O Inferno - 01

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O INFERNO

AUGUSTO CALLET
O INFERNO
TRASLADADO PARA PORTUGUEZ E PRECEDIDO DE UMA ADVERTENCIA
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO


PORTO
TYPOGRAPHIA DA LIVRARIA NACIONAL
2, Rua do Laranjal, 22
1871


ADVERTENCIA DO TRADUCTOR

N'este memoravel anno de 1871, o sacerdocio militante da christandade
lusitana subiu aos baluartes mais desamparados, aos pulpitos de grande
parte do reino, e desembestou certeiras fréchadas ao rosto da impiedade.
No pulpito da egreja de S. Martinho de Cedofeita, d'esta cidade do
Porto,--que não é a mais peccadora, porque é a menos ociosa,--discorreu
apostolicamente um padre italiano, que eu não ouvi.
Não fui ouvil-o, porque já tenho muitissimos annos e bastante leitura
para conhecer que direitos tem Deus e o proximo ao meu amor.
Não o fui ouvir pela mesma razão que evito alguns livros prohibidos,
receoso de que elles estremeçam os alicerces da minha fé.
Não fui ouvil-o, emfim, porque ha um sermão que eu sei de cór, e repito
quando tenho sêde de fé, ancias de misericordia, tibiezas de
esperança: é o sermão da montanha, prégado aos pobres por nosso Senhor
Jesus Christo.
Este sermão ainda meus filhos o não sabem; mas hão de aprendel-o quando
as primeiras lagrimas lhes tiverem delido as manchas escuras do
intendimento. É preciso ter chorado para comprehender a bem-aventurança
dos que choram. Jesus Christo, se houvesse dito aquellas divinas
palavras aos felizes, não seria intendido no apostolado, nem seguido na
vida, nem chorado na morte, nem confessado no martyrio.
Levantei, pois, o pequenino e fragil oratorio das minhas preces humildes
sobre a confiança do divino Pae; e, se em minha alma sinto o desejo de
não ter nascido para dôres deseguaes ao alento de cada homem, reconheço
que o oratorio do peccador está tanto á vista de Deus que o anjo da
paciencia abre as suas luzentissimas azas sobre os meus abysmos escuros.
Ora eu sei de triste experiencia que os discursos do missionario em
Portugal me desataviam o espirito das vestes graves com que costumo
entrar nos templos.
Na minha mocidade estudei grammatica, fui examinado em logica, decorei a
inutilissima cousa chamada rhetorica, cursei muito pela rama algumas
aulas de theologia; finalmente, poli quanto pude a razão para que se
espelhassem n'ella os preceitos e conceitos dos oradores sagrados.
Pois acontecia que todos aquelles predicados, desde a grammatica de
Lobato até á theologia do bispo de Leão, cá no meu interior despiam a
casaca e a dalmacia venerandas, para galhofarem d'uns certos padres que
se imaginavam favorecidos da infusão scientifica, uma só vez
milagrosamente concedida pelo Espirito Santo aos santissimos ignorantes
do Cenaculo.
Arguiam-me de indiscreto os bons amigos que me ouviam deplorar a
decadencia da oratoria sacra, justificando o proposito pelos resultados,
a uncção do prégador pelo soluçar do auditorio, a fertilidade da palavra
pela emenda das culpas.
O soluçar do auditorio era tão acceitavel e prestadio como as lagrimas
no theatro, que denotam, quando muito, corações sensiveis; aquillo,
porém, de emenda das culpas é que vinha desconceituar a argumentação dos
meus amigos.
As culpas! o desconcerto da vida, a irreverencia a Deus, o desamor ao
proximo, as intranhas descaroadas do rico, a rebellião cubiçosa do
pobre, a mão que se esquiva em levantar da lagem o orphão--estas e
outras más fibras do coração humano poderá retemperal-as a consciencia
illustrada; mas a consciencia espavorida pelo medo dos castigos eternos,
essa não.
E os missionarios, que ludibriavam a minha devoção ou curiosidade,
demonstravam a precisão de sermos continentes, sobrios, humildes,
caritativos, christãos emfim, para não sermos eternamente refervidos no
lago de sulphur candente.
Eu nunca ouvi dizer na casa da oração que a providencial justiça tem o
seu tribunal em meio dos vivos; que o vicio deshonra, infama, e tolhe o
goso dos bens d'esta vida; que a repulsão do delinquente é um castigo;
que a sociedade pune primeiro que a lei; e que, se a justiça dos codigos
algumas vezes erra, a justiça complexa da opinião publica mantém
a disciplina do supplicio, invisivel mas exulcerante na consciencia do
culpado.
Nunca ouvi missionario que me parecesse mais illustrado que a maioria
dos seus ouvintes, nem vi espectaculo onde reluzissem mais vivos e
tristes reflexos da edade-media. Historias horrendas e ás vezes
