tirasse d'aquella terra, porque as suas
enfermidades não podiam cural-as os sermões nem as hostias. O egresso
conhecia a Pharmacia do varatojano de Borba da Montanha, e sabia que a
primeira receita de frei João era exorcismal-a como demoniaca.
--Dão cabo d'ella, vocês verão, dão cabo d'ella--dizia o
padre-mestre.
Eram quatro os missionarios que assentaram o vestibulo do paraizo em
Requião.
O padre José da Fraga ainda novo, bem composto e limpo nas suas vestes
sacerdotaes, grave e semblante intelligente. Tinha-se ordenado em
Brancanes com o proposito de ir propagar o christianismo na China;
depois, interesses e rogos de familia determinaram-o a ficar na patria,
sem abrir mão da vocação apostolica. Lêra e percebêra Raulica,
Lacordaire, e imitava o segundo com bastante engenho. O padre Osorio
dizia-lhe que guardasse as suas perolas para outro auditorio menos
suino. E, de feito, as mulheres, quando de madrugada o viam no pulpito,
aconchegavam-se umas das outras para commodamente tosquenejarem o seu
somno da manhã; e os homens diziam que não o chamava Deus por aquelle
caminho--que _não calhava p'r'á prédega_.
O padre Cosme de Tagilde, robusto, de meia idade, auctor da _Escada do
céo pelas escarpas do Golgotha_ e da _Via seraphica para o reino dos
Cherubins_, era pregador de sentimento. Tinha sido furriel no exercito
realista, e ordenára-se para herdar uns bens de uma parenta beata que
tinha horror á tropa. Lêra as novellas do Prévost e Madame de Genlis,
quando era furriel. Ficou-lhe d'essas leituras uma linguagem
amellaçada, com interjeições tragicas, e um geito especial de tocar
as mães com imagens ternas tiradas das coisas infantis. Por exemplo: _E
o teu filhinho, mulher, o filhinho que Deus te levou para a companhia
dos anjos, quando lá do céo te vê peccar, estende para ti os seus
bracinhos, e diz: Mãe, ó mãe! não peques; mãe, não peques! pelas
lagrimas que por mim choraste, não caias na tentação, porque, se te
perdes, se te afundas no abysmo eterno não tornarás a vêr o teu
filhinho que te chama do céo, mãe, ó mãe_! E infantilisava o timbre
da voz, inclinava a um lado a cabeça n'um langor menineiro, estendia os
braços do pulpito abaixo com as mãos abertas, alongava os beiços no
geito da boquinha de criança, e muito mavioso, n'um tremulo de voz e
braços: _Mãe, ó mãe_! E todas as que tinham perdido filhinhos
desatavam n'um berreiro.
O padre Silvestre da Azenha, homem antigo, d'uma porcaria de sotaina
digna dos agiologios, boa pessoa, incapaz de mentir voluntariamente, era
forte na topographia do inferno e nas genealogias, usos e costumes dos
diversos diabos. Affirmava que a legião d'elles se dividia em
esquadras, capitaneadas por Lucifer, principe da Luxuria, por Asmodeu,
Satanaz, Belzebut e outros, cada um com a pasta ministerial dos seus
competentes vicios. Dava noticia de um caudilho de esquadra, chamado
Behemoth, cujo empenho era bestializar os fieis--verdadeira
superfluidade.--Leviathan capitaneava o esquadrão da Soberba; e o
ministro e secretario de estado encarregado da pasta da Avareza
chamava-se _Mamona_. A sciencia moderna matou este diabo, extrahiu-lhe o
oleo, e pôl-o ao serviço dos intestinos dos peccadores--_oleo de
Mamona_. Explicava o padre ás mulheres o que era a corja dos _demonios
incubos_. Contava casos de algumas que ficaram gravidas d'esses
devassos, e dizia em latim que taes demonios fecundos podiam,
mesmo contra a vontade da mulher, _rem habere cum ilta_. E as
mulheres, sem pôr mais na carta, farejavam o latim e murmuravam
indignadas:--Tarrenego! Catixa! cruzes, canhoto!--e benziam-se,
cuspinhando nos calcanhares umas das outras.
Fr. João de Borba da Montanha, com quanto não frequentasse o pulpito,
era o vulto mais proeminente da missão. Sahira já velho do Varatojo,
peito fraco, um pigarro chronico de catarrho pituitoso, com poucos
dentes, por onde as palavras lhe sahiam assobiadas que nem melro nos
sinceiraes de julho. Por isso o confissionario era a sua faina de
prosperrimas colheitas para o céo, e os exorcismos a sua famosa gloria
cheia de triumphos sobre todas as esquadras dos demonios conhecidos do
seu companheiro padre Azenha. Eram ambos, de mãos dadas, o terror do
inferno; um a explorar diabos no planeta, o outro a enxotal-os. Á
omnipotencia d'este varatojano é que o vigario de Caldellas confiara a
reducção da mãe de José Dias.
Este egresso tinha feito á sua custa a terceira edição do _Peccador
convertido ao caminho da verdade_, obra do seu conventual varatojano
frei Manuel de Deus. Vendia o livro por 720, meia-encadernação.
Chamava-lhe elle o _seu balde de tirar almas do profundo poço do
enxofre infernal_ Todas as beatas se consideravam mais ou menos
empoçadas, e por 720 mettiam-se no balde de frei João. Barato.
Foi este o missionario escolhido por Simeão, de harmonia com o genro.
