A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 04

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me faltam; mas esqueci aquillo que se chama ... sim aquillo com que se
escreve, quero dizer...
--Ortographia?
--É como diz, padre Rocha, ortographia.
Era o exordio para lhe dar parte que o seu amigo e rei D. Miguel estava
no concelho da Povoa de Lanhoso; que lhe queria escrever; mas que não
se mettia n'isso; e accrescentava:--elle, o rei, aqui ha treze annos
sabia tanta ortographia como eu; mas agora dizem as gazetas que elle
estudou coisas e coisas e tal. Pedia, portanto, ao padre Rocha que lhe
escrevesse a carta para elle a copiar de seu vagar. E, pondo-lhe a mão
no hombro:--E ouviu, padre? Vá pensando no que quer; uma boa abbadia,
S. Thiago d'Antas, hein? serve-lhe? ou antes quereria ser conego? Emfim,
pense lá... Nós cá estamos ás ordens.
O padre era a fina flôr do clero realista. Sensato, intelligente e
honesto. Primeiro, quando o Cerveira lhe revelou a meia-voz a chegada do
seu amigo e rei D. Miguel, imaginou-o no seu estado normal de bebedeira.
Depois, reparando mais nas attitudes firmes e desempeno da lingua,
julgou-o sandeu, amollecimento cerebral pela alcoolisação;--por fim
convenceu-se de que o pobre homem era enganado e escarnecido por alguns
disfructadores. O padre tinha muita compaixão do fidalgo que a mulher e
as filhas enlameavam torpemente. Elle avisára D. Andreza que, no dia em
que o snr. doutor Adolpho entrasse nos Pombaes pela porta principal,
elle sahiria pela porta travessa; e a fidalga levára tão a mal o
proceder do irmão que pensava em fazer testamento para que os filhos
d'elle e de Honorata lhe não herdassem as quintas. Sabia-se n'esse
tempo que o doutor Adolpho da Silveira era juiz de direito nos Açores e
tinha comsigo uma formosa amante com tres meninos.
A unica idéa com que o Cerveira contribuiu para a redacção da carta
foi que escrevesse:--«se vossa magestade precisa de dinheiro, diga o
que quer que eu até onde chegarem as minhas posses está tudo ás
ordens del-rei meu senhor.»
O padre Rocha não sé esquivou a collaborar na indromina, dizia elle a
D. Andreza,--porque «eu, pela resposta da carta, hei-de seguir o fio da
esparrela que querem armar ao parvo do homem.»

A carta ia pomposa, a ponto de Cerveira pedir commentarios,
explicações. Que estava uma obra profunda--dizia o fidalgo instruido
em fim nas obscuresas do estylo.
E, tirando seis pintos do bolso do colete:
--Ahi tem para o seu rapé, merece-os.
O capellão não acceitou; pediu que os applicasse por sua intenção ás
necessidades do snr. D. Miguel.
--É um realista ás direitas, padre, um grande realista!--E, guardando
os seis pintos, abraçou-o effusivamente e offereceu-lhe um calice de
1817.
--Eu desejaria muito vêr a resposta de sua magestade--dizia o padre
Rocha.
--Isso é logo que ella chegar, padre! pois então? Cá entre nós não
ha segredos; e, se o amigo quizer, no caso que el-rei me mande ir, vai
commigo, e póde logo vir despachado. Pois então?
--Está dito!--e o padre com um regosijo muito comico, e o calice
aromatico de baixo do nariz:--Quem sabe se eu ainda serei arcebispo, ó
snr. tenente-coronel!
