O Inferno - 05

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fere, ou o direito que elles avexam; quando me dizem que nada monta
morrer no patibulo pela liberdade da patria ou no campo da batalha pela
sua independencia; quando me dizem não importa nada envelhecer na
miseria por haver preferido a honra ás honras, o estudo á opulencia, o
trabalho aos prazeres; quando me dizem que tudo isto é fumo, que estas
dores, esta coragem, privações, heroica vida, heroica morte, não podem
resgatar minha alma d'um peccado mortal, e aos olhos de Deus não
valem o cilicio d'um frade, ou a confissão de um salteador agonisante;
ah! confesso que, ao dizerem-me estas cousas em todos os pulpitos
christãos, não entendo o sermão da montanha, e pelo contrario começo a
comprehender os prazeres d'esta vida.
Vêdes aquelles pescadores que em fragil barquinha vão arrostar as ondas
do oceano, e vogar, por dias, semanas e mezes, longe da praia, á mercê
das tempestades para ganharem, á custa de mil perigos, o pão de seus
filhos?
Vêdes aquelles telhadores na aresta do vigamento? aquelles mineiros
sepultados nas entranhas da terra, longe dos raios beneficos do sol?
Vêdes o lavrador curvado sobre o sulco? o pallido tecelão diante das
machinas devoradoras? tanto operario sem nome avergado ao pezo de um
trabalho ingrato e sem descanço? Pois a maior parte d'aquelles é
condemnada, por modo que os seus soffrimentos n'esta vida são preludios
dos que lá os esperam na outra. Aquella mãe que não póde vestir seus
filhos, e que relança olhares invejosos ao palacio visinho, onde os
cavallos medram mais fartos que os filhinhos d'ella;--aquelles mendigos
que vagamundêam nos campos; os orphãos que se recolhem aos hospitaes; os
soldados que marcham para as fronteiras; os proscriptos esquecidos no
solo estrangeiro, condemnados, quasi todos condemnados, meu Deus! Um
repleto conego, risonho e bochechudo, sem familia nem cuidados,
repastando-se quatro vezes por dia, mas sem escandalisar ninguem,
baixando a vista em presença das mulheres, pontual nos officios, está
mais visinho do céo que todos aquelles desgraçados; e mais perto ainda
do céo está um sancto anachoreta. Chorar, soffrer, trabalhar não é nada.
Se choram, não choram as suas culpas, é a miseria dos filhos; se
trabalham não é por penitencia, mas sim para grangear commodidades.
Lagrimas de Babylonia, diz S. Agostinho. Avidos suores, vãs angustias!
Muitos seculos ha que d'est'arte se lhes explica o sermão da montanha, e
elles nem o comprehendem nem jámais o entenderão. É bem de ver que não
vivem á maneira dos santos legendarios, nem dos conegos prebendados. Os
que sabem lêr pouco lêem, á falta de tempo. Muitos não vão á egreja, e
os que lá vão sahem como entraram. São profundamente ignorantes. A dura
necessidade dobrou-lhes a cabeça sobre o torrão que regam com o seu
suor; e a natureza, que lhes brada das entranhas da terra, diz-lhes
cousas que elles percebem mais a preceito que os sermões. O estridor e o
vapor das materias da sua obragem cega-os e ensurdece-os. Não sentem
fome nem sêde da palavra divina, qual lh'a ensinavam algum dia.
Digam-lhes que um eremita vae melhor do que elles, por que abandonou
officio, casa e parentes, e todo se vagou á salvação da alma, e que ha
vinte ou trinta annos resa, jejua e se disciplina, dizei-lhes isto que
elles vos desfecharão uma gargalhada; mas, se ao mesmo tempo passar um
soldado de bigodes brancos, ou algum recruta aleijado em Africa ou
Italia, ou algum repatriado do desterro, em vesperas de para lá voltar,
se a occasião o exigir, elles o saudarão respeitosamente. Que appareça
um velho sem occupação, uma viuva com filhos maltrapidos, e elles se
fintarão para soccorrêl-os. Contae-lhes casos de bemfazer e lanços de
gratidão, vêl-os-heis commovidos. As virtudes d'esses infelizes são,
para assim dizer, selvaticas, probidade orgulhosa, amizades humanas, mas
apuradas até á abnegação, instinctos lucidos do que é grande e formoso,
mas formoso e grande pela craveira das coisas d'este mundo. De par com
isto ha falhas, e até crimes. Impacientam-se, praguejam, largam a redea
aos desejos, porque, no seu modo de pensar, se não ganham, tambem não
perdem. Vivem á beira das charruas, das córtes, das forjas, e nas
abegoarias. Este viver influe-lhes na linguagem e nos costumes. Não têm
alma que se ale longo tempo e ao alto sem que as azas lhe falleçam: é
que pezam n'ella os cuidados terrestres. Ventilam problemas que não
podem resolver. Desconsolados do seu destino, perguntam porque ha ricos
e pobres, e porque, no outro mundo, serão condemnados, depois de tanto
haverem trabalhado e gemido n'este?
