A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 02

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--Você é um safado. É o que lh'eu digo. Não guarda palavra em
contracto que faça. Eu já devia conhecêl-o. Faz para as matanças
seis annos que você justou comigo uma porca por quatro moedas e foi
depois vendel-a ao Antonio do Eido por mais um quartinho. Lembra-se, seu
alma de cantaro?--E n'uma irritação crescente:--Se você não fosse um
velho, dava-lhe com este machado na caveira.--É muito esbandalhado nos
gestos, com sarcasmo:--Guarde a filha que eu hei de achar mulher muito
melhor que ella pelo preço, ouviu você? que leve o diabo a burra e
mais quem a tange, como o outro que diz. Livrei-me de boa espiga. De
você não póde sahir cousa boa; e mais da mãe que ella teve, que já
lá está a dar contas...
E o lavrador com extremada prudencia e na pacatez de um grande espirito
de ordem e paz:
--Você não tem que desfazer na minha filha, ouviu?
--Ouvi, que não sou mouco. Ainda hontem a topei na bouça do Reguengo
de palestra com o estudante de Villalva. Espere-lhe a volta. A
songuinha, que não olha direita p'ra um home, que anda alli esmadrigada
de cabeça ao lado, lá estava de mão na ilharga a dar treta ao
estudante, aquelle páo de encher tripas, que ha-de ser mesmo um padre
d'aquella casta! Olhe se elle lh'a quer para casar... Pois não
quizeste?--e arregaçava a palpebra do olho esquerdo mostrando o
interior inflammado com uns pontos amarellos, purulentos, indicativos de
insufficiente lavagem, um tregeito de garotice.--E continuava:--Quem lhe
déra dois pontapés, n'elle a mais n'ella!--e muito rubro de colera
dava pancadaria nas pedras, nas raizes nodosas dos castanheiros, e
mettia grande terror no animo do Simeão quando faiscava lume nos
calhaos com a percussão do machado.
Esta situação promettia acabar pela fuga prudente do pai de Martha, se
o estudante de Villalva não assomasse ao fundo do castanhal com uma
matilha de coelheiras que ladravam a um porco muito erriçado, que as
esperava com o focinho de esguelha, bufando e grunhindo. O caçador
chamava os cães, assobiava, fazia uma bulha convencional para que a
Martha o ouvisse.
Elle não tinha visto o pedreiro; os cães é que o viram e deixaram o
porco destemido para atacarem o homem, com uma velha birra que lhe
tinham. O Zeferino, n'outra occasião, segundo o seu costume,
desprezaria a arremettida da matilha; mas, n'aquella conjunctura de odio
ao caçador, esperou a canzoada com o machado em riste, empunhava o cabo
com as mãos cabelludas, e fazia, com o corpo inclinado, avanços
provocadores. José Dias chamava os cães obedientes; mas o Zeferino,
muito azedo, engelhando na cara uns tregeitos de basofia, dizia
sarcastico:
--Deixe-os vir, deixe-os vir, que o primeiro que chega faço-lhe saltar
os miolos á cara de você.
Que se accommodasse, conciliava pacificamente o estudante--que os cães
não tinham outra falla. E o pedreiro insistente, muito arrogante:--que
venham para cá, e mais o dono, o caçador de borra! e dizia palavradas
canalhas, muito damnado por que vira apparecer a Martha na varanda, a
fazer meia com a cesta do novello no braço.
--Ó snr. Zeferino, falle bem, ponha côbro na lingua--advertiu o José
Dias com uma serenidade de máo agouro--quando eu lhe ladrar então se
fará com o machado para mim. Os cães ladraram-lhe, eu chamei-os, que
mais quer você, homem? Siga o seu caminho.
--O meu caminho? o meu caminho é este--disse batendo com o machado na
terra.--Quer você mandar-me embora d'aqui? Ora não seja tolo.
