O Inferno - 02

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Sem embargo disso, as penas são iguaes. Espera-nos o mesmo inferno. A
unica desegualdade que se nota n'este logar de soffrimento é que o homem
ahi será a eterna victima, e Satanaz o eterno algoz.
É evidentissimo que é a mesma a pena applicada a seres que prevaricaram
em tão oppostas condições de actividade. Esta pena infinita só tem
relação com o poder infinito do juiz offendido; não tem alguma com as
faculdades diversamente limitadas dos culpados, e augmenta de gravidade
á medida que desce sobre peccadores d'uma natureza mais fragil, de
Satanaz sobre Adão, de Adão sobre a sua posteridade.
Quando procuramos n'isto a justiça, dizem-nos que ella ahi está, mas
escondida. Oh! sim, meu Deus! Bem escondida, e a razão tambem, e a
piedade tambem!

VII
O povo de Deus
Entretanto parece que a piedade se manifesta na formação do povo de
Deus, e em verdade ahi se denota, mas como excepção, privilegio e favor.
Havia no Egypto uma raça de escravos; toma-os Deus pela mão, e atravez
de mil obstaculos os leva ao paiz de Chanaan; dá-lhes leis,
ministros e prophetas; illustra-os, defende-os, castiga-os, restaura-os,
disputando a Satanaz, com successivos milagres, essa nesga de terra onde
quer ser adorado. Não obstante, estas revelaçõens e sobrenatural
assistencia não impedem que os judeus idolatrem, que se prostituam, que
usurem e se precipitem numerosissimos em todas as voragens do mal. Por
aqui se avalie a desgraça dos povos que occupavam o resto da terra e a
quem faltavam taes soccorros. Pezava n'elles sem contrapezo o peccado
original. Os que a maior grau de perfeição tinham levado artes e
sciencias estavam tão remotos da verdade como o selvagem mais
embrutecido. Não porque uns ou outros fossem atheus--pelo contrario, em
seus soffrimentos, levantavam olhos ao ceo; mas como procuravam a
divindade nas estrellas, nas altas montanhas, no concavo dos bosques, e
nas mil imagens compostas de materia impura, debalde rogavam, e
inutilmente sacrificavam. Salvante a de Moysés, todas as religiões eram
engodo de Satanaz e conductoras d'almas ao inferno, similhantes ás
lumieiras que as hordas assalteadoras accendem á beira das restingas,
durante as noites tempestuosos, afim de que os navegantes se percam. E
Deus abandonava os gentios á sua ignorancia; detestava-os em tanto
extremo que prohibia o seu povo de os tratar, sobretudo de misturar ao
d'elles o seu sangue, excepto nas batalhas. Occasionado o ensejo, era
obra piedosa exterminal-os; mas attrahil-os ao seu coração, era,
em todos os lances, um acto abominavel, por maneira que o leproso
de Jerusalem recearia manchar-se, se recebesse na sua enxerga infecta a
mais pura donzella de Sidon.
Tal é substancialmente o ultimo dogma que nos convém estudar. É certo
que elle nos revela a bondade de Deus; mas á similhança de pallida
restea de luz em espessa treva. O que nos ella esclarece é um ponto
imperceptivel do espaço. Está meio velada no ponto onde brilha, e tanto
ahi, como no restante do mundo, razão e justiça de Deus jazem de todo em
todo escurecidas. Sobre a terra foi Jacob o unico justo? Se houve mais,
porque não fez Deus alliança com elles e seus descendentes? Por que
adoptou sómente os judeus, por que liberalisou a estes luzes que negou
aos outros? Se lhe aprazia dar á humanidade cabida e obcecada pelo
peccado meios de salvação, porque abençoou o sangue e a carne de um só
homem, amaldiçoando o sangue e a carne dos mais homens? Se isto é
verdade, força nos é exclamar com os theologos:--Razão impenetravel!
Impenetravel justiça!--Sendo que tudo isto essencialmente diverge das
idêas que podemos formar da pura razão e da verdadeira justiça.
A lei do genero humano, em toda esta historia, é a lei ditada pela
colera, e, ainda quando a bondade ahi reluz, dá ares de um capricho.
Os primeiros christãos, judeus de origem, não adoptaram menos estas
idêas por mais avessas que fundamentalmente sejam, não só á
revelação interior, ás luzes da consciencia, mas tambem a tudo que mais
luminoso do ensino de seu divino mestre nos transmittiram. A Egreja,
dilatando-se fóra de Jerusalem, conservou o sinete da sua educação
rabbinica[1], permanecendo meio judaica. Não mudou um til aos dogmas
sombrios e crueis da synagoga, mas transformou o dogma do povo de Deus;
ampliou-o espiritualisando-o, sem tirar ainda assim á clemencia divina,
como logo veremos, aquella mystica e excepcional indole que tinha entre
os judeus. Admittiu os gentios ao beneficio das graças de que Moysés os
excluira, e tornou judeus, mediante o baptismo, os que de sangue o não
eram. Ao mesmo tempo, repulsou do seu gremio os que só por sangue eram
judeus, e o não eram por baptismo, formando, com tal exclusão, outro
povo de Deus, e ficando o antigo a representar a figura carnal do
novo. Em summa, a Egreja moldurou quanto em si coube, o espirito
christão nas fôrmas antigas, que ella sempre venerava e considerava
expressamente feitas para o receber. Consoante a parabola, envasilhou o
vinho novo no tonel velho, onde ferve até estalar as aduelas; cuidado,
porém, que a velha vasilha póde fender-se; o vinho contheudo é o sangue
de Christo; e o genero humano, em prol de quem tal sangue ha manado, não
deixará que uma gotta se perca.
Ha pouco disse eu que a egreja, adoptando as crenças da Judéa, não havia
modificado a indole estranha e excepcional que taes crenças argúem á
bondade de Deus. Por egual razão deixou ella condensarem-se as mesmas
trevas sobre a sua justiça. É facil demonstral-o.
[1] No concilio feito pelos apostolos em Jerusalem, questionou-se
sobre se se devia circumcidar os judeus. Muitos pensaram que esta
operação fosse indispensavel á salvação, por isso que Moysés a
ordenára; Paulo e Bernabé não foram d'esta opinião; a duvida, porém,
era tamanha que sahiram deputados para Jerusalem, afim de combinarem
com os apostolos e os padres. O concilio discutiu longo tempo. Pedro
fallou de harmonia com Paulo; mas as duvidas subsistiram. Thiago
fallou por sua vez, não invocando a palavra de Christo, mas
repetindo algumas palavras dos antigos prophetas; o que fechou a
pendencia. Decidiram que a circumcisão era desnecessaria á salvação.
Todavia, logo adiante, Paulo, que contribuira para este accordo,
circumcidou Timotheo, «em razão de estarem judeus n'aquelle logar, e
saberem que seu pae era gentio.» Vid. _Actos dos Ap._, cap. XV e
XVI.

