O Inferno - 08

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Ultimas considerações ácerca do inferno theologico
Affirmam os theologos que a liberdade é um mero accidente da nossa vida
mortal, e que, além da campa, se perde, tomando-nol-a Deus que nol-a
dera, e quebrando entre nossas mãos, no momento da morte, aquelle
instrumento de nossas provações. Os justos são esbulhados d'ella para
permanecerem justos, e os máos tambem para ficarem máos. Diz-se que
Satan prevaricou por que era livre; e, depois da queda de Satan, no céo
não houve mais creaturas livres, nem tão pouco no inferno, onde o
proprio archanjo está acorrentado ao peccado.
Não são, por isso, livres os condemnados. Pensam, amam, desejam; mas não
lhes é concedido meditar, amar e querer senão maldades. Soffrem e sabem
o porquê; mas não podem aproveitar-se do que sabem e do que soffrem.
Conhecem os seus crimes; porém, não se arrependem, porque o
arrependimento é um bem, e o bem não podem elles sentil-o. Se peccam
sempre, é que a tanto são obrigados por sentença. Conservam razão e
sentidos; mas consciencia não a tem, não discernem entre justo e
injusto; não são senhores de seus actos; soffrem avassalados pelos
sentidos, apezar da razão.
Esta escravidão absoluta, irremediavel e eterna, explica
superabundantemente a immoralidade e o odioso de suas penas. Pois se de
todo em todo lhes é impossivel a conversão, inutil e deshumano é o
castigo corporal que os tortura.
Se não fosse a perpetuidade d'esta escravidão, seriam intelligiveis a
fome, a sede, o lago de sulphur, a cama d'espinhos, o cavalete, a roda,
os tractos a fogo e ferro. Vá d'exemplo: eis aqui um criminoso
impenitente, que ha folgado com os soffrimentos alheios e calcado todas
as leis da terra. Morre. Acabou-se tudo para elle? Não. Que vá, n'outro
mundo, saber á sua custa o que é dôr, e que piedade merecem os que
soffrem. Deus é bastante poderoso para o castigar a ponto de o fazer
bradar por misericordia; é justo que o não poupe; exige-o a humanidade,
com a condição de que esse peccador castigado seja ainda homem, isto é,
um ser não só intelligente e sensivel, mas livre, e, por consequencia,
susceptivel de emenda. Mas, se antes de o ferir, lhe tira o recurso do
arrependimento; se, em vez do homem, o que temos á vista é um mero bruto
sobrenatural, monstruoso, ignobil, a quem a dôr nada ensina, e a
razão nada presta, máo por necessidade, torturado, sangrento, nojoso,
gemente... ah! quem falla ahi de justiça? desfaçam por piedade esse
monstro; basta de padecer; logo que lhe tirastes a liberdade, restituida
lhe foi a innocencia.
Quando uma creança brinca á beira de um poço, e cahe apezar dos avisos
da mãe, a pobre mãe não respira em quanto a não salva; corre logo sem
attender á desobediencia, porque a vê mais carecida do soccorro quanto
maior é o perigo; para castigo lhe basta a quéda. Que diriam os
theologos, se aquella mãe, em vez de tirar do poço o filho, lhe fosse
quebrar braços e pernas, e cobril-o de pedras? O que elles theologos
imaginam que Deus faz, é aquillo mesmo. Aviltam-no quanto podem.


CAPITULO QUINTO
SURSUM CORDA

I
Fujamos d'este lamaçal. Lavemos pés, mãos, cabeça e vestidos.
Cauterisemos os beiços com um carvão acceso. Demonios, chammas impuras,
espiritos malfeitores, odios, vinganças, carnificinas, ferozes alegrias,
estupidos terrores, sonhos do homem primitivo adormecido em antro á
ourela de lagôas turbidas, com o estomago regorgitado de carnes
sanguentas, com a mão sobre a clava, e a alma ainda fremente das paixões
do dia; mystagogia antiga; sapiencia idolatra; delirios renovados dos
barbaros orientaes e occidentaes; confuso acervo de subtilezas
methaphysicas e torpes fabulas e aspirações, sublimes e baixos erros,
inferno velho e inferno novo, palacios oscillantes edificados com
ruinas, Naraka, Amenthi, Tartaro e Géhenna, sumi-vos! O tempo
avança; é já dia; a calhandra já cantou, vamos á serra vêr o repontar do
sol. Acima, ainda mais para o alto, subamos ás espigas da montanha, onde
o ar é mais sadio e o horisonte mais amplo. Azas, azas! vamos admirar o
sol que regenera a vida e a fecundidade da terra, e a todo o ser a sua
vera fórma, e aos homens, que desperta do somno fundo, a consciencia de
si mesmos e o sentimento das realidades que o rodeam. Mais ao alto! Mais
ainda! azas, azas, ó minha alma! Voemos até á origem da luz, de que este
pallido sol é apenas sombra!