A presença da môça enfurecia-o; contra o seu costume, sentia-se
valente. O amor, como um vinho indigesto, dava-lhe a coragem interina
dos bebedos, e berrava:
--Se é homem, venha para cá! Você manda-me sahir d'aqui, seu pedaço
d'asno?
E o estudante, já amarello:
--Eu não o mando sahir d'ahi, nem lhe consinto que me chame asno. Olhe
que eu largo a espingarda, tiro-lhe das unhas o machado e dou-lhe com
elle.
--Ó alma do diabo!--exclamou o pedreiro crescendo para o caçador.
N'isto, um dos cães, atravessado de cão de gado e cadella coelheira,
que aprendêra a morder nas occasiões rezoaveis, atirou-se-lhe ao
assento das calças de estopa e puxou até lhe descobrir a epiderme da
nadega esquerda.
O pedreiro floreava debalde o machado; os golpes cortavam o ar, e nem de
leve apanhavam o cão, que dava pulos de esconso, atacando-o pela nadega
direita. A restante matilha fraternisára com o outro e juntavam os
focinhos num complexo de dentuças minacissimas com os olhos sanguineos
cravados nos movimentos do machado. José Dias, no entanto, espancava a
cainçada, e Martha não sabia se havia de descer para ajudar o pai a
accommodar a bulha, ou se havia de cahir na varanda a rir-se. Ella
sentia-se envergonhada do espectaculo que exhibia a calça esfarrapada;
mas não havia pudor que resistisse áquillo. O pedreiro sabia que o
cão lhe chegara um pouco á calça; mas, no calor da lucta, não
sentira esfriar-se-lhe a pelle descoberta, nem se lembrou que andava sem
ceroulas. Depois, como sentisse uma frescura extraordinaria na cutis,
exposta ao contacto da atmosphera, levou a mão conscienciosamente ao
sitio, e achou em si aquelle specimen obsoleto do Adão primitivamente
innocente. No entanto, Martha, não podendo já comsigo, entalada de
riso, fugira da varanda e atirára-se de bruços sobre a cama, a
rebolar-se, a espernear como se tivesse uma colica. O estudante
retirou-se assobiando á matilha ainda refilada ás nadegas do homem. O
Simeão coçava-se com as dez unhas e dizia velhacamente commovido:
--Mêtta-se ahi na córte da egua que eu vou-lhe buscar umas calças,
seu Zeferino, ou dá-se-lhe ahi quatro pontos p'ra remediar. Dê cá as
calças, e não se afflija...
O pedreiro respondeu-lhe porcamente e de modo tão trivial, que o outro
lhe replicou:
--Vá você!
E metteu-se em casa como quem receava contra-replica menos suja e mais
dura.


III

O Zeferino era afilhado do morgado de Barrimáo, um major de cavallaria,
convencionado em Evora-monte, miguelista intransigente, mas cordato.
Vivia no seu escalavrado solar com um irmão egresso benedictino. Fr.
Gervasio, muito cevado e inerte, continuava em casa a sua missão
monastica. Era um contemplativo. Não lia senão no livro da Natureza.
Se não dormia, estrumava o seu vegetalismo com muitos adubos crassos de
toicinho e capoeira, com um grande farfalhar de mastigação, porque
dispunha de dentadura insufficiente. Tinha outro signal ruidoso de
vida--era um pigarro de catarrhal chronica, arrancado dos gorgomilos com
tamanho estrupido que parecia ao longe o grito rouco de um estrangulado,
no 5.° acto de um drama de costumes. A velha creada da cozinha, muito
flatulenta, nunca pudéra affazer-se ás explosões d'aquella garganta
escabrosa de mucos empedrados. Quando o grasnido asperrimo de pavão lhe
feria os ouvidos, reboando nos concavos tectos dos salões, a mulher
estremecia e raras vezes deixava de resmungar:--Que mêdo! credo! diabos
leve a esgana do home, Deus me perdôe!
De dois em dois mezes appareciam em Barrimáo dous egressos de
Cabeceiras de Basto, companheiros de noviciado de fr. Gervasio.