Martha lembrava-se que o seu José Dias lhe fallára n'elle com muita
esperança em que desfizesse os obstaculos do casamento. Quiz
confessar-se ao varatojano, e revelou para esse acto uma espectativa
seraphica, grande deliberação anciosa, um sobresalto jubiloso em que
parecia influir a cooperação sobrenatural do querido morto. O padre
Osorio entrevia preludios de loucura nas alegres disposições com que
Martha, n'um recolhimento contemplativo, desde o apontar da aurora,
esperava á porta da egreja que chegassem os missionarios com o cortejo
das mulheres encapuchadas, muito ramellosas, estralejando os seus
tamancos ferrados na grade do adro que vedava a passagem aos porcos.
Em quanto na egreja, depois da missão, se depunha a hostia nas linguas
saburrentas e gretadas das beatas--que enguliam aquella farinha triga
como quem devora sevamente um Deus--cá fóra armavam-se no adro dois
taboleiros, assentes em tripêças de engonços, com seus pavilhões de
guarda-soes de panninho azul. Algumas mulheres de aspectos repellentes,
sujas da pójeira das jornadas, com os canêllos callosos e encodeados,
expunham nos taboleiros as suas mercadorias, e ao mesmo tempo
injuriavam-se reciprocamente por velhas rixas invejosas á conta de
subornarem freguezas com caramunhas e palavreados. No silencio do
templo, ouvia-se cá de fóra:--Arre, bebeda!--Cala-te ahi, calhamaço!
A exposição bibliographica, feita nos taboleiros, além das obras em
brochura e encadernadas dos missionarios, constava da _Regra de S.
Bento_, da _Missão augmentada_, da _Missão abreviada_, das _Piedosas
meditações_, das _Horas do christão_, do _Mez de Maria_, do _Mez de
Jesus_ e do _Livro de Santa Barbara_. Havia tambem _Novenas_,
_Via-sacras_ com estampas d'um horror sacrilego, uns Christos que
pareciam manipansos do Bihé. Seguia-se a camada dos _Escapularios_; uns
eram de _N. S. do Carmo_, de _N. S. das Dôres_, da _Conceição_;
outros do _Preciosissimo sangue de Jesus_, do _Coração_ do mesmo, da
_Santissima Trindade_ e de _S. Francisco_. Tinham grande sahida os
_Cordões_ do mesmo santo, e as _Correias de S. Agostinho_, com um
botão de ôsso, a apertar na cintura,--arnez impenetravel ao diabo, por
causa do botão, que, posto na correia, tem virtudes para ôsso muito
admiraveis, quasi como as da carne, mas no sentido inverso--ella
attrahindo o cão tinhoso, e elle repulsando-o. De _Santo Agostinho_ e
do _Anjo da Guarda_ também havia _Rezas_ enfiadas em metal, ou em
cordão, simplesmente, mais baratinhas. Na especie medalheiro, grande
profusão: as medalhas mais procuradas eram as do _Coração de Maria_,
do _Coração de Jesus_, do _Anjo da Guarda_ e de _Santa Thereza_, a 10
réis.
As _corôas_, penduradas em barbantes ou estendidas em meadas, eram
diversas no tamanho e na nomenclatura: as _seraphicas_ com sete
_mysterios_, e cada mysterio com dez _Ave-Marias_; as da _S. da
Conceição_ com doze _Aves_ e tres _mysterios_:--uma certa conta que
os missionarios lá graduavam com a gafaria espiritual das confessadas.
Havia algumas que se aguentavam com os _Rosarios de quinze mysterios_, e
a _Corôa dos nove coros dos Anjos_, e a do _Preciosissimo sangue e
coração de Jesus_. Mas o grande consumo era de _contas de azeviche_,
refractarias aos máos olhados; de modo e maneira que, se o azeviche é
legitimo, senhores, logo que um inimigo nos encara a conta racha de meio
a meio.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 12
  • Parts
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 01
    Total number of words is 4586
    Total number of unique words is 1829
    32.5 of words are in the 2000 most common words
    47.0 of words are in the 5000 most common words
    54.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 02
    Total number of words is 4531
    Total number of unique words is 1908
    28.6 of words are in the 2000 most common words
    42.0 of words are in the 5000 most common words
    48.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 03
    Total number of words is 4653
    Total number of unique words is 1820
    32.5 of words are in the 2000 most common words
    45.9 of words are in the 5000 most common words
    53.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 04
    Total number of words is 4588
    Total number of unique words is 1769
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    46.0 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 05
    Total number of words is 4659
    Total number of unique words is 1752
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    48.4 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 06
    Total number of words is 4613
    Total number of unique words is 1885
    31.5 of words are in the 2000 most common words
    44.9 of words are in the 5000 most common words
    53.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 07
    Total number of words is 4602
    Total number of unique words is 1831
    33.7 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    53.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 08
    Total number of words is 4656
    Total number of unique words is 1876
    31.0 of words are in the 2000 most common words
    44.8 of words are in the 5000 most common words
    52.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 09
    Total number of words is 4656
    Total number of unique words is 1817
    31.2 of words are in the 2000 most common words
    44.5 of words are in the 5000 most common words
    52.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 10
    Total number of words is 4683
    Total number of unique words is 1801
    33.2 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 11
    Total number of words is 4610
    Total number of unique words is 1904
    30.2 of words are in the 2000 most common words
    41.9 of words are in the 5000 most common words
    48.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 12
    Total number of words is 4686
    Total number of unique words is 1796
    31.2 of words are in the 2000 most common words
    44.8 of words are in the 5000 most common words
    51.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 13
    Total number of words is 2607
    Total number of unique words is 1211
    36.0 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.