O inferno não os apavora muito mais que a morte. Affizeram-se desde a
infancia á vaga idêa de que hão de ser condemnados, seguindo a trilha
commum da vida; todavia, apezar do proposito feito, nem por isso um
terrivel pezo deixa de lhes aggravar o fardo das dôres quotidianas. O
sino que dobra, o sahimento que passa, o doente que vae para o hospital,
o pedreiro que cae da parede, o obreiro apertado entre o encaixe de uma
roda e triturado nos dentes d'ella, os terraplenadores sotterrados nas
saibreiras aluidas, os marinheiros comidos pelas vagas, o typho que
devasta um bairro inteiro de operarios, mulheres sem maridos, paes sem
filhos, filhos sem mães, tudo isto por vezes lhes relembra o Deus
rancoroso que lhes prégam, e as surprezas da morte, e os perigos de sua
precaria existencia, e com as miserias que findam outras que principiam,
para nunca mais acabarem. Este povo assim é como um rebanho que se leva
ao matadouro, aguilhoado pelos pastores, lacerado pelos cães,
atormentado pelas moscas, cançado, sanguento, sequioso, abatido,
estupido.
Compadecei-vos, pois, d'esses que nunca vos darão bons ermitões. Não ha,
por ventura, um ideal mais aceitavel e ao mesmo tempo mais puro que lhe
mostreis? Não ha senão esse a que aspira o ente sem familia, sem
ligações e cuidados d'este mundo? Se, ao menos, podesseis annunciar-lhes
a justiça de Deus sem os assombrar! Não são já de si que farte
mysteriosas e raladoras as dôres d'esta vida? Não será de mais
rematal-as com o terribilissimo mysterio do inferno? Pois se tendes a
certeza que serão condemnados no trem de vida que levam, deixae-os
respirar, e beber, e rir e dançar, em quanto o animo e tempo lhes não
faltam; que a desesperação poderá leval-os a peores excessos.
Ó pobre genero humano! Será preciso que o Christo desça segunda vez do
céo para te instruir, e que outra vez seja vindo e crucificado para
salvar-te?


CAPITULO QUARTO
OUTROS FRUCTOS DO INFERNO

O mal que produz o inferno.--Incredulidade, desalento, desesperação
Esquadrinhando o bem que procede do inferno, já divisamos o mal que
produz. Bem negativo e limitadissimo; mal positivo mas profundo,
extensissimo, apenas por em quanto entre-vimos. Faz-se mister examinal-o
mais pelo miudo. Não perderemos o tempo.
É facto incontestavel que a maior parte dos homens se occupa menos de
céo e inferno que das precisões, interesses, prazeres e dôres da terra.
A Egreja o confessa admirada e lacrimosa. Por que se admira? Que remedio
senão ser assim? Pois acaso póde toda a gente retirar-se ao deserto?
Pois todo o encanto da vida se apagou? Os direitos da natureza foram
abolidos?
Na sociedade cuja moral se funda sobre o medo das penas eternas,
todo movimento paralysaria, se instinctivamente, e por necessidade de
viver, não viesse o esquecimento d'esse tremendo futuro. A esperança do
ceo não bastaria a contrabalançar os effeitos de tal susto, mormente
quando nos affiançam que a porta do ceo é estreita, e que o inferno tem
milhares de portas sempre abertas. Á medida que esta crença se incutir
nas turbas, assim ellas hão de lidar por esquecel-a, abafando-a no seio,
sem querer sequer meditar n'isso. Quanto mais pura, exigente, austera e
angelica fôr a vossa moral, tanto mais impraticavel vol-a hão de
considerar; e, se a fundamentaes no inferno, fechar-se-hão os ouvidos ao
vosso apostolado, e ninguem quererá sequer aproximar-se d'aquella
perfeição immaculada, que sómente florece em estufas claustraes, que se
desbota ao leve bafejo do homem, e só está ao alcance de ociosos.