VIII
A egreja e o novo povo de Deus
Hoje em dia faz-se mister nascer em paiz catholico para ainda se crêr na
possibilidade de não ir infallivelmente ao inferno. Contra o espirito do
mal inda lá se encontra aquella miraculosa assistencia que outr'ora
protegia apenas o districto não grande do Oriente. Alargou-se o
territorio da clemencia, mas ainda assim não mede a quarta parte do
globo. Além d'isso entre os novos, do mesmo modo como entre os antigos
judeus, perdem-se muitos, porque Satanaz está sempre comnosco, na
carne de Adão, e a maldição sobranceia-nos sempre.
Se o baptismo destróe esta maldição, não o faz completamente, salvo
quando o baptisado morre ao sahir do baptisterio; senão, nem nos
dispensa das penas eternas, nem nos arranca das prezas da necessidade
das affeições, das tentações, dos enganos innumeros que são os effeitos
temporaes da maldição.
Cresce, pobre creança, e se podes, cerra os ouvidos ás alegres
cantilenas da tua ama; foge ás caricias de tua mãe e a todas as
seducções que já te rodeiam. Não toques no bello fructo que a tua fome
anceia. Na tua edade, sem que o saibas, já Satanaz te falla; na bebida e
na comida estão venenos d'elle; com o mal te familiarisas, e perdida
está a innocencia baptismal. Feito o primeiro peccado, desluziu-se a
graça; a maldição meia delida revive inteira; a Egreja vem ainda com
outros mysteriosos meios em nosso auxilio; porém, como n'este mundo não
ha destruir attracção e inclinação e a liberdade do mal, muitos dos seus
filhos se perdem, apesar d'ella, e para, melhor o dizer, em seus braços.
Attendendo aos perigos a que estão sujeitos ainda os filhos da luz
n'esses paizes favorecidos, considere-se em que estado de desesperação
vivem os filhos das trevas, isto é a maxima parte do genero humano. Em
mil milhões de homens, pouco mais ou menos, que actualmente soffrem na
terra, o mais que póde haver é duzentos milhões de catholicos. O
remanescente vive sem confissão, e o maior numero sem baptismo, na
ignorancia ou no odio da Egreja, e d'aqui vão como vieram sob o poder de
Satanaz. Tem elles culpa? Nasceram no abysmo e longe de soccorros.
Familia, tribu, cidade, patria, protectores naturaes, primeiros guias,
ultimos amigos, lições, exemplos, leis e costumes, tudo os engana. Quem
é que póde escolher o seu berço? Pois a nossa salvação póde depender de
circumstancias e successos que não dependem de nós? A nossa rasão
corrompida absolve-os; o velho Adão encontra sempre alguma desculpa ao
peccado; mas a fé essa não. A fé decreta a reprovação final dos gentios,
dos infieis, dos hereticos e até a reprovação final e eterna d'um
grandissimo numero de catholicos; crê n'isto como no peccado original,
como na hereditariedade do crime e do castigo, bem como na graça da
salvação--coisas correlativas e de todo o ponto inseparaveis. Adora em
silencio todas estas apparentes iniquidades, convicta de que ellas são
sómente apparentes, e que um dia virá em que os proprios gentios hão de
confessar que Deus fez bem amaldiçoando-os: tão profundamente justo,
equitativo e rasoavel é na essencia aquillo que exteriormente tão pouco
é.
Não ha pois duvidar que milhões de milhões de creaturas humanas estão no
inferno. As almas despenham-se ahi de todos os lados, densas e rapidas
como a chuva, chuva que dura ha mais de seis mil annos, e não
acabará nunca. Todos nós temos no inferno uma immensa familia: todos os
nossos antepassados pagãos, durante quatro mil annos, e Deus sabe
quantos avós christãos!
Os parentes e amigos de quem nos apartamos a chorar, o que fazem é ir
adiante de nós; os netos d'elles e os nossos, pela maior parte, lá vão
ter comnosco, e para tão horrivel fim é que nós nos reproduzimos.