Juntavam-se os tres amigos em uma intimidade de palestras saudosas. Com
intercadencias mudas de poetica tristeza, commemoravam os seus
conventuaes fallecidos, rezavam juntos pelos seus breviarios
benedictinos; depois, a passo cadencioso, claustral, iam para a mesa com
o recolhimento prescripto pela Regra do patriarcha. Ahi, pegava de puxar
por elles a natureza objectiva, e dava-lhe horas de salutar esquecimento
do passado irreparavel. Gorgolejavam copiosamente os vinhos
engarrafados, traiçoeiros, da companhia, em que fr. Gervasio derretia a
prestação; porque, de resto, a mesa do mano morgado era farta e a sua
bolsa generosa para as moderadas necessidades do egresso.
O major Zeferino Bezerra de Castro não tinha grande casa; mas, como era
solteiro e quinquagenario, fazia de conta que os bens lhe haviam de
sobejar á vida, vendendo os allodiaes e empenhando, se necessario
fosse, o morgadio, que era insignificante. Concorria com vinte moedas
para as miseraveis 1000 libras que o snr. D. Miguel recebia annualmente
de donativos de monarchas e dos seus partidarios portuguezes.[1]
Festejava dispendiosamente os natalicios do rei, convidando a jantar os
realistas notaveis da comarca; e, contando os annos da proscripção, ia
calculando a patente que lhe competia quando o soberano legitimo se
restaurasse. Correspondia-se com alguns camaradas, esquecidos e
atrophiados nas aldeias, o general Povoas, o Bernardino, o Magessi, o
Montalegre, o José Marcellino. Mas as cartas quem lh'as redigia era o
mano frade, recheando-as de trechos de politica de pulpito--resultado
das suas digestões morosas, contemplativas--que serviram de ornamento
nas columnas do _Portugal velho_, periodico miguelista da época.
N'aquelle anno, por meado de 1845, espalhára-se no ambiente dos
realistas, como um aroma de jardins floridos, o boato de que vinha o
snr. D. Miguel. O seu enorme partido sentia-se palpitar no anceio
d'aquelles vagos anhelos que estremeciam as nações pagans ao
visinhar-se o prophetisado apparecimento do Messias. Affirmam-no os
Santos Padres, e os padres do Minho asseveravam o mesmo a respeito do
principe proscripto. Fr. Gervasio recebia do alto da provincia cartas
mysteriosas d'uns padres que parochiavam na Povoa de Lanhoso e Vieira.
Era alli o foco latente do apostolado. N'aquelles estabulos de
ignorancia supersticiosa é que devia apparecer, pelos modos, o presepio
do novo redemptor. Citavam-se prophecias apocalypticas de frades que
estavam inteiros sob as lages das claustras. Convergiam áquelle ponto
missionarios de aspectos seraphicos, olhando para as estrellas como os
magos e os pastores da Palestina. O frade mostrava as cartas ao irmão e
dizia-lhe: «Elle ha coisa...»
--Mas muito grande!--corroborava o major com cabeçadas affirmativas
muito exageradas.
--A Russia move-se, é o que é--affirmou fr. Gervasio, correlacionando
a iniciativa de Lanhoso com a propaganda autocratica da Russia.
Em um d'estes dialogos, em que havia desabafos, exuberancias de jubilo,
interveio o Zeferino das Lamellas, o pedreiro afilhado do major. Vinha
contar o caso do Simeão de Prazins e a péga que teve com os cães do
Dias de Villalva. Mostrava a calça remendada--que por pouco lhe não
entravam no coiro os cães--dizia, e protestava vingar-se. O egresso
pacificava-o; que deixasse lá a rapariga e mais o estudante; que se
fosse preparando para desembainhar a espada de seu pai em defeza do
throno e do altar. E o major:
--Estamos chegados a ellas, Zeferino.