Se no inferno tão sómente fossem castigados certos crimes monstruosos e
excepcionaes, mas claramente definidos, taes como o assassinio, o
incesto, o estupro, poder-se-hia ainda examinar a justiça de tão
exorbitante penalidade: ao menos cada qual sabia quando lhe era
applicada a pena. Porém, se vão ás chammas eternas o aváro, o glotão, o
preguiçoso, o prodigo, o orgulhoso, o invejoso, o impaciente, o
maledico, o voluptuoso, o incontinente, o ambicioso, o calumniador, o
usurario, o mentiroso, o hypocrita, o lisongeiro, o ingrato, o
philosophante, o rebelde, etc., etc., etc., congela-se o sangue nas
veias; ninguem ousa vender, comprar, emprestar, traficar, fallar,
pensar, beber, comer, respirar; por quanto, quem sabe onde começa a
avareza? o orgulho? e a lisonja, reverendissimos senhores, onde começa a
lisonja? e a usura? e os limites da temperança quem os abalisou?
Occasiões, tentações e perigos em tudo!
A questão não é saber se ahi ha crimes hediondos e puniveis: ninguem
nega que os haja;--o que se tracta é de saber se é racional e discreto,
e se os bons costumes lucram, que nos ameacem com eternos castigos, por
peccados que mal podem definir-se. Quem ha ahi isempto de seu tanto ou
quê de orgulho? Quem se presume bastante sobrio, bastante comedido nos
prazeres licitos, menos egoista em suas legitimas affeições, menos
desinteressado em seus lavores e mercantilismo, bastante paciente nos
revezes e resignado nas desgraças? Quem se crê assaz justo, caritativo e
perfeito? Ao parecer dos theologos, uma tal presumpção seria peccado
capital, até nos conventos, até para os anachoretas envelhecidos em
abstinencias e orações. Ninguem sabe ao certo o momento, o ponto em que
um acto licito descahe no illicito; que dóse de alimento quadra á sua
saude, e onde no rico principia o superfluo, que é o necessario do
pobre. Para que vem seis pratos á meza? Se um basta, para que são dois?
A regra onde está?
Cautela! esse copo que chegaes aos beiços risonhos, em vez de vos apagar
a sêde, vae abrazar-vos em sêde eterna. Cautela! Theologo nenhum
poderá dizer-vos exactamente o que vos cumpre dar, o que vos
cumpre não dar; e o caso é que, se vos enganaes com tal incerteza, folga
o diabo. Um padre da Egreja, um papa, um santo, Gregorio o Grande, não
disse que Deus nos arguiria de peccados que antes de morrer não
conhecemos?
Estas e outras mais terriveis cousas podeis lêr no _Quotidiano do
Christão_, livro approvado e recommendado por todos os bispos, e que anda
em mãos de creancinhas. Portanto, verdadeiras ha só duas cousas: a
condemnação, se nos enganamos, e a abstenção para nos não enganarmos.
Mas a abstenção não é viver. Viver é a actividade inteira, incessante, e
arriscada a peccar. É lei do genero humano viver e perpetuar-se. Não
nega, mas esquece os dogmas oppressores que lhe pesam na alma, e a cada
passo lhe apontam aberto um alçapão do inferno. Vivem os homens n'uma
especie de indifferença religiosa que os avilta, movidos unicamente por
suas paixões, e apenas enfreados pela justiça temporal. Fóra com isso do
futuro! fóra com remorsos! Fechemos olhos a todos os clarões, e os
ouvidos a todos os rumores do outro mundo, e concentremos n'este a nossa
inteira vida, todos os desejos e pensamentos.
É effeito imprevisto, porém real, d'esta medonha crença induzir ao
materialismo, não theorico, mas pratico, a maior parte dos que não leva
ao ascetismo: attasca na lama os que não transvia nas nuvens; faz que se
rojem durante o dia breve da existencia, grandes e pequenos. Os
philosophos accusados d'este miseravel estado das almas, estão
innocentissimos: não ha em tudo isso faisca de philosophia; raciocinio é
coisa que ahi não vislumbra. O instincto é que desde tempos esquecidos,
e não de ha pouco, nos propendeu áquelle cego materialismo: é a
necessidade de arrostarmos com uma crença mortifera; é a vida que
resalta d'entre as mãos desvairadas que intentam comprimil-a, e d'este
desbordar de toda a fórma surdem os excessos.