--Ora! como dous e dous são quatro! Ha-de ser arcebispo, não tenha
duvida. Isto vai tudo mudar!--E carregava-lhe forte no 1817.--Arre!
estou aqui mettido ha doze annos n'estes montes, que me tem levado os
diabos! Tenho 49 annos: mas este punho ainda póde com a espada! Ha-de
haver pancadaria de criar bicho! Olé! Eu dizia ás vezes ao meu amigo
D. Miguel quando o Sedvem, e o Matta e o Miguel Alcaide davam cacetada
nos malhados que aquillo não era bonito. Pois agora, padre Rocha,
hei-de dizer-lhe: «É p'ra baixo, real senhor! môcada de metter os
tampos dentro a esses malhados! E acabar com elles por uma vez! uma
forca em cada concelho, real senhor, muitas forcas! Ah! meu camarada
Telles Jordão! tu é que a sabias toda!»
O Cerveira começava a gaguejar, a cambalear, e entornava o calice. O
padre despediu-se.


VI

Na residencia do abbade Marcos Rebello, em S. Gens de Calvos, havia uma
sala com alcova e janellas sobre uma horta arborisada. As pereiras,
macieiras e abrunheiros principiavam a florir. Era no começo de abril.
Alli, n'aquellas frigidas alturas, sopram as ventanias mordentes de
Barroso, do Gerez, e gelam a seiva nos troncos filtrados da neve e das
crystallisações glaciaes. Fazia frio. Na saleta caiada, muito
excrementicia de moscaria, com tecto de castanho esfumaçado e o
pavimento lurado do caruncho, havia a um lado duas caixas de cereaes, no
outro algumas cadeiras velhas de nogueira de diversos feitios,
esfarpeladas no assento; nas paredes duas lytographias--o retrato de D.
João VI com o olho velhaco e o beiço belfo, e o marquez de Pombal
sentado com o decreto da expulsão dos jesuitas, apontando
parlapatonamente para a barra onde alvejam pannos de navios que levam os
expulsos. Na velha cal esburacada e emporcalhada de escarros seccos de
antigas catarrhaes, destacavam molduras de carvalho com dois paineis a
oleo cheios de grêtas, S. Jeronymo no deserto, com uma cara afflicta,
de tic doloroso, e Santo Antonio de Padua, n'um sadio _en bon point_, um
bom sorriso ingenuo, com o Menino Jesus sentado, muito nutrido, em uma
bola que os agiologos diziam ser o globo terraqueo. No centro da quadra
estava uma banca de pinho pintada a ocre, com uma coberta de cama, de
chita vermelha, com araras, franjada de requifes de lã variegada. Ao
lado da banca, uma cadeira de sola, com espaldar em relevo e pregaria
amarella com verdete; do outro lado havia um fogareiro de ferro com
brazas e uma cesta de vêrga cheia de carvão. Entre as duas pequenas
janellas de rotulas interiores e cachorros de pedra, trabalhava
estrondosamente um relogio de parede com os frisos do mostrador sem
vidro, cheios de moscas mortas, penduradas por uma perna, de ventres
brancos muito inchados e as azas abertas.
Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova que ringiu ligeiramente na
couceira desengonçada, e sahiu um sujeito de mediana estatura, hombros
largos, barba toda com raras cans, olhos brilhantes, pallido-trigueiro,
um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta annos.
Sentou-se á brazeira e preparou um cigarro, vagarosamente, que accendeu
na aresta chammejante de uma braza. Com o cigarro ao canto dos labios e
um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças,
e poz fóra a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a
mão com desagrado e fechou a janella. Vinha subindo a escada de
communicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa,
meias azues de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar,
fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:
--Vossa magestade passou bem?
--Optimamente, Senhorinha, passei muito bem.
--Estimo muito, real senhor. O snr. abbade foi chamado ás oito horas
para confessar uma fregueza que está a morrer d'uma queda, e deixou
dito que puzesse o almoço a vossa magestade, se elle não chegasse ás
nove e meia.
--Quando quizer, Senhorinha, quando quizer, visto que o abbade deu essas
ordens e quem manda aqui é elle.
Da cozinha vaporava um perfume de salpicão frito com ovos. Sua
magestade farejava com as narinas anhelantes, n'um forte appetite. A
creada voltou com toalha, guardanapo, loiça da India, talheres de
prata, e uma travessa coberta. Sua magestade, muito familiar, tirou de
sobre a mesa uns cadernos escriptos, cosidos com sêda escarlate, e um
grande tinteiro de chumbo com pennas de pato.
