A brazileira de Prazins: scenas do Minho. - 03

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quando soube que elle estava entrevado, disse pungidamente: Mal
empregado!--que um general romano fizera o mesmo e que o levasse ás
caldas de Vizella á bomba quente.
Como estava conversando com o filho de tamanho realista, fez-lhe
confidencias:--que D. Miguel estava perto d'alli; mas não recebia
ninguem porque os malhados já o espreitavam em Portugal. Que a
acclamação havia de começar em terras de Bouro, e estender-se até
Lisboa; e que estivesse certo que el-rei nosso senhor lhe daria a
patente do pai ou talvez mais. O pedreiro esfregava os joelhos com as
mãos e bamboava-se hilariante na cadeira como um idiota. Tirou da
algibeira da vestia uma saquita de missanga, onde tinha tres peças e
sete pintos. Pôz o dinheiro com estrondo deante do Bezerra,--que o
mandasse a el-rei para as suas despezas; que eu, accrescentou, ha quatro
annos que lhe dou uma moeda d'oiro por anno; elle ha-de saber pelo rol
quem é o Zeferino das Lamellas, por que o padre Luiz de Sousa Couto, do
Porto, disse-me que el-rei conhece de nome todos os que lhe mandam
dinheiro, O fidalgo recusou:--que não estava auctorisado a receber
donativos, nem os julgava por em quanto necessarios, por que em poder do
Dr. Candido, de Anêlhe, estavam cincoenta contos, dados pela senhora
infanta D. Isabel Maria, para pôr a procissão na rua.
A carta de que Zeferino foi o ditoso portador era mais explicita.
Contava que D. Miguel estava escondido na residencia do abbade de S.
Gens de Calvos, no conselho da Povoa de Lanhoso, o reverendo Marcos
Antonio de Faria Rebello.[2] Que pouquissimas pessoas o tinham visto,
porque sua magestade só se mostraria aos seus amigos fieis quando
entrassem pela Galliza os generaes estrangeiros que se esperavam, uns do
antigo exercito carlista, outros de Inglaterra.
Esta noticia dos generaes estranhos beliscou a vaidade nacional do major
Zeferino Bezerra. Parecia-lho impossivel que o principe proscripto não
confiasse na pericia e lealdade do Santa Martha, do Victorino, do Povoas
e Bernardino. Era uma ingratidão, dizia elle ao mano frade, que
accrescentou:--e uma bestialidade. El-rei deve saber o que lhe valeram o
Bourmont e o Pussieux e o Mac-Donnell, no fim da campanha. Sabes
tu?--rematou o morgado--aqui anda marosca. O que tratam é de se
abotoarem com os cincoenta contos da infanta D. Isabel Maria, e o primo
Christovão é um asno chapado.
--Escreve-se ao Povoas e ao Bernardino--aconselhou o egresso--que digam
alguma coisa.
Os militares realistas responderam que sem duvida estava a levedar
alguma tentativa de restauração; que o Ribeiro Saraiva trabalhava
devéras; que o snr. D. Miguel era esperado em Londres; mas que não
estava ao reino, nem cá viria senão para se assentar de vez no seu
throno usurpado.
--Deixa-te de asneiras, Zeferino--dizia o fidalgo ao afilhado com as
cartas na mão--el-rei ha-de vir; mas não veio. Meu primo foi codilhado
pelo abbade de Calvos, e eu vou-lhe escrever que não seja palerma, nem
caia com uma de X para o alevantamento que é uma comedella.
O pedreiro, não obstante, apostava dobrado contra singelo que D. Miguel
estava em Calvos, e puxava pela saquita de missanga com gestos de
troquilha de burros em feira:
--Aposto! Aqui está dinheiro! O fidalgo de Quadros, o snr. tenente
coronel Cerveira Lobo tambem diz que el-rei já por cá anda.
--O Cerveira Lobo! olha que borrachão!--disse o frade.
--Quem cá está é o rei dos bebedor no corpo d'elle--accrescentou o
morgado.
