O Inferno - 06

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sacristão tem má lingua; um juiz de irmandade casa a filha violentada
com um velho, e dá cabo d'ella; outro, á sobre-meza, faz-se truão de
chalaças de ebrio; e é de natureza tal, que a mulher por certas razões
não admitte em casa creadas que não tenham edade e figura bastante
canonicas, capazes de edificarem um mosteiro de bernardos; lá está um
que é rico, mas economico, e d'isso estão os pobres tristemente
convencidos. Ora, a esses peccados habituaes ajuntem, se quizerem, os
peccados de occasião, e digam-me como se distinguem, por suas obras, o
commum dos indifferentes do commum dos devotos.
Quereis subir ao primeiro degráo da escada? Luiz XI era devoto; Diana de
Poitiers era devota; Brantôme devoto era; tambem era devota aquella
regente de França que empregava as suas damas a seduzir, quero
dizer, a converter os jovens huguenots e os velhos tambem. Todo o seculo
XVII foi devoto, incluindo os cavalleiros farçolas, os bandidos, os
abbades galans e os abbades demoniacos, os aváros e os glotões, os
orgulhosos e os abjectos, as marquezas adulteras e os duques
medianeiros, os magistrados venaes e as princezas aventureiras. Todos
esses tinham bancada na egreja, iam aos sermões e discutiam ardentes
sobre a materia da graça. Os amantes arrufavam-se na quaresma e faziam
as pazes depois de Pascoa. Madame de Montespan, na côrte, cuidava em
salvar-se, e ninguem quizesse obrigal-a a comer, á sexta feira, uma aza
de borracho; o que ella então comia era salmão, lagostins, esperregado e
pastelinhos de leite. Madame de Sévigné, uma das mais honestas e amaveis
senhoras d'aquelle tempo, tambem devota, lia os _Contos de La Fontaine_, e
ficava-se a rir com elles e mais a filha. O inferno era como se nada
fosse n'essas coisas. Quem desgraçadamente pensava muito n'elle,
enterrava-se no claustro, como Mr. de Rancé e M.elle de La Vallière;
mas, pelo ordinario, havia pouco quem se debruçasse a espreitar o tal
abysmo; e quem se desse a esses exames sahia impertinente, misanthropo e
jansenista. Fallava-se do inferno; mas sem reflectir grande coisa;
encaravam-no pela casca. O grande caso era rir, cortejar o rei, agradar
a todos, inclusivè a Deus, dando-lhe a vêr com infinita habilidade,
espectaculos de devoção, de jogo, de ambição e... do mais.
O tempo e as revoluções que tantas mudanças tem feito, não mudaram o
coração humano. Os devotos não são tantos como d'antes, mas são da mesma
estôfa, e tanto montam estes como os outros, vistos a vulto. Relaxação
extrema em fidalgos e populaça; sêde ardentissima de enriquecer;
sordidissimos orgulhos; amores desatinados; paixões eriçadas de
remordentes espiritos e blandiciadas de prazeres! Deus me defenda de
calumniar peccadores a cheirarem ao incenso das igrejas! Bourdaloue, que
os conhecia, e os demais prégadores assim antigos que modernos, disseram
d'elles mais mal do que eu. O que sei é que o medo não faz bons aquelles
que o bem, só de per si, não convida. O pejo do peccado poderá restaurar
os cahidos; mas o medo, depois do peccado, é de todo o ponto inutil.
Não esqueçamos, porém, que ha devotos quasi irreprehensiveis, os quaes,
sem serem heroes nem se destinarem a tanto, cumprem, sem desfallecer, a
modesta missão que lhes quadra sobre a terra. São bemfazejos em pequena
escala; restringem-se a pouco mais de sua casa; quanto muito, chegam até
á visinhança; e, se por vezes, a mão caridosa ultrapassa estes limites
proveitosamente, de novo se retrahe ao seu limite, onde está a maior
formosura e grandeza de sua missão. Estes devotos não se distinguem dos
outros por grande assuidade nos templos; o que os differencêa é o serem
esmoleres; e mais visivelmente se estremam por se absterem do mal. Não
são rixosos nem maldizentes: tem ainda mais caridade na lingua do
que nas mãos, por que ella os serve com inexhauriveis riquezas.