--Ora vossa magestade a incommodar-se! Valha-me Deus! eu tiro isso, real
senhor! Não que uma coisa assim! Um rei a...
E o real senhor:
--Ande lá, Senhorinha, que eu ajudo. Um rei é um homem como qualquer
homem.
--Credo! faz muita differença ... mesmo muita...
Ella descobriu a travessa a rir-se:
--Vossa magestade diz que gosta...
--Sardinhas de escabeche? Se gosto!... Vamos a ellas que estão a
dizer--comei-me.
E atirou-se ás sardinhas com uma sofreguidão pelintra.
Depois, serviu-lhe rodelas de salpicão com ovos. Sua magestade gostava
muito d'estas comezanas nacionaes. Já tinha comido tripas, e dizia que
no exilio se lembrára muitas vezes d'esta saborosa iguaria com feijão
branco e chispe, que tinha comido em Braga. O abbade de Calvos
sensibilisava-se até ás lagrimas quando via el-rei a esbrugar uma unha
de porco e a limpar as regias barbas oleosas das gorduras suinas. O
terceiro prato era vitella assada. A Senhorinha trazia-lh'a no espêto,
porque sua magestade gostava de ir trinchando finas talhadas, emquanto a
cozinheira, de cocoras ao pé do fogareiro, conservava o espêto sobre
o brazido, a rechinar, a lourejar. Bebeu harmonicamente o real hospede
um vinho branco antigo, da lavra de um fidalgo de Braga, proprietario do
Douro, que estava no segredo do ditoso abbade de Calvos--capellão-mór
d'el-rei e dom prior eleito de Guimarães.
A creada assistia muito jovial áquella deglutição formidavel, e dizia
particularmente ao abbade:--Este senhor, pelo que come, parece que tem
passado muitas fominhas! Ninguem hade crêr o que sua magestade atafulha
n'aquelle bandulho!--e dizia que lhe dava vontade de chorar,
lembrando-se das lazeiras que elle tinha apanhado; porque o abbade
contava que lêra no _Deus o quer_, do visconde de Arlincourt, que o
snr. D. Miguel, em Roma, não tinha ás vezes 10 réis de seu para
almoçar uma chicara de leite. E, perguntando a el-rei se era verdade
aquillo--que sim, que chegara a essa extremidade; mas que preferia a
fome a ceder os seus direitos e a felicidade dos seus vassallos pelos
sessenta contos anuaes que lhe offereceram da Casa do Infantado, e que
elle rejeitara.
Por fim, vinha o café. As fatias eram torradas ali, no fogareiro. S.
magestade barrava-as de manteiga nacional,--preferia a manteiga do seu
paiz, como a vitela, e o lombo do porco no salpicão portuguez, e o pé
do porco nas tripas tambem portuguezas--tudo do seu paiz. Que rei, que
patriota!--meditava o abbade de Priscos, bispo eleito de Coimbra,
esmoncando-se e aparando as lagrimas ternas no alcobaça.
No fim do copioso almoço, el-rei fumava charutos hespanhoes, de
contrabando; desabotoava o colete, dava arrôtos, repoltreava-se na
cadeira de sola um pouco desconfortavel, e vaporava grandes columnas de
fumo que se espiralavam até ao tecto.
A Senhorinha veio á beira d'el-rei, e disse baixinho:
--Saberá vossa magestade que está ali o snr. Trocatles.
--O...?
--Ai! Já me esquecia ... o snr. visconde....
--Que suba.
O sujeito que entrou era o Torquato Nunes, um sargento do exercito
realista, de S. Gens. O rei ergueu-se e fecharam-se na alcôva.
A cozinheira dizia em baixo á outra creada de fóra:--Ó coisa! Mal
diria eu que ainda havia de chamar visconde ao safardana do Trocatles!