esqualidas de castigos infernaes; immersões em caldeiras rubidas das
lavaredas; corpos espedaçados por dragões e logo recompostos para nova e
eterna dilaceração; imborcações de peçonha na bôcca dos gulosos;
amplexos de serpentes escamosas de brazas n'aquelles que lubricamente
deleitaram os corpos n'este mundo: era isto, não era o penetrante pejo
do vicio que chamava aos olhos do auditorio as lagrimas restauradoras.
Mas, ao fechar da missão, o peito oppresso do peccador atterrado
desafogava-se na esperança de illudir o diabo com uma confissão geral e
um profundo pesar na hora da morte, visto que o missionario promettia o
céo aos que, nos ultimos instantes, se sentissem vivamente magoados de
terem sido perversos.
O céo!
E que promette o padre aos justos, aos que desde a juventude até á
decrepidez apenas prevaricaram venialmente? o céo.
E aos apostolos que vão á fogueira offerecendo ao divino martyr o
tributo de suas agonias? o céo.
O céo para o facinora contricto no ultimo momento, e o céo para o santo
de toda a vida! O céo para o martyr e o céo para o algoz que houve
remorso de o haver matado! Ó fé, revérbero de Deus, estarias apagada, se
não fosses divina!
Em compensação, porém, que profusa prodigalidade de infernos
além-tumulo! Infernos legendarios, imitações do grego, do egypcio, do
indostanico, todos os infernos, excepto o verdadeiro--o inferno d'esta
vida, a corrente do remorso ao pelourinho da consciencia, e a desgraça
implacavel ainda para os que não têm consciencia nem remorso.
Pois esta doce e misericordiosa alliança de Jesus com os attribulados,
com os frageis por compleição e por mal dirigidos na mocidade, comporta
em si a hypothese de Satanaz, que nos espia o ensejo favoravel e nos faz
cambapé ás suas voragens? Comprehendem acaso que Deus se não amerceie de
homens fraquissimos, vencidos por um gigante que não coube no céo? Não
vêm que Lucifer se atreveu com o Creador, e, depois de vencido, teve por
homenagem o reinado de um mundo, e o generalato de legiões immensas,
todas a manobrarem na terra para vencerem... a quem? um descendente de
Adão, do logrado do Eden, Adão, que tinha em si a plenitude da força, da
sciencia; a força do corpo ainda aquecido da mão de Deus; a força da
alma iriada dos reflexos do seu Creador! E o homem, debilitado pelo
attrito de seis mil annos, que querem que elle seja? Porque lhe decretam
a elle--ao fraco--o inferno, se Deus apenas condemnou o forte a viver do
suor do seu rosto?
Estas e outras meditações, dignas de que Deus m'as perdôe, se a palavra
não friza bem com a lisa intenção, me preoccupavam, quando li este livro
de Callet, com certo medo de violar o meu salutar costume de não lêr
livros prohibidos, tirante os uteis, os desenfastiados e principalmente
os instructivos.
O auctor, comquanto excommungado, usou a christã bem-querença de
prevenir-me de que a sua obra estava condemnada. Decidi logo que o livro
não seria de todo mau. E, depois que o li, reflexionei que os cardeaes
seriam mais discretos esquivando-se a dar voga a escriptos que andariam
menos procurados sem a chancella da prohibição.
A mim me quer parecer que o _Inferno_ de Callet sahiria com fóros de
orthodoxo da assemblêa dos primitivos christãos, quero dizer, dos
seguidores de Jesus Christo anteriores áquella pestilencial sciencia
chamada Theologia: tal é a pureza, luz, amor e christianissimo espirito
que ungem as paginas d'este consolativo livro.
Augmenta-lhe o valor o encontrar-se com os missionarios portuguezes,
cada vez mais attidos á rhetorica ardente do inferno, como se elles e
ouvintes não houvessem dado ainda um passo desde que é dia, desde que a
razão fez pazes com a fé illustrada.
É tão verdade que este systema de moralisar nada aproveita, quanto é
certo que nas aldeias, onde mais trovejam as ameaças do missionario,
encontrareis o demonio da corrupção fazendo tregeitos ao padre ás portas
das cabanas, onde o vicio avulta mais esqualido com a hediondez dos seus
farrapos.
Não melhorareis a sociedade a prégar. E todavia, serodios apostolos, na
vossa sinceridade, creio eu, por não ter grande confiança na vossa
illustração, e me ser muito custoso suspeitar que sois hypocritas.
Ora lêde este livro que se vos offerece em portuguez correntio, e dizei,
se, apagado o inferno, não será possivel accender pharol mais humano e
mais divino pelo qual se norteie a posteridade da peccadora Eva,
esta immensa familia d'hoje, estygmatisada seis mil annos antes!