IX
Como se prova a verdade dos dogmas hebraicos, e com
especialidade a eternidade das penas
Todos estes dogmas estão ligados; porém, quando surge uma duvida, não
basta um para demonstrar o outro. Próvem-nos que Satanaz foi expulso do
céo, e o homem do Eden; e, quando o tiverem provado, nem por isso lhes
cabe o direito de concluir que Deus nunca perdoará a Satanaz nem aos
homens. Um castigo que tira aos pacientes a esperança, e ao divino juiz
a piedade, é mais incomprehensivel ainda que a fragilidade dos anjos:
por consequencia, um tal castigo carece de ser justificado por pessoas
eguaes, senão melhores. Estes antigos mysterios não derivam um do outro
naturalmente; e, seja qual for o castigo que Deus reserve em sua justiça
ás prevaricações das creaturas livres, é certo que nós o soffreriamos,
ainda que Satanaz e Adão não tivessem peccado. A principal questão
é saber se este castigo será eterno, e a tal respeito a corrupção
original, a reversibilidade das culpas, o poder do tentador augmentam
nossas duvidas em vez de diminuil-as.
O que ahi ha para nós não são provas, são objecções. O inferno poderá
ainda sem isso não satisfazer nossa razão; mas não a offenderá tanto. É
urgente, pois, provar que elle existe.
Prova-se pela revelação, isto é, pelas escripturas santas e pela
auctoridade da Egreja, interprete infallivel d'ellas. Porém revelação
biblica e infalibilidade de Egreja são já de si outros dogmas a favor
dos quaes se escrevem todos os dias grossos volumes; e seria desviar-me
grandemente do meu assumpto suscitando aqui similhante discussão. O
pouco que a tal respeito hei de dizer vem no appendice que está no fim
d'esta obra, sendo tanto para o leitor como para mim grande a pressa que
temos de sahir d'este labyrintho de mysterios. Investigo provas d'outra
ordem, mais especiaes, mais directas, mais apontadas ao bom senso, ao
coração, á intelligencia, e que se prestam facilmente a ser entendidas e
livremente discutidas. Se taes provas não existissem, não emprehenderia
eu similhante trabalho; mas sustenta-se que existem, e em todas as
apologias são invocadas como auxiliares das provas sobrenaturaes, e do
ensinamento da Egreja, argumentos puramente philosophicos, dos quaes
parece que a fé mesmamente está carecida. Dir-se-hia de vontade a
respeito do inferno, o que Voltaire disse de Deus: que se elle não
existisse, mister seria invental-o. Pois que podemos em verdade provar a
existencia de Deus pela necessidade moral d'esta crença, pelo mesmo
theor se intenta provar a existencia do inferno perpetuo: intenta-se
fazer d'isto uma necessidade moral tão clara e evidente, quanto é
evidente e clara a necessidade moral da crença em Deus, e é usual
fundamentar tal raciocinio sobre o testemunho de todos os povos, que
tanto importa a tradição chamada universal.
A mim me basta a primeira prova; d'ella pende a meu vêr a questão
capital. Se o inferno, ou sómente a idêa do inferno é moralmente util,
existe o inferno, é necessario, e é divino. Porém, como quer que a
evidencia d'esta utilidade não seja dogma, assiste-nos o direito de
examinar com plena liberdade. Tal é a tarefa que me impuz. A tradição
universal de que tratarei depois, é apenas a primeira face do
problema.