E a outra, benzendo-se:--Não que elle, o mundo sempre dá voltas! Veja
você! aquelle moinante que me pediu uma vez dois patacos p'ra cigarros,
e por signal que nunca m'os pagou!
--Pois vês-ahi! Foi elle o primeiro que conheceu o snr. D. Miguel, é o
que foi, a sua magestade gosta muito d'elle. Foi feliz o diabo do homem!
Aquillo vai a governo, tu verás; e já ouvi dizer que o sobrinho
d'elle, o padre Zé da Eira, o de Rio Caldo, que é zanagra, está
conego. Limparam-se da carepa, é o que é. A mulher d'elle já botou no
domingo passado a sua saia e jaqué de panno azul.
--E que rico panno!
--Pois vês-ahi...
Entrava n'esta conjunctura o abbade, esfadigado, suarento--que levasse o
diabo a freguezia, que pouco tempo havia de aturar maçadas d'aquellas,
para confessar uma bebeda de uma velha que tinha bebido de mais na feira
da Povoa e cahira d'um valado abaixo. E elle?--perguntava--almoçou bem?
--Ora! não ha que perguntar, senhor! Aquillo, salvo seja, é como a cal
d'uma azenha. É quanto lhe deitarem p'rá tripa. Coisa assim! Subiu
agora p'ra lá o Nunes. Ai! já me esquecia, ó snr. abbade! Olhe que na
villa já perguntaram se cá na casa estavam hospedes, porque vinham
p'ra cá muitas comida. Que não vão elles pegar a desconfiar... Esta
pergunta á moça traz agua no bico.
--E tu que respondeste, moça?
--Que vinham por cá jantar uns senhores padres, que agora era tempo de
confesso...
--Andaste bem.
Quando o padre Marcos Rebello subia á sala, pedindo licença a meio da
escada, já o rei e o visconde vinham sahindo da alcôva--um, aprumado
na attitude da magestade, o outro, na do respeito, muito composto.
--Pede licença na sua casa, dom Prior?--disse el-rei.
O dom prior de Guimarães genuflectiu a perna direita; o soberano
apressou-se a erguel-o.
Nada de etiquetas, já lh'o disse duzias de vezes.
--Não posso nem devo proceder d'outra maneira, senhor!
--Póde e deve que o mando eu.
E o abbade, inclinando-se com os brados em cruz sobre a batina:
--Saberá vossa magestade que o snr. capitão-mór de Santa Martha, a
quem vossa real magestade fez barão de Bouro...
--Bem sei ... aquelle amavel cavalheiro...
--Perfeito cavalheiro--attestou o Nunes.
--Escreveu-me a carta que tenho a honra de depositar nas mãos de vossa
magestade.
El-rei leu alto:

_Amigo Dom Prior de Guimarães.--Um realista do concelho de Famalicão
chegou ha pouco a esta casa, afim de que eu escrevesse ao meu nobre e
velho amigo para obter de S. M. licença para lhe apresentar como
portador de uma carta do snr. Vasco Cerveira Lobo, morgado de Quadros, e
tenente-coronel que foi do regimento de dragões de Chaves. Diz elle que
o snr. D. Miguel fôra amigo pessoal do dito tenente-coronel, e por isso
entende, e eu tambem que será muito ao real agrado do nosso rei e
senhor receber a carta d'este legitimista que nos pôde ser muito util,
já pelo seu nome, como tambem pela sua riqueza. Ouvidas as ordens de S.
M. F., queira transmittir-m'as_...

--Estou-me recordando--dizia o principe pausando as suas
reminiscencias--_Cerveira Lobo_ ... _tenente-coronel de dragões_... O
Cerveira, o meu amigo Cerveira...
--Que foi prisioneiro na Chamusca, quando o Urbano se passou para os
liberaes com a cavallaria e mais o coronel de dragões, o
Albuquerque--lembrou o Nunes, o visconde Nunes--V. magestade lembra-se?
