A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 08

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Como tinha alguma pratica do fôro criminal, o Nunes consolava-o: que
não havia materia para pronuncia; e, quando fôsse pronunciado, a
Relação o despronunciaria. Eu é que vou ser o teu procurador, se me
não prenderem--accrescentava muito confiado na lei e na sua
actividade.--Quanto á phantasia do conto de réis, já não falta tudo,
porque tens as cem peças das Botelhas. Se te deixam ser rei mais um dia
ou dois, tinhas n'esta santa hora 3:750$000 réis.
--Tu gracejas e eu vou esperar na cadeia uma sentença de
degredo--atalhou o Verissimo, n'aquella estranha situação, nunca
experimentada, de ouvir os passos da sentinella rentes com a grade do
seu quarto.
Ás oito da noite, fechára-se a porta da cadeia, e Nunes sahira triste,
com um pungitivo arrependimento de metter o amigo n'aquella rascada.
Ao escurecer do dia seguinte, o preso foi conduzido do governo civil do
Porto para a Relação com um mandado do carcereiro na bayoneta do
sargento. Quando sahia do governo civil, já Libania e o Nunes, que se
antecipára a procural-a em Ramalde, o esperavam. A Libania era uma
forte mulher para os trabalhos da vida. Fitou-o com um semblante acceso
de coragem, um sorriso affoito, e disse-lhe muito animosa: Alma até
Almeida e d'Almeida _p'ra diente_ alma sempre!
Verissimo occupou o quarto de malta n.° 2, com uma rasgada janella
sobre o Douro, um quarto cheio de luz e de sol, d'onde tinha sahido o
Gravito para a forca--elucidou o carcereiro, e mostrou-lhe no grosso
alisar da porta as iniciaes de alguns padecentes com a data de 1829.
A Libania e mais o Torquato pernoitaram na estalagem do Cantinho na rua
do Loureiro e passavam o mais do tempo na Relação. Ao fim de seis dias
já o Nunes requeria a soltura do preso, por falta de nota da culpa; mas
a pronuncia chegou ao oitavo dia da comarca da Povoa. O preso aggravou
para a Relação. Era juiz relator do aggravo o conselheiro Fortunato
Leite, natural do Douro, que, quinze annos antes, no reinado de D.
Miguel, tinha sido amigo de Norberto Borges, e lhe devêra a fineza rara
de o avisar na vespera do dia em que lhe havia de cercar a casa por
ordem do facinoroso corregedor de Villa Real, o Albano que os liberaes
mataram, no meio de uma escolta, em 1836. Quando o relator folheava o
processo, os appellidos do preso, a naturalidade, os pormenores,
suggeriram-lhe memorias da sua perseguição em 1831, e o salvar-se tão
extraordinariamente pela amizade do meirinho geral. Informou-se e
evidenciou que o Norberto Borges, de Alvações de Corgo, era o pai do
preso. Estava pois salvo o filho do seu bemfeitor, sem grande violencia
á justiça, porque a pronuncia fôra precipitada, irregular, as
testemunhas citadas--os padres suspeitos de frequentarem a residencia de
Calvos--nada depozeram que provasse projectos revolucionarios do
aggravante.