II
Deus é uno, com infinita variedade de attributos, cuja manifestação lhe
não lesa a unidade. Conhecemol-o n'este mundo por fé unicamente, porque
o não vemos qual é, e não temos d'elle, em nossos corações, senão uma
imagem imperfeita, e, para assim dizer, mutilada. Por tanto, aquelle
sagrado nome exprime o que sabemos realmente, mas tambem o que não
sabemos, e o que saberemos de Deus, no dia derradeiro. Encerra Deus
todas as perfeições, cujo complexo, de que apenas concebemos parte
minima, é o mysterio que adoramos atravez d'um véo, que a morte
levantará, assim para santos como para pecadores.
Sem duvida que os mais obdurados peccadores hão de vêr Deus; e
hão de vêr não sómente alguns attributos seus, mas todos; não hão de vêr
sómente a sua eternidade, por quanto a eternidade está em Deus, mas a
eternidade não é Deus; não hão de vêr sómente a sua justiça e infinita
omnipotencia, por quanto a justiça infinita e omnipotencia são em Deus,
mas não constituem toda a sua essencia; não hão de vêr sómente a sua
justiça, por quanto a justiça está em Deus; mas só ou unida ao poder
eterno a justiça não é Deus: senão seriam tantos os deuses quantos são
os attributos e virtudes distinctas na unidade divina.
Quando os peccadores virem Deus, então hão de vêr quanto ha em Deus, sua
bondade, misericordia e justiça; vel-o-hão a toda a luz, d'um só lance
de olhos, por que tudo o que a nossa lingua separa é inseparavel em
Deus; e, se elle retrahisse dos peccadores um só resplendor de sua face,
ficaria sendo o Deus abscondito que a nossa fé adora, e não o Deus
visivel perante o qual toda a incredulidade se dissipa. Pelo que, ao
mesmo tempo que sua justiça encher de medo as almas, a sua bondade as
consolará mediante a confiança e arrependimento.

III
Grandes e pequenos, doutos e ignorantes, todos os peccadores serão
castigados, cada qual á medida de suas culpas. Nenhuma será esquecida;
mas, por isso mesmo, todas as virtudes serão lembradas. Ao
pessimo peccador que em sua vida teve um bom sentimento, um bom desejo
sequer, isto lhe será como torcida ainda fumegante a qual o sopro de
Deus accenderá em flamma. O pouquinho bem que praticou lhe será contado,
até ao ceitil, até ao pucaro de agua dado ao caminheiro, até ao grão de
painço dado á avezinha, até ao movimento do dedo mendinho em que a
creança vacillante se amparou, até ao olhar compadecido pôsto na face do
attribulado. Estas são as unicas acções que elle quereria recomeçar e
multiplicar n'esta vida, se lhe fosse dado aqui voltar, por que é esse o
sagrado laço que o une ainda, posto que de longe, á assemblêa dos
justos; e o mal que fez, esse ainda subsiste, mas só na dôr que sente de
havêl-o feito, e no arrependimento com que o recorda. Prazeres torpes,
revezados de inquietações amargas não os cubiça. Deplora o ceo, e não a
terra. Sómente saudades do ceo pódem enternecer a lagrimas entes
racionaes, desempeçados das trevas d'este mundo.

IV
Os mortos que Deus pune viram a Deus, e, a um tempo, se sentiram
attrahidos para elle, e repulsos e como repuxados para longe pelo iman
de seus peccados. Abriu-se o abysmo e cahiram, mas com a vista sempre
fita n'aquella ineffavel luz que lhe foge, e os braços estendidos para o
Deus misericordioso que os exila temporariamente por causa de
suas offensas. Cahem levando comsigo a indelevel memoria d'aquella
formosura e sabedoria infinitas que só instantaneamente viram, e ao
baquearem-se, exclamam: «Havei piedade de mim!»
Os mortos que Deus castiga viram Deus; e para logo o amaram, que é
impossivel vêl-o sem o amar. Viram-o e esqueceram a terra; viram-o, e
arderam em sede inextinguivel de tornar a vêl-o e possuil-o. Verdadeiro
castigo! Expiação dolorosa, mas efficaz! Ardentes lagrimas, mas
salutares, que o amor derrama, e o amor enxugará.