--Perfeitamente. Dom prior, queira escrever ao barão e dizer-lhe que
espero anciosamente a carta do meu amigo Cerveira.
Emquanto o abbade ia ao seu quarto escrever, o hospede disse ao ouvido
do outro:
--Isto corre mal...
--Porque?!
--Se o homem cá vem, o meu _grande amigo_...
--Recebel-o como o teu _grande amigo_...
--Se me falla em particularidades ...
--Elle não sabe fallar em particularidades. É uma besta, muito rico, e
disse-me o morgado do Tanque, de Braga, seu primo, que está sempre
bebedo. Nem elle cá vem, tu verás ... Eu até acho que as coisas
correm perfeitamente.--Ouviam-se os passos do abbade.--Tem dinheiro,
elle tem muito dinheiro, ouviste?
Entrou o abbade.
--Só duas palavras. E leu: _S. Magestade recebe com muito prazer a
carta do snr. tenente-coronel Cerveira Lobo_.
--Muito bem,--approvou el-rei.--Hoje á noite, com todos os resguardos
que urgem as cautelas.
--Um homem, o Caneta de Braga, o chapelleiro com uma carta--annunciou
Senhorinha--só a entrega em mão propria ao snr. abbade.
--Que entrasse.
O rei e o visconde metteram-se á alcova, simulando receios.
Era uma carta do abbade de Priscos, bispo eleito de Coimbra. Tinha a
honra de enviar a el-rei cem peças, donativo que as senhoras Botelhas,
de Braga, offereciam de joelhos a S. M. F. e diziam que todos os seus
haveres estavam as ordens d'el-rei seu senhor.
E entregou dois grossos cartuchos, cintados por fitas cruzadas de sêda
escarlate. E o Caneta muito pontual.
--Queria um recibinho, se lhe não custa, reverendo snr. abbade.
--Venha d'ahi que eu passo-lhe o recibo.
Os dois sahiram da alcova. Os rolos estavam sobre a mesa. Elles tinham
ouvido fallar em recibo. O visconde Nunes, esgaziando os olhos, foi
apalpar o embrulho, e muito baixinho:
--Arame! peza que tem diabo! é oiro! Começa a pingadeira! Vês?
O outro arregalou os olhos e deitou a lingua de fóra quanto lhe foi
possivel. Nem parecia um rei!


VII

As sete da noite a soirée do monarcha de Calvos compunha-se do visconde
Nunes, seu secretario privado e brigadeiro de infanteria, do abbade
capellão-mór de el-rei, de dois reitores, conegos despachados, e o
ex-sargento-mór de Rio Caldo nomeado capitão-mór de Lanhoso. Estavam
todos em pé resistindo á licença de se sentarem. A cadeira de sola
estava com o principe encostada ao relogio; e, na mesa central, papeis,
o tinteiro de chumbo, o _Novo Principe_, de Gama e Castro, a _Besta
esfolada_ e o _Punhal dos corcundas_, do bispo fr. Fortunato. Em cima
das caixas do milho estavam em meio alqueire com feijões brancos
destinados ás tripas, e dois folles vasios que a Senhorinha tencionava
encher de grão para a fornada quando el-rei se recolhesse. Sobre um dos
folles resbunava um gato enroscado.
Esperava-se o apresentante da carta de Vasco da Cerveira.
Ás oito horas annunciaram-se os adventicios. O barão de Bouro entrou
primeiro a passo mesurado, com o peito alto, e o pescoço hirto n'uma
gravata enchumaçada, preta, de cordãosinho de arame, sem laço,
atacando os lobulos das orelhas, um pouco reintrante na altura dos
gorgomilos. Usava oculos de oiro quadrados, e uma pêra grisalha; de
resto, rapado. Envergava casaca nova de lemiste, muito refestelada, de
abas compridas com ancas proeminentes, segundo a moda; de cós das
calças, côr de gemma de ovo, pendiam berloques com armas, uma medalha
com o retrato de D. Miguel aos vinte e dous annos, a uma peça de oiro
com a mesma real effigie. No peito da camisa, entre as lapellas do
collete de velludo côr de laranja, trazia pregado um punhal esmaltado,
em miniatura, enygma convencional dos cavalleiros de S. Miguel da Ala,
obra patriota do ourives Novaes, pai do poeta Faustino.