--Mas diz que o snr. D. Miguel I gostava muito d'elle--objectou o
pedreiro.--Ouvi-lh'o eu.
--Não duvido...--explicou o frade--que o snr. D. Miguel gostava de
grandes patifes...
O primo Christovão redarguiu, magoado na sua esperteza, que era tão
certo estar el-rei em Calvos como era certo ter-lhe beijado a regia mão
em casa do abbade, na noite sempre memoravel de 16 de abril de 1845. Que
só o tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecêra pelo
retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual, como se sabe, depois
que sua magestade quebrou a perna em 28. Que el-rei nomeara o abbade de
Calvos seu capellão-mór, que déra a mitra de Coimbra ao abbade de
Priscos, e fizera chantre o padre Manoel das Agras, e a elle lhe fizera
a mercê de duas commandas e o titulo de barão de Bouro, afora outras
graças a diversos clerigos e leigos.
--Que te parece isto?--perguntou o morgado ao frade.
--Parece-me a notoria estupidez do primo Bezerra e mais dos padres; mas,
se o homem que lá está é o D. Miguel, então o estupido é elle, e
que me perdôe sua magestade fidelissima...
Escreveu-se novamente ao Povoas, ao Tavares de Fagilde e ao Pontes, um
collaborador da _Nação_. Responderam-lhe que não havia tal D. Miguel
em Calvos; mas que deixasse correr o marfim, por que era necessario uma
agitação preparatoria, um simulacro, uma apalpadella...
--Quer dizer--reflexionou o frade--que o tal impostor é um Baptista, o
precursor do verdadeiro Messias. Pois deixemos correr o marfim, e mais o
simulacro ... que palpem,--e, pondo as duas mãos engalfinhadas sobre o
umbigo proeminente, fazia girar um dedo pollegar á volta do outro. Que o
que fosse soaria, e não cahisse o mano Zeferino na estulticia de se
comprometter sem que os generaes portuguezes sahissem á rua.
Na correnteza d'estas coisas, o Zeferino das Lamellas não trabalhava de
pedreiro; abandonou as obras de alvenaria aos officiaes, e andava n'uma
dobadoira de casa do padrinho para casa do tenente-coronel realista, o
Vasco Cerveira Leite, morgado de Quadros, um homem nascido
illustremente, que, desde Evora Monte, não cortára as barbas nem
sahira das minas da casa-solar em Vermuim.
Como a sua paixão era inconsolavel com o destino, deu-se á
distracção do alcool; e, porque tinha a consciencia da sua miseria de
bebedo, fechava-se no seu quarto, onde ás vezes cahia amodorrado sobre
o vomito. Imbecilisára-se. Cerveira tinha soffrido um ataque cerebral
quando o brigadeiro José Urbano de Carvalho infamemente se passara com
alguns esquadrões de cavallaria para o centro da divisão do duque da
Terceira, na Chamusca. Elle vira o seu coronel Antonio Cardoso de
Albuquerque dar vivas á carta constitucional e a D. Maria II. Achou-se
arrastado, illaqueado e prisioneiro, quando procurava abrir com a espada
uma sepultura honrosa. Ali se extinguira coberto do opprobrio, n'aquella
hora, o bravo e leal regimento de Chaves que nunca dera um desertor para
as fileiras do inimigo. O tenente-coronel, desde esse dia, foi um
desgraçado incomprehendido que se embriagava para esquecer o
reviramento subito da sua carreira. Depois, a corrente travada das
miserias. Tinha filhos que se emborrachavam como elle, e filhas que se
namoravam dos engenheiros das estradas, e andavam pelas romarias de
roupinhas escarlates, com botinas de ponteira de verniz e chapéus
desabados de sêda preta com borlas e plumas. Sua mãe tinha sido
açafata da apostolica D. Carlota Joaquina, fizera-se mulher no
Ramalhão, e gabava-se de ter sido amada do conde de Villa Flôr. Quando
entrou no vasto e velho casarão de Quadros, teve hysterismos
formidaveis e acordava os eccos das montanhas com gritos que punham
terrores sobrenaturaes na visinhança. O Cerveira Leite poderia viver
abundantemente na côrte, por que os seus rendimentos e foros eram muito
importantes: é o que D. Honorata lhe pedia com lagrimas; mas elle,
colerico:--que não podia encarar os malhados, e não sahiria mais de
casa sem as suas divisas de tenente coronel de dragões. E,
apontando-lhe para os cinco filhos:
--Sê boa mãe, trata d'essas creanças que andam ahi porcas que fazem
nojo!--Tinha estas equidades em jejum.