D'aquelles peccados mortaes que a sociedade chama fraquezas, e em que
diariamente as pessoas piedosas resvalam sem morrerem d'isso, fogem
elles como d'um grande delicto. Amam a verdade, a ordem, a continencia,
o pudor, a sobriedade, como vós amais a justiça. E, comquanto não
descream do eterno fogo, a luz que os guia não esplende do inferno, vem
de cima; no ceo é que elles a buscam em seu peregrinar; e assim vão
alentados pela esperança e não pelo medo.

V
O grupo dos santos
Chegados somos aos bemfeitores dos homens, verdadeiros imitadores de
Jesus, entes mortaes mais proximos da perfeição, as irmãs da caridade,
os padres virtuosos, quantos se consagram a servir pobres, infermos,
ignorantes; quantos sacrificam, não esterilmente, mas ás nossas
precisões, seus teres, belleza, juventude, affeições domesticas, vigor,
saude, esperanças e quantas venturas terrenas ahi ha. Bem sei que todos
esses crêem no inferno; mas não são regidos por tal crença; nada tem que
vêr o seu proceder com ella; temem-se de offender Deus, não por que Deus
é vingativo, mas antes por que Deus perdôa; e esta crença
verdadeiramente salutar é uma das mais affectivas maneiras de
amar.
Se o temor leva ao deserto, o amor conduz aos homens; se o temor se
fecha á chave para dentro de grades, o amor quer sempre abertas as
portas. Quem envia ao martyrio os missionarios é o amor; quem dá mãe a
orphãos, filhas aos anciãos, irmãs aos soldados feridos, mestres aos
aldeãos, amigos aos penitentes, tutores aos innocentes, guias aos
transviados, é o amor. Todo bem feito n'este mundo é o amor que o faz; e
este amor, que transborda da alma dos santos, em si mesmo haure sua
fecundidade e bemfazeja energia.
Permittam-me uma hypothese.
Dê-se que um Concilio ecumenico se ajunta ámanhã, e declara, depois de
haver invocado o Espirito Santo, que o inferno não é perpetuo, e que a
palavra «eternidade», applicada ao castigo dos peccadores, significa tão
sómente pena de infinita duração. Que ha de seguir-se a similhante
proclamação? Imaginam que a irmã da caridade se retira logo do grabato
do infermo, e se engolpha nas suas delicias mundanaes? Pensam que o
benedictino, sacudindo o pó dos livros, se precipita na Bolsa? Que o
joven lazarista, repatriando-se de regiões remotas, venderia o cajado e
o breviario para ir ao theatro? Imaginam de boa fé que as irmãs da
caridade se acabariam para logo? Se pensam isto, que idêa formam dessas
bonissimas almas que os anjos e os homens admiram?
Consoante ao vosso modo de as julgar, a irmã da caridade diria: Ah! Deus
não é implacavel? Então fui louca em amal-o. Deus não condemna
irremissivelmente os peccadores? Louca fui em servil-o. Pois que!
n'aquella bemaventurada eternidade, que eu tanto anhelava, não hei de
ouvir os gritos da raiva e o estridor dos dentes dos condemnados? Que é
d'então dos encantos do paraiso? Meninos, procurem quem os eduque;
anciãos, procurem quem os alimente. Orphãosinhos desamparados, vós
pensaveis que nós eramos vossas mães e irmãs; cuidaveis que vos amavamos
por causa de vosso infortunio, e por vos termos em conta de membros
soffredores de Jesus Christo, nosso modêlo e nosso Deus. Desenganai-vos!
desenganai-vos! Não era por amor que vos amparavamos, era por medo que
vos serviamos como lividas escravas, covardemente flexiveis a todos os
caprichos de um senhor imperioso. Mas agora, visto dizerem-nos que o
inferno acaba, buscai quem vos ame e sirva. Cada qual por si. Acabou-se
o medo; nada de mais sacrificios. Abaixo, tunicas de burel; abaixo, veos
que nos escondieis volupias da terra, mas não as dôres, abaixo! A pureza
não é enlevo que nos contenha; gemidos de pobres não nos engodam;
queremos ter vez na taça do peccado; bebamos, que a vida é curta e o
inferno ha de acabar.
Não ha conjunctura em que eu ousasse attribuir similhante linguagem ás
irmãs da caridade. Nunca! ainda quando, em um nefasto dia, fosse abolido
o dogma salutar da justiça divina; ainda quando pregoassem que
tudo acaba no cemiterio, e que a sancção da moral está nos gosos e dôres
deste mundo, as irmãs da caridade não fallariam assim. Se um concilio
sahisse com aquellas decisões, regulal-o-hiam ellas.