Julho de 1871.
_Camillo Castello Branco._


PREFACIO
DA SEGUNDA EDIÇÃO

Aos 20 de Junho de 1862 a sagrada congregação do Index condemnou em Roma
este livro ácerca do inferno. Caridosamente advirto a leitoras e
leitores que temos aqui fructo prohibido.
Perguntam-me o que vem a ser a congregação do Index? Eis-aqui o pouco
que sei d'isso: o papa Paulo III publicou em 1539 um catalogo de livros
cuja leitura prohibiu aos fieis sob pena de excommunhão. Este catalogo,
chamado Index, foi approvado pelo concilio de Trento, enriquecido de
numerosos artigos, e por elle, antes de dissolver-se, recommendado a Pio
IV. O papa Sixto V, que não tinha vagar para lêr, creou, mais tarde, uma
commissão permanente de cardeaes encarregada de examinar e condemnar
livros. Esta commissão de cardeaes é o que se chama a sagrada
congregação do Index.
Convém saber que Paulo III, velho amigo de Alexandre VI, e tanto, como
elle, muito desacreditado por seus vicios, desmembrou dos
dominios de S. Pedro as cidades e territorios de Parma e Placença que
elle deu com plena soberania, e com titulo de ducado, a Pedro Luiz
Farnezio, um dos seus filhos naturaes. Este tal fundou a inquisição,
instituiu a ordem dos capuchinhos, exercitou a astrologia, fomentou e
applaudiu a carnificina dos vandezes. Não discuto similhantes actos;
recordo-os porque elles se ligam á mesma idêa que creou o Index.
Pio IV, a rogo dos Jesuitas, acrescentou algumas contas ao rozario,
augmentando-lhe as virtudes; fez estrangular o cardeal Caraffa, sobrinho
do seu predecessor Paulo IV; fez decapitar o duque de Palliano, irmão
d'aquelle cardeal, e outros muitos personagens cujas cabeças
ensanguentadas, por sua ordem, foram expostas sobre a porta do castello
de S. Angelo; abafou o processo instaurado em Espanha contra o clero
accusado de libertinagem; mas em compensação accendeu por toda a parte a
guerra contra os herejes. Accuzam-no de haver beneficiado mais a sua
familia que ao povo romano. Eu por mim não lhe contesto as virtudes, e
menos ainda a orthodoxia. Na famosa bulla de 24 de Abril de 1564
declarou excommungados, _ipso facto_, quem quer que no futuro imprimisse,
vendesse ou lesse algumas das obras inscriptas no Index pelo concilio ou
por elle mesmo; e bem assim quem, não as tendo lido, as emprestasse ao
visinho, ou, sem as ler ou communicar a alguem, as fechasse na sua
bibliotheca ou n'algum esconderijo da sua casa. Urgia, pois, queimar os
livros prohibidos quem quizesse evadir-se á excommunhão, e em seguida á
condemnação eterna. Como não podesse queimar os auctores, Pio IV
desforrava-se fazendo-lhes queimar as obras.
A vida de Sixto V é bastantemente conhecida, não tem que vêr com a de S.
Pedro; mas sobejavam-lhe intelligencia e indole sufficientes ao
exercicio do poder absoluto. Era manhoso e cruel este grande papa, cujo
systema de governar compendiou em duas palavras: pão e páo.
Dispensam-se pois os povos de pensar, como coisa perigosa: é bastante