De pés elle, entrou o Zeferino das Lamellas, muito enfiado, n'um
spasmo, sentindo-se aluir pelos joelhos. Ia de niza de panno azul com
botões amarellos, calça branca espipada com joelheiras pelos atritos
do alhardão. As pernas das calças chegavam apenas a meio cano das
botas, que pelo tamanho dos pés dir-se-iam roubadas a um gigante.
O Bezerra dobrou o joelho, inclinando o tronco á mão esquiva de sua
magestade. Por de traz d'elle, o Zeferino ajoelhára batendo com ambas
as rotulas no taboado. O barão ia fallar, quando o rei, reparando no
outro, disse:
--Levante-se, homem! Isto aqui não é capella.
O pedreiro teimava, achava-se bem n'aquella postura que o dispensava de
procurar outra.
--Sua magestade manda-o levantar--disse o visconde Nunes.
Ergueu-se, e n'um impeto silencioso ia entregar a carta ao da cadeira,
quando o capellão-mór lhe observou que as cartas se entregavam ao
secretario.
O barão expoz que não pudéra resistir aos pedidos que aquelle honrado
legitimista lhe fizera para o acompanhar, porque não se atrevia a
entrar sósinho á presença d'el-rei, seu amo. Que era filho de um
bravo alferes, o Gaspar das Lamellas, que em 1838, á frente de 300
homens, atacára a villa de Santo Thyrso, dando vivas a el-rei. Contou a
façanha de atravessar o Ave a nado em janeiro, com a espada nos dentes,
e que por causa d'isso entrévecera e nunca mais se levantou.
--Oh!--interjecionou compungidamente o monarcha.--Eu ignorava esse
notavel ataque ... estava em Roma, sem noticias... Digno homem o meu
honrado e bravo ... como se chama seu pai?
--Saberá vossa magestade que se chama Gaspar Ferreira.
E o rei:
--Visconde, escreva na lista.
O Nunes sentou-se á mesa, pedindo venia a sua magestade que ditou:
--_Gaspar Ferreira, reformado em coronel de infanteria, com vencimento
desde 1838_. Escreva á margem: _Batalha de Santo Thyrso_. E voltando-se
para Zeferino que ladeava para a parede:
--Diga a seu bravo pai que lhe dei a reforma em coronel, e vencerá
soldo dos sete annos passados.
O Zeferino abriu a bôca para dizer o que quer que fosse.
--A carta do meu velho amigo Teixeira?--perguntou o rei ao visconde
Nunes.
--_Cerveira_, perdôe vossa magestade, Cerveira Lobo.
--Ah! sim ... Cerveira Lobo.
Abriu, leu para si, passou a carta ao secretario, e commentando
exultante:
--Um grande amigo! dos raros! um dos nossos melhores esteios! Com homens
assim dedicados, o triumpho é certo. Posso dizer com o grande vate
Camões:

_E dir-me-heis qual é mais excellente
Se ser do mundo rei, se de tal gente._

Um dos reitores que estavam na penumbra, lá em baixo ao pé das caixas,
olhou com espanto para o outro, que lhe disse á puridade,
discretamente:
--Diz que elle tem estudado o diabo ... até o latim!
El-rei proseguiu:
--Vou responder por meu proprio punho ao meu nobre amigo. É digno
d'esta e de maiores considerações. Visconde, escreva na lista:
_Vasco da Cerveira Lobo, general de cavallaria, e conde de Quadros_.
Depois, tirou de uma velha pasta de papellão uma folha de almasso,
sentou-se a escrever--e que conversassem.