V
Blasphemar que é? É negar Deus ou algum dos seus divinos attributos ou
alguma das eternas e infinitas propriedades do seu ser.
Negar-lhe a existencia é blasphemia; negar-lhe o poder é blasphemia;
negar-lhe a immensidade, a eternidade ou a sabedoria é blasphemia.
A blasphemia é somente praticavel n'estas regiões de duvida e mysterio
em que Deus escassamente se deixa entrever atravez d'um veo. Mas o veo
cahiu na presença dos mortos.
Os cegos viram; os paralyticos andaram; os mudos fallaram. Confessam
todos que Deus existe, que é eterno e poderoso e justo. Negar-lhe a
justiça como poderiam elles, se sentem até ao amago de seu ser a
claridade ardente e purificante? E, se não podem negal-a, como ousariam
affrontal-a? Mas, se querem que elles blasphemem, digam-nos qual das
perfeições divinas elles negarão?
Ai! aos theologos aprouve que os condemnados negassem a que mais valiosa
lhes seria. Os condemnados negarão a bondade de Deus; injuriando-o de
máo, de cruel, de implacavel, de escarnecedor de suas agonias, de
vingativo, de carrasco, e não juiz. Isto, com effeito, é que é
blasphemar.
Mas estes impios discursos não os vociferam os mortos castigados por
Deus; sois vós, scribas e doutores, que lh'os inventastes; e o que a
isso vos levou foi o imaginardes um inferno perpetuo, e, pelo tanto, o
effeito que o castigo esteril devia produzir sobre soffredores
immortaes. Entrai mentalmente n'essa catacumba infecta, tomai por
instantes o logar das victimas, e ousai fallar em bondade de Deus. Não
acreditareis em tal. Máo grado vosso, a blasphemia vos fugirá da bôcca.
Os primeiros blasphemadores são, logo, os inventores d'aquelle
imaginario supplicio. Á maneira dos idolatras, fraccionaram Deus,
extremando entre justiça e bondade--attributos indistintos. De modo que
essas presumidas blasphemias do inferno são sómente um ecco das que
esbravejaram nas almas d'elles, ao contemplarem a sua obra.

VI
Deus é justiça e misericordia conjuncta e indivisivelmente. Nos actos da
sua justiça ha sempre um fundamento de misericordia; e, nos actos em que
sómente a sua misericordia realça, ha um fundamento de justiça. É
offendel-o dizer que é misericordioso sem justiça para uns, e justiceiro
sem misericordia para outros. Isto é falso quanto ao tempo e quanto á
eternidade. É justo Deus com os justos coroando-os, por que se a
salvação d'estes fosse gratuita e mera complacencia particular, favor e
não recompensa, o castigo dos peccadores seria iniquo. Na gloria, pois,
dos bemaventurados reina tanta justiça quanta misericordia.
Mas, se Deus, no outro mundo, é justo para os eleitos, por que não ha de
ser misericordioso com os peccadores?
Mostrais-me a sua misericordia no ceo; e eu tambem lá vejo a sua
justiça.
Mostrais-me a sua justiça no inferno, e eu tambem lá procuro a sua
misericordia.

VII
A condemnação do vosso inferno está na necessidade logica e invisivel
que lá obriga a offender e amaldiçoar Deus. É isso possivel? Deus quer
ser injuriado eternamente? Não quererá antes ser adorado e
abençoado por todas as creaturas? Adoram-no os santos em jubilo, e os
mortos, que pune, adoram-no em penas, por que sabem que ellas hão de ter
fim.
Seja-me testemunha o Evangelho.