E o pedreiro, esfregando as mãos coreaceas, que ringiam como duas lixas
friccionadas:
--A elles, snr. padrinho! A espada vai-se amolar... Vou pedil-a ao
velho!
O pai de Zeferino, o Gaspar das Lamellas, tinha sido alferes do 17 de
linha; e, em 1834, como o perseguissem os liberaes do concelho por
pancadaria e testemunhos falsos nas devassas de 28, andou foragido
alguns mezes. Sequestraram-lhe os bens; e o filho que já era muito
barbado e não tinha modo de vida, fez-se pedreiro. Depois, applacadas
as furias dos vencedores e restabelecida a justiça, restituiram ao
Zeferino as terras devastadas. O ex-alferes sahiu do seu esconderijo, e
recolheu-se a casa com a espada muito cheia de verdete, dizendo que
havia de laval-a no sangue dos malhados. Em 1838, dia de natal,
embebedou-se despropositadamente e sahiu para a rua a dar vivas ao snr.
D. Miguel. Outros piteireiros, do mesmo credo, e affectos ás velhas
instituições, responderam aos vivas com um enthusiasmo homicida. O
Gaspar foi buscar a espada, cingiu a banda sobre a niza de saragoça,
poz a barretina com os amarellos muito oxidados, e, á frente d'um grupo
de jornaleiros e garotos, caminhou para a cabeça do concelho afim de
offerecer batalha campal ás auctoridades. Além da espada do caudilho,
havia na jolda tres espingardas reiunas; o restante eram foices de
gancho encavadas em grossas varas. Um porqueiro colossal floreava uma
lamina brunida da faca de matar os cevados. A guerrilha, já engrossada
por outros bebedos encontrados nas tavernas do transito, chegou â porta
do morgado de Barrimáo, e a clamorosos brados elegeram-o general. Já
se ouvia tocar a rebate em diversas torres, á discrição dos garotos
destacados. O morgado mandou-lhes dar vinho, e que debandassem, que
recolhessem a suas casas, porque iam levar grande tareia inutilmente. O
egresso veio a uma janella que abria sobre o atrio, e tentou
dissuadil-os do desvario que mais parecia um excesso de vinho que de
patriotismo--dizia. Não fez nada. Cada vez mais picado, o alferes,
faminto de vingança, bradava que estivera quinze mezes escondido, que
lhe tinham estragado a sua casa, e que ia pedir contas aos Trêpas e aos
Andrades de Santo Thyrso, uns malhados, cujas cabeças havia de deixar
espetadas em pinheiros.
Na villa ouvia-se o toque a rebate. Dizia-se que era incendio. Alguns
vadios atravessaram a ponte muito açodados em direcção ás freguezias
d'onde soavam as primeiras badaladas. O regedor de Villalva, o pai do
José Dias, descia esbaforido do monte do Barreiro a dar parte á
auctoridade. Assim que se espalhou a nova em Santo Thyrso, já se ouvia
alarido de vozes. A garotagem dava vivas, e guinchava uns apupos
prolongados que punham eccos nas margens tortuosas do rio Ave. Os
liberaes de Santo Thyrso rodearam o administrador, armados, com os seus
criados. Os negociantes com medo de saque tambem sahiram de clavinas. As
familias nas janellas faziam clamores, n'uma grande desolação.
N'aquella villa lembrava ainda a mortandade do tempo do cerco do Porto,
e havia velhos que presencearam outra semelhante no tempo dos francezes.
O regedor de Villalva dissera que o commandante da guerrilha era o
morgado de Barrimáo. Esta noticia fez augmentar o pavor, porque, se o
morgado, serio, prudente e bravo, acceitára o commando dos populares é
porque a cousa era séria. Os homens de negocio depuzeram as armas,
enfardelaram os valores e fugiram, caminho do Porto. Os proprietarios,
os empregados publicos, os officiaes de justiça, alguns que haviam
militado e emigrado, desceram á ponte armados em numero de oitenta.