E ella:
--Mais nojo me fazem as borracheiras de você!
E o fidalgo então disciplinava-a militarmente. Quando lhe não dava
alguns pontapés, desfechava-lhe um tiroteio de palavradas de tarimba, e
perguntava-lhe se tinha saudades dos bordeis do Ramalhão, aquelles
pagodes reaes. D'esta procacidade esqualida, derivou a um mutismo
estupido. Não lhe respondia. Fechava-se no seu quarto, contiguo á
garrafeira.
D. Honorata Guião teria vinte e oito annos, quando sahiu de Lisboa para
o Minho em 34. Era formosa das finas graças aristocraticas. Uma
elegancia nervosa, inquieta, mordiscada de desejos como uma flôr branca
muito picada das abelhas. Acceitára o major Cerveira, porque era rico e
estadeava na côrte as suas librés. Tinha trinta annos, e dizia-se que
aos quarenta seria general, porque D. Miguel gostava muito d'elle.
Rosnava-se que o Cerveira tinha sido um dos assassinos do marquez de
Loulé.
Este rapaz de côrte e da intimidade do rei e das infantas, disputado
pelas damas da rainha, era aquelle ebrio encanecido que, debruçado na
janella do seu quarto, fortemente fincado no peitoril de ferro da
sacada, revessava ao caminho publico golfos aziumados de vinhaça, e
dizia garotices de lacaio ás raparigas que passavam medrosas e o
saudavam;--Guarde Deus v. s.ª, snr. fidalgo!--Tenha v. s.ª muito boas
tardes, snr. morgado!--E elle, almofaçando as barbas conspurcadas de
vomito:--Ó brejeira, deixa lá vêr o patriotismo; que tal é a anca?
Não respondes, catraia? Olha como aquella rebola os quadris, o grande
coldre!--As cachopas não respondiam; safavam-se com um grande medo,
porque eram suas caseiras; mas commentavam:--Que levasse o diabo o
piteireiro do fidalgo!--que a fidalga fizera bem era se pisgar com o
doutor dos Pombaes.--Quer não--contrariava uma lavradeira idosa--foi
má mulher que deixou assim os filhos, cinco creanças! uma desgraça!
Nem as cadellas faziam isso. Os mais velhos já se emborracham, e as
meninas estão quasi mulheres e ainda não foram ao confêsso nem sabem
a doutrina. Que uma d'ellas, a Therezinha, já se enfeitava para o
estudante das Quintans que andava por lá feito caçador, e que o
morgadinho, o snr. Heitor, namorava a filha do José Alho, e até se
dizia que lhe fallára em casamento. Vêde vós que desgraça, ó
môças! Um menino tão rico e tão fidalgo, vi-o aqui ha tempos na
taberna de Villaverde que se não lambia, a pagar vinho ao Alho e mais
á croia da filha, e a comerem todos iscas de bacalháo com as mãos! Ao
que eu vi chegar um senhor dos fidalgos de Quadros! Quando eu era
rapariguita, aquelles senhores nunca sahiam sem os seus mochillas
fardados e tinham liteiras com as armas reaes pintadas. Faziam mesmo um
respeito! O snr. Rodrigo, pai d'este morgado velho, era d'isto dos
governos lá de Lisboa, e quando vinha vêr as suas quintas, ó
senhores, cahia ahi o poder do mundo de Braga e Guimarães a visital-o!