CAPITULO SEXTO

A parabola do rico avarento
_Lux in tenebris._
Lêde no Evangelho de S. Lucas, capitulo XVI, a parabola do rico
avarento.
Do fundo do inferno, o rico avarento levanta a voz para seu pae Abrahão:
«Compadece-te de mim, e manda cá a Lazaro, para que molhe em agua a
ponta do seu dedo, a fim de me refrescar a lingua.» Lazaro não se bole,
em quanto o patriarcha lembra ao padecente a pena de talião; cabe agora
ao opulento mendigar, e ao pobre fartar-se.
O rico avarento baixou os olhos, e não pediu mais agua: resignou-se, não
murmurou, não blasphemou, renunciou a gottinha d'agua como renunciára as
vestes purpureas e as regalias da meza. Todavia, ainda outra vez se
dirigiu ao pae Abrahão: «Eu te rogo que o mandes a casa de meu
pae, pois que tenho cinco irmãos, para que lhes dê testemunho, não
succeda virem tambem elles parar a este logar de tormento.» E Abrahão
lhe disse: «Elles lá tem Moysés e os prophetas: ouçam-os.» Ainda assim,
o padecente insiste: «Mas, se algum morto lá fôr, elles farão
penitencia.»
Ahi está mudada não só a fortuna do rico avarento, mas o coração tambem.
Eil-o humilde, supplicante, submisso. Recebe as recusas sem irar-se; e,
em meio de suas dôres, lembra-se enternecido de cinco irmãos que deixou
na terra. Não lhes inveja os haveres; pelo contrario, quer incutir-lhes
caridade, e só por amor d'elles importuna o seu ascendente Abrahão.
Porém, Lazaro e Abrahão sahem-lhe tão rijos como elle tinha sido para
com as dôres alheias. O tal Lazaro, cujas chagas os cães lambiam,
tornou-se menos piedoso com o proximo do que haviam sido com elle os
cães. Refocila-se nas delicias do ceo, como o rico avarento se
refocilára nas da terra, e esqueceu o que era penar, e o que se deve a
quem pede. No tocante ao patriarcha, esse, em vez de consolar o neto
supplicante, desespera-o; e, a segunda vez que o desgraçado ousa
pedir-lhe um milagre de bondade, não para si, mas para os irmãos, que
lhe responde o outro? Responde seccamente que os irmãos lá tem as
escripturas tão dignas de credito como os mortos, pelo menos.
Admiravel, mas, para theologos, incomprehensivel parabola! Eis aqui o
inferno converso, repêso, enternecido, o rico aváro deplorativo e
caridoso, e por cima, um ceo de bronze, uns santos descaroados.
Este não é o inferno judaico, é christão; mas o paraiso esse é que é
judaico, e não christão.


CAPITULO SETIMO

Terra, inferno, ceo.
DESVIRTUAR O INFERNO É DESVIRTUAR A TERRA E O CEO.
NÃO É OUTRO O SENTIDO LATENTE DA PARABOLA DE LAZARO

I
TERRA
As affeições d'esta vida continuam na outra. Mesmamente no ceo, a Virgem
é Mãe de Christo. Todos esperam reconhecer, além-tumulo, as pessoas que
na terra estremeceram. Reconhecer-se-hão os esposos, pois que hão de
reconhecer os filhos. Esta esperança é a maior consolação d'esta vida, e
uma das forças que nos attrahem para o ceo. Mas o perpetuo inferno nos
escurece aquella esperança e nos esfria os mais santos affectos.
Eis um pae de familia que morre subitamente ou de violenta morte, ou na
sua cama, sem padre, sem sacramentos, ao cabo de uma vida devota.
Imaginem a incerteza da viuva e dos orphãos quanto á salvação d'esse
ente que os amou, educou, nutriu, instruiu e consolou. Se ha
coisa verdadeira no ensino dos theologos, podemos apostar mil contra um
que este homem cahiu no inferno para sempre.
Que afflicção para acrescentar ás angustias d'aquella familia! Se elles
tivessem a certeza de amar um peccador penitente, a quem rogos e boas
obras podessem levar refrigerio, que supplicas, que piedosas obras não
fariam! Mas amar um condemnado! suffragar um condemnado! amarrarem-se á
memoria de um condemnado! guardar-lhe as reliquias, as cartas, o
retrato! Choral-o, suspirar por ir vêl-o! De repente, morrer para
odial-o! Saber, e pensar estas coisas! Seja embora uma duvida; é duvida
que gela a oração no peito; quebra o animo para o bem-proceder; espanca
a piedade do lar; e aconselha o estontecer-se e esquecer-se um
homem--coisa tão natural ao mundano egoismo--; ou então, o outro egoismo
feroz e sombrio do frade que immola á sua propria salvação todos os
affectos humanos.