Outros seguiram vereda differente para passar o rio. A guerrilha cuja
vozeada se aproximava, no trajecto de uma legua, pegou a sua febre a
mais de trezentos homens. Era um domingo de festa solemne, consagrado á
descida do Filho de Deus, para applacar os barbaros odios do genero
humano:--uma grande alegria que passaria despercebida, se o vinho não
preparasse as almas a comprehendel-a e sentil-a. Depois, muito
communicativa, como se vê. Gaspar das Lamellas emborracha-se ao jantar
e faz brindes ao Menino Jesus e ao snr. D. Miguel I. Pica-lhe na caneca,
pungem-o saudades do rei, e sahe para o terreiro a dar-lhe _vivas_.
Outros vinhos em ebulição respondem-lhe n'um grito de sinceridade
compacta. Trava da espada, que se tingira no sangue de tres batalhas á
volta do Porto; entra com elle a convicção em delirio acrisolada pela
allucinação da embriaguez. E o arrojo temerario dos grandes guerreiros
o que ó senão uma embriaguez de gloria, quando não é uma embriaguez
de genebra? Nas guerras civis portuguezas houve ahi um bravo soldado de
fortuna que, no vigor dos annos, ganhára as charlateiras de general e
uma corôa de conde. Os seus camaradas, mais retardados na carreira por
causa da abstinencia, diziam que elle nunca sahira victorioso de
campanha onde não entrasse bebedo. Este general, ao declinar da vida,
casado e abstemio, não deu uma pagina gloriosa á sua historia,
presidiu sem iniciativa, militar nem politica á Junta Suprema do Porto,
e fechou o cyclo das suas façanhas a parlamentar em Vieira com o padre
Casimiro, o _General Defensor das cinco chagas_.
Também no cerebro vinolento do alferes das Lamellas rutilavam os
relampagos da gloria quando, a brandir o gladio ferruginoso, descia, na
vanguarda da guerrilha, o outeiro sobre jacente á Ponte de Santo
Thyrso. Á entrada da ponte de páo havia taverna, com as prateleiras
alinhadas de garrafas da Companhia, com rotulos.
A multidão parou, avistando gente armada que descia a calçada d'além,
ao nivel da quinta do mosteiro de S. Bento. O taverneiro, muito
caloteado d'essa vez, disse ao commandante, ao Gaspar, que não cahisse
em se metter á ponte.
--Vocês vão cahir ahi n'essa ponte como tordos, o os que não cahirem
tem de largar os sócos a fugir--avisava, porque sabia que os de lá
eram _têzos_, e vinham todos armados.
O cabecilha tinha o seu vinho quasi digerido; a bravura começava a
ceder ás reflexões sensatas do taverneiro; mas o seu estado maior, uns
facinoras da quadrilha que tres annos antes infestara as encruzilhadas
da Terra Negra e Travagem, não transigiam, e forçavam-o a beber copos
de aguardente.--Que o primeiro que mostrasse os calcanhares ia malhar da
ponto abaixo!--protestavam os velhos salteadores do Minho, batendo com
as cronhas no balcão.
Entretanto, o administrador do concelho com dous empregados inermes
atravessava a ponte. A guerrilha, estupefacta da audacia, esperava-o
n'uma attitude pacifica, estupida, um retrahimento de covardia,
olhando-se uns para os outros e todos para o alferes. Elle, empurrado
pelos valentes, collocou-se á frente, na bocca da ponte, com a espada
nua. O administrador chegou muito de passo e perguntou se estava alli o
snr. morgado de Barrimáo, que desejava fallar-lhe.
--Que não estava; eu sou o chefe--disse o Gaspar.
--Logo me pareceu que um homem sério, como o morgado, não estaria á
frente d'este bom povo enganado--ponderou a auctoridade.--E vocemecê
quem é?--perguntou ao chefe.
--Que era o alferes das Lamellas, bem conhecido em toda a parte; que
perguntasse aos malhados de Santo Thyrso, a esses ladrões que o
perseguiram e lhe roubaram os seus bens.