E as fidalgas? isso então a gente, quando as via, corria logo a
beijar-lhe a mão, e ellas no dia de Paschoa mandavam as cachopas
lenços para a cabeça e regueifas de pão podre. Aquella casa estava
sempre cheia de frades das ordens ricas...
--Isso, isso ... eu logo vi que essas fidalgas haviam de estar cheias de
frades de ordens ricas--dizia o José Dias de Villalva.--Muito cheias de
frades aquellas fidalgas, hein?
--Ahi vens tu com as tuas alicantinas--retrucava, pronostica e solemne,
a tia Rosa de Carude.--É o que tu estudas, meu valdevinos. Agora é
melhor que então, pois não foste? As fidalgas d'hoje em dia
presentemente fogem c'os doutores e deixam os filhos... Isto agora é
que é bom ás direitas, pois não é? No tempo antigo, valha-me Deus,
as fidalgas eram umas desavergonhadas que conheciam frades e creavam os
seus filhos.
--Os filhos dos frades?--perguntava o Dias.
--Cala-te ahi, bôca damnada! Olha que padre havia de sahir de ti! Ainda
bem que a Martha de Prazins te fez mudar de rumo.

A fuga da Honorata Guião com o Silveira dos Pombaes não amotinara a
opinião publica escandalisada. A excepção da austera Rosa de Carude,
toda a gente deu razão á fidalga. O Cerveira tinha amigas da ralé,
que mettia em casa--uma diversão á embriaguez, quando não exercia as
duas distracções em uma promiscuidade desaforada. D. Honorata
visitava-se unicamente com a D. Andreza da Silveira, da casa dos
Pombaes, irmã d'um bacharel delegado em Amarante. Chorava muito com
ella e pedia-lhe que perguntasse ao mano doutor se poderia separar-se
por justiça, antes de se atirar a uma cisterna. D. Andreza pediu ao
irmão que viesse ouvir as tristes allegações da sua desgraçada
amiga.
Estava Honorata nos trinta e tres annos, quando Silveira a encontrou nos
Pombaes. O delegado era um romantico. Emigrára em 28, sendo estudante,
quando alguns membros da sociedade dos _Divodignos_ padeceram o
supplicio da forca pelo homicidio dos lentes. Completára a formatura em
38 e fôra despachado. Muito lido em Schiller e Arlincourt. Fazia solaus
em que havia abencerragens e infantas christãs apaixonadas que tocavam
arrabis, banhadas de lua nos revelins dos castellos roqueiros. Tambem
fazia prosa na _Gazeta litteraria_ do Porto,--scenas dramaticas em que
se jurava pela gorja e havia homens de prol que arrastavam mantos
negros, cravavam laminas de Toledo ás portas de Dom Fuas, e, cruzando
os braços, rugiam cavernosamente: «Ah! Dom ribaldo, Dom ribaldo!» E
depois, os arrepios d'uma casquinada secca, d'um estridente grasnido de
gaivotas que se espicaçam por sobre o mar banzeiro.
A Honorata, esposa deplorativa, dama da rainha, esbeltamente magra,
d'uma elegancia de raça afinada nos salões da Bemposta, pallidez
eburnea, esmaecida, _airs évaporés_, um sorriso nobre de ironia
rebelde á desgraça, com a dupla poesia do martyrio e da belleza,
ultrapassou a encarnação viva dos ideaes do bacharel. Ella tinha pejo
de lhe contar os seus infortunios, a vida crapulosa do marido, a
libertinagem de portas a dentro com as jornaleiras, e o abandono da
educação dos filhos. Andreza é que contava tudo ao mano Adolpho na
presença da martyr. Que o Cerveira se embriagava todas as tardes e
tinha amasias da ultima gentalha que punham e dispunham em casa. Que os
meninos eram creados brutamente; que o mais velho, o Heitor, nem lêr
sabia; porque o pai tambem fazia mal o seu nome. Que tiveram um padre de
dentro para os ensinar, mas que o padre, em vez de lhes dar lição,
trabalhava de carpinteiro em remendar os sobrados, e quando era a hora
do estudo largava a enxó e vinha em mangas de camisa, sem gravata e de
socos para a sala. Que os meninos não lhe tinham respeito nenhum, por
isso o Heitor, quando elle o ameaçou com a palmatoria, respondeu que
lhe dava uma navalhada. O pai achou-lhe graça, e o padre foi-se embora.