Como é que o dogma do purgatorio, com seus flagellos de duração
ignorada, sempre consoantes á natureza e circumstancias do peccado, ás
luzes e costumes do peccador,--como é que este dogma tão racional,
certo, mysterioso e terrivel, poderia enfraquecer a virtude, e a virtude
principalmente d'aquellas almas livres, viris e modestas, nas quaes o
amor tem mais dominio que o medo?
Crêde-me que é isso um demasiado aviltar a lama humana, que mostraes não
conhecer; crêde-me. Se a Igreja ámanhã proclamasse a temporalidade das
penas, nenhuma irmã da caridade deslisaria da sua fileira, nem um
verdadeiro sacerdote abandonaria a sua grei, nem algum missionario
acharia o Evangelho desataviado de excellencias que ensinar aos
selvagens, nem a cruz radiaria menos, nem a palma dos martyres seria
menos de invejar. Vêr-se-hia, ao invez e instantaneamente, encherem-se
todas as igrejas, e justos e peccadores reunidos ao pé do altar, em um
mesmo consenso de acção de graças, cantarem do fundo da alma:
_Te-Deum, laudamus, in te, Domine, speravi; non confundebar in æternum._

FIM DA PRIMEIRA PARTE.


SEGUNDA PARTE
O INFERNO CONSIDERADO ÁLÉM-TUMULO, OS CONDEMNADOS NA PRESENÇA
DE DEUS, NA PRESENÇA DOS SANTOS, E NA PRESENÇA DOS HOMENS.


CAPITULO PRIMEIRO
O INFERNO DE PLATÃO

Até agora consideramos o inferno sómente em relação aos resultados
moraes que a crença de sua existencia tem produzido, produz e produzirá
sempre n'este mundo. Já demonstramos que esta crença, fatal a quantos se
compenetram d'ella, é inerte para os demais: é inutil aos verdadeiros
virtuosos, por que não tem que ver com o bem que praticam, e tambem ao
mal que não fazem; é inutil aos devotos e indifferentes, por que não os
estorva de commetter basta dóse de peccados mortaes; e pelo que toca aos
peccados que não commettem, tal abstenção explica-se em louvor d'elles,
por motivos totalmente independentes das penas infernaes; é inutil para
os philosophos, visto que estes a não acceitam; é, emfim, inutil aos
scelerados, por que os não impede de ser scelerados; e, de mais a
mais concorre, umas vezes, a precipital-os no crime, outras a
empedernil-os na perversidade.
Falta agora considerar o inferno, não em referencia á terra, mas pelo
que elle é em si, qual os padres, doutores e mysticos o pintaram, isto
é, nas suas relações com Deus, com os predestinados e com os reprobos.
Mas, antes d'isso, cumpre-nos dizer alguma coisa das opiniões de Platão
ácerca da justiça divina e do inferno. Será isto, a um tempo, entrar no
assumpto, e responder aos theologos que, á mingua de razões, invocam de
vontade, n'esta materia, a auctoridade de Ovidio, de Horacio, de
Lucrecio, de Virgilio, de Hesiodo, de Orpheo, e d'outros escriptores de
costumes sobre modo extravagantes que, a tal respeito, repetiram as
idêas do antigo paganismo e nada mais.
A opinião de Platão, que elles mais acintemente allegam, deriva da mesma
fonte; mas, alumiada pela indole e pura vida d'aquelle philosopho,
ostenta-se mais respeitavel e seductora.
É mister, no dizer de Platão, que um castigo seja razoavel para ser
justo; e para que seja razoavel, uma de duas clausulas é precisa: ou que
o castigo aproveite ao castigado, ou ás testemunhas d'elle.
Partindo d'este principio, Platão não prodigalisa, á feição dos nossos
theologos, as penas eternas, por quanto, a seu parecer, falta n'ellas a
grande virtude das penas temporarias. São estas, em verdade,
dobradamente prestadias, pois que ao mesmo tempo corrigem o
culpado e admoestam os espectadores; pelo contrario, as outras não
corrigem o culpado e podem apenas admoestar os vivos que as conhecem:
logo são menos prestantes e universaes e completas; falta-lhes aquella
bemfazeja efficacia com que os deuses folgam de dulcificar as obras da
sua justiça; digamol-o em pouco: são menos divinas.