E lavrou o accordão muito rocheado de grypho:--Que aggravado era o
aggravante pelo juiz da comarca de Lanhoso, porquanto na pronuncia de
primeira instancia haviam sido desprezadas as formalidades mais curiaes,
pois que _nenhuma_ testemunha depozéra que o aggravante se inculcasse
_D. Miguel_ para perturbar a _ordem constituida_, chamando o povo á
revolta; e das respostas do aggravante no interrogatorio a que procedeu
a auctoridade administrativa constava que o preso quasi que _fôra
obrigado_ por um _clerigo estupido e esturrado miguelista_ a deixar-se
chamar _D. Miguel l.°_; mas não constava nem se provava que o
aggravante se aproveitasse de tal fraude e impostura para extorquir
valores aos seus _estupidos cortezãos_; _o que decerto_ praticaria um
_gamenho_ decidido a fingir-se _D. Miguel_ para os espoliar. Que a
pronuncia fôra iniqua, atabafada apaixonadamente, e sem base, visto que
_nada_ se colhia dos depoimentos das testemunhas, e apenas se fez obra
por hypotheses e indicios, fundada em um rei de individuos _alarves_ a
quem o supposto _monarcha_ fazia mercês de commendas, de titulos, de
patentes e até de mitras, sem que d'ahi resultasse alvoroto nem _leve
perturbação_ na ordem publica, nem mesmamente damno para os
mencionados _burros_ que pediam as mercês, e que deviam ser
pronunciados em primeira instancia, se a _côrte de S. Gens de Calvos_,
não fosse uma _farça de entrudo_.
E, dilatando-se philosophicamente e chistoso, o juiz relator,
addicionava, aconselhando, que seria bom e proveitoso que nas terras
selvaticas do Minho se espalhassem muitos _Migueis_ d'aquella casta e
feitio até que os novos _Sebastianistas_ se convencessem de que
_somente assim_ poderiam arranjar um _Miguel_ que lhes désse
commendas, titulos, postos militares e prelazias.
Os desembargadores, com o seu rapé engatilhado aos narizes, riram muito
do final do accordão, e, sorvidas as pitadas sibillantes, assignaram
por unanimidade.
Reformada a sentença e pagas as custas pelo juiz da primeira instancia,
Verissimo foi posto em liberdade; e, quando chegou ao escriptorio do
carcereiro Mello para se despedir, encontrou a Libania de Covas
desmaiada de jubilo, nos braços da mulher do chaveiro. Como era feliz,
deixou-se ser mulher--chorou; e quando lhe cumpria dar animo ao preso,
no pateo do governo civil, riu-se com a valentia dos homens
extraordinarios.
O conselheiro Leite recommendou ao Nunes procurador que lhe mandasse a
casa o Verissimo. O filho de Norberto apresentou-se timorato, receoso,
com maneiras submissas, mas dignas d'um Borges Camêlo infeliz.
O desembargador explicou-lhe que o chamára para lhe fazer conhecer a
divida que lhe pagou, posto que as situações fossem muito diversas.
Improperou-lhe serenamente o seu delicto; estygmatisou a acção de
permittir que o julgassem D. Miguel; fallou acerbamente contra este
tyranno parricida, incestuoso, canalha, e terminou por lhe aconselhar o
trilho da honra, o trabalho, e a expiação das suas irregularidades,
mostrando-se digno da compaixão que lhe inspirára, despronunciando-o.
O Verissimo beijou-lhe a mão, e recusou dez pintos que o conselheiro
lhe dava--que, se um dia necessitasse, lh'os pediria. E o Fortunato
Leite, a rir:
--Então as bêstas dos abbades sempre cahiram? Fez você muito bem.
Devia esfolar essas cavalgaduras!
O Verissimo recuava muito agradecido.
O conselheiro Fortunato exerceu uma energica influencia vitalisadora na
nova encerebração de Verissimo Borges e bastante na do Torquato Nunes
Elias.
Por medeação do bondoso desembargador, obteve o Nunes alvará de
solicitador de causas nos auditorios do Porto. Ganhou boas relações.
Era esperto, zeloso e pagava-se regularmente. Chamou para a cidade a
mulher e os dois filhos. Alugaram casa na rua de Traz as duas familias.
