O Inferno - 07

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posto que material como o nosso, e actuando sobre corpos materiaes, os
conservará como o sal conserva a carne das victimas sempre sacrificadas
e sempre viventes, sentirão a dôr d'aquelle fogo que queima sem
destruir, e lhes filtra aos musculos, saturando-lhes os membros, desde a
medulla dos ossos e as pupillas dos olhos até as mais occultas e
sensiveis fibras do seu ser.
Se elles podessem submergir-se na cratera d'um vulcão, sentir-se-hiam
ahi refrigerados e consolados.
D'esta arte fallam com toda a segurança os mais timidos, os mais
discretos e reservados theologos; não negam, porém, que no inferno haja
outros supplicios corporaes; sómente dizem que não tem d'elles um
sufficiente conhecimento, ou pelo menos tão positivo como aquelle que
receberam ácerca do horrivel supplicio do fogo, e do afflictivo
supplicio dos vermes. Ha no entanto theologos mais audazes e illustrados
que nos dão descripções mais miudas, variadas, e completas do inferno;
e, bem que não saibam em que local do espaço tal inferno esteja,
consta-lhes que alguns santos o viram.
De certo que estes santos lá não foram com a lyra em punho, como Orpheo,
ou com a espada na mão, á similhança de Ulysses: baixaram lá
arrebatados em espirito. D'este numero é Santa Thereza.
Quem lê a relação d'esta santa cuidará que no inferno ha cidades. Pelo
menos lá viu ella uma especie de viella longa e estreita como ha tantas
nas cidades antigas; entrou caminhando horrorisada sobre um terreno
lamacento e fetido onde rastejavam reptis monstruosos; mas foi retida em
seu transito por uma parede que atravancava a viella; e n'esta parede
havia um nicho onde Santa Thereza se metteu sem saber como. Disse ella
que este logar lhe estava destinado, se abusasse emquanto viva das
graças que Deus difundia sobre a sua cella d'Avila. E, bem que ella se
anichasse com maravilhosa facilidade n'aquella guarita de pedra, não
podia nem assentar-se, nem deitar-se, nem estar de pé, nem safar-se; que
estas horriveis paredes, apertando-a, envolviam-na, angustiavam-na, como
se fossem animadas. Parecia-lhe que a abafavam, que a estrangulavam, e
ao mesmo tempo a estripavam e a faziam pedaços.
E sentia-se arder, e não havia genero de afflição que não
experimentasse. Esperança de soccorro, nenhuma. Á volta d'ella tudo
escuro; mas ainda assim, atravez d'essas trevas, entrevia, com grande
espanto, a hedionda rua por onde tinha passado com toda a sua immunda
visinhança: espectaculo que lhe era tão intoleravel como as intalladelas
da prisão.
Ora isto de certo era apenas um cantinho do inferno.
Outros viajantes espirituaes foram mais obsequiados. Houve tal que viu
no inferno grandes cidades a arder, Babylonia e Ninive, e até Roma, com
os seus palacios e templos abrazados, e os habitantes acorrentados,
mercadejando no balcão, padres misturados com meretrizes nas salas dos
festins, hurrando nas suas poltronas d'onde não podiam arrancar-se, e
levando aos beiços, para apagar a sede, copos que golphavam lavaredas;
validos em joelhos sobre almadraques ardentes, com as mãos postas, e
principes vertendo sobre elles devorante lava d'ouro fundido. Outros
viram no inferno descampados sem limites, cavados e semeados por
lavradores famelicos. E d'essas plantas fumegantes de suor, como nenhum
fructo vingasse, os lavradores devoravam-se uns aos outros; e, depois,
tantos quantos tinham sido, magros e famintos do mesmo modo,
dispersavam-se em bandos pelos horisontes fóra em cata de terras mais
ditosas, e eram logo substituidos por outras colonias errantes de
condemnados.
Houve quem visse no inferno serranias cavadas de abysmos, de florestas
gementes, poços sem agua, fontes de lagrimas, regatos de sangue,
turbilhões de neve em desertos de gelo, barcos desesperados vogando em
mar sem praia. Em fim lá viram quanto os pagãos tinham visto, o reflexo
lugubre da terra, uma sombra incommensuravelmente augmentada de suas
miserias, os seus naturaes soffrimentos eternisados, entrando
n'isto masmorras, forcas, e os instrumentos de tortura que as nossas
proprias mãos forjaram.
Ha com effeito lá n'essas profundezas demonios que se fazem corporeos,
para mais a preceito atormentarem os homens em suas carnes. Uns tem azas
de morcego, pontas, coiraças escamosas, griphos e agudissimos dentes.