Depois, entrou um velho que dava escóla em Guimarães, e os quizera
ensinar com muita paciencia; mas o Heitor e mais o Egas taes arrelias
lhe faziam que o pobre homem fugiu. Que D. Honorata soffria aquelle
flagello desde a queda da realeza, como se fosse a culpada da Victoria
de D. Pedro. Era da familia dos Guiões, muito intimos do snr. D. Miguel
e do conde de Basto; mas todos os seus parentes foram perseguidos,
roubados, de modo que ella, ainda que quizesse fugir ao marido, não
tinha em Lisboa familia que a pudesse sustentar;--que, se não fosse
isso, já teria acabado o seu suplicio, e que muitas vezes pensára em
se matar, mas...
--Os filhinhos...--atalhou Adolpho sentimentalmente.
--Não, snr.--acudiu a dama de Carlota Joaquina--não são os filhos. O
coração de mãe só se enche do amor aos filhos quando se evapora o
amor aos pais. Eu nunca amei este homem. Imposeram-me o casamento,
aproveitaram-se do despeito que eu sentia pelas ingratidões d'um conde
que eu amava, e casaram-me á pressa. O caracter d'este homem não
peorou com a desgraça da politica; elle é o que sempre foi, com a
differença de que na côrte embriagava-se com os fidalgos, no Alfeite e
em Queluz, e por lá dormia. As mulheres que corrompia ou o corrompiam
não eram minhas creadas nem minhas conhecidas; e, se o eram, eu apenas
tinha a convicção de que elle era um devasso. Tenho cinco filhos d
este homem; mas basta que eu lhe diga, snr. doutor Adolpho, que são
d'elle, são os productos amaldiçoados de uma obrigação estupida--a
aviltadora obrigação de ser mãe quando se é esposa.
Tinha dito. O bacharel nunca ouvira coisa assim, nem se lembrava de ler
achado nos romances uma razão tão philosophica e concludente da
Justiça com que a mãe pôde aborrecer os filhos.
--Sentia vontade de me ajoelhar diante d'ella!--dizia Adolpho á
irmã.--Que formosura e que talento, Andreza! Ó mana, eu viajei cinco
annos, vi as mulheres mais encantadoras da Europa, estive no Pardo, no
Bois de Boulogne, no Hyde-Park, e nunca vi mulher que tanto me
penetrasse os intimos seios d'alma! Nunca, por estranha fatalidade,
nunca! Como é que eu sinto aos vinte e oito annos as palpitações d'um
coração que nasce? Que faisca de amor é esta que me lavra um incendio
devastador das alegrias d'alma que ainda hontem me douravam a
existencia?
Era o estylo hydropico de Arlincourt; mas é de crêr que exprimisse
garrafalmente a singela e natural commoção que lhe fez a gentileza, a
poesia elegiaca, a magestade inflexa d'aquella mulher a quem a desgraça
dera uma critica moderna e revolucionaria na religião das mães.
D. Andreza, escandalisada, cortava-lhe os voadouros perguntando-lhe se a
separação judicial poderia dar meios de subsistencia a Honorata. O
bacharel, muito abstracto, parecia esquecido do codigo. O estado da sua
alma não lhe consentia folhear a infame prosa com mão jurisperita.
--Que havia de estudar a questão; mas que lhe parecia que ella,
requerendo o divorcio, apenas tinha alimentos por não ter trazido nada
ao casal.--Estas phrases eram mastigadas com um tedio, um engulho, como
se, depois de declamar uma _Contemplação_ de Lamartine, tivesse de
recitar dois paragraphos da lei da emphyteuse.