que elles não morram de fome e que tremam sempre diante do algoz. Depois
erijam-se obeliscos e edifiquem-se templos.
Este papa mandava decapitar os padecentes debaixo das suas janellas,
antes de sentar-se á meza, dizendo que isto lhe abria o appetite. As
cabeças dos suppliciados, que elle expunha e deixava apodrecer aos olhos
dos caminhantes, ameaçavam de peste a cidade. Apezar dos juizes, fez
enforcar um mancebo de 16 annos por haver resistido aos quadrilheiros
que o prenderam. Ordenou que cortassem as mãos e que traspassassem a
lingua d'um auctor epigrammatico. Excommungou a rainha Isabel,
desquitando a nação do juramento de fidelidade; excommungou o rei de
Navarra, o principe de Condé e o rei de França, exaltando até ao delirio
o fanatismo dos partidarios da Liga; e depois do assassinio do
desgraçado Henrique III, elogiou em pleno consistorio Jacques Clement,
comparando-o a Judith e Eleazar, debeis mas fieis instrumentos do Deus
dos combates. E como signal sensibilissimo de sua terna solicitude pela
salvação das almas, restabeleceu ao mesmo tempo o santo officio e
cumulou de indulgencias a confraria do Santo Cordão. Era proprio d'este
grande e devoto papa continuar a guerra declarada por seus predecessores
á razão humana e á liberdade da consciencia, instituindo de par com o
santo officio a congregação do Index.
Não cuideis, porém, que os livros condemnados por esta congregação
fossem lidos pelo papa ou sequer pelos cardeaes encarregados d'isso. Por
via de regra os cardeaes nada lêem. Á laia de Sixto V, encarregavam
outros d'esse officio. Á volta da congregação do Index formigavam monges
e obscuros theologos de toda a parte, chamados consultores, a quem
incumbia o encargo quasi sempre fastidioso de lêr obras novas. As
formidaveis sentenças do Index, mediante as quaes uma familia inteira
era excommungada e condemnada, promanavam do relatorio d'estes
consultores: tal era a sorte de quem recusasse queimar um cartapacio
jansenista, herança de avó piedosa, ou as _Maximas dos Santos_ de Fénelon,
ou os _Pensamentos_ de Pascal, ou as _Reflexões moraes_ de Quesnel, embora
approvadas pelo cardeal de Noailes, arcebispo de Pariz, ou a _Theologia_
de padre Lequeux--primeira edição--ou a _Philosophia_ de Cousin. Pelo que
me toca, julguei que o inferno é uma concepção immoral, profunda e
forçosamente immoral pelas razões que adduzi. Tambem mostrei, a diversas
luzes, o perigo de similhante crença para o genero humano. Por isso fui
condemnado em Roma. Optimamente! Agora exijo que me respondam. Graves e
leaes são as minhas objeções: o decreto do Index as deixou subsistir em
todo o seu vigor.
Quando a soberania temporal do papa, que não é dogma, deixar de absorver
os esforços todos dos defensores da fé, espero que elles tenham vagar de
cuidar no inferno, que é um dogma, e dogma tanto em perigo e tão
vacillante--fiquem-no sabendo--como o throno de Paulo III, de Pio IV, e
Pio V.