O administrador, um bacharel, de cabelleira á Saint-Simon, era
discursivo e não perdia lanço de eloquencia em casos d'um romanesco
medonho. A torrente do rio rugia quebrada pelo triangulo dos pegões.
Uma rica e funebre paysagem, cortada de um lado pelos cataventos que
ringiam nas cristas das torres do mosteiro, e do outro pela matta
verde-negra, erriçada de pinheiros gementes. Um pittoresco cheio de
suggestões, d'uma palpitação cyclopica. Depois o enorme auditorio,
trezentas cabeças, fluctuando com as boccas muito escancaradas n'uma
bestialidade feramente spasmodica de lobos espantados por um archote
acceso. O meio era demosthenico, inspirativo. Borbotou-lhe a gôlfos um
palavriado discreto, aconselhando a turba a retirar-se _aos seus
apriscos_, á honrada labutação _dos seus mesteres_, e a não
perturbarem com _demagogias a pacificação dos animos e a sacratissima
inviolabilidade das instituições_. Quando o funccionario fechou a
parlenda, um dos mais bebedos, quer por chalaça, quer por insufficiente
comprehensão dos principios politicos da auctoridade, atirou o chapéu
ao ar e exclamou: «Viva o snr. D. Miguel I, rei de Portugal!»
A auctoridade ia replicar; mas a gritaria abafou-o. Elle voltou as
costas á canalha, e foi-se com bons exemplos de oradores antigos. Os
liberaes, logo que o viram retroceder, entraram na ponte de madeira com
um sonoro estrondo de marcha cadenciada.
Capitaneava-os um escrivão de direito, dos 7500, cavalleiro da Torre e
Espada, o Lobato, que pedira baixa de tenente no fim da campanha.
Outro bravo, o ex-sargento Lopes, que era guarda-chefe dos tabacos,
tinha pedido vinte homens, e atravessára com elles o Ave, na revolta do
rio, sem ser visto, na bateira do José Pinto Soares. Elle não podia
levar a bem que aquelles patêgos se retirassem sem uma sova pela
retaguarda e outra pela frente. Contava com a debandada pela ladeira das
mattas, e promettia, lá do alto, escorraçal-os de modo que elles se
espetassem entre dois fogos. Os seus vinte homens eram soldados com
baixa, guardas do tabaco, e socios aposentados das quadrilhas de
1834--um mixto de politicos, de ladrões e martyres das enxovias.
Os quatro facinoras da horda do alferes, quando viram a marcha firme e
solemne dos de Santo Thyrso,--é agora, rapazes!--exclamaram,
desfechando as espingardas. Os populares que as tinham, descarregaram as
suas, e avançaram, ponte dentro, n'uma arremettida impetuosamente
esbandalhada, de rodilhão. Uma das balas prostrára um arrieiro da
primeira fila dos liberaes; havia mais alguns feridos que se amparavam
gementes ás guardas da ponte. O bravo do Mindello viu cahir morto o seu
homem, e, contendo a furia das fileiras n'uma disciplina rigorosa, deu a
voz da descarga á primeira, e mandou abrir passagem á immediata, que
sustentava o fogo em quanto a outra carregava as armas.
Os pelouros cortavam fundo pelas carnes da populaça. Viam-se homens que
fugiam a coxearem, atiravam-se ás ribanceiras, escabujando em arrancos
de morte. Os que não tinham espingardas e ainda os que as tinham sem
cartuchame, pegavam dos tamancos e galgavam socalcos, buscando o refugio
dos pinhaes e carvalheiras.