Eis-ahi porque Platão é aváro das penas eternas e perdoa ao maximo
numero de peccadores, descontando-lhes os gemidos, lavando-os e
purificando-os em suas proprias lagrimas, á excepção dos oppressores dos
povos, de seus cumplices e louvaminheiros que expressamente exclue da
lei commum. Para estes é elle durissimo; eternisa-lhes as dores;
todavia, os deuses não podem ser accusados por isso de inutilmente
rigorosos.
De feito, se a tyrannia é o maior dos crimes, e o unico expiavel, é
porque a liberdade, que ella anniquila, é o maior bem que os deuses nos
doaram, unico impossivel de substituir; é porque, na sociedade
escravisada, cessam os prazeres honestos, a verdadeira gloria, sabedoria
e virtudes.
Tal é o senso intimo do castigo excepcional que Platão applica aos
tyrannos. Bastantemente está explicado a superioridade do terrivel
castigo; mas o que não se explica é a razão da sua perpetuidade. Platão
suppunha-o eterno porque não sabia, como nós, que a humanidade tem que
percorrer no tempo um circulo limitado, e que este universo ha de
acabar. Eternisava elle, por tanto, o supplicio dos tyrannos, por
suppôr que o seu exemplo devia ser eternamente util na terra. Não ha
outra maneira de lhe justificar o inferno no seu systema.
Foi, porém, esta justificação do inferno destruida por Christo, o qual
nos annunciou que todo o genero humano é, como cada homem, um passageiro
na terra, e que um dia virá em que esta esphera que habitamos, e estes
astros que nos alumiam, se sumirão no espaço como a poeira que o vento
da noite espalha. Quem utilisaria com o supplicio dos condemnados,
quando as testemunhas, em vez de fracos mortaes, fossem santos
impeccaveis?
O inferno dos theologos não é, pois, identico ao inferno de Platão: o de
Platão devia ser util sempre; o dos theologos, por fructificar um dia,
ficaria esteril para sempre. Essa esterilidade já lh'a nós presentimos.
Indagamos a razão d'uns padecimentos improficuos á victima, ao juiz, a
todos. O coração protesta contra tal crueldade sem intento e sem
effeito. Córa a gente só de o crêr. Como que o homem se sente melhor do
que essa divindade absurda, sedenta sempre de torturas, ebria sempre de
ira, insensivel sempre, peior que o abutre do Prometheo, que ás vezes,
ao menos, adormece sobre a preza. Só pensar n'isto gera o atheismo na
alma.
Erradamente, pois, se invoca, em pró de similhantes castigos, o
testemunho de Platão, que se horrorisaria d'elles. Platão não condemnava
o pobre pegureiro por algum roubo desconhecido ou tentativa
malograda; mas bem póde ser que elle condemnasse inflexivelmente S.
Clotario, S. Constantino e S. Carlos Magno. Além de que, elle tinha,
para admittir um inferno sem fim, razões que não temos; e nós, para o
rejeitarmos, temos razões que elle ignorava.


CAPITULO SEGUNDO

Opinião dos pagãos sobre a situação e vista interior do inferno
Os antigos situavam o inferno no centro da terra que habitamos, e
pretendiam ter a este respeito pormenores muito satisfatorios. Os gregos
e os romanos possuiam um mappa minucioso d'estas regiões subterraneas, a
ponto de lhes conhecerem os rios, taes como o lodoso Cocyto, o ardente
Phlegeton, e o invadiavel Acheronte; sabiam até que havia lá fetidas
lagôas, em uma das quaes estava Tantalo atascado até aos queixos sem
poder apagar a sêde; sabiam d'uns bosques medonhos em que certas almas
se lamuriavam, debalde anciando o alvor do dia; conheciam montanhas, que
outros condemnados, perseguidos pelas furias, em vão se esfalfavam por
galgar. Contavam a historia de alguns desgraçados assim, e as
particularidades do seu supplicio. Comtudo, apezar da indole
inteiramente physica d'aquelles diversos castigos, diziam que os
pacientes não tinham corpo, que os mortos eram apenas sombras
intangiveis, bem que animadas, e que o seu maximo tormento era não
poderem jámais viver vida carnal á luz do nosso sol. Isto contavam-no
elles com toda a certeza, fiados em pessoas que tinham descido ao
Tartaro, e de lá tinham voltado. Era conhecida a estrada por onde essas
pessoas tinham viajado; havia cavernas que os pastores conheciam, poços
d'onde sahiam vapores lethiferos e por onde se descia ao inferno.