II
Ceo
Haverá no ceo familias que se encontrem; mas tambem no ceo haverá
orphãos eternos, e viuvas eternas, e mães eternamente sem filhos. Se
isto é motivo para amarguras, ahi está o agro das doçuras do ceo; mas,
se é motivo para alegrias, que horriveis alegrias!
O rico avarento do Evangelho seria em verdade melhor do que os eleitos.
Sem duvida, mais caridade haveria no inferno que no ceo.


CAPITULO OITAVO
HISTORIA DE UM SONHO

I
Ganhou um medico, á cabeceira de um pobre, doença mortal. Chegou tão
depressa a morte que não lhe deu tempo de chamar o padre. Chegou o
padre, quando elle era já morto. Circumvagou os olhos pelos assistentes,
disse que o chamaram tarde, e sahiu dando aos hombros.
As poucas palavras e o gesto impressionaram vivamente a viuva, que se
quedou a pensar n'aquillo todo dia.

II
E eu velava á sombra do funebre leito. A viuva estava ali orando,
soluçando, e sempre preoccupada, a pezar seu, com as palavras do
padre. A intervallos, olhava ella para mim chorando, invocava-me como
testemunha da virtude de seu marido, e dizia-me com anciedade: «Não se
salvará elle?»--Não duvide, senhora--dizia-lhe eu; porém tristemente eu
via que as minhas respostas a não socegavam.
Ao cahir da tarde, como ella desde a vespera não comesse nem dormisse,
fiz que seu filhinho lhe offerecesse algum alimento. Debalde se esforçou
por engulir. Então pediu um livro de orações. Abriu ao acaso um que lhe
deram, esperando achar ali algum alivio, que não achou; pelo contrario,
com a leitura cresceu-lhe a inquietação. Vi-lhe então no rosto uns
tregeitos involuntarios, e um crispar de mãos, e por fim um grito e logo
cahiu desmaiada nos braços de quem a levou d'ali.

III
Apanhei o livro cahido de suas mãos. Denominava-se _Quotidiano do
christão_, e facilmente conheci nas paginas avincadas as passagens que
ella tinha lido: eram os _Pensamentos christãos para todos os dias do
mez_, pelo padre Bouhours, da companhia de Jesus. Tinha ella desmaiado
quando lia no _quinto dia_ uma meditação ácerca do _Juizo final_. Acontece
sempre que o ferido ao cahir bate sempre na chaga. Alguns trechos do
capitulo, cujas margens estavam laceradas, diziam assim: «Quão terrivel
é o dia da ira do Senhor! Os justos escassamente serão havidos
como taes: que será dos peccadores? Que sentença póde esperar o peccador
impenitente de um Deus inexoravel? Oh! que terribilissima sentença! _Ide,
malditos, arder em fogo eterno!_ Ai! onde irão, Senhor, esses desgraçados
que amaldiçoaes? Para que ponto do mundo quereis que se afastem,
distanciando-se de vós? Onde é que está paragem tão funesta?

«SEXTO DIA
«O INFERNO
«I. Que horror ganhariamos ao inferno, se podessemos ouvir os
lamentaveis gritos dos condemnados! Suspiram, gemem, urram como
bestas-feras em meio de lavaredas. Accusam-se de seus peccados,
chorando-se, detestando-os; mas É TARDE. _O chorar não lhes faz senão
augmentar o ardor do fogo que os queima sem consumil-os._ Penitencia dos
condemnados! quanto és rigorosa, e _inutil_!
«II. Não vêr Deus nunca, arder em fogo de que o nosso é apenas sombra;
soffrer ao mesmo tempo quantos males ha ahi, _sem allivio, sem repouso;
sempre com os olhos postos nos demonios, sempre com o coração raivoso e
desesperado_, que vida!
«III. Esses desgraçados _enfuriam-se_ por terem desprezado tantas
occasiões de salvarem-se. _O recordarem os prazeres passados é-lhes um de
seus mais penosos tormentos_; mas o tormento superior a todos é a
lembrança de terem, por sua culpa, perdido Deus.»[6]
Pobre mulher!--disse eu entre mim lendo aquelle capitulo--vêr seu
marido, tão bom homem, alcunhado de besta-fera! E topar em livro de
piedade, onde procurava consolar-se, esta cruel sentença que de manhã
ouvira da bôcca d'um sacerdote: É MUITO TARDE!... Quiz fechar o livro;
mas o titulo do _Dia_ seguinte, impresso em versaletes, susteve-me.