O INFERNO

PARTE PRIMEIRA
O INFERNO CONSIDERADO ÁQUÉM DA CAMPA, OU O HOMEM
E A SOCIEDADE EM PRESENÇA DO INFERNO


CAPITULO PRIMEIRO
TRADIÇÕES

I
A tradição universal é a prova do inferno?
Quando nos querem fazer comprehender a necessidade da revelação christã,
esforçam-se em requintar phrases aviltantes, para bem caracterisar o
estado do mundo sob os reinados de Augusto e Tiberio.
Não peço que se suavisem as pinturas. Todavia, se se tracta de nos
incutir algum antigo dogma hebraico tenebrosissimo, repellentissimo, tal
como o peccado original, a malicia dos diabos, o eternal inferno, então
é vêr como esse genero humano tão vilescido se transfigura subitamente
em oraculo. Claro é que a moral se lhe varrêra de todo; mas a theologia
ficou. Eil-os a cavar no lodaçal das superstições orientaes, as mais
putridas de quantas ahi houve, e querem entrever n'ellas uns certos
vestigios de lá se haver conhecido Adão e Noé. Se se trata
simplesmente do inferno, isso então acha-se em toda a parte. Um paria
vagabundo, um pagão abjecto, um negro, um hottentote tremente em face
d'um fetiche, eis as testemunhas, os consultados, os doutores. É mais
que certo que taes miseraveis haviam perdido as noções todas do bem;
dormiam com as servas e até com as irmãs; vendiam na feira as filhas e
ás vezes as mães; profanavam os hospedes; eram ladrões, eram
antropophagos; adoravam pedras, serpentes, sapos, e, peor que tudo,
homens, facinoras ensanguentados; mas criam no inferno. Clarão de
consciencia não lampejava n'elles só um; não estremavam raia entre
virtude e vicio; e, posto que taes distincções lhes houvessem sido
reveladas, tinham-nas esquecido. Vêde, porém, o prodigio: quanto ahi
havia incomprehensivel para nós e ainda mais para elles; tudo que
transcende a alçada da experiencia; tudo quanto a simples razão não póde
revelar--tudo, em fim, que, pelo conseguinte, mais facilmente se desluz
da memoria, oh! tudo isso lhes ficou na lembrança!
Que argumento a pró do inferno!
Quem ousa impugnar verdade tão de fundamento provada? Cafres, Papus,
Saabs, Bushmans creram no inferno! Patagões, Muskogis, Algonquinos,
Chipperrais, Sioux creram no inferno! Hunos, Alanos, Ostrogodos,
Gepidas, Vandalos creram no inferno! Tambem creram n'isso Cananeos,
Philisteos, Ninivitas e Babylonios! Sodoma e Gomorra tambem!
Sardanapalo, Balthazar, Herodiada, Cleopatra, Nero, Attila,
Gengiskhão, Tamerlão creram tambem no inferno! Querem prova mais
concludente?
Eu não sei se semelhante demonstração do inferno é bem feita para
edificar uma assemblêa de fieis; receio muito que os incredulos se riam.
Quer-me parecer que, se tentassem insinuar-nos reverencia a tal dogma,
deveriam contentar-se com dizer-nos que aquellas raças degeneradas,
aquellas nações estupidas, aquellas hordas faccinoras, aquelles
sacerdotes embaidores, aquelles reis devassos, em fim, todos esses
selvagens e monstros, nem criam na eternidade das penas, nem d'isso
tinham vislumbres. Tal argumento, se fundado fosse, figurar-se-hia
melhor que nenhum. Presumir-se-hia que esses homens, se tivessem á mão e
perante os olhos barreira tal, não se infamariam tanto. Mas, da laia que
elles são, darem-no'l-os como crentes no inferno, é mandar-nos descrer.
Horrorisa-nos a immortalidade d'elles. Vão lá trazer taes arbitros para
uma questão de altissimo interesse moral! Dizeis que elles creram no
inferno? Oh Deus meu! é por isso mesmo talvez que elles tão mal
comprehendiam a justiça, e tal vida viveram!