Não eram menos instruidos os egypcios. Em assumpto de horrores visiveis,
o Amenthi havia emprestado ao Tartaro pavorosos quadros. N'este Amenthi,
que, segundo consta, quer dizer _paiz da noite_, estão o cão de sete
cabeças e outros deuses de feitios monstruosos. Ahi se encontra o
Acheronte e o seu batel, os marneis e as aridas gándaras, e todas as
figurações do mundo devastado.
Tem setenta e cinco circulos, e á entrada de cada circulo um genio
armado. Giram as almas d'um circulo n'outro, algumas em fórma humana,
outras com fórmas immundas, com cabeças de aves de rapina, pellagem de
fera, e garras de reptil. O pavimento é sangue. Estrondeiam os gemidos.
Pendem os condemnados dos ganchos á maneira de carneiros no açougue, ao
passo que outros, ainda palpitantes, são mergulhados em caldeirões
ferventes. Uns vão fugindo, com os braços estendidos, e a cabeça
quasi separada do tronco, outros levam nas proprias mãos o coração que
lhes arrancaram do peito que mostram lanhado.
Conforme nos vamos aproximando das primitivas civilisações, e, por
consequencia, do primitivo barbarismo, mais o genero humano parece
deliciar-se no repasto espectaculoso de seus proprios soffrimentos, e o
mundo invisivel é para elle um espelho de augmento das miserias e
torturas do mundo visivel.
Cada povo se espelha na imagem que nos deixou de seu inferno, com as
suas idêas moraes, leis, necessidades, com seus costumes, temperamento e
clima.
Nas serranias do Thibet, onde rapidamente se passa do mais rigoroso frio
ao mais suffocante calor, ensinam os lamas que o inferno, situado em
determinado logar da Asia umas tantas legoas da superficie da terra, é
formado de dezeseis circulos: oito onde se arde, oito onde se gela.
Nas esplanadas da India, onde não ha inverno, e onde as populações,
languidas de calor, corruptas pelas liberalidades da terra, apenas tem
phantasia para inventar prazeres e supplicios, dizem os brahmanes que
certos sitios do Naraka estão cheios de mosquitos, de serpentes
venenosas, de escorpiões horriveis, de tigres, de abutres e de todos os
flagellos proprios d'aquellas regiões ardentes; e que os outros circulos
são o theatro das mais requintadas torturas que ainda póde conceber a
malicia d'um rajah arrojado. Ahi os glotões são condemnados a
comer calháos asperrimos de puas agudas; os luxuriosos são apertados nos
braços de estatuas de ferro em braza.
Contam pelo miudo todas as circumstancias d'estes infinitos martyrios, e
taes narrativas fariam impallidecer Ixion sobre a sua roda, Sizipho
debaixo do seu penedo. Sabem os hindostanicos pelos livros e pela
tradição em que ponto da sua terra está situado o Naraka e a que
profundeza se encontra. Mas não podem os mortos encerrados ahi achar os
limites e as portas d'aquelle inferno.
No inferno dos scandinavos, chamado Nifleim, não ha fogo. Essas antigas
nações do norte gostam tanto de calor, que não poderam consideral-o um
supplicio; pelo que o seu inferno é de neve, onde ha o tiritar, a fome,
a febre, a velhice tremente, as torrentes glaciaes, as tempestades, o
uivar dos lobos, o pavor que estaleja os dentes, e os cobardes, unicos
condemnados que ahi vão.
Concluamos esta historia, que daria assumpto para um livro. As reflexões
moraes que ella suscita vão breve ser applicadas na descripção do nosso
proprio inferno, que na essencia não se distingue dos infernos pagãos.
Porém, sendo elle procedente do inferno judaico, paremos diante
d'este.


CAPITULO TERCEIRO

Opinião dos judeus ácerca da vista interior do inferno.