O abbade, capellão-mór, aproveitou o ensejo para servir vinho do Douro
e pasteis de Guimarães, cavacas do convento dos Remedios e forminhas.
Havia mastigação de mandibulas pesadas; as forminhas eram frescas,
muito torriscadas, davam rangidos n'uma trincadeira voluptuosa.
Conversava-se em dous grupos. O sargento-mór de Rio Caldo contava
passagens de caça no Gerez, com emphaticos arremedos, movimentados, da
altaneria. Que o porco bravo viera direito a elle, e cortava matto,
troncos de giestas como a sua coxa--e mostrava--; tinha apanhado de
raspão a cadella, a Ligeira, raça de todos os diabos que o atacava
pela orelha, e ficou aleijada para nunca mais; e elle então cahira
sobre a esquerda, e trepara á fraga da Portella, e esperára o porco na
clareira; e mal elle apontou, _pumba_! metteu-lhe tres zagalotes no
quadril.
--A gente a fallar incommóda talvez el-rei...--observou o barão de
Bouro.
--Podem conversar á vontade, que não me incommodam.
--Aquillo é que é cabeça!--disse baixinho, tocado, um dos conegos a
outro conego.
Generalisou-se a cavaqueira. Faziam-se brindes laconicos, circumspectos,
com um grande respeito, indicando-se el-rei por um simples gesto de
olhos.--A virar! a virar!--Carminavam-se os conegos. O dom Prior de
Guimarães suggeriu uma lembrança graciosa ao barão. Que havia dois
_padres Marcos_, ambos priores de Guimarães. Mas o legitimo, o de S.
Gens de Calvos, dizia do outro:
--Forte bebedo!
O visconde Nunes ria-se sarcasticamente; e emquanto os padres n'um
crescendo palavroso, expluiam sarcasmos ao outro padre Marcos, o
secretario privado curvou-se sobre o hombro de el-rei e segredou-lhe:
--Carrega-lhe!
--Ora!...
--Quanto?
--2.
--3. Anda-me. 3.
--Será muito!...
--Bolas. 3, por minha conta. Coisa limpa.
E, em voz alta e voltado para o grupo:
--El-rei pergunta se o snr. Conde de Quadros tem familia, se tem senhora
e filhos.
O Bezerra perguntou ao Zeferino.
--Que soubesse sua Magestade, disse o pedreiro, mais animado, que o
fidalgo de Quadros tinha dois rapazes e tres raparigas, uma já casada;
mas que a fidalga, a mulher d'elle, aqui ha annos atraz, tinha fugido
com o doutor dos Pombaes, e nunca mais voltára.
--Desgraças!--disse o capelão-mór--desgraças! A corrupção dos
tempos... Se se não acudir quanto antes a isto, não sei que volta se
lhe ha-de dar.
Fez-se um silencio condolente. Todos sentiam o caso infausto.
O rei continuava a escrever, de vagar, pulindo a frase, boleando os
periodos; achava difficuldades em se medir com as locuções redondas e
muito adjectivadas da rethorica do padre Rocha. Animava-o, porém, a
idéa de que D. Miguel não tinha fama de sabio, e que a sua carta seria
mais verosimil com alguns aleijões grammaticaes.
Releu a carta, e accrescentou ás virgulas. Pediu obreia ao Munes.
Acudiu o padre com uma quadrada, de certa grandeza, vermelha,
cuidadosamente recortada.
O envelope ainda não tinha subido até Lanhoso. Sua magestade dobrou em
quatro a folha do almaço e sobrescriptou--_Ao conde de Quadros, general
do Exercito real_.
N'esta occasião, o Christovão Bezerra chamou de parte o Nunes,
fallou-lhe em segredo, e terminou em voz alta: «se for do agrado de sua
magestade.»
--Eu vou fallar a el-rei--disse Nunes com satisfatoria condescendencia.
Acercou-se do outro, com os braços pendentes, os pés juntos, um pouco
inclinado, e fallou-lhe baixo.
--Sim--respondeu o monarcha.