Davam-se muito bem, e gastavam economicamente os 750$000 réis das
Botelhas, de meias com os salarios de procurador. O Verissimo
frequentava á noite o café das Hortas, jogava o quino e, de vez em
quando, ia ao café da rua de Santo Antonio ouvir os demagogos dos manos
Passos, que o festejava e catequisavam. Dava-se com os Navarros, com o
Almeida Penha, com os Peixotos vidraceiros. Elle, sobpondo ao
reconhecimento os escrupulos de espião, contava ao conselheiro Leite,
cabralista intransigente, os planos dos setembristas, os clubs, as lojas
de carbonarios, as tramoias arranjadas em Braga pelo barão do Casal,
muito setembrista, padre Alves Vicente, de combinação com o Passos
José, com o Faria Guimarães, com o medico Resende, com o Damasio, com
o Alves Martins. O governador civil, visconde de Beire, estava em dia
com as conspirações da viella da Neta--aquelle baluarte da Liberdade
que demorava paredes-meias com os escombros do Deboche, não griphado,
muito á franceza;--tudo acabado hoje em dia, e soterrado debaixo d'uma
loja de modas, d'um café e d'uma taberna,--o vitalismo soez e chato da
decadencia.
Verissimo arrecadava uma gratificação, umas seis libras mensaes,
mesquinha paga dos serviços que fazia á ordem, á tranquillidade
civica da rua das Flores e das Congostas.
Na contra-revolução de 9 de outubro de 46, quando foi preso o duque,
José Passos encontrou o Verissimo na Praça Nova, chamou-lhe
_patriota_, pôz-lhe a mão no hombro, sacudiu-o pelas lapellas, e
disse-lhe que movesse, que agitasse as massas, por que o duque estava a
desembarcar. Os sinos tangiam a rebate, a plebe ondeava para Villar,
n'um restrugir de tempestade, quando o Verissimo e o Nunes procuraram o
conselheiro Fortunato que tiritava de mêdo com as suas enxundias
espapadas entre as filhas, n'uma consternação. Disseram-lhe que se iam
armar para se constituirem sentinellas da segurança do seu bemfeitor. O
conselheiro abraçou-os muito commovido, n'uma excitação apopletica.
Depois formaram-se os batalhões nacionaes. Verissimo e Torquato foram
promovidos a tenentes do batalhão da Vista Alegre. Quando foi da
refrega de Valpassos tinham comprehendido intelligentemente que a
retirada de Sá da Bandeira, da veiga de Chaves, era a fraqueza
precursora de uma derrota. Conheciam o perfido espirito do 15 e do 3 de
infanteria,--previram a traição. Tinham pensado maduramente os dois
tenentes, sem enthusiasmo, com a prudencia dos quarenta annos apalpados
pelos revezes de vinte batalhas. Resolveram desertar quando os
batalhões de linha se passassem para as forças reaes. Travou-se o
encontro de Valpassos. Com os dois regimentos que n'um turbilhão e a
gritos de _Viva a Rainha_ se abraçaram ás vanguardas do Casal, tambem
elles, por debaixo do fogo do seu batalhão, se passaram, dando _vivas
á Carta Constitucional_. Eram a obra da prudencia e do conselheiro
Fortunato Leite.
Quando o barão de Casal foi espostejar os miguelistas a Braga, os dois
tenentes apresentados pediram venia ao general para servirem na columna
do visconde de Vinhaes;--que tinham repugnancia de pelejar cara a cara
com os seus parentes bandeados nas guerrilhas do padre Casimiro José
Vieira e do padre José da Lage. A vergonha impunha-lhes o dever de
dourar a mentira. Não lhes pareceu decente irem acutilar nas ruas de
Braga o Christovão Bezerra, de Bouro e o abbade de Calvos e o padre
Manoel das Agras. Não poderiam vêr sem magua a soldadesca a dar saque
aos dinheiros das snr.ªs Botelhas.
Ainda assim não puderam esquivar-se a perseguir os realistas da
comitiva de Mac-Donald, desde Villa Real até Sabroso; mas não
desembainharam as espadas, porque o visconde de Vinhaes os admittiu ao
seu quartel-general, e os cadaveres que encontraram pela serra do Mezio
até Sabroso, onde pereceu acutilado o caudilho escossez, eram façanhas
das guardas avançadas. Os dois tenentes não deram nem tiraram gota de
sangue n'esta lucta fratricida. Um triumpho a sêcco.