II
Explicação natural das tradições pagãs ácerca do inferno
Que monta recorrer a revelações miraculosas? É facilima coisa explicar
naturalmente as tradições pagãs ácerca do inferno.
Este social estado que conhecemos, no qual o direito de cada um é
definido por lei, e protegido por força publica, não é o primitivo
estado do genero humano. No principio, a unica sociedade foi a familia,
e, por extensão, a tribu. Cada homem se protegia a si, e sahia em
desaffronta propria; parentes e servos bandeavam-se na pendencia, e a
menor tentativa contra o direito privado espadanava ondas de sangue.
N'esses remotos tempos, vingança e justiça eram uma só cousa.
Ora, é verdade que a vingança procede do sentimento de justiça, mas
ultrapassa a justiça sempre, porque é egoista, cega, orgulhosa,
colerica, não mede, não se compadece, dá mal por mal, e usurariamente o
dá. A mais antiga das leis judaicas, a lei cruel de talião, foi lei
misericordiosa; abalisou as retaliações; cabeça por cabeça, olho por
olho, dente por dente, e mais nada. A vingança queria mais: arrancava os
dois olhos, e não se saciava. Na Thracia, em Grecia e Roma, nas Gallias,
na Germania, em toda a terra houve tempo em que os inimigos captivos
eram sacrificados aos deoses, e estrangulados pelos sacerdotes do
altar. Os que o ferro poupava eram ainda mais dignos de compaixão:
condemnavam-os á escravidão com a sua posteridade--ao trabalhar sem
proveito, e á miseria infinita. Entre as familias, tribus e raças ardiam
odios hereditarios; pagava o innocente pelo culpado, porque era commum
dever o assassinal-o.
E tudo isto se figurava justo, e hoje ainda entre as nações christãs,
aqui e alli, subsistem vestigios d'estes antigos costumes.
Se insistem em que os pagãos conheciam o peccado original, a maldição do
genero humano e as penas eternas, força é confessar que elles, segundo
procediam, procuravam incitar a justiça divina. Que melhor modelo lhes
sahiria a ponto?
Para lhes condemnar o procedimento é mister conceder que elles de Deus e
da sua justiça apenas tinham falsa idêa. Phantasiavam Deus á sua
similhança, vingativo, descaroado. D'ahi, a idêa das raças malditas, dos
crimes e castigos hereditarios. D'ahi os pavorosos sonhos do inferno sem
fim, dos máos abrazados e espedaçados vivos, dos algozes enfurecidos
sobre as suas prêas immortaes, o chorar incessante, o suspirar sem echo,
e os engenhosos supplicios todos do Naraka, indostamio inferno que ainda
flammeja, e do Amenthi, egypcio, e do Tartaro grego, antigos infernos já
agora apagados e que ha tantos seculos não mettem medo a ninguem.