--Está servido, snr. barão--communicou o secretario, e foi registar no
livro das mercês, proferindo em voz alta: _Sua magestade há por bem
nomear sargento-mór das Lamellas Zeferino Ferreira, em attenção aos
serviços de seu pai, o coronel Gaspar Ferreira_.
--Vá agradecer a el-rei, snr. sargento-mór--disse o barão de Bouro ao
pedreiro. Zeferino foi ajoelhar, querendo beijar as botas ao homem.
--Levante-se, amigo--disse o principe.--Aqui tem a resposta da carta do
meu amigo Cerveira Lobo. É necessario que ninguem veja este
sobrescripto. Tome sentido, que ninguem saiba a quem esta carta é
dirigida. Vá com Deus, e estimarei vêl-o aqui, snr. sargento-mór, com
outra carta do meu honrado amigo, emquanto não posso abraçá-lo
pessoalmente. Adeus.
A côrte sahiu em recuansos, dando-se mutuos encontrões para não
voltarem as costas á magestade.
A creada appareceu então esfandegada para pôr a mesa, que estava a
cela prompta, e que o frango com arroz não esperava--que era preciso
comêl-o logo que estava feito. Ficou para cear o Nunes. Geava sempre
com el-rei e com o abbade.
O Zeferino, que tinha ali a egua e conhecia o caminho, não quiz ir
pernoitar a Santa Martha de Bouro. Havia luar e sahia um rancho de
romeiros para o Bom Jesus do Monte. Partiu em direcção a Braga, e ao
outro dia de tarde apeava no sonoro pateo da casa de Quadros por onde
entrára com a egua em grande estropeada, com a cara escandecida n'uma
congestão de jubilo.
O Cerveira estava a dormir a sesta.
--Apanhou-a hoje d'aquella casta! Como um cacho!--informou um
caseiro.--Mandou apparelhar a poldra castanha do snr. Egas, com os
coldres das pistolas, escanchou-se na sella, com a espada desembainhada
e desatou a galope por debaixo das ramadas a dar gritos: «Avança,
dragões! carrega, esquadrão!» Eu estava a vêr quando o levava a
breca de encontro a um esteio de pedra, que malhava abaixo da burra como
um dez!... Depois o snr. Egas e mais o snr. Heitor lá o apearam como
puderam, e foram-n'o pôr a dormir. Arre diabo! lá que um homem uma vez
por outra apanhe um pifão, vá; mas embebedar-se todos os dias, é
muito feio! E depois ninguem se entende com elle. Medra com o suor dos
pobres. Um fona. Que vá para o diabo, que o carregue. Tanto se me dá
como se me deu. Se me mandar embora, boas noutes. Não é capaz de
perdoar um alqueire de milho a um caseiro! Tem vinte mil cruzados de
renda, não gasta nem cinco, andam os filhos a vender o matto e os
pinheiros, uma vergonha, porque elle, a dois homens gastadores, que tem
amigas, uma a cada canto, dá cada mez vinte pintos para os dois! O
homem deve ter muita somma de peças enterradas! Qualquer dia cae-lhe
ahi em casa o José Pequeno da Lixa que lhe põe a faca ao peito até
elle pôr ali o dinheiro á vista. Diz que quer comprar mais terras, e
aqui ha dias offereceu seis contos pela quinta do Lopes de Requião.
Veja você. Tem seis contos ao canto da gaveta, e ainda não deu cinco
réis que são cinco réis á filha, á D. Therezinha que casou com o
estudante das Quintans. Anda por lá de socas, sem meias, a fazer o
serviço da cozinha. E estão ahi as outras duas, que parecem umas
fadistas, nas romarias, e, quando Deus quer, topa a gente de noute por
esses quinchosos esses marotos dos engenheiros e empreiteiros a saltarem
paredes para se irem metter com ellas na casa do palheiro. Uma vergonha,
mestre Zeferino, a vergonha das vergonhas! Eu sou um pobre; mas raios me
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