INTRODUCÇÃO
DOGMAS HEBRAICOS

É crença anterior á prégação de Christo, quanto ao texto, mas diversa do
espirito do Evangelho, a eternidade das penas. Prende esta crença com
outros dogmas rabbinicos, tão obscuros quanto descaridosos, que a Egreja
nascente adoptou e que ainda hoje formam o essencial da theologia
christã. Podemos reduzir aquelles dogmas a cinco, consubstanciados todos
no Inferno. Vem a ser: a Rebellião de Satan, o Castigo de Satan, o
Paraiso terreal, a Maldição dos homens, o Povo de Deus.
Não intento esquadrinhar o sentido philosophico de taes dogmas: tal
canceira, superflua para leitores instruidos, seria insipida e
inutil para os ignorantes. Que Satanaz, inferno, peccado original,
etc., sejam ou não horrendos symbolos do antigo pantheismo
asiatico,--expressão viva d'um systema de methaphysica mais terrivel que
especioso, onde liberdade e mal se confundem, e o nada divinisado tem
consciencia de si, e Deus quasi deixa de ser--questões são essas
proprias de academias. Taes dogmas para mim são o que á letra
significam; sei d'elles o que nos ensinam; vejo-os como nos mandam
vêl-os, como a multidão os vê, coisas reaes, pessoas verdadeiras, e não
chimeras. Considero-os pois sob a fórma com que elles, ha muitos
seculos, influem no genero humano: e não ha mais seguro modo de lhes
apreciar o valor moral.
Entremos na exposição, clara quanta fôr possivel, d'estes dogmas
mysteriosos.

I
Rebellião de Satanaz
A historia de Satanaz não se encontra na Biblia nem no Evangelho. Passou
tradicionalmente da synagoga á Egreja. No Thalmud e nos Padres é que vem
escripta.
Satanaz era um anjo--como quem diz um espirito incorporeo, um sôpro de
Deus. Pureza, força e benção eram o principio e constituição de sua
essencia. Estava elle no ceo resguardado de exemplos e conselhos
maus. Creado para o bem alli vivia em condições em que não é possivel
conjecturar-lhe intenções más, contemplando Deus rosto a rosto, actuando
e reclinando-se em seu seio, testemunha intelligente d'aquella
superlativa sabedoria, bondade e omnipotencia que transpõe espaço e
tempo.
Infelizmente Satanaz era livre e peccou. É obra sua o mal que antes
d'elle não existia. Concebeu-o elle, e--caso estranho!--produziu-o alli
mesmo no ceo, em meio dos resplendores increados, e eternas
bem-aventuranças, e depois quiz-lhe como a seu, e propagou-o por entre
os anjos.
Este peccado, aliás inqualificavel, visto que lhe não conhecemos a
especie, é, como vou demonstrar, o verdadeiro peccado original. É a
primitiva e inexhaurivel fonte de dores do genero humano, posto que
ainda não houvesse genero humano na desconhecida época em que elle
perturbou o céo. Todos os transtornos do universo, mal physico e mal
moral, é aquelle peccado que os explica.
Saibamos como Satanaz foi castigado.

II
O Inferno
Deus não quiz anniquilar Satanaz nem perdoar-lhe. Creou o inferno, e
precipitou-o lá com os seus cumplices.
Fogo, frio, esvahimentos de fome, tedios da saciedade, golpes de ferro,
trances de agonia, inveja, remorsos, tudo isso não basta a dar-nos muito
em sombra idêa dos tormentos d'aquelle abysmo. Corôa-lhe o horror não
ser ahi conhecida a morte. Se a morte lá podesse entrar, a esperança
iria com ella, deixando entrever o nada como acabamento de tão enormes
penas.
Se, porém, foi recusada a Satanaz esta miseravel consolação, goza-se de
outra em desforra. Deus, que o reduziu á desesperação, deixou-lhe a
faculdade de o molestar, atravessando-se-lhe nos intentos,
contrariando-lhe as leis, multiplicando e perpetuando o mal por toda a
parte, salvante o ceo.
É o inferno o senhorio de Satanaz; mas não cabe lá. É-lhe toda a creação
campo franco para a sua malfeitora actividade. Verdade é que leva
comsigo, onde quer que vá, a sua immortal tristeza, e, pelo tanto, toda
a parte lhe é inferno. Não obstante, é incomprehensivel que elle de lá
sahisse, se lhe não fosse algum hediondo regalo n'isso de fazer tudo
quanto quer, excepto o bem--poder singular que Deus lhe concedeu, e elle
exercita incansavelmente, seu prazer unico, necessidade propria da sua
desgraça, e que hade durar tanto como elle.
Tal é o castigo de Satanaz. Crime e castigo são por egual espantosos e
inintelligiveis.
Agora, vejamos o que d'ahi resulta.