O alferes sentiu um choque duro de coisa que lhe contundia as costas e
lhe apertava o pescoço. Era o Retrinca de S. Thiago d'Antas, o mais
feroz da sua malta, que se amparava n'elle, quando cahia varado por um
pelouro. Este espectaculo trivial não aterrava o soldado de Ponte
Ferreira, das Antas e da Asseiceira; mas dava-lhe as antigas pernas que
o serviram n'essas gloriosas batalhas. Tinha cincoenta annos, e fugia
ganhando a dianteira aos garotos do seu bando destroçado. Porém,
quando elle escalava a ladeira barrenta que se precipita ao sopé do
monte, desciam em saltos de bezerros mordidos por vespereiros os seus
homens, n'um turbilhão, acossados pelo tiroteio da companhia do
ex-sargento Lopes--uns barbaçudos que pareciam gigantes no tôpo da
collina, e davam uns berros clangorosos imitantes a mugidos de bois. O
dia de juizo!
O Gaspar arripiou carreira e desfilou por uma varzea alagada que ia
esbeiçar com o rio. Como a banda do alferes vermelhava ao longe, e a
espada a prumo no punho lhe dava uma caracterisação geitosa e
provocante para alvejar as espingardas, as balas sibilavam-lhe por
perto, chofrando nos pantanos. Alguns homens perseguiam-o chapinando no
lameiral, porque o chefe dos tabacos, o Lopes, dizia-lhes: «Ó
rapazes, vêde se mataides aquelle diabo que é o cabecilha!» Os mais
velleitos levavam-o esfalfado, cambaleando, atortemelado, quando o viram
desapparecer de subito entre uma espessa moita de platanos. D'ahi a
instantes, abeirando-se á ourela do rio, viram a barretina e a niza de
saragoça sobre uns comoros hervecidos; e, a distancia de dez varas,
aquelle bebedo immortal atravessava o rio a nado, n'uma tarde de
dezembro, com a espada nos dentes, e a banda a tiracollo.
--Ó alma do diabo!--dizia o Patarro de Monte Cordova, cevando a arma
com zagalotes para lhe atirar.--Vou matar aquelle pato bravo!
E o mais novo dos quatro, um imberbe que tinha pai:
--Não lhe atire, ó tio Patarro! É um velho, coitado! Não lhe vê os
cabellos brancos? Aquelle homem não se deve matar. Elle vai morrer
afogado antes de chegar á outra banda. Verá. Que raio de amizade elle
tem á espada! Aquillo é que é!
A meio do rio, onde a veia d'agua resvalava mais impetuosa, deixou-se
derivar sem esforço de natação. Mal bracejava. Depois, o Ave
espraiava-se em murmurios de lago dormente, muito barrento, e deixava-se
apégar. O alferes, com agua pela cinta, desatascou-se dos lamaçaes
d'além; e, horas depois, repassando o Ave na Ponte da Lagoncinha, e,
vencidas duas leguas de chafurdeiros e barrocas, entrava na sua casa das
Lamellas, bebia um grande trago de genebra, e, floreando a espada,
bradava: «Viva o snr. D. Miguel I!»
Depois, sobreveio-lhe um rheumatismo articular, e ficou tolhido.
Sete annos passados, quando todas as aldeias do Minho conclamavam D.
Miguel, elle ainda vivia, mas entrevado n'um carrinho, e chorava, em
impotentes arquejos do corpo paralytico, porque não podia amolar a
lamina da espada nos ossos dos malhados.
Tinha-a diante dos olhos pendurada n'uma escapula com o boldrié e a
banda. Ás vezes, depois de beber, punha-se a olhar para ella com os
olhos envidraçados de lagrimas, e pedia que a mettessem na sua
sepultura, que o enterrassem com ella. E enterraram. Espera-se que o
esqueleto d'este legitimista, com as phalanges esburgadas e recurvas no
punho azevrado da espada, resuscite, ao ulular da trombeta, na
resurreição geral das Legitimidades. Ponto é que a Russia se
môva--como dizia o frade de Barrimáo.