«SETIMO DIA
«DA ETERNIDADE DAS PENAS DO INFERNO
«I. Poderá ir mais adiante a cólera de Deus _que castiga prazeres que tão
pouco duram com supplicios sem fim_? Que desgraça não é isto! Não bastará
que os males d'um condemnado sejam extremos? É forçoso que sejam
eternos? Uma picada de alfinete é mal bem leve; todavia, se este mal
durasse sempre, tornar-se-hia insupportavel. Ora, os tormentos do
inferno que serão?
«II. Ó eternidade! _Quando um condemnado podesse derramar lagrimas
bastantes para fazerem quantos mares e rios tem o mundo, ainda que
vertesse uma só lagrima em cada seculo, elle não estaria mais adiantado,
depois de tantos milhões d'annos, como quando começou a penar._
«_Ser-lhe-ha forçoso recomeçar como se não tivesse nada padecido; e,
quando tiver recomeçado tantas vezes quantos são os grãos de areia nas
praias, os atomos no ar e as folhas nos bosques, nada d'isso lhe será
contado._
«III. Não só por toda a eternidade os condemnados soffrerão; _mas, a cada
instante, soffrem a eternidade inteira_. Está-lhes sempre á vista a
eternidade; em todas as dôres se lhes côa a eternidade. _As penas
infinitas continuamente lhes estão no espirito._ Cruel idêa! deploravel
situação! _Arder por uma eternidade! chorar eternamente! Raivar sem fim!_»
Esta meditação corresponde ao _Setimo dia_, que é aquelle em que o
Senhor entrou em descanso para admirar suas obras.
[6] O padre Bouhours foi um solerte engenho, bastante mundanal, que
distillava a frio no seu gabinete aquella rhetorica medonha, cuja
leitura, se lhe dessem valor serio, seria capaz de fazer abortar uma
mulher gravida. Acintemente abastarda elle n'este livro a verdadeira
doutrina ácerca do inferno, doutrina em que se aprende que os
condemnados amam o peccado, pois que amar o peccado é odiar Deus;
conhecendo, porém, a desmoralisação de tal pena, o padre Bouhours
presume que os condemnados abominam o peccado, mas que os seus olhos
se abriram _já tarde_, por maneira que substitue á pena immoral, mas
apparentemente justa, uma pena de apparencia moral, mas para isso
mesmo horrivelmente iniqua, por que detestar o peccado é amar o que
ha mais avêsso ao peccado, isto é, a virtude, ou, mais ao claro,
Deus. Segue-se que Deus deixaria infernados os que o amam e se
arrependem de o haver offendido. N'outro capitulo da mesma obra o
mesmo padre é de parecer que os condemnados não podem amar Deus.
Mas, se elles não amam o bem nem o mal, nada amam; e então que vem a
ser as penas espirituaes? Que soffrem? por que soffrem? por que se
afflijem do perdimento d'um bem que não amam? e por que os afflige a
perda dos prazeres que abominam? Tudo isso dispára n'um apontoado de
sandices.

IV
Acabava eu de lêr, agitado, aquella pagina, quando a viuva recuperou os
sentidos; mas quasi mentecapta. Exclamava ella que tinha a certeza de
seu marido ter sido condemnado, por que não acreditava em tudo que a
egreja ensinava, e morrêra sem confissão; accrescentava que o marido era
bom para ella e para todos; que, ainda mesmo que a houvesse offendido,
lhe perdoava pelo muito que elle estava padecendo, e que desejava ir
juntar-se-lhe e consolal-o no inferno. Fallava em matar-se para mais
depressa o vêr; e, dizendo isto, aconchegava o filho do seio,
sorria-lhe, beijava-o convulsivamente, em duvida se devia matal-o; por
quanto, dizia ella, o menino iria ao paraizo, se morresse então; e não
se veriam mais, desejando ella leval-o ao pae.
Assim que ouvi os gritos, sahi do quarto mortuario para soccorrer, se
fosse preciso, aquella afflicta gente, sobrecarregada com outra
desgraça. Cercamos a joven viuva, vigiando angustiosamente os seus
menores movimentos, por medo de que ella não praticasse algum acto de
desesperação, de que dera mostras. Quizemos tirar-lhe o filho; mas ella
dava ares de querer afogal-o antes que lh'o tirassem. Parecia já mais
tranquilla que todos nós. Desfigurou-se-lhe cadavericamente o
semblante; os olhos porém brilhavam, e o sorrir tinha um ar celestial.
Fallava sem cessar do marido, e do prazer que ella teria em acompanhal-o
no soffrimento. A mãe ajoelhou-se diante d'ella, que a levantou
amorosamente, rogando-lhe que não pedisse a Deus pela sua alma.
Conseguimos em fim separal-a do filho, e levamol-os um apoz outro, elle
já adormecido, e ella luctando comnosco, desgrenhada e rota. Seguiram-na
os parentes, e eu fiquei sósinho á beira do cadaver.