III
Paraiso terreal
No segundo e terceiro capitulos do _Genesis_, refere Moysés a creação e
queda do homem. Esta breve passagem foi diffusamente glossada por
hebreus e padres da Egreja, e raro haverá quem a não haja ouvido
explicar do pulpito, como eu brevissimamente a vou explicar,
acrescentando-lhe reflexões minhas.
Adão e sua companheira tinham recebido no Eden uma lei moral simplissima
e muito clara: era-lhes licito saborear todos os fructos d'aquella
mansão de delicias, tirante o fructo d'uma só arvore: feito isto, a sua
felicidade seria perfeita. Conta-se que elles estavam alli mais
innocentes que os recemnascidos e ao mesmo tempo mais instruidos que os
anciãos d'hoje em dia. Obedecia-lhes a natureza e elles
comprehendiam-lhe a voz. Cuidados nenhuns, nenhumas lagrimas, primavera
eterna, e a mocidade immorredoira em todo o seu ser. Deus folgava
descer-se do ceo para n'elles contemplar a sua viva imagem; e então lhes
mostrava seu rosto e lhes fallava.
Entretanto Satanaz foi esperal-os debaixo da arvore da Sciencia, cujo
fructo lhes fez comer. Não se corromperam per si mesmos como Satanaz;
mas eram livres e o tentador estava alli. Quem tinha seduzido os anjos
como deixaria de seduzil-os a elles? Que considerações o reteriam?
Não receia Deus por que Deus lhe não póde aggravar o supplicio, pois que
esse supplicio é eterno, e o inexprimivel horror de tal castigo consiste
na eternidade d'elle. Pelo que respeita á piedade, é sentimento que
Satanaz não conhece, pois que Deus lh'a não mostrou a elle, o primeiro
de todos os seres que a necessitára. Á semelhança das outras creaturas,
tem sómente aquillo que recebe; e o que brilha em si não é o amor
divino, é a divina colera que o conserva devorando-o.
Quaes foram as consequencias da queda?

IV
A maldição
Não aceitou Deus as desculpas de Adão e Eva. De tal modo o irritou a
desobediencia, que, no auge da sua ira, amaldiçoou-os e com elles a
terra que os continha: dupla maldição que abrange alma e corpo, espirito
e materia, eternidade e tempo--o homem todo na intimidade de seu ser
immortal e nas condições exteriores da sua existencia transitoria.
De feito, foi Adão condemnado á morte. O corpo reverteu ao pó e a alma
cahiu no inferno. Esperando, porém, este ultimo castigo, foi-lhe forçado
soffrer outro n'este mundo. Cahiu sob o poder de Satan. Os miraculosos
conhecimentos, que elle tinha, perdeu-os para sempre.
Repulso do Eden, nada sabia do que tinha sabido n'aquelle lugar; e, como
a terra tambem se havia transformado, caminhava elle inexperiente
atravez dos estorvos d'uma vida nova. Precisões, lavor ingrato,
enfermidades, padecimentos de toda a natureza, desconfianças, medos,
saudades inuteis, desejos inquietos acompanhavam o vagabundo par.
Satanaz seguia-os, julgando-os ainda bastante felizes sobre a terra
maldita, onde, se elle não fosse, o soffrimento seria expiação, e a
morte resgate.
Penetremos mais dentro n'este mysterio, e consideremos com os theologos
quaes foram e ainda são hoje as deploraveis consequencias d'aquelles
successos.