D. Andreza era senhora ajuizada, muito séria, educada no convento de
Vairão; tinha missa em casa, e escrevia cartas a diversas freiras,
pondo sempre no alto do papel: _Jesus, Maria, José_. Andava nos trinta
a cinco annos, muito lymphatica e um grande horror aos vicios da carne.
O mano Adolpho conhecia-lhe a indole. Não podia esperar d'ella
applauso, nem sequer condescendencia, e muito menos auxilio á sua
affeição a mulher casada. Andreza concordava com o irmão na formosura
de Honorata; mas observava com um risinho malicioso que o não chamára
para saber se a sua amiga era bonita ou feia; mas sim para aconselhal-a
e dirigil-a na separação do marido por justiça.
O doutor Adolpho absteve-se de enthusiasmos, e poz-se a estudar a
questão, em conferencias com o Bento Cardoso, de Guimarães, e o Torres
e Almeida, o Rasqueja de Braga, dois chavões. Mas o que elle queria era
córar as delongas nos Pombaes, ganhar tempo, a salvo das suspeitas da
mana e do seu capellão, um realista finorio que sabia da poda, e trazia
a pedra no sapato, dizia, cacarejando uma risada velhaca--e conhecia
até onde podia chegar a fragilidade de um homem sem solidos principios
de religião, estragado por essas nações.
D. Andreza andava assustada, porque o mano nem ia para Amarante nem dava
começo ao processo. A Honorata apparecia-lhe radiosa, com um grande
esmero no trajar, vestidos fóra da moda, mas elegantes, ricos, de
mangas perdidas, com uns decotes que punham nos olhos do capellão
luzernas exquisitas, escrupulos. Adolpho era discreto na presença da
mana. Contava as suas viagens, durante a emigração, citava nomes de
litteratos desconhecidos á fidalga, seus amigos intimos em Pariz; ai!
Pariz!--exclamava--Se eu então me passaria pela mente que havia de vir
de Pariz para Amarante!

--Elle porta-se muito serio--dizia D. Andreza ao padre Rocha. Ella é
que me parece mais levantada, muito azevieira, não acha?
--Acho, acho...--confirmava o capellão.--D'aqui rebenta coisa, minha
senhora; rebenta, v. ex.ª verá...
E, com effeito, estava a rebentar, na phrase explosiva do padre Rocha. O
delegado tinha correspondencia diaria com Honorata, mediante uma caseira
de sua mana, irmã d'uma criada do Cerveira Lobo. Cartas incendiarias
escriptas durante a noite trocavam-se de manhã, quando o Adolpho sahia
a respirar os balsamos das ribanceiras orvalhadas. Ás vezes, subia a
encosta até á crista do monte do castello de Vermuim. D'aqui, avistava-se
por sobre as selvas verdes de carvalheiras e pinhaes a vasta
casaria pardacenta de Quadros, com dous torreões denticulados. No
andaime de um dos torreões via-se um vulto branco, com o braço
amparado em uma das ameias, e a cabeça encostada á mão como nas
baladas de Baour Lormian. Era Honorata, com o binoculo assestado na
fraga onde estava Adolpho, alaranjado pela primeira resplandecencia do
sol nascente.
Ao cabo de duas semanas, sahiram dos dominios da bailada. Uma noite,
partiram de Guimarães, caminho do Porto, dous cavallos do Gaitas, e
pararam na Ponte de Brito. Um dos cavallos era arreiado com selim de
senhora. Por volta da meia noite, Adolpho e Honorata, n'um passo miudo,
com uma anciedade, mixto de exultação e de susto, chegaram á Ponte de
Brito. Elle ajudou-a a sentar-se na sella; cavalgou, disse aos dois
arrieiros o seu destino, e partiram a trote largo.

[Nota de rodapé 2: Como seria de máo gosto inventar este episodio,
imponho-me o dever de affirmar que estas noticias me foram transmittidas
por um illustrado cavalheiro da Povoa de Lanhoso, o snr. José Joaquim
Ferreira de Mello e Andrade, da casa nobillissima das Argas, fallecido,
com mais de oitenta annos de idade, em 1881. Comquanto a imprensa
contemporanea, que eu saiba, não fallasse no pseudo--D. Miguel, as
revelações do ancião de Lanhoso merecem-me e são dignas de toda a
confiança.