III
Como o sacerdocio perpetuou estas tradições
A par e passo que a humanidade se illustra, vemos adoçarem-se por toda a
parte as leis e os costumes; as religiões, porém, essas não: antes
querem morrer que mudar; conservam como deposito precioso e inviolavel
doutrinas antiquadas sem parentesco com as idêas e as necessidades das
sociedades novas. Continuam a prégar aos povos policiados deoses
ferozes. Faz-se mister um dia arrancar ao cutello sagrado as victimas
humanas. Na Gallia foi forçoso derruir as áras e immolar os sacerdotes
para acabar com os sacrificios abominaveis. Dá Moysés aos judeus a lei
de talião, mas reserva a Jehovah a vingança, como os poetas gregos a
reservavam a Jupiter. Querem homens bons e um Deus cruel, homens justos,
e um Deus iniquo; e, sendo isto repugnante, fazem da justiça divina um
mysterio, com a declaração de que o não podemos perceber. Préga Jesus
exclusivamente a caridade, e morre em um madeiro perdoando a seus
algozes. Tratam de conciliar a sua doutrina com os rabbinos, e logo nos
figuram um Deus de duas faces: a doce face do Christo que contempla a
terra, e no inverso d'esta face augusta e ungida de lagrimas, a face
irritada de Jehovah, o Deus exterminador, o Deus inexoravel que persegue
os filhos pelos crimes dos paes.

IV
Exemplo de um povo que permanece fiel a todas as suas
antigas tradições
É a tradição a memoria do genero humano. Cumpre não menosprezal-a á
conta das verdades que ella propaga; todavia não devemos escutal-a de
joelhos, á feição de oraculo, por causa dos erros que a deturpam atravez
de todas as edades e nações.
Que nos faz a nós que os antigos crêssem nas penas eternas? Não será
isso que as tornará eternas, se ellas o não são. Mais antiga que todas
as opiniões dos homens é a bondade de Deus; e as verdades moraes bem
como as physicas dispensam o nosso consentimento para subsistirem.
Pois não girava a terra quando a julgavam immovel? Não era odiosa a
escravidão quando a julgavam justa? Ha na profundeza do ceo estrellas
que nossos paes não viram e nós vemos; e ha outras cuja luz não
alcançamos e nossos netos verão brilhar.
Cumpre ver o ceo com os nossos olhos, e não com a vista dos que já são
mortos. Não seria blasphemia crêr n'um Deus vingador, quando em seu
proprio coração o homem não tinha discriminado entre justiça e vingança,
e por isso a Deus se concediam sentimentos e acções que n'este mundo
eram honrosos. Attribuir-lhe, porém, acções que passariam por
injustas, se commettidas fossem, seria arrogar-se o homem direitos
de fazer-se melhor que Deus; e fôra verdadeira impiedade imaginar um
Deus tal que envergonharia quem o imitasse. O passado lá vai. Os antigos
deram suas contas; nós temos de dar as nossas. Quando um caminheiro cáe
na estrada, quem se levanta côxo é elle e não seu pai. Qualquer crime
que perpetreis servos-ha imputado a vós. Desquitar os homens, em nome
das tradições, da responsabilidade da sua fé, seria remil-os da
responsabilidade das suas obras. Ha quatro mil annos que os
hindostanicos são escravos dos mesmos prejuizos, acorrentados nas mesmas
castas, vinculados ás mesmas praticas, rojando e palpando no mesmo
circulo d'erro e miserias, á similhança dos seus condemnados, no dedalo
tenebroso e sem sahida do seu inferno. N'aquellas regiões morre o homem
na condição em que nasceu: representa servilmente seu já morto pai,
pensando e operando como elle. É, quanto menos póde ser, pessoa
distincta e nova; é-lhe quasi inutil a razão; a memoria lhe basta; nem a
consciencia vive em 'si; está fóra nas tradições oraes ou escriptas que
reverenceia cegamente, porque antes de vir ao mundo já eram veneradas.
Se ha verdade é o que essas tradições dizem; bem, é o que ellas ordenam;
mal, é o que ellas prohibem.
Investigar para que? Que mais quer elle? Bello reclinatorio para a
preguiça! Excellente desculpa para vicios! Valente obstaculo para
virtudes!
Uma das glorias de Christo, um dos espinhos da sua corôa santa,
foi contrapôr o direito da consciencia individual á tyrannia das
opiniões, tradições e escripturas judaicas. Ensinou-nos elle a sobrepôr
o juiz intimo sobranceiro a todos os juizes da terra, e responsabilisou
perante Deus o homem por seus actos, ao mesmo passo que os
responsabilisou por seus pensamentos e sua fé.