[Nota de rodapé 1: Um historiador moderno disse que D. Miguel em 1855
recebia setenta contos annuaes de donativos. Provavelmente deu causa a
esta liberalidade de cifras um lapso do snr. Joaquim Martins de Carvalho
que a pag. 254-255 dos seus _Apontamentos para a Historia
contemporanea_, transcreveu de uma carta de Lourenço Viegas o seguinte
periodo:... "Os rendimentos de el-rei compõem-se das 600 libras que vem
de Lisboa da _commissão alimenticia_, 1.000 francos mensaes que com
toda a exactidão lhe manda o conde de Chambord. 5.000 francos que
annualmente lhe manda o _duque de Modena_ e 6.000 francos do _imperador
Fernando d'Austria_, tambem annuaes, mas sem época fixa, junto a alguns
extraordinarios da provincia do Minho, fazem subir a renda annual a
400.000 francos, e esta chega apenas para a despeza e economia
domestica." _Chegando apenas para a despeza domestica_ de D. Miguel,
72:000$000, quanto lhe seria necessario para as despezas de fóra? Um
dos zeros do snr. Martins de Carvalho deve passar para a direita do 4, e
reduzir a annuidade do principe a 7.200$000 réis ou 40.000 francos.]


IV

Do alto Minho continuavam as noticias alegremente agitadoras. O
Christovão Bezerra, ex-capitão mór de Santa Martha de Bouro, escreveu
ao seu parente de Barrimáo. Dizia-lhe que constava que o snr. D. Miguel
estava no seu reino, e--o que mais era--muito perto d'alli. Que não se
podia explicar mais pelo claro sem ter a certeza de que seu primo
entendia a cifra de communicação entre os membros da ordem de S.
Miguel da Ala, instituida pelo snr. D. Affonso Henriques e renovada
ultimamente pelo monarcha legitimo--explicava. O major Bezerra era
commendador da ordem e conhecia a cifra:--que escrevesse francamente. E,
desconfiando do correio, mandou a Santa Martha de Bouro o afilhado, o
filho do alferes Gaspar, com uma carta muito importante. O pedreiro, a
impar de soberba por tal mensagem, posto que não participasse do
segrede do padrinho que era discreto, disse ao pai:
--Ou eu me engano, ou o snr. D. Miguel está por ahi, não tarda...
O alferes sentiu uma descarga electrica na columna vertebral e
convulsionou-se extraordinariamente. Fazia lembrar phenomenos que se
contam de movimento galvanico nos paralyticos, colhidos de improviso
pelo terror ou pela exultação; mas o Gaspar, como só tinha o esophago
desempedido, bebeu, com a escorrencia absorvente d'um olho-marinho,
muita aguardente, e desatou a berrar o _Rei-chegou_.
O filho, com a discrição propria d'um agente secreto da restauração
realista, zangou-se com o berreiro civico do pai e perguntou-lhe se
estava bebedo. O velho enthusiasta, ferido no seu coração de vassalo e
de progenitor, teve um honrado intervallo lucido, quando lhe replicou:
--Se eu não estivesse aqui tolhido, respondia-te, malandro!
Deitou o albardão á egua e partiu para terras de Bouro o Zeferino.
Quando passava defronte da casa do Simeão, em Prazins, olhou de
esguelha, por debaixo da aba do chapéu, para o lavrador que estava
apondo os bois ao carro, e regougou um arrastado pigarro de goelas
encatarrhoadas; e, dando de espora á andadeira, deixou cahir o pão
ferrado ao longo da perna. «Qualquer dia, estou-te em cima!» dizia de
si comsigo, ladeando a bêsta em corcovos chibantes. O Simeão, quando o
perdeu de vista, murmurou:--Valha-te o diabo, banaboia!
O ex-capitão mór de Santa Martha respondeu ás perguntas do primo de
Barrimáo; e, como o portador se recommendou na qualidade de afilhado do
fidalgo e filho d'um alferes que commandára o ataque de 1838 sobre
Santo Thyrso, o Christovão Bezerra tratou-o muito bem e pediu-lhe
noticias d'esse ataque a Santo Thyrso que elle não conhecia. O pedreiro
contou a façanha do pai, a nadar, com a espada nos dentes; e o fidalgo
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