V
Bem desejava eu tambem saír: carecia de distrahir-me. Piedade, cólera,
fé, duvida, terror, mil contrarios sentimentos me agitavam, dos quaes eu
não podia defender-me ao pé do esquife, e depois de similhante
espectaculo! Encostei-me á banca onde estava deitado sobre uma alva
coberta um crucifixo de marfim, e, contemplando aquella divina imagem,
recolhi-me no mais intimo retrahimento d'alma. Perguntava eu a mim
mesmo, com o coração apertado, o que devia crer-se da vida e morte de
Christo, e se era certo que elle descesse do céo, como se dizia, para
assombrar os justos, desesperar os peccadores, e conturbar a razão dos
fracos. E a mim me quiz parecer que Jesus estava ali, e pensei vêl-o
chorar, e que uma de suas lagrimas resvalou sobre o _Quotidiano do
christão_, e tudo que eu havia lido n'aquelle livro subitamente se
desfez.
Estava ainda comtudo a minha alma perturbada. Interroguei o Christo. Não
me respondeu. Então entrei em duvida se eu estava adormecido ou
desperto. Vi--seria sonho?--um oceano de trevas alcantilar-se á volta de
mim, e no seio d'essa escuridão immensa lampejava um frouxo raio de luz.
E esta luz saia das fendas de um sepulchro, e Jesus estava deitado vivo
n'esse sepulchro. Eu quiz levantar a pedra que o cobria, mas uns
verdugos envoltos em trevas me deceparam as mãos; eu quiz balbuciar, e
arrancaram-me a lingua; e assim mutilado, cego e mudo senti-me
arrebatado e precipitado ás entranhas de um abysmo, e comprehendi que
estava no inferno. O meu unico soffrimento ahi era a cegueira, e a
espectativa anciadissima dos supplicios que me esperavam. E, como só
tivesse ouvidos para entender, escutei, e comprehendi o seguinte.

VI
Ao principio ouvi um rumorejar estranho, que rolava prolongando-se ao
travez dos espaços infinitos, e depois decrescia até ao ciciar da
folhagem que a brisa da tarde acaricia, e por fim augmentava em estridor
até exceder o roncar das vagas cavadas pela borrasca. Estas
comparações tiradas da terra não dão idêa da tristeza, do pungente e
solemne d'aquelle immenso rugir de seres sem nome que eu não podia vêr e
ouvir gemer. De toda a parte, suspiros, brados, soluços, gritos
exhorativos, mas tudo distincto, conglobando-se sem confundir-se, e
formando um brado unisono. Debaixo do sol não ha ahi espectaculo tão
variado como o prantear d'aquellas almas, ressoando em choro universal
quasi claro ainda, e mais afflictivo. Ao ouvir estes estrondos
figurava-se-me que o sangue me escorria dos pulsos cortados, e o suor da
fronte, e as lagrimas dos olhos, e tanto eu como tudo em redor
soffriamos e supplicavamos.

VII
E uma voz exclamava: Oh! quanto eu soffro, Deus meu! Isto não terá fim?
Vós, Senhor, que me atirastes ignorante a um mundo escuro, não me
julgaes, apoz tantos seculos, bastante castigado dos meus desvios d'um
dia?
E outra voz exclamava: Quando os meus peccados aqui me abysmaram, vossa
mão, ó Deus, me amparava, e me ampara ainda; e, assim mesmo, em logar de
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