Concluida a guerra civil pelo convenio de Gramido, depositaram as armas
e pediram empregos. O conselheiro Leite, o Casal, o Vinhaes, o
Alpendurada, o Carneiro Geraldes, o Joaquim Torquato, o centro
cabralista recommendou-os á consideração magnanima de sua magestade.
O Nunes, como sabia do fôro, foi despachado escrivão de direito para a
Estremadura. Verissimo Borges obteve uma fiscalisação rendosa dos
tabacos e sabão em Traz-os-Montes: depois foi transferido, com
vantagem, para a alfandega de Vianna do Minho; e por ultimo para uma
direcção aduaneira do Ultramar. Ainda vivia ha poucos annos, porque um
jornal da localidade, debaixo de um symbolo funebre--um anjo curvado e
deplorativo sobre a sua urna, enlutada pelas madeixas de um
chorão--publicava:

_Verissimo Borges Camêlo da Mesquita dá parte aos seus numerosos e
respeitaveis amigos que foi Deus servido chamar á sua divina presença,
hoje pelas 5 horas da manhã, sua chorada esposa D. Libania de Covas
Borges da Mesquita, a cujo cadaver, etc. Pelo seu profundo estado de
consternação pede desculpa de cumprimentos._

O jornal, depois de uns adjectivos lugubres e velhos como a morte,
accrescentava: _A exc.^ma snrª D. Libania, que todos choramos com seu
exc.^mo viuvo, era uma senhora de esmeradissima educação, pertencia á
illustre familia dos Covas;--modêlo no tracto insinuante com que
captivava o respeito e a amizade de todas as pessoas d'esta Ilha, que
tiveram a fortuna de a conhecer. Receba s. exc.ª o snr.
conselheiro-director os nossos mais sentidos pesames pela desgraça que
acaba de o ferir implacavelmente_.

Verissimo e Nunes podem ainda viver, porque eram robustos de corpo e
d'alma.


XIII

O Zeferino deixou o Cerveira Lobo em Quadros, com os tres contos de
réis, foi para as Lamellas, e entrou de noite para que o não vissem.
Elle tinha-se gabado aos visinhos de que estava despachado sargento-mór
e seu pai coronel reformado. Ao José Dias de Villalva e mais ao pai que
era regedor, mandára-lhes dizer que elles brevemente haviam de topar
com o seu homem. Da Martha de Prazins dizia trapos e farrapos. A sua
paixão nao tinha outro respiradoiro. Além d'isso, nao podia
esquecer-se da nadega exposta pelo cão ás descompostas gargalhadas da
rapariga. Era uma vergonha chronica. E, para remate de desastres,
voltava para as Lamellas, a ouvir as rabugices do pai que lhe chamava
cavalgadura--que se deixasse de politica e fosse fazer paredes, que é o
que elle sabia.
Constava-lhe de mais a mais que o José Dias, o estudante, estava sempre
em Prazins, e tinha ido com Martha e mais o Simeão ao fogo preso da
romaria de S. Thiago da cruz. Viram-os todos tres a tomar café de
madrugada n'uma barraca, a cochicharem os dois muito aconchegados, em
quanto o velho tosquenejava a dormitar.
O pai de José Dias, o Joaquim de Villalva, era um lavrador de primeira
ordem. Lavrava quarenta carros de milho e centeio, uma pipa de azeite,
dez de vinho, muita castanha, tinha tres juntas de bois chibantes e
poldros de creação. O José, meeiro no casal, a não se ordenar, era
um dos primeiros casamentos do concelho.
O rapaz amava castamente a Martha com a pudicicia do primeiro amor. Ella
tinha uma formosura meiga, delicada e supplicante. Parecia pedir que a
não immolassem a uma paixão sensual; mas, se o seu amado o exigisse, a
victima coroar-se-ia de flores, e iria risonha e mansamente para o
sacrificio. Tinha extasis a contemplar-lhe os cabellos loiros e a
pallida face doentia; deixava-se beijar com a impassibilidade de uma
santa de jaspe--um quadro paradisiaco sem fructas nem cobras.
O José não necessitava pedil-a ao pai na incerteza de uma recusa.
Disse-lhe que ella havia de ser a sua esposa: a creança contou ao pai
as palavras do amado e o Simeão:--Ora venha de lá esse abraço, amigo
e sê Zé!--e apertou o futuro genro com a ternura de pai que arranja a
sua filha _como se quer_.
Mas os paes do estudante já tinham dito ao rapaz que mudasse de rumo,
que a môça de Prazins não era fôrma de seu pé. A mãe
principalmente protestava que, emquanto ella fosse viva, a tal filha da
Genoveva de Prazins não havia de ser sua nora, nem que a levasse o
diabo, e Deus lhe perdoasse, se peccava. Justificava-se dizendo que a
Martha era de ruim casta; que a mãe, a Genoveva, dera desgostos ao
homem, pintava a manta nas romarias, andára muito fallada com um frade
de Santo Thyrso, e um dia pegára a dar gritos na egreja; toda a gente
disse que ella tinha o demonio no corpo, e afinal morrêra douda,
atirando-se ao rio Ave.
E constava-lhe que o avô d'ella tambem não era escorreito, e quando
já tinha sessenta annos mandára fazer uma sobrepeliz, abrira corda, e
onde houvesse um defunto lá ia com um ripanso á egreja e punha-se a
cantar como os padres. A tia Maria de Villalva tinha inconscientemente
este horror moderno, scientifico da hereditariedade; mas o que mais a
impulsionava na sua resistencia aos rogos do filho era ter sido _má
mulher_ a mãe de Martha. _De má arvore mim fructo_--era toda a sua
philosophia que se encontra diluida modernamente nas explorações
physio-psychologicas do Janet, do Maudsley e no determinismo.
O Joaquim de Villalva, muito instado pelo filho e pelo padre Osorio, o
de Caldellas, promettia fazer o que a sua companheira fizesse: mas
dizia-lhe a ella em particular:--Tu aguenta-te, Maria; nunca digas que
sim, ouviste? E ella:--Deixa-me cá, homem! Vem barrados. Credo!
A tia Maria era muito rezadeira, erguia-se de noite para não perder a
sua missinha no verão ao romper do dia, e garganteava com uma melopêa
fanhosa a via-sacra na quaresma, á volta da egreja; presenteava os
santos dos altares com os mimos da sua lavoira que se leiloavam ao
domingo no adro, dava cama e mesa unctuosa aos missionarias,
confessava-se todos os mezes, e sentia pelas suas visinhas menos beatas
o ineffavel prazer de affirmar que haviam de cahir vestidas e calçadas
no inferno. O filho penetrou-se d'uma idéa trivial a respeito de sua
mãe:--Que os sentimentos religiosos a levariam a dar o consentimento,
se Martha commettesse um d'esses peccados que se remedeiam com o
matrimonio. O padre Osorio dizia-lhe que a intenção era honesta, mas o
expediente mau. Não lhe citou theologos nem preceitos de origem divina.
Argumentou-lhe com a hypothese da pertinaz resistencia da mãe. Que
não esperava nada da sua religião,--um habito de tregeitos de mãos e
de beiços, o automatismo idolatra dos selvagens da America que davam
guinchos mechanicos, prostrando-se por terra, quando ouviram a primeira
missa; que a religião das aldeias, sobre a dos indianos da catechese
dos jesuitas, as vantagens que tinha era a hypocrisia em uns, e o
fanatismo em outros, quando não se ajuntavam ambas as coisas nos mesmos
fieis. O padre Osorio parochiava e conhecia o seu rebanho, joeirando-o
pelos crivos do confessionario. Não conhecia menos a tia Maria de
Villalva. Affirmava que a fragilidade de Martha seria para a velha mais
um motivo de odio e desprezo; por que, na sua cartilha e nos dictames
dos seus directores espirituaes, não se lia nem ouvia que a mãe devia
encobrir a deshonra de uma rapariga casando-a com o seu filho, seductor
d'ella.

As reflexões do vigario de Caldellas eram optimas mas extemporaneas.
Um official de pedreiro de Prazins, que trabalhava com o mestre
Zeferino, contou-lhe que uma noite se enganara com o luar, e, cuidando
que era dia nado, se levantára para ir para a obra; mas que ao passar
por diante da casa do Simeão ouvira duas horas no relogio, e vira luz
pelas frestas de uma janella. Que se puzera á coca debaixo de um
carvalho, a desconfiar que a luz áquella hora não era coisa boa, e
estivera, _vai não vai, ó pernas p'ra que te quero_, lembrando-se se
seria bruxedo ou alma penada, por que se dizia que a Genoveva do
Simeão, a que se deitara ao rio, não podia entrar no purgatorio, e
morrera com o diabo no corpo, salvo seja. Estava n'isto quando a luz se
sumiu, e se coou pelas frestas d'outra janella, e logo depois n'outra
mais baixa, onde um homem podia chegar, com o cabo d'um machado. N'isto
apagou-se a luz e abriu-se a janella de portadas sem vidros. Dava-lhe a
chapada do luar;--era como se fosse dia. O pedreiro, muito no escuro da
ramaria do carvalho, viu apontar uma cabeça e depois meio corpo de
homem que se pôz ás cavalleiras do peitoril da janella, quedou-se a
olhar e a escutar a um lado e outro; depois desmontou-se muito
devagarinho, sem tugir nem mugir, pendurou-se no peitoril e deixou-se
cahir, ficando em pé. A janella fechou-se, e o José Dias, que o
operario conheceu como se o visse ao meio dia, metteu-se ao caminho de
Villalva, por signal que levava sapatos de borracha que brilhavam ao
luar como um espelho.
O oratoriano Manoel Bernardes, como é notorio, escreveu um livro
edificante, muito piedoso, chamado _Armas da Castidade_. O mystico filho
de S. Philippe Nery, com duas palavras sãs, d'um realismo seraphico,
cabalmente explicou a situação d'outro José Dias a respeito d'outra
Martha. _Conhecia-lhe o leito_, dizia elle. É o mais que se póde dizer
sem escandalisar ninguem. Conhecia-lhe o leito.
Mas o Zeferino é que sentiu em cheio no peito amante a facada do
escandalo. O official viu-o sentar-se sobre uma padieira que estava
esquadriando, e, com o rosto entre as mãos, desfazer-se em pranto. Elle
tinha amado aquella rapariga desde que a vira aos treze annos.
Trabalhára e roubára como gallego para a poder comprar ao pai por um
conto e quinhentos e pico. Metteu-se na politica; fez-se sargento-mór a
vêr se se levantava a uma altura em que a Martha o achasse digno d'ella
e superior ao estudante. Desabadas as esperanças com a prisão do
patife de Calvos, scismava ainda em voltar de novo ao campo quando
viesse o D. Miguel authentico, porque o tenente-coronel de Quadros lhe
dizia que el-rei chegava a Portugal na primavera do anno
seguinte--affirmava-lh'o o padre Rocha para o consolar juntamente com as
bebedeiras quotidianas. Tudo acabado, perdido, como se lhe morresse a
Eva do seu paraizo! E por isso o pedreiro chorava como os grandes poetas
trahidos, como Camões, como Tasso, como Alfred de Musset. As lagrimas
na cara tostada d'aquelle operario tinham o travo das que a poesia
crystallisou no pantheon dos martyres do amor.
Depois, levantou-se, limpou as faces á manga da camisa, pegou da
esquadria e continuou a trabalhar, assobiando a musica triste d'uma
cantiga d'esse tempo:

_Ó mar, se queres,
Tem dó de mim._

Estes assobios eram o silvo da serpente da vingança; mas o seu rancor
não punha a pontaria em Martha. Se deixava de cinzelar a pedra, e
fitava os olhos extaticos n'um immenso vacuo, via passar lucilante a
imagem da pequena, pura, angelical como a vira aos treze annos. Um
grande romantico--uma explosão de ideaes que florejavam d'aquelle
pedreiro como um canteiro de boninas nos musgos de um penhascal. Havia
d'estas transigencias com os anjos despenhados. Dir-se-ia que elle tinha
lido as _Confissões de um filho do seculo_, aquella torrente de
lagrimas ignobeis que lava os pés de uma dissoluta illustrada.
Elle, desde essa hora funesta, pensou em matar o José Dias; mas, nas
ricas protuberancias osseas do seu grande craneo, a bossa do homicidio
era muito rudimentar. Tinha tido varias occasiões de poder-se gabar
d'essa perfeição. Haviam-lhe batido dois estudantes a um pinhal, por
causa das denuncias ao padre mestre Roque; e, quando o cão do Dias lhe
rasgou a calça n'um sitio melindroso, o Zeferino desconfiou que, se
fosse capaz de matar um homem, deveria ter atirado com o machado á
cabeça do caçador. Elle queria espesinhar o cadaver de José Dias,
espostejal-o, trincal-o, mascal-o, esmoêl-o, devoral-o, mas á maneira
dos devoristas incolumes que compram um porco já morto na Ribeira
Velha, e o esquartejam com um grande regosijo anthropophago, com as
mãos ensopadas nas banhas da victima.

O pedreiro denunciante ia contando em segredo a toda a gente a
descoberta que fizera n'aquella noite em que se enganára com o luar. A
Martha estava desacreditada na freguezia; as mulheres que sachavam os
milharaes faziam commentarios perpetuos ao texto do pedreiro, recordavam
as façanhas da Genoveva, contadas pelas velhas, e as mais antigas
diziam que a Brigida Gallinheira, avó da Martha, já tinha dado o
exemplo á filha.--Uma geração de maratonas do alto, dizia a tia Rosa
de Carude, cuspindo no chão, e pondo a soca em cima. Riam-se do
Zeferino que andava como a cobra que perdeu a peçonha, muito escamado;
que lhe tinham sahido dois casamentos com boas lavradeiras, e elle diz
que havia de ir morrer solteiro ás Pedras Negras, depois de matar um
homem; e houve quem affirmasse que o vira com um bacamarte debaixo dos
carvalhos, por essa noite fóra, defronte da casa do Simeão. Uma
calumnia.
Avisaram a mãe do José Dias da espera do pedreiro, e ella fez dormir o
filho era uma trapeira que não tinha janella por onde saltasse, e
fechava-o de noite por fóra, rogando pragas á serêsma de
Prazins:--Que um raio a partisse e o diabo a levasse para as profundas
do abysmo! Depois ia rezar a corôa com os creados, e rogava a Deus
pelos que andavam sobre as aguas do mar e pelas almas de todos os seus
parentes e visinhos, com uma intonação chorada que fazia devoção.
O José Dias vivia amargurado. Tinha sido creado n'um grande respeito
aos paes, e sentia-se inhabil para lhes reagir. A doença de peito que
principiava a desvigorisar-lhe o corpo, implicava-lhe com a atonia da
alma. Sentia o egoismo indolente dos enfermos minados pela consumpção
lenta. Invejava a robustez do irmão, um trabalhador forte que dormia
dez horas, e ao romper da aurora ia lavar a cara ao tanque e pensar o
gado com uma grande alegria, de assobios remedando as requintas das
chulas. Passava muitas horas com o seu confidente, o padre Osorio.
Pedia-lhe conselhos--que arranjasse modo de elle poder casar com a
Martha.--Que eu, dizia com desalento, não vou longe; mas queria
remediar o mal que fiz.
A Martha escrevia-lhe para Caldellas, porque a tia Maria de Villalva,
uma vez que lá viu um garoto com carta para o filho, deu sobre elle com
um engaço, que por pouco o não apanha pela cabeça com os dentes do
instrumento. As cartas eram desconfianças, receio do abandono,
lagrimas. O pai não a mortificava. Pelo contrario, dizia-lhe a
miudo:--Se o Zé de Villalva não casar comtigo, talvez seja a tua
fortuna, por que póde ser que teu tio adregue de gostar de ti, e mais
mez menos mez elle rebenta por essa porta dentro rico como um porco. O
brazileiro da Rita Chasca que chegou agora diz que elle tem quatrocentos
contos fortes, p'ra riba, que não p'ra baixo.--A Martha escondia-se a
chorar; e, ás vezes, lembrava-se do fim da mãe--o suicidio; e
punha-se a olhar para o Ave e a escutar o rugido cavo de uma levada que
parecia trazer-lhe os gemidos agonisantes de muitos afogados.
O Dias fallava-lhe na sua doença, no desfallecimento de forças que já
o não deixavam caçar, da tristeza que o consumia, do desamor com que a
familia o via padecer, do odio que começava a ter á mãe, e das
saudades dilacerantes que sentia pela sua querida Martha.--Que o seu
amigo padre Osorio trabalhava para obter o consentimento do pai; mas
que, se o não obtivesse, estava resolvido a fugir com ella, mesmo sem
recursos, ou com os poucos que o seu amigo lhe podia emprestar.
De tempo a tempo ia vêl-a de dia; mas a mãe trazia-o muito espreitado,
e ralava-o:--que a tal croia havia de dar cabo d'elle. O cirurgião
tinha-lhe dito delicadamente que o José abusava do 6.°. Ella, como
sabia os mandamentos de cór e salteados, entendeu logo, e dizia a toda
a gente que o seu Zé andava assim um pilharengo por causa do 6.°. Era
o resultado de saber a doutrina christã esta decencia no explicar-se
por numeros. As visinhas entendiam-na e diziam-lhe que o José andava
_forgado_, que lhe mettesse uma enxada nas unhas e o puzesse a roçar
matto oito dias, que elle perdia o cio.
Decorreram alguns mezes. Com a primavera a saude de José Dias pareceu
restaurar-se. Elle attribuiu as suas melhoras ao contentamento. O pai,
que era regedor, a pedido do governador civil que o mandou chamar a
Braga, por intervenção do padre Osorio, dava o consentimento; mas a
mãe recalcitrava. Esperava-se, porém, a vinda dos missionarios a
Requião, para a reduzirem ao dever de catholica. O vigario de Caldellas
já tinha prevenido um egresso do Varatojo, fr. João de Borba da
Montanha, das terras de Celorico de Basto, d'uma força prodigiosa em
emprezas mais difficeis.
Martha recobrava alegres esperanças, e o Zeferino das Lamellas digeria
a sua dôr, assobiando a musica da melancolica bailada:

_Ó mar, se queres.
Tem dó de mim._

Para seu desafôgo, ia a miudo a Quadros saber quando chegaria o snr. D.
Miguel. O Cerveira estava relacionado com os setembristas. Formára-se a
juncção dos dois partidos hostis aos Cabraes, aproximados pelas
eleições sanguinarias de 1845. O tenente-coronel reunia espingardas em
Quadros e dava dinheiro para o fabrico de cartuchame no concelho da
Povoa de Lanhoso e nos arrabaldes de Guimarães. O padre Rocha
communicava-lhe as noticias enviadas de Londres pelo Saraiva, e
conseguiu que elle fosse ao Porto receber o gráo de commendador da
ordem de S. Miguel da Ala a casa do João d'Albuquerque, da Insua, que
representava nas provincias do norte o Grão-Mestrado. O Zeferino sentia
momentos de jubilo de tigre que se agacha a medir o salto á presa.
Tinha um riso que era um ringir de dentes. Parecia-lhe que estava a
mastigar os ligados do José Dias.


XIV

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