V
Consequencias da maldição
Os filhos de Adão que ainda não eram nascidos no momento da culpa, e os
filhos de seus filhos até á derradeira geração foram condemnados com
elle, como se tivessem peccado. Comprehende-se que elles não fossem
melhores que seus pais: peiores é que elles se tornaram. O mais velho
d'esses reprobos matou seu irmão, e a impiedade humana foi crescendo até
ao diluvio para recomeçar, ao sahir da arca, durante o somno de Noé.
Uma tal punição não podia gerar outros effeitos.
Considerai que nascemos aviltados, pervertidos, embriagados do
vinho que outros beberam, escravos d'um poder occulto e maligno, odiados
de Deus, odiando a Deus, só bastantemente livres para praticar maldades
e merecer por isso novos castigos; incapazes todavia de praticar o bem.
Está Satanaz no manancial onde bebemos a vida; está nas fontes que a
nutrem, no seio de nossa mãe e no seu leito; a si nos attráe,
encorporando-se na luz, na agua, nos alimentos, no ar que respiramos, na
voz que nos encanta o ouvido, na fragrancia que as auras nos trazem, no
amigo que nos abre os braços. Comnosco se identifica e nos enche de seus
cavilosos e insaciaveis appetites.
De fóra chama-nos com uma doce voz, e com um interno aguilhão nos
esporêa para onde nos chama. Então nos cerca, invade-nos, possue-nos, e
isto não é ainda senão parte do nosso castigo. O inverno que nos
engorgita os membros, a fome que nos prostra, a trovoada que arrebata as
sementeiras, a febre paludosa que nos mata os filhos, as forças que se
vão quando a experiencia chega, estes flagellos todos da natureza contra
nós desenfreados, estas necessidades inexoraveis, amargas privações, e
exulcerantes desenganos são tambem parte do nosso castigo. Mas ainda não
é tudo: a nossa insanavel ignorancia, orgulho, fraqueza, toda a
corrupção do nosso ser é parte integrante do mesmo castigo, não do
peccado original, cumpre notar, mas do castigo, pois que a transmissão
do peccado original é já de si um castigo. E não pára aqui a maldição;
pelo contrario, quando ella se nos mostra mais terrivel é n'este
estado a que nos reduziu, manietados pelas cadeias que nos forjou,
porque as culpas que resultam d'esta corrupção natura e involuntaria que
é um castigo, d'esta possessão diabolica que é um castigo, e de tantas
dores accumuladas que são castigo--taes culpas chamam sobre nós outros
castigos. Qualquer lapso é reprehensivel; o menor deslize é espiado e
marcado; o minimo murmurio é uma offensa.
Taes são, consoante a theologia dos hebreus, adoptada e assignada pelos
padres, as relações do homem com Deus e de Deus com o homem.
Detestam-se. Desde a sahida do Eden que se digladiam em duello sem fim,
posto que desigual. Um primeiro crime gerou a colera divina; mas do
primeiro acto da colera divina surtiram outros crimes, os quaes geraram
novas coleras, e continuamente, em face um do outro, a colera e o crime
se fecundam e reproduzem sem descanso. Os homens n'esta lucta são
incansaveis como Deus, e, posto que trespassados e sanguinolentos e
esmagados, ameaçam e conspiram ainda.
De semelhante espectaculo não ha nome condigno! Está o odio por toda a
parte, na terra, no inferno, no ceo, nas creaturas e no Creador.
Accrescentemos que o que melhor se comprehende neste systema é a
rebellião do homem, porquanto a nossa sorte é mais miseravel que a sorte
de Adão, e cem vezes mais miseravel que a de Satanaz. Mas faz-se mister
esclarecer este ponto, antes de passar além.

VI
Comparação da nossa sorte com a de Adão e de Satanaz
Em verdade nenhuma similhança temos com os habitantes do paraiso
terreal; não lhes herdamos o saber adquirido sem trabalho, nem a pureza,
nem a liberdade, que se agitava a bel-prazer em um tão vasto circulo,
tendo um só limite perfeitamente distincto; nem tão pouco lhes herdamos
a tranquilla felicidade. Para nós é tudo trevas, servidão, limite,
trabalho e dôr. Apezar do peccado, outra vantagem nos levavam. Puniu-os
Deus d'uma maneira que nos espanta; mas puniu-os pelo mal que
propriamente fizeram. Comnosco não é assim. Primeiramente, aquelles
actos, que Deus tão severamente castigou n'elles, continuam-se em nós,
que não temos conhecimento d'elles senão por este proseguimento
vingativo; depois, sem attender á nossa infermidade nativa, nos faz elle
expiar nossas proprias faltas com tamanho rigor como se as nós
tivessemos commettido na liberdade, na sciencia, e nos jubilos do Eden.
Se podeis, comparae agora a sorte do homem n'este mundo maldito á de
Satanaz no ceo; e os peccados d'aquella creatura debil, ignorante,
decahida, envolta em carne e sangue, cercada de precipicios e trevas,
criminosa porque nasceu, e em perigo porque vive;--comparae isto,
se podeis, ao inexplicavel peccado do anjo. Similhança não ha ahi
nenhuma. Entre nós e aquelle espirito bemaventurado vae a differença de
noite a dia, e entre a sua culpa e a nossa a distancia da terra ao ceo.
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