Já não lhes abasta esquecerem o inferno. Quem o esquece são os fracos;
os fortes vão mais além: escarnecem-no. Anda já por ahi o diabo cantado,
e do mesmo feitio o inferno, e o céo com os seus moradores. E de taes
canções vendem-se tantos exemplares como dos _Canticos de S. Sulpicio_:
antiquissima impiedade, de que ha vestigios, não só na Grecia pagã, mas
tambem nas fabulas da edade média, e até nas paredes das vetustas
cathedraes onde os artistas zombeteiros esculpiram, ha mais de
seiscentos annos, o _Inferno_ de Béranger. A ironia mascarava-se então com
tregeitos beatificos; o impudor, porém, não se disfarçava nem se
constrangia.
Os lamuriantes da edade média talvez digam que, apezar das galhofas
audazmente esculpidas nos portaes e córos das egrejas, esses antigos
imaginarios criam no inferno, e que, no leito da morte, não foliavam,
tremiam; que os fabulistas tambem tremiam, e que os castellãos e
castellãs, plebe e burguezia, quantos se haviam regalado com as
taes caricaturas, tremiam tambem. Sim, meu Deus, é verdade. Mas
circumvagae a vista, e dizei-nos se, a tal respeito, a sociedade mudou.
A mesma educação religiosa não produz continuamente identicos
phenomenos? Acreditam no inferno os epicuristas, os trampolineiros, os
usurarios, os prodigos e os ladrões, os famintos e os repletos, os
invejosos e os ingratos, os indifferentes e os chasqueadores? No intimo
da alma guardam elles as superstições das amas: que farte o denotam na
vida, e principalmente na morte. Em quanto são moços, ageis, febris de
saude e esperança, repulsam uma crença que lhes tornaria maldita a
mocidade, a saude, a força, a razão de todas as dadivas do céo. Quando
caducam, infermam e agonisam, espantam-se de haver ardido em desejos que
já não tem, e haver motejado praticas que se lhes agora figuram
facilimas. É chegada então a hora e situação conveniente para intender a
moral do inferno, que é a privação em tudo e por tudo,--a morte na vida.
Singular crença que não infrêa o maior numero de homens, quando o freio
lhes é mais preciso; e quando o retêl-os é já inutil, e mais necessaria
lhes seria a esperança, então, á entrada da sepultura, lhes sahe
espantadora! Levado por ella vae o anachoreta ao suicidio, e o mundano
ao embrutecimento. Esteril em verdadeiros dons, fertil em verdadeiros
males, a crença no inferno bestialisa, desalenta, desespera, endurece.
Melhor é esquecel-o á maneira das turbas, que pensar demasiado
n'ella, que tanto monta sentir vertigens, sentir estontecida a cabeça á
roda d'esse abysmo que vos attrahe e sorve. Mais algum prazer ou menos,
defendido ou não, que faz? Lá no inferno não estaremos melhor nem
peormente; a eternidade não terá hora menos ou hora mais.
Constrangermo-nos para quê? Não ha termo medio entre o bem e o mal
absolutos. Tudo que é humano é mau: é forçoso ser anjo ou demonio:
seja-se diabo, que é mais comezinho. Vêde-me uns frades, padres,
devotos, freiras, que a desanimação avassalou: não ha peores peccadores;
rolam cada vez mais ao fundo, e vão-se consolando com as delicias que
topam na sua queda. Um peccado de menos, que é na conta que hão de dar?
Chegados a tal extremidade, qualquer boa acção lhes será vã. Como não
podessem abster-se de tudo, os desgraçados já agora não se abstem de
nada. Esta desesperada crença precipita-os abaixo do homem. D'ahi tem
surdido mais libertinos que ermitões, mais blasphemos que santos, mais
loucos que ajuizados; e, em verdade, é mister que o christianismo
entranhe vivacissimos embriões, esplendorosissimas luzes, e
poderosissimas verdades para resistir, como ha resistido, á influencia
de taes doutrinas.