Sabido é que o Antigo Testamento é muito sobrio de revelações do
inferno. Com muito custo se rebuscaram n'elle alguns versiculos
tendentes a estabelecer aquella crença entre os hebreus, antes da
destruição do primeiro templo. Os saduceos, que juravam sómente pela
Biblia, negavam absolutamente a vida futura. Ora, bastantes sabios
tinham os saduceos em conta de melhores interpretes da Biblia. Dizem
elles que os judeus, durante as tristezas do captiveiro, souberam da
bôcca dos magos a immortalidade da alma e a sciencia demonologica.
Todavia, Abrahão era chaldeo; os filhos de Jacob haviam longo tempo
estanciado no Egypto;--isto dá a crer que os seus descendentes deviam
possuir, antes de exilados em Babylonia, parte dos conhecimentos
que os escripturistas registavam. Não exerciam os prophetas um ensino
mystico, e não conservava o povo tantas tradições grosseiras
contemporaneas de Moysés e talvez anteriores? As passagens respigadas na
escriptura e nomeadamente em Isaias, relativas ao inferno, seriam
inexplicaveis, se não se lhe referissem; mas seriam egualmente
inexplicaveis se o povo não tivesse, para intendel-as, mais luz da que
lhe dão essas passagens. Estes trechos não encerram doutrina secreta dos
prophetas, respeito á vida futura; contém mais referencias que
revelações á crença vulgar e formalissima do inferno.
O nome «Géhenna» que lá dão á paragem das expiações futuras, não era
estrangeiro; era o nome de um vale ao poente de Jerusalem, onde, desde a
origem de sua historia, iam os hebreus adorar Molock, e sacrificar-lhe
no fogo victimas humanas, e, ás vezes, seus proprios filhos. N'este
sitio, tambem denominado _Trophet_, ou «logar horrendo», eram lançados os
cadaveres dos justiçados e os despojos dos animaes. Este valle maldito,
sagrado pela superstição aos deuses sanguinarios, juncado de carnes
putridas e ossadas alvejantes, assombrado de larvas sinistras, resonante
de gemidos e rugidos, converteu-se para os moradores da cidade santa,
não já em verdadeiro inferno, mas no symbolo exterior e synonymo de
inferno. No inferno verdadeiro, ardiam Moloch e os seus idolatras na
mesma fogueira; os máos eram roidos pelos vermes; e estes vermes eram
immorredouros como as suas prêas:--idêas positivamente exprimidas
por Isaias, cap. LXVI, ultimo verso.
É egualmente certo que os rabbinos e tambem o povo, tão pouco iniciados
até então andavam na mystica philosophia, que, se alguma vez discutiam,
davam azo a que os prophetas se rissem ou indignassem; porém, depois que
os rabbinos e o povo se recolheram do captiveiro, as suas noções eram
mais amplas, e talvez as mesmas que se escondiam nas escólas do Carmelo
e de Galgala.
Vamos vêr quaes são as noções não contidas no Antigo Testamento, mas
traçadas manifestamente no Novo, as quaes, quando S. Paulo, S. Mathias,
S. João e outros apostolos escreviam, já se haviam derramado na Judea,
quinhentos ou mais annos antes.
Era dividido o Scheol, ou mundo futuro, em duas regiões, que
comprehendiam o paraiso e a géhenna. A géhenna, objecto d'este estudo,
era contada no numero das sete creações anteriores ao nosso universo. Á
similhança do Amenthi egypcio e do Naraka indiatico, era formada de
diversos circulos, mas só tinha sete, correspondendo aos sete dias do
Genesis, e aos sete ceos ou sete circulos do paraiso. Havia géhenna
superior e géhenna inferior. A superior abrangia os seis primeiros
circulos: era uma especie de purgatorio onde baixavam, depois da morte,
os peccadores dignos de perdão: uns ficavam no sexto, outros no quinto,
outros no quarto circulo, outros no primeiro, conforme a gravidade ou
leveza dos seus peccados. Trezentos e sessenta e cinco degráos,
correspondentes aos trezentos e sessenta e cinco peccados assignalados
pelos doutores, formavam escaleiras d'um circulo a outro, e em cada
circulo era mister passar trezentos e sessenta e cinco dias. Porém, os
grandes criminosos, abatidos sob o gravame de suas culpas, atravessavam,
sem poder parar e com a rapidez de pedra arrojada por funda, os seis
primeiros circulos da spiral, e cahiam no setimo, no fundo abysmo, na
géhenna inferior, d'onde não ha mais sahir. Á frente de suas legiões ahi
os recebia Samael, e então lhes começava o perpetuo supplicio, o insulto
dos diabos, a saudade da vida, o fogo interno e externo, o tormento da
sêde, e a miragem cruelissima que scintilla aos olhos dos peregrinos
agonisantes no deserto[5].