Além d'isso, consultei o reverendo Casimiro José Vieira, tão
celebrado quando dirigia com mão armada a revolução do Minho, que se
chamou Maria da Fonte. Hoje, com 66 annos de idade, vive na sua casa da
Alegria, no concelho de Felgueiras, ao sopé do monte de Santa Quiteria,
preparando as suas _Memorias_, que devem esclarecer as obscuridades
originaes da insurreição de duas provincias. Este padre que, aos
trinta annos, foi conclamado general pelo povo, e parlamentou face a
face com o conde das Antas, respondeu assim á minha consulta: _Eu
apenas posso dizer a v. que foi verdade ter estado o tal impostor
occulto em casa do abbade, por que elle mesmo m'o disse; mas nada lhe
perguntei a tal respeito, por me lembrar que elle teria vergonha de se
deixar enganar, depois de lhe ter beijado a mão muitas vezes, no tempo
de estudante e seminarista, quando o snr. D. Miguel esteve em Braga, a
ponto de se ter tomado saliente para o mesmo snr. D. Miguel, como o
mesmo abbade me contou tambem, mas por isso mesmo nada mais posso
accrescentar_...[3]]
[Nota de rodapé 3: Carta de 11 de novembro de 1882.]


V

Seis annos depois, em 1845, quando o Zeferino das Lamellas andava em
roda viva de Barrimáo para Quadros, o Cerveira não tinha alterado
sensivelmente os seus habitos. Estava muito gordo, saude de ferro--um
desmentido triumphante aos follicularios que desacreditam as virtudes
hygienicas, nutrientes do alcool. Os vomitorios quotidianos explicavam a
depurada e sadia carnadura do tenente-coronel. Orçava pelos cincoenta
annos, com um arrogante aspecto marcial, de intensas barbas
grisalhas,--olhos rutilantes afogueados pela calcinação cerebral. As
filhas não mostravam vestigios alguns de educação senhoril. Aquella
Therezinha, que a Rosa de Carude denunciára, fugira para casar com o
minorista das Quintans. As outras duas, muito boçaes e alavradeiradas,
tinham amantes--uns engenheiros e empreiteiros do conde de Clarange
Lucotte, que andava fazendo as estradas entre Braga, Porto e Guimarães.
Ninguem decente as queria para casar porque, além do descredito, o pai
não dava dote; e, desde que a mãe fugira, convenceu-se de que não
eram suas filhas. Heitor e Egas, dous galhardos moços, de jaqueta de
alamares de prata, faixa vermelha, e sapatos de prateleira com ilhozes
amarellos, tinham eguas travadas que entravam pelas feiras n'um arranque
de rópia e pimponice, que ia tudo razo. De resto, valentes e bebedos,
possantes garanhões de femeaço reles, e muito esquivos a tratarem com
senhoras--canhestros e bestiaes. Roubavam o milho e o vinho; vendiam,
nas mattas distantes, ao desbarato, córtes de madeira e roças de
matto; além d'isso tinham umas pequenas mezadas que o pai lhes dava.
Ainda assim, a casa de Quadros não estava empenhada, prosperava, e era
das primeiras do concelho. O luxo do fidalgo era a garrafeira. Mais
nada. As filhas de Honorata quando, entre si, fallavam da mãe,
chamavam-lhe «aquella desavergonhada»; os rapazes com um desapego
desleixado que poderia fingir dignidade, nem se lembravam que tinham
mãe. Quanto ao pai, esse antes de jantar, era taciturno, casmurro, como
quem se esforça por sacudir um pesadello; e, de tarde, sumia-se para
recomeçar as suas visões luminosas interceptadas pelas trevas
momentaneas da razão. Não se sabe o que elle pensava da mulher.