Tirae-nos, por favor, esse inferno tão fatal aos que o recordam como aos
que o esquecem. É verdade que teremos menos monges com o purgatorio; mas
teremos mais christãos. No purgatorio será util pensar, comprehender-lhe
a justiça, e sentir-se o homem melhor, ainda a pesar seu; se é
facil sacudir o jugo de uma revelação sobrenatural e inintelligivel, por
mais beneficente que ser possa, não é facil desprendermo-nos de idêas
excellentes e razoaveis, por mais importunas que nos sejam.


CAPITULO QUINTO
OS CINCO GRUPOS

Divisão da sociedade em cinco grupos
Examinemos as coisas mais á beira. A sociedade não é toda formada de uma
peça. Divide-se naturalmente em differentes grupos no discutir de seus
interesses em este e no outro mundo. Religiosa e moralmente observada,
podêmos dividil-a em cinco grupos.
1.º O grupo dos philosophos, ou livres-pensantes como hoje se
chamam--sugeitos que systematicamente regeitam a revelação, e por
consequencia o inferno sem fim; todavia, desinteresseiros, estudiosos,
graves e tractaveis com honra e confiança.
2.º Longe d'estes a infinita distancia, e sem sombra de liga com os
philosophos, está o grupo dos biltres professos, individuos relaxados,
bandidos convictos, corruptos, desesperados.
3.º Entre aquelle grupo de espiritos selectos e o das almas depravadas,
mas entre si equidistantes, está o grupo immenso e indecomponivel dos
indifferentes, dos tibios, dos duvidosos, dos espiritos futeis, dos
espiritos inertes, dos espiritos acanhados, dos fura-vidas, dos
pachorrentos--turba sem piedade nem philosophia, sem prática de casta
alguma, vivendo de seu trabalho, das suas rendas ou officios, mais ou
menos descançados--guardas nacionaes, jurados, eleitores, conselheiros
de districto, e o mais. Estes são uns christãos que só vão á egreja
quando ha enterro, casamento ou baptisado, ou ainda em dias de _Te Deum_,
quando a posição official os obriga.
4.º Ao lado e um tanto superior a este, está o grupo menos numeroso dos
devotos; não dos hypocritas, que se ha de classificar no dos patifes,
mas dos esforçados em praticar e que praticam, assim, mas com
desinteresse, os mandamentos de Deus e da egreja. Estes vão á missa nos
domingos, confessam-se ás vezes, e dão do seu gremio as irmandades e as
confrarias.
5.º Finalmente, o admiravel grupo dos justos, dos perfeitos christãos,
dos santos, dos continuadores e verdadeiros imitadores da vida de Jesus.
Vejamos se o dogma das penas eternas aproveita ás pessoas que formam
aquelles differentes grupos.

I
O grupo dos philosophos
Os philosophos crêem em Deus, crêem na liberdade e immortalidade da
alma, na justiça, em todas as noções moraes derivativas d'aquellas
primaciaes verdades. Em revelações sobrehumanas é que não acreditam.
Ora, ameaças de inferno converterão tal gente? De quantos mysterios
regeitam, o inferno é o mais incrivel; e tanto que irrita a propria fé,
que, só abdicando o uso da razão, se submette. Dos philosophos não ha
que esperar similhante sacrificio.
Se o dogma do purgatorio vos aproxima d'elles, o inferno, barreira que
vos separa de tudo que raciocina, alonga-os de vós.

II
O grupo dos corruptos
Que lucram as pessoas de bem que esses patifes creiam no inferno? Está
com isso a sociedade mais segura? E tal crença de que lhes serve a
elles? O que os incommoda não é o diabo, é a policia; inquieta-os mais o
degredo que o inferno.
Vá lá!--dizem elles--venha o inferno que não nos ha de faltar boa
camaradagem! Quantas pessoas toparemos lá d'umas que n'este mundo se
empavonavam todas, e não queriam rossar-se por nós! Havemos de vêl-os
lá, mais apoquentados e castigados do que nós, esses patetas condemnados
por pensamentos e palavras, por coisa nenhuma. Quanto á pessoa d'elles,
tanto monta como a nossa, pois que hão de ser tão condemnados como nós.
Não ha dois infernos, parceiros; ha um. Lá nos esbarraremos com
capitalistas, com fidalgos, com duquezas, com comicas. Andaremos á
ilharga dos juizes, dos quadrilheiros, dos escrivães, dos jurados e
melhor ainda--viva a patuscada!--com deputados, com camaristas reaes,
com bispos, com abbadessas, com principes e princezas, reis e rainhas.