Taes eram, em resumo, as opiniões da synagoga ácerca do inferno.
Entretanto os essenios, seita monastica celibataria que vivia em commum
para espiritualmente se reproduzir, professavam outra. O inferno
d'elles, coisa notavel, similhava ao dos monges thibetanos; os
soffrimentos ahi eram calor e frio, e todas as intemperies das estações
em climas deseguaes.
Agora vejamos o inferno dos nossos theologos.
[5] O inferno mahometano é copia do judaico, mas copia singularmente
alterada. O anjo Trakek é quem lá governa. Ha lá chuva de peçonha.
Chama-se Géhenna e divide-se em sete circulos. Porém, exceptuado o
primeiro circulo, reservado exclusivamente para os musulmanos, e o
ultimo, destinado aos hypocritas, cada qual dos outros é pertencente
a cada uma das religiões diversas que precederam o islamismo. Estes
hereticos estão portanto em andares sobrepostos, quasi por ordem de
sua antiguidade: os christãos no segundo, os judeus no terceiro, os
sabeos no quarto, os guebros no quinto, os idolatras no sexto.
D'estes seis ultimos ninguem sahe: ahi é o verdadeiro inferno; mas o
primeiro, o circulo de honra dos crentes, é purgatorio, no dizer dos
doutores.


CAPITULO QUARTO
O INFERNO DOS THEOLOGOS
POR DUAS FACES VAMOS VER O NOSSO INFERNO;
PRIMEIRA A MATERIAL, DEPOIS A MORAL

I
O inferno material
São puros espiritos os demonios, e tambem puros espiritos devem
considerar-se os condemnados no inferno, por quanto só a alma d'elles lá
desceu, e os ossos restituidos á terra se transformam continuamente em
hervaçaes, plantas, fructos, mineraes, liquidos, desfigurando-se nas
continuadas methamorphoses da materia.
Tanto, porém, os condemnados como os santos hão-de resuscitar no dia
final e reassumir para nunca mais o deixar um corpo carnal, o mesmo
corpo com o qual passaram entre os vivos.
A distincção d'uns a outros é que os eleitos hão de resurgir em corpos
purificados e radiosos, e os condemnados em corpos poluidos e afeiados
pela culpa. E de então ao diante não haverá sómente puros
espiritos no inferno; mas sim homens como nós. É por consequencia o
inferno uma localidade physica, geographica e material, visto que hão de
povoal-o creaturas terrestres, dotadas de pés, mãos, bôcca, lingua,
dentes, orelhas, olhos como os nossos, veias com sangue, e nervos
sensiveis á dor.
Onde está situado este inferno? Alguns doutores situam-no nas entranhas
da terra; outros em certo planeta que eu não sei; mas a questão nenhum
concilio ainda a resolveu. A este respeito é tudo conjecturas; o mais
que se affirma é que o inferno, seja onde fôr, é um mundo composto de
elementos materiaes, mas não tem sol, nem lua, nem estrellas, e é mais
triste e inhospito, e mais ermo de todo o germen e apparencia de bem, do
que todos os pontos inhabitaveis do mundo em que peccamos.
Não se arriscam os discretos theologos a pintar, á similhança dos
egypicos, indostanicos, e gregos, o immenso horror d'essa mansão;
limitam-se a dar-nos como amostra o pouco que a escriptura denuncia, o
lago de fogo, e o enxofre do Apocalypse, e mais os vermes de Isaias,
aquelles vermes eternamente enxameando sobre as carcaças de Thophet, e
os demonios atormentando os homens que perverteram, e os homens chorando
e ringindo os dentes, segundo a expressão dos evangelistas.
Santo Agostinho não concede que aquellas penas physicas sejam simples
imagens das penas moraes; contempla em um verdadeiro lago de
enxofre vermes e serpentes verdadeiras encarniçadas sobre todas as
partes dos condemnados, exacerbando com as suas mordeduras as ulcerações
do fogo. Quer, conforme um verso de S. Marcos, que este estranho fogo,
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Next - O Inferno - 07
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