Admittia pouca gente em sua casa e pouquissima á sua presença. Além
dos caseiros que lhe pagavam as grossas rendas de Villa do Conde, de
Esmoriz e S. Cosme do Valle, apenas recebia o pedreiro das Lamellas que
lhe fizera os canastros e reconstruira algumas paredes desabadas.
Conhecia-lhe o pai, o alferes, desde a batalha de Ponte Ferreira.
Mandava-lhe botijas de genebra e massos de cigarros;--que bebesse, que
se embebedasse, que os tempos não iam para outra coisa. E o alferes com
vaidade de fino:
--A quem elle o vem dizer!
Ultimamente, fallavam muito da chegada do snr. D. Miguel--«o meu velho
amigo,» dizia o Cerveira, pondo as mãos no peito e os olhos ao tecto.
--Venha elle, e vêr-me-has, Zeferino, á frente dos meus dragões de
Chaves:--Relampagueavam-lhe então as pupillas e fazia largos gestos
marciaes, com o braço tremulo como se brandisse a espada, rompendo um
quadrado; montado na phantasia, arqueava as pernas, descahia o tronco
sobre um imaginario cavallo empinado e bufava com tregeitos ferozes. Era
d'um ridiculo lacrymavel. O Zeferino dizia ao pai que ás vezes lhe
tinha medo quando elle fazia aquellas partes.
--O vinho do Porto é o diabo!--dizia o alferes com uma grande
experiencia d'essas façanhas incruentas--é o diabo!
O Zeferino, na volta de Santa Martha de Bouro, contou-lhe o que soubera
em casa do capitão-mór. O tenente-coronel quiz immediatamente partir
para Lanhoso; mas não tinha roupa decente para se apresentar a el-rei.
As fardas estavam traçadas, podres com um bafio de rodilhas no fundo de
uma arca; dos galões restava um tecido esbranquiçado com laivos
verdoengos; o casco das dragonas esfarinhou-se-lhe nas mãos roido pelos
ratos. Não tinha casaca. Desde a convenção d'Evora Monte, mandava
fazer a Guimarães uns ferragoules de mescla á laia de capote de
soldado para o inverno; de verão, para equilibrar o calor artificial
interno com o da atmosphera, andava em ceroulas e fazia leque da fralda.
Por decencia, fechava-se nos seus aposentos. Mandou chamar um alfaiate a
Braga, o Cambraia da rua do Souto, para se vestir á militar e á
paizana.
Entretanto o Zeferino, um pouco desanimado, contou-lhe que o seu
padrinho de Barrimáo e mais o frade não acreditavam que el-rei
estivesse em Calvos; que era uma comedella do dr. Candido d'Anêlhe e
dos padres para apanharem cincoenta contos á D. Isabel Maria; que os
generaes do snr. D. Miguel não sabiam de nada.
O Cerveira Lobo esfriou. Tambem me parece, dizia, que se o meu velho
amigo D. Miguel ahi estivesse, já me tinha mandado chamar.
Mas, depois que o Bezerra de Bouro asseverou que beijára a mão
d'el-rei, o pedreiro e o tenente-coronel já não podiam duvidar.
Combinou o fidalgo com Zeferino que partisse elle para Lanhoso, e
dissesse ao capitão-mór que o levasse a Calvos, e o abbade que
participasse a el-rei que estava alli um proprio com uma carta de Vasco
da Cerveira Lobo, tenente-coronel de dragões.
--Assim que el-rei ouvir o meu nome, entras logo, immediatamente, n'um
prompto. Depois, põe-te de joelhos, e entrega-lhe a carta, percebeste?
Tu vais e trazes-me resposta. Por estes oito dias, o mais tardar, tenho
cá o fardamento. No caso que sua magestade me mande ir vou, se não,
trato de chamar ás armas cinco ou seis mil homens com que posso contar.
Zeferino, para evitar questões atrasadoras, não disse nada ao padrinho
nem ao pai, receando as expansões usuaes da carraspana.

O Cerveira dizia ao padre Rocha, capellão de D. Andreza:--Idéas não
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