Temol-os visto pintados, armados de espadas, de forcados, de tenazes
ardentes, de serras, de grelhas, de folles, de clavas, empregando tudo
isto durante a eternidade n'uma especie de açougue e cosinha da carne
humana. Ha outros transformados em leões, e viboras enormes, arrastando
as prêas em solitarias cavernas.
Alguns desfiguram-se em corvos para arrancar os olhos a certos
padecentes, em quanto outros se transformam em dragões volateis, e vão
carregados d'almas sanguentas e lastimosas atravez de tenebrosos
espaços, e as precipitam no lago de enxofre. Além se vê nuvens de
gafanhotos, e de agigantados escorpiões, cuja vista arripia, cujo cheiro
enoja, cujo menor contacto convulsiona. Acolá estão os monstros
polycephalos abrindo vorazes fauces, sacudindo as crinas formadas de
aspides, triturando os condemnados entre os seus queixos sangrentos, e
vomitando-os logo mastigados, mas ainda vivos, porque são immortaes.
Estes demonios de fórma sensivel, recordando tão ao vivo os deoses do
Amenthi e do Tartaro e os idolos que os phenicios, os moabitas e outros
gentios visinhos da Judea adoravam, estes demonios não funccionam
á toa; cada qual tem seu officio e sua tarefa: o mal que fazem no
inferno corresponde ao mal que elles inspiraram e fizeram commetter
n'este mundo. São os condemnados punidos em todos os sentidos e orgãos
porque offenderam Deus por todos os orgãos e sentidos. Os comilões são
punidos de certa maneira pelos demonios da intemperança, e d'outra
maneira os calaceiros pelos demonios da preguiça, e ainda d'outra
maneira os lascivos pelos demonios da sensualidade; em fim, são tantas
as maneiras quantas as variedades de peccar. Dizem que elles até na
fogueira terão frio, e no gelo se sentirão arder; estarão ávidos de
descanso e irrequietos; sempre com fome, sempre com sede, e mil vezes
mais cansados que o escravo no fim do dia, mais doentes que os
moribundos, mais lacerados, mais escalavrados, mais lazaros que os
martyres, e assim para todo o sempre.
Nenhum demonio se desgosta nem desgostará jámais do seu terrivel
officio; n'esta parte são elles disciplinados a ponto, e fidelissimos na
execução das ordens vingativas que receberam. Se não fosse isso, que
seria do inferno? Se os demonios tivessem rixas entre si ou se
fatigassem, os pacientes descansariam. Mas nem uns descansam, nem os
outros se desavêm; e posto que sejam máos e muitissimos, os demonios
harmonisam-se d'um cabo a outro do abysmo, por tanta maneira que nunca
na terra se viram nações mais submissas a seus principes, exercitos mais
doceis a seus generaes, communidades fradescas mais obedientes a
seus prelados. Nada se sabe da ralé dos demonios, d'essa canalha de
espiritos villãos que formam legiões de vampiros, de sapos, de
escorpiões, de corvos, de hydras, de salamandras e outra bicharia sem
nome que constituem a zoologia das regiões infernaes; mas são conhecidos
de nome muitos principes que commandam aquellas legiões, entre outros
Belphegor, o demonio da luxuria, Abbaddon ou Apollyon, o demonio da
carnificina, Beelzebuth, o demonio dos desejos impuros, ou o principe
das moscas geradoras da podridão, e Mammou, o demonio da avareza, e
Moloch, e Belial, e Baalgad, e Astaroth, e outros mais, e sobre todos o
chefe universal, o sombrio archanjo que no céo se chamava Lucifer, e no
inferno se chama Satan.
Eis aqui, em summa, a idêa que se nos dá do inferno, observado em sua
natureza physica, e nas penas corporaes que lá se padecem. Lêde os
escriptos dos padres e antigos doutores, interrogae as piedosas
legendas, examinae as esculpturas e paineis das nossas egrejas, attentae
o ouvido no que se diz em nossos pulpitos e sabereis muitas outras
coisas.

II
Reflexões sobre as penas materiaes dos condemnados
De qualquer modo que as figuremos, e quando mesmo por piedade ou
qualquer outra razão se reduzissem só á acção do fogo, estas penas
materiaes não poderiam ser eternas, porque, se a alma é immortal e póde
soffrer sempre, não succede o mesmo ao seu involtorio terrestre: corpos
de carne, á feição dos nossos, são de seu natural incapazes de resistir
a similhantes agentes de destruição.
É um milagre a resurreição dos corpos; mas faz-se mister um segundo
milagre para dar a estes corpos mortaes, já usados pelos transitorios
attritos da vida, e de mais a mais aniquillados, