A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 06

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por corpo que lhes abafava os tinidos metalicos das pontuadas, ouviu-se
um grande estrupido de coisa que trepava pelas pipas. E n'isto appareceu
uma cabeça com enormes barbas sobre um dos tampos.
--Oh!--bradou o Pilula!--muito bem apparecido n'esta funcção, snr. D.
Miguel I! Suba p'ra cima d'esse throno e dê lá de cima um bocado de
cavaco ás tropas! Mas o melhor é descer cá p'ra baixo, real senhor!
O 24, muito espantado, a olhar para a cabeça do homem:
--Parece o padre eterno, ó meu sargento!
--Com quem elle se parece é com o _Remexido_ do Algarve,--affirmava o
14.
--Desça d'ahi que ninguem lhe faz mal, homem. Está preso á ordem do
governador civil--concluiu o sargento com seriedade imponente.
--Este senhor?... não...--disse o abbade com as mãos postas.[5]
--Não seja asno!--volveu o sargento. Este homem não é D. Miguel. É
um falante que o está aqui a comer a você e mais aos patólas da sua
laia. Vá-lhe buscar a roupa, senão elle entra na escolta em mangas de
camisa.
--Dê licença que este senhor se vá vestir ao seu quarto--supplicou o
abbade.
--Sim, que se arranje com guardas á vista.--E acompanhou-os á saleta.
Quando envergava o casaco de panno piloto, o abbade disse-lhe, com um
gesto, que o dinheiro das Botelhas de Braga ia nas algibeiras do
paletó.
O sargento perguntou que papelada era aquella que estava sobre a mesa.
Leu a primeira folha e desatou a rir e a dizer ao barbaças:
--Olha que grande pandego você é! Você como se chama, ó seu coisa? E
leu alto:
_Rol das mercês que sua magestade o snr. D. Miguel I fez em Portugal e
que se descrevem n'este livro de apontamentos provisoriamente._
E na primeira pagina.
_Marcos Antonio de Faria Rebello, abbade de S. Gens de Calvos,
capellão-mór de el-rei e D. Prior de Guimarães_. E perguntava ao
abbade:--Este ratão d'este dom prior é você, hein? Parabens!
Em seguida:
_Torquato Nunes Elias, visconde de S. Gens, secretario privado
d'el-rei._
--_Torquato Nunes_! recordava o Pilula.--Eu parece-me que conheço este
diabo de o vêr em Braga no _Café_ da Açucena na Cruz de Pedra.
_Nunes_! um pelintra. Onde está o visconde que lhe queria dar um
cigarro? Emfim cá levo a papelada para Braga--e enrolava os papeis. A
gente precisa conhecer os titulares novos para os respeitar e acatar,
amigo D. Prior de Guimarães.
Quando a escolta se formou fóra do portão e o preso entrou ao centro,
com a fronte magestosa abatida e os braços cruzados, levantou-se na
residencia um choro como á sahida de um defunto muito querido. Eram a
cozinheira e a outra creada, n'um arrancar de soluços, emquanto o
abbade afogava os gemidos com o rosto apanhado nas mãos. O povo da
aldeia, com um grande terror da tropa, espreitava de longe por entre as
arvores e de traz das paredes. O Torquato Nunes Elias, acordado pela
mulher que recebera a nova da prisão, saltára da cama, e correra á
residencia, perguntando ao abbade se el-rei tinha levado as peças das
Botelhas de Braga.
--Que sim, que levára; pudéra não levar!
--Pois então, abbade, empreste-me ahi meia moeda, que eu vou
disfarçado a Braga vêr o que se passa. Estou sem vintem.
--Veja lá se o prendem, visconde--acautelou o abbade.
--O meu dever é seguir a sorte de el-rei! Onde elle morrer, morro eu!

[Nota de rodapé 4: O auctor teve relações muito saudosas com este
venerando sacerdote, que em 1851 residia n'um antigo casarão da rua de
St. Antonio, que depois se transformou em casa de banhos. Por esse
tempo, se congregavam ali os homens eminentes, por intelligencia e
haveres, do partido realista. N'este anno, padre Luiz de Sousa passava
os seus dias rodeado de pergaminhos, immobilisado em uma poltrona,
gemendo as dôres da gota. Morreu muito pobre e muito desamparado.]
[Nota de rodapé 5: São as textuaes palavras e a attitude do padre,
significativas da crença entranhada na realeza do preso e da sua
paixão n'aquelle lance. Parece que intentava mover á piedade a
escolta, increpando-a pela profanação de pôr mãos no rei legitimo.
(Informação de _Ferreira de Andrade_).]


X

O Cerveira Lobo sahira, com o Zeferino, para Braga na sexta-feira de
manhã. Estariam aqui até á madrugada de sabbado, e partiriam então
para a Povoa de Lanhoso com os tres contos de réis repartidos em libras
pelas algibeiras dos dois. Além d'um criado de velha libré, avivada de
azul, de botas de prateleira e chapéu de sola, levavam bacamartes nos
arções dos sellotes, todos tres. Foram descançar e jantar á
hospedaria dos _Dous amigos_. O Cerveira vestia casaca no trinque muito
lustrosa, e gravata de cambraia com laço; o peitilho postiço atado ao
pescoço sahia muito rijo de gomma reles d'entre as lapellas derrubadas
do collete de velludo preto. A calça de prégas, ampla, á cavallaria,
afunilava-se no artelho, quebrando no peito do pé. As botas de
polimento novas rangiam e as esporas amarellas no tacão, com grandes
rosetas, tilintavam n'um estardalhaço de caserna. Comprara chapéu de
pasta com molas que faziam saltar a copa, e enchiam como uma bexiga, que
parecia _pantominice das comedias_, dizia o Zeferino.
Ás quatro horas o fidalgo de Quadros e mais o pedreiro sentaram-se á
mesa redonda. Já constava em Braga que estava ali o Cerveira Lobo que
desde 1835 não sahira da casa solar de Vermuim. Alguns primos
visitaram-o; as familias legitimistas e principalmente senhoras velhas
mandavam-lhe bilhetes.
Dizia ao Zeferino que o encommodavam tantas etiquetas, que estava morto
por se safar, não estava para lérias: que as taes senhoras
Sotto-mayores e as Peixotas e as Menezes deviam ser mais velhas que a
Sé, uns estafermos. Elle segredava ao ouvido do Zeferino coisas,
ratices suas em Braga, quando era rapaz.--Que fizera um destrôço nas
primas, tudo pelo pó do gato. Que pagára bem o seu tributo á asneira;
e casquinava com vaidade paparrêta, carregando-lhe a mão no verde.
Quando entravam pelo assado, chegou um tenente do 8 a contar a um amigo,
que estava á mesa, que chegára n'aquelle momento preso ao governo
civil, vindo da Povoa de Lanhoso, um marôto que dizia ser D. Miguel, e
ouvira dizer a um realista que o vira em Roma, havia tres annos, que se
parecia bastante com elle.
O Cerveira erguera-se n'um grande espanto indiscreto a olhar para o
official que o fixava com uma curiosidade ironica. Convergiram todos os
olhares para o homem das barbas respeitaveis. Quedou-se momentos
n'aquelle spasmo, n'um tremulo, e perguntou:
--E é com effeito o snr. D. Miguel esse homem que chegou preso?
--Elle diz que é--respondeu o tenente--Veremos o que se averigua no
governo civil.
--Na falta do verdadeiro D. Sebastião, appareceram tres falsos--disse
emphaticamente um professor de latim, com um sorriso pedante. O Cerveira
olhou-o de esconso, e sahiu da mesa, seguido do Zeferino, muito
enfiados ambos.
--Está tudo perdido!--disse dolentemente o fidalgo--El-rei preso!... E
não se levanta este Minho a livral-o!... Vamos vêl-o, quero vêr se
lhe posso fallar. Dentro de tres dias entro em Braga com dez mil homens
e arrazo a cadeia.
Fez saltar a copa do chapéu de molas e sahiu para a rua, a bufar.
O campo de Santa Anna parecia um arraial. Aglomeravam-se ali as duas
Bragas--a fiel, a caipira, pletorica de fidalgos, de grandes
proprietarios, conegos, de chapelleiros e da clerezia miuda;--a liberal,
muito anemica, encostada ao 8 de infanteria, toda de bachareis e
empregados publicos, o Manso, o Mello Cavacão, o Motta, o Rocha Veiga,
o Alves Vicente, negociantes de tendas mesquinhas, professores muito
rhetoricos, o Capella, que ensinava francez, o Pereira Caldas soneteiro
e polygrapho, o velho Abreu bibliothecario, lacrimoso, o Pinheiro, muito
grande, philosopho sensualista, mas bom visinho, todos á volta do
Mont'Alverne, um conego muito assanhado que foi, mezes depois,
commandante da brigada dos Seresinos.
Cerveira Lobo impunha e dominava com as suas barbas, o trajar aceado com
muito lustro, e o bater metallico, patarata das esporas. Abriram-lhe
passagem, rodeavam-no cavalheiros da primeira plana, os Vasconcellos do
Tanque, os Magalhães, o Freire Barata, o Cunha das Travessas, a gemma
d'aquelle enorme ovo realista, chocado no seio da religião da Carlota
Joaquina, do conde de Basto e do Telles Jordão. O Cerveira perguntava
aos seus:--É?--uns encolhiam os hombros, outros negavam gesticulando. E
elle, com intimativa:--Pois saibam que é!--O Manoel de Magalhães dizia
ao ouvido do Henrique Freire:
--Deixa-o fallar, que está idiota.
O Bernardo de Barros, um fidalgo de Basto que fôra capitão de
cavallaria, com um bisarro sorriso de côrte e ademanes d'uma selecção
rara:--Meu tenente-coronel, el-rei, quando vier, não ha-de estar ao
alcance da canalha. Descance vossencia.
Os janotas acercavam-se, disfructadores, do Cerveira. Eram o Russel, o
Antonio Gaspar, os de Infias, o Bento Miguel de Maximinos, o Paiva
Brandão, o D. Manoel da Prelada, o D. João da Tapada, o Antonio Luiz
de Vilhena, um loiro, muito enamorado, com uma rosa-chá na lapella da
casaca azul com botões amarellos.
D'ahi a pouco fez-se um torvelinho de povo á porta do governo civil. A
soldadesca afastava a multidão com phrases persuasivas de cronha
d'arma. Formou-se a escolta, e o preso sahiu, de rosto levantado e
affoito, para a multidão. Cerveira Lobo fitava-o com uma anciedade
afflictiva.--Que se parecia ... e ia jurar que era elle!--quando um
realista convencionado e que estava no grupo, o major de Villa Verde,
disse com um desdem de achincalhação:
--Olha quem elle é! Oh que traste! que grande mariola! Forte malandro!
--Quem é? quem é?--perguntavam todos.
--É o Verissimo, foi furriel da minha companhia, andou com o Remexido,
e safou-se de Messines com o pret dos guerrilhas.
O Cerveira inclinou-se ao pedreiro e disse-lhe á orelha:
--Ouviste, ó Zeferino?
--Estou banzado!--murmurou o outro.
--Olha que espiga! 3 contos! hein?
--Raios parta o diabo!--disse o pedreiro, n'uma synthese condensada da
sua incommensuravel angustia.
Minutos depois, o padre Rocha encarava de frente o Cerveira, chamava-o
de parte e dizia-lhe:
--Está desenganado, meu amigo? Eu, para corresponder á confiança de
V. Ex.ª, impuz-me o dever de o salvar d'um roubo de tres contos, e da
vergonha de ser logrado por um impostor. O maior serviço que podemos
fazer ao snr. D. Miguel é entregar á justiça um infame que se serve
do seu sagrado nome para roubar os amigos do augusto principe. Snr.
Cerveira, vá para sua casa; e, quando eu lhe disser que é tempo,
então desembainhará a sua espada.
O Cerveira, abraçando-o:
--Honrado amigo, honrado amigo! Ainda os ha...

O Verissimo entrou na cadeia de Braga, e na madrugada do dia seguinte
foi transferido para a Relação do Porto.
O nome e appellidos que elle deu no governo civil eram verdadeiros:
Verissimo Borges Camêlo da Mesquita.[6]
Tinha nascido em 1806 em Alvações do Corgo, no Douro. O pai
chamavam-lhe o Norberto _das facadas_, quando já era velho, e meirinho
geral da comarca, em Villa Real. Uns diziam que a alcunha _facadas_ lhe
vinha de ter esfaqueado a mulher por ciumes; outros, de ter levado tres
facadas, na Campean, quando puzera cêrco a uns salteadores que
pernoitavam na estalagem d'aquella aldeia, nas vertentes do Marão. O
certo é que a quadrilha tinha sovado os aguasis, e o commandante da
diligencia, o meirinho geral, recolhera á villa em uma padiola.
Norberto Borges Camêlo tinha pedra de armas na casa de Alvações, uma
edificação do seculo XVII. Dava-se como descendente do bispo do
Algarve D. João Camêlo. Contava a origem do brazão da sua casa,
concedido ao seu sexto avô Lopo Rodrigues. Habituado a contar aos
Juizes de fóra e carregadores da comarca o facto provado por
incontestaveis pergaminhos, era convidado muito a miudo
disfructadoramente á exposição heraldica do seu escudo, que elle
fazia n'uma toada monotona de quem reza.[7]
O Verissimo era _Mesquita_ pela mãe, que não conhecera. Tambem florira
da cêpa illustre dos _Mesquitas de Villar de Maçada_; mas o Norberto,
achando-a em flagrante adulterio com um primo Pizarro, anavalhou-a
mortalmente, escondeu-se, fugiu com o Junot no regimento do conde da
Ega, e quando voltou, estava esquecido o caso.
Em 1827, o Verissimo estudava em Coimbra humanidades para seguir a
jurisprudencia. Era bom estudante, applicado e sério. Em 28 teve uma
vertigem politica. Fez-se caceteiro do partido dominante, quiz atacar na
Ponte a punhal os estudantes presos no Cartaxo como salteadores
assassinos. Perdeu o habito de estudar e a compostura de que fôra
exemplo. Em 29, abandonou a Universidade e assentou praça em
infanteria. Quando o Porto se fechou, era sargento aspirante e bravo. Em
uma das primeiras sortidas dos liberaes, foi ferido em uma perna; e,
apezar de côxo levemente, não quiz a baixa nem a reforma. Era um
bonito homem, rosto oval, olhos de rara belleza, nariz ligeiramente
aquilino. Diziam-lhe que era o vivo retrato de D. Miguel, aperfeiçoado
pelo desaire de coxear.
Depois da convenção, Verissimo Borges recolheu a Alvações de Corgo,
onde encontrou o pai n'um grande abatimento de tristeza e de recursos. A
sua lavoira de vinho era pequena. Privado do officio e malquisto como
ladrão, o representante de Lopo Rodrigues soccorria-se á beneficencia
de uma irmã, a D. Agueda, viuva d'um major de milicias que morrera no
ataque ao forte das Antas. O convencionado, n'aquella estreiteza de
meios, quiz voltar á fileira: mas o pai negou-lhe a licença,
arguindo-lhe a baixeza de sentimentos, em querer servir o usurpador, e
citava-lhe as côrtes de Lamego. O Verissimo, argumentando contra estas
côrtes, allegava que antes queria encontrar na casa de seu pai, em vez
das velhas instituições de Lamego, os modernos presuntos da mesma
cidade.
O Norberto gabava-se de que na sua geração, Camêlo liberal não havia
um só, e que a sua maldição pesaria como chumbo derretido sobre a
cabeça do filho que perjurasse a bandeira do throno e do altar.
A tia Agueda, a viuva do major, tinha pouco. Desde 1828 até 1833
gastara seis mil cruzados em festejar os natalicios e as victorias do
snr. D. Miguel com banquetes e illuminações que duravam tres noites,
n'um delirio de bombas reaes e foguetes de lagrimas, com adéga franca.
Mandava cantar _Te-Deum_ na egreja de Alvações assim que no paiz
vinhateiro soava a noticia de alguma victoria do exercito fiel. Ora, os
realistas, a contar por cada _Te-Deum_ de Alvações, entravam no Porto
ás quinzenas para sahirem por uma barreira e voltarem logo pela outra.
D. Agueda começava a desconfiar que o Deus de Affonso Henriques
voltára a casaca.
Restava-lhe pouco; mas não queria que o Verissimo se fizesse malhado.
Sacrificou-se á honra da familia, levou-o para casa, deu-lhe mesa
farta, e consentiu que o vadio se mantivesse regaladamente, de papo
acima, tocando flauta, a tresfegar em si o resto da garrafeira.
Aconselharam-na que ordenasse o sobrinho, visto que elle já tinha
exames de latim e logica. O Verissimo disse que sim, que queria ser
padre. Tinha-se esclarecido nos encargos do officio, observando a vida
socegada e farta dos parochos. Um seu parente, o abbade de Lobrigos,
tinha liteira, parelha de machos, matilha de cães e hospedes na sua
residencia episcopal. Outros, com menos rendas, eram ainda invejaveis;
um viver espapaçado em dôce mollêza, inoffensiva, com grande
estupidez irresponsavel, um regalado epicurismo. Verissimo achou que, se
não pudesse ser bom padre, havia de pertencer á maioria; e, se désse
escandalo, um de mais ou de menos não perturbaria a ordem das coisas.
Os seus amigos e parentes abundavam no dilemma.
D. Agueda fazia concessões á fragilidade do clero;--que seu sexto avô
tambem fôra bispo e pai de sua quinta avó, por Camêlos. O parente
abbade de Lobrigos, em confirmação das preclaras linhagens de coitos
sacrilegos, affirmava que a serenissima casa de Bragança descendia de
padres pelo pai de D. Nuno Alvares Pereira, que era prior do Crato, e
pelo avô, o padre Gonçalo, que fôra arcebispo de Braga; e que os
condes de Vimioso e Atalaya, e todos os Noronhas oriundos de certo
arcebispo muito devasso de Lisboa, e muitas outras familias da côrte
descendiam de prelados. Estas genealogias orientavam o Verissimo no
futuro do sacerdocio. Queria ser abbade, resalvando tacitamente certas
condições a respeito dos rebanhos e particularmente das ovelhas.
Em outubro de 1835 foi para Braga. Tinha trinta annos: sentia o cerebro
moroso na digestão da theologia, andava enfastiado e triste. Acaso
encontrou um camarada, sargento do mesmo regimento, o Torquato Nunes
Elias, que andava a estudar para procurador de causas. Eram
inseparaveis, identificaram-se n'uma intimidade de tasca e de alcouce. O
Verissimo nunca mais abriu compendio nem o outro um processo. D. Agueda
mandava regularmente a mezada, e perguntava-lhe quando cantaria a missa.
Em 1836 appareceu no Algarve a poderosa guerrilha de José Joaquim de
Sousa Reis, o _Remexido_, em S. Bartholomeu de Messines. Os dous
ex-sargentos alvoroçaram-se com a noticia e resolveram apresentar-se ao
formidavel caudilho. Verissimo pediu á tia uma quantia mais avultada
para pagar as ultimas despezas do sacerdocio. A velha mandou-lhe o
preço de uma vinha vendida e a sua benção. Os aventureiros partiram
para o Algarve. O general recebeu-os nos braços, e deu-lhes divisas de
capitães. Verissimo Borges escreveu ao pai, a dar-lhe parte do seu
heroico destino: que advogasse a sua nobre causa na presença da tia
Agueda, e lhe dissesse que elle não podia largar a espada vencida
emquanto visse no campo brilhar o ferro de um realista. Que o general
Sousa Reis estava destinado a repôr o snr. D. Miguel I no throno, ou
ser o ultimo a morrer em sua defeza; que elle e um seu amigo e camarada
tinham sahido de Braga juramentados a morder o pó onde cahisse o seu
general. Que eram já commandantes de companhias, e tinham duas
carreiras abertas--uma que levava á gloria, outra á sepultura,--que
tambem era uma gloria morrer pela patria.
José Joaquim, o _Remexido_, era um bem figurado homem de trinta e oito
annos. Nascera em Estombar, estudára para clerigo no seminario de Faro,
e distinguira-se em perspicacia e subtileza na percepção das
theologias. O amor inutilisou-lhe o talento applicado a um pacifico e
humanissimo destino. Viu uma esbelta môça de S. Bartholomeu de
Messines quando ahi foi prégar um sermão, sendo minorista. As serenas
visões do levita deslumbrou-lh'as a formosa algarvia. Não hesitou
entre o amor da humanidade e o culto egoista da familia. Casou, e de
homem estudioso e contemplativo, volveu-se lavrador, lidou rudemente nas
searas, e redobrou de esforços á proporção que os filhos lhe
multiplicavam o amor e os cuidados.
Insensivelmente compenetrou-se da paixão politica. N'esta provincia,
onde em 1808 estalou o primeiro grito contra o dominio francez, a
liberdade proclamada em 1820 abriu um abysmo entre duas facções que
por espaço de dezoito annos se despedaçaram. José Joaquim de Sousa
Reis alistou-se entre a clerezia de quem recebera as boas e as más
idéas, e manifestou-se em 1823 um ardente sectario das más,
perseguindo os affeiçoados á revolução do Porto. Em 1826 emigrou
para Hespanha, e voltando em 1828 extremou-se entre os aclamadores do
rei absoluto. D'ahi em diante, receoso das retaliações, não teve mais
uma hora de remançoso contentamento nem abriu mão da espada tão
affoita quanto cruel.
Logo que o duque da Terceira aportou com a divisão expedicionaria ás
praias da Lagoa, em 24 de junho de 1833, Sousa Reis com alguns
cumplices, foragiu-se nos reconcavos do Penedo Grande, cujas veredas
montanhosas conhecia. Deixou mulher e filhos, na primeira flôr dos
annos, inculpados das paixões de seu pai, fiados na generosidade dos
vencedores e na propria innocencia. A vingança fez reprezalias na
familia do fugitivo. A mulher e os filhos foram espancados pela tropa,
depois do roubo e do incendio da sua casa de Messines. O leão, como se
ouvisse bramir os cachorrinhos nas garras do tigre, irrompeu da caverna,
precipitou-se dos penhascaes á frente da sua alcatéa, e atacou
Estombar com irresistivel impeto. Estava ahi a sua familia sob a
pressão das bayonetas que a vigiavam como armadilha á queda do
guerrilheiro; mas a tropa não pôde resistir á furia de pai. Elle
atirava-se ás descargas, abrindo com a espada a vereda do seu ninho. Os
inimigos que o viram n'esse dia conservaram longo tempo a lembrança da
sua catadura transfigurada pela desesperação. E todavia era um homem
gentilissimo. Depois, senhoreou-se de povoações importantes do Algarve
e estendeu até ás fronteiras do Alemtejo os seus dominios. Moveram-se
contra elle muitos regimentos de primeira linha e de batalhões da
guarda nacional. Elle tinha adoecido de fadigas incomportaveis, e
descançava com algumas centenas de homens n'um desfiladeiro da serra,
chamado a _Portella da corte das velhas_. Ahi o atacou uma columna de
caçadores 5. O _Remexido_, a final, faltou-lhe a coragem de se fazer
matar. Viu talvez a mulher e os filhos, entre a sua agonia e as
bayonetas. Deu-se á prisão, e cinco dias depois era arcabuzado em
Faro.
O regimento em que eram capitães o Verissimo e o Nunes dispersou, e
elles, claro é, fugiram á maneira dos muito discretos e bravos
generaes de que rezam os fastos militares.
O pret das guerrilhas devia ser quantia diminuta, uma bagatella
ridicula, que não merecia a pomposa qualificação de ladroeira. Como
não tiveram tempo de fazer o pagamento, retiraram-se com o cofre nas
algibeiras. É o que foi, e a historia não póde dizer outra coisa.
Queria talvez o major de Villa Verde, o denunciante de Braga, que elles
andassem á cata das praças dispersas pelas montanhas, a repartir os
quatro vintens diarios e o vintem do municio!
Verissimo foi para Alvações e Nunes para S. Gens. O Norberto morreu
por esse tempo d'uma congestão cerebral; alguem diz que o esganaram na
cama dois malhados de Lobrigos contra os quaes elle tinha jurado em 28.
D. Agueda recebeu o sobrinho carinhosamente. A herança do pai estava
empenhada; foi á praça; sobejaram uns nove centos mil réis e a casa
com as armas, pagadas as dividas. O Nunes dizia-lhe da Povoa que andava
por lá miseravel, um piranga, na gandaia; que o pai dava-lhe um caldo
de feijões e o tratava como um cão vadio. Que, depois da partida do
Algarve, não tinha com quem praticar em Braga para solicitador, nem
tinha que vestir. O Verissimo chamou-o para Alvações com generosidade.
Vestiu-o, e dava-lhe meios para elle poder estudar em Villa Real, com
advogados miguelistas, que o estimavam muito.
A velha passava os dias a chorar entre o retrato do defunto major e o do
snr. D. Miguel das illuminações, que se parecia muito com o sobrinho.
No inverno de 1840, D. Agueda morreu de uma indigestão de castanhas,
complicada com interite chronica e saudades da realeza. Deixou ao
sobrinho a casa, as vinhas muito delapidadas; e o retrato do snr, D.
Miguel ás freiras de Santa Clara de Villa Real e mais dez moedas de
ouro com a condição de lhe accenderem quatro velas de cêra no dia dos
annos de sua magestade.
Verissimo viveu então largamente. Fez-se chefe de partido nas
redondezas de Alvações do Corgo, onde era conhecido pelo
_capitão-Verissimo_. Deitou cavallo e mochila; jogou rijo dous annos na
Feira de Santo Antonio em Villa Real, e perdeu tudo. O Nunes, que já
sollicitava causas na Povoa, repartia com elle dos seus proventos muito
escassos, porque o juiz e os escrivães faziam-lhe guerra implacavel, e
as partes fugiam d'elle.
O Verissimo sahiu de Alvações, onde não possuia palmo de terra; e,
como tinha boa forma de lettra, offereceu-se para amanuense a um
tabellião de Alijó. Ganhava tres tostões por dia e jantar. Como era
boa figura, a mulher do tabellião, uma trigueira de má casta, entrou a
comparal-o com o marido que tinha os dentes muito lurados e os olhos
tortos. Mas o tabellião viu as cousas pelo direito, e pôz o amanuense
na rua, e a mulher em lençoes de vinho, dizia-se. Verissimo conhecia o
capitão-mór de Murça, o Campos, um hebreu realista, muito abastado.
Offereceu-se-lhe para escudeiro e foi acceite com bom ordenado. O
capitão-mór era viuvo; mas tinha uma governanta fresca, d'uma fome de
peccado irritada pela indifferença judaica do amo em materia de
religião. O Verissimo tinha a fatalidade femieira do seu _Sosia_, do
snr. D. Miguel. O capitão-mór com o seu fino ôlho de raça, lobrigou
as sentimentalidades da rapariga. Pagou generosamente ao escudeiro, e
impôl-o. Voltou ao Douro, e procurou o amparo d'um realista poderoso, o
Antonio de Mello, de Gouvinhas, o pai do snr. Lopo Vaz, um grande
ministro liberal cheio de embriões de coisas. O fidalgo de Gouvinhas
nomeou-o feitor das suas quintas. Estava regalado; feitorisava pouco; o
fidalgo admittia-o ás suas palestras intimas de politica; mas um
sobrinho do Mello, um valente navalhista que chamavam em Coimbra o
_Malagueta_, ganhou-lhe odio, por ciumes de uma tecedeira chibante, uma
raparigaça de tremer, de quadris roliços, a Libania de Covas.
Travaram-se de razões. O _Malagueta_ correu sobre elle com um punhal.
Verissimo acovardou-se na sua posição dependente e despediu-se.
A Libania tinha cordões e umas moedas ganhadas com o pudor diluido no
suor do seu bonito rosto, a corso das algibeiras copiosas dos
vinhateiros. Seguiu-o para o Porto em 1844. O neto do bispo D. João
Camêlo, abriu uma escóla de primeiras lettras em Miragaya. Ao cabo do
primeiro mez, dava pontapés impacientes nos garotos, andava ralado,
não podia com aquella bestialidade da instrucção primaria. A Libania
queixou-se um dia de dôr de dentes. Foi uma inspiração. O Verissimo
resolveu fazer-se dentista, e foi estudar com o Pinac, á rua de Santo
Antonio, um bom homem. Andava n'este tirocinio, quando encontrou no
Tivoli, defronte da Bibliotheca, o Nunes. A Libania gostava muito de
resvalar pela _montanha russa_, dava umas risadas argentinas, batia as
palmas e queria montar os cavallos de páo que giravam no jogo da
argolinha.
Quando se encontraram, o Torquato vinha pedir-lhe dinheiro. O pai tinha
morrido deixando a casa ao outro irmão. Estava casado, e tinha dous
filhos. Queria ir tentar a fortuna ao Brazil, trabalhar em mangas de
camisa, se fosse necessario. O Verissimo respondeu-lhe que o unico favor
que lhe podia fazer era tirar-lhe um dente de graça. Confidenciou-lhe
as suas miserias mais intimas; que aquella boa rapariga tinha gastado
com elle quinze moedas e vendêra o seu oiro; mas, tão generosa, tão
honrada que nunca lhe vira no rosto uma sombra de tristeza. Que estava
resolvido a ir estabelecer-se como dentista na provincia, logo que
pudésse comprar o estojo que custava 12$000 réis, e não os tinha.
--Se os não tens--disse o Torquato--minha mulher tem um cordão que
pesa tres moedas; para mim não lh'o pedia; mas para ti vou buscal-o
ámanhã.--E accrescentou, de excellente humor;--Deus permitta que na
terra onde te estabeleceres sejam tantas as dôres de dentes que não
tenhas mãos nem queixos a medir.
Sahiram alegres do Tivoli. Sentiam-se bem aquellas duas organisações
esquisitas. Havia ali duas almas que se amavam devéras, dous naufragos
a quererem chegar um ao outro a mesma taboa de salvação. É n'estes
esgotos sociaes que ainda, uma vez por outra, se encontram Pilades e
Orestes.
O Verissimo morava atraz da Sé, na rua da Lada, uma casa d'um andar,
muito empenada, com o peitoril de ferro de uma unica janella
desencravado de uma banda, e uma porta viscosa e negra como a bôca de
um antro. Cearam todos. Havia cabeça de pescada cosida com cebolas,
sardinhas fritas e pimentões. O Nunes foi buscar duas garrafas da
companhia de tostão á rua Chã, e enfiou no braço uma rôsca de
Vallongo que comprou na bodega da Caçoila, uma esmamaçada com cordões
de ouro que frigia peixe á porta e dava arrôtos.
Cearam n'uma esturdia de rapazes, como em Braga, nove annos antes, na
tasca do Catrambias, na rua do Alcaide. A Libania de Covas muito
laraxenta--que levasse o diabo paixões, e mais quem com ellas medrava;
que, em se acabando o dinheiro, fazia-se cruzes na bôca; mas que deixar
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