Venha o inferno! é tentador lá ir com tal sucia.
Tal é o raciocinio dos desalmados e a influencia que tem sobre elles
aquella extravagante justiça, que nenhuma proporção gradua entre
delictos e crimes, condemnando para sempre quem peccou uma hora, e o
scelerado de toda a vida.

III
O grupo dos indifferentes, etc.
Estas pessoas cuidam em ser felizes com o auxilio da honestidade; pelo
quê, se abstem do mal que o codigo define. Pelo que respeita aos sete
peccados mortaes, não se preoccupam d'isso. Dizer que todos sejam
invejosos, avarentos, luxuriosos, e o mais, seria mentir. N'esse
innumeravel grupo abundam negociantes honrados, meninas castas, esposas
fieis, pobres sem inveja, ignorantes modestos, ricos bemfazejos, e
muitas abelhas para cada zangão; mas perfeito ahi não ha ninguem;
ninguem ahi vive em graça; o melhor do rancho é aquelle a quem Deus, no
dia do juizo, só accusar de ter violado sem escrupulo todos os
mandamentos da Egreja. Mas, com esse só peccado na consciencia, o melhor
do rancho será condemnado.
Se o roubo e o homicidio são raros n'essa assemblêa, não procede isso do
medo do inferno. Ahi é bastante motivo para condemnação uma folha de
papel escripta, um «sim» apenas balbuciado e ouvido, um lance d'olhos,
uma flor murcha, e essa, onde entra amor--amor no peccado, meu Deus!--é
de todas as condemnações a que mais piedade desperta. Porém, n'esse
immenso circulo, onde tudo pecca, cada qual se condemna á sua vontade:
um por fastio; outro por vaidade, este por curioso, aquelle por
pusillanime; condemna-se um por um casal, outro por uma venera,
por um acepipe, por um prato de lentilhas, por um penacho, por uma
fitinha, por um trapo, por trinta contos, por trinta reis. Condemna-se
este a trabalhar, aquelle a passear, um a comer, outro a jejuar, a ler,
a dansar, a palestrar, a meditar, a vestir, a despir, desde a aurora até
ao escurecer, desde a noite até ao dia, todos se condemnam a bel-prazer.
Distinguem-se lá os peccados que Deus pune indistinctamente.
Permittem-se os que Deus castiga até com eternas penas, quando é elle só
quem pune; recua-se, porém, dos que Deus castiga e a sociedade tambem.
Não se diga pois que o inferno atalha os crimes dos indifferentes.
Tambem ahi é manifestamente esteril similhante crença. O que se teme é o
vigia, a patrulha, o commissario da policia, essas personificações
vulgares, mas terriveis da opinião e da lei. Temem-se as algemas, o
carcereiro, a masmorra, e ainda mais á mistura com os scelerados. Por
muito dura e inevitavel que se figure, a pena material não os conterá
sempre quando a paixão os esporêa. Do mesmo modo que affrontam o
inferno, affrontariam a cadêa e até a forca, se a forca estivesse ás
escuras; porém a vergonha, o estrondo da queda, é para o maior numero a
pena intoleravel. Seriam capazes de desafiar carrascos e diabos; e não
ousariam encarar o desprezo do amigo, do visinho, do estranho, do
transeunte, do mendigo; não lhes faz grande mossa a ignominia diante de
sua mãe ou de seus filhos, e tremem de se vêr baralhados com
creaturas devassas que são máos sem repugnancia, e medram no mal como em
seu nativo elemento.
Ha d'elles, porém, que se forram ao mal, contidos por sentimento ainda
mais nobre que o medo da opinião. Esquivam-se, não do peccado mortal,
mas do maleficio que a sociedade civil pune ou reprova: afasta-os d'isso
com asco um natural sentimento, sem esforço. Educação e habitos
fortaleceram esses bons instinctos. Não são perfeitos, mas são probos,
sinceros, generosos, capazes de grandes sacrificios occasionalmente. Com
certos deveres nunca especulam. Denotam que a si se respeitam, que a
propria estima se lhes faz precisa, ainda mais que a da sociedade, facil
de transviar-se. E bem que não sejam philosophos nem devotos, sentem
vivamente a dignidade de seu ser. É certo que este sentir lhes seria
mais delicado e firme, se abrangessem as perspectivas da vida futura, em
vez de concentrar-se cá; mas é forçoso aceitar os indifferentes quaes
são; e tanto entre os peores como entre os melhores, a vida futura não é
movel nem empêço: é uma coisa esquecida.

IV
O grupo dos devotos
Será medo do inferno que impede os devotos de matar, de roubar, de se
retoiçarem, como javardos, no lamaçal dos sentidos? Crer-se-ha que elles
de per si sejam insensiveis á honra, ao opprobio, e aos mais
freios moraes e nobres estimulos que regulam a ordem e andamento das
sociedades temporaes? Ririam elles das galés e até da forca? Seriam
elles, em verdade, infames da ultima ralé, se não receassem a
condemnação?
Se ha ahi tal raça de christãos, confesso que eu não confiaria d'elles
nada, nem a minha bolsa, nem minha mulher, nem o meu segredo, nem eu
mesmo adormeceria socegado entre elles. D'um scelerado a um devoto
d'esta laia a distancia é tão curta que os meus pobres olhos não na
enxergam. Dizem que ha uns pessimos soldados que, á vista do inimigo,
olham para traz e só marcham para a frente com a bayoneta nos rins. E,
se os não vigiaes, eil-os que desertam; e, até quando se batem, albergam
a perfidia no coração. Pois bem: aquelles devotos são peores que os
soldados tredos, por que destemem os homens e os juizos humanos, e os
supplicios que os homens inventaram. O que elles sómente receiam é o
fogo eterno, uma pena á qual se foge mediante a confissão. Ageitado o
ensejo, roubam-vos, atraiçoam-vos, matam-vos, com a certeza de serem
absolvidos occultamente, por uma _mêa culpâ_. Desgraçadamente é certo que
a crença no inferno ha gerado monstros assim; a europa barbara tem
milhares d'elles; ha bastantes para lá dos montes, e bem póde ser que
mesmo cá; senão vejam aquelle devoto padre, cuja historia as gazetas
contaram ha pouco: era um padre que matava todos os seus filhos no
berço para se forrar ao incommodo de os crear; mas é provavel que os
baptisasse, com o receio de que se perdessem. Eu de mim não quero chamar
christãos, nem sequer homens, a taes feras. Deus nos livre de encontrar
similhantes christãos em uma serra por noite de luar.
A honestidade d'estes meus devotos custa-lhes pouco; são creaturinhas
que podem ver a felicidade dos outros sem sentirem cocegas de lh'a
empalmar; não roubam nem matam por que a forca os embaraça, e a opinião
dos homens ainda mais; pessoas, em fim, que tem mais mêdo ao crime que
aos castigos correspondentes. Taes são os meus devotos. Devotos denomino
eu todos os leigos que não duvidam, nem são indifferentes, nem se
esquecem de ir á missa, nem deixam de confessar-se _ao menos uma vez cada
anno_. É verdade que eu não os incampo a ninguem como anginhos já
cosinhados para a canonisação. Se elles não andassem por igrejas com
tanta regularidade, não sei bem como estremal-os, quanto ao seu
proceder, do bando dos indifferentes. Não são elles os derradeiros a
informar-se d'onde sopra o vento, onde aquece o sol, e onde está o idolo
do dia para o saudarem, nem tambem são os ultimos a apedrejar o idolo da
vespera. Quantas villanias sobre-douradas e quantas villanias bem nuas e
patentes lhes não attrahem as barretadas, e os cumprimenteiros sorrisos!
Como elles se curvam deante do que desprezam! Que impio acatamento
prestam á força, e até, com medo de se enganarem, ás apparencias
da força! Que vulgares mexericos, que vulgares ambiçõezinhas, que
exemplarissimas ingratidões!
Não os accuseis de hypocritas, que elles são sinceros, não fazem
momices, vão ás procissões com a melhor boa fé, assistem ás festas do
Mez de Maria, tem rosario, agnus-Dei, e penduram no pescoço medalhinhas
de cinco reis carregadas de indulgencias. E, assim mesmo apezar da sua
boa fé em medalhas, é bonito vêl-os, em sua casa, evitar o escandalo com
melhor exito, e mais vigilancia que o peccado. E nem assim o evitam. Se
sois curiosos, apanhai-m'os no ultimo degráo da escada, ahi por perto do
altar: vereis o conego ás más com o deão; o sineiro bate na mulher; o
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