V
Effeito d'estas tradições na edade media
As tradições judaicas e pagãs consubstanciavam-se profundamente na edade
media, acerbando-lhes as suas leis penaes com supplicios e torturas. As
prisões não tinham ar nem luz; o adorno das masmorras era palha podre,
pão e agua. Havia prisões subterraneas, tumulos onde o homem entrava
vivo e não sahia mais. Até os mosteiros as tinham. O furto era punido
com a morte; a morte punia a transgressão da lei sobre a caça. Em cada
encruzilhada uma forca. Para os hereges fogueiras. E frequentemente uma
familia inteira era castigada pelo crime do chefe, bens confiscados,
casa arrazada, o nome proscripto. Nada digo sobre a servidão, degradação
hereditaria, especie de mancha original e quasi universal em cada paiz,
horrenda reliquia da escravidão antiga, e das superstições do Oriente.
Havia crença na efficacia d'aquelles horrendos castigos. E seriam
por isso menos raros os crimes? O terror governava o mundo. E seria o
mundo melhor governado? Ia n'isso a antiguidade das tradições. Dava-vos
pena que ellas se abolissem? Quem ha ahi saudoso das torturas,
masmorras, confiscações, fogueiras, escravidão? E quem ousaria pedir,
por interesse da justiça e da moralidade, o restabelecimento das
instituições da edade media?

VI
Como a sociedade christã se desvia progressivamente
d'aquellas antigas tradições
Não ha muito que nós ainda tinhamos o nosso inferno: eram as galés onde
as condições peioravam. Destruiram-nas, e crearam as colonias
penitenciarias. Antes de nós, se deram bem com isso os inglezes.
D'aquelle antigo inferno terreal, paraizo em comparação do outro,
resta-nos como terrivel vestigio a perpetuidade do castigo para certos
culpados. Quiz o homem copiar o antigo Deus das vinganças, e infligir
aos seus similhantes penas infinitas, tendo elle apenas um dia de seu.
Taes penas se acham nos nossos codigos. A sabedoria humana é tão
limitada como o seu poder. Mas, apezar de limitadissima, é admiravel!
Com que arte a sociedade concilia os mais oppostos deveres--a protecção
aos justos, e até a protecção aos culpados que ella extrema dos justos!
Não os esquece nas suas prisões, não renunciou ao direito de
perdão; não desentranhou de si o sentimento da piedade. Sobre essa
paragem de miserias está sempre fixo um olhar de dó, e attento um ouvido
que escuta os gritos do arrependimento. E acaso se enfraquece por amor
d'isso a lei penal? E se o perdão salva um d'esses prezos que a justiça
ferira com perpetua pena, cuidaes que esse acto robusteça o mal, e dê
nas prizões ou fóra d'ellas um exemplo funesto?
Ainda mais: a sociedade amnistia algumas vezes propriamente o crime,
derroga a sentença do juiz e restitue o criminoso em todos os direitos
do innocente. Os crimes que ella amnistia quaes são? Os mais
ultrajadores de sua authoridade, das suas leis, do seu repouso e
existencia: amnistia os crimes de lesa-magestade, e contenta-se com
perdoar os outros.
Este é o espirito das legislações novas em toda a christandade, nas
quaes a misericordia se abraça com a justiça.
Inferno que nunca muda é só o theologico. É sempre o inferno da edade
media, inferno de judeus e pagãos, os mesmos supplicios, os mesmos
gritos, a mesma impiedade crescente, os mesmos horrores. Não querem que
Deus tenha o direito de perdoar no outro mundo. Cá em baixo póde
fazel-o, se lhe apraz, como qualquer rei da terra. Mas lá no seu reino
não ha perdão nem amnistia! Colera infinita! Vingança perpetua!
Inexoravel furor! Tal é, consoante o pintam, o Rei dos ceos.
Ditosos os povos cujos principes se não modelam por elle!
Quem quizer encontrar hoje imitadores do Deus terrivel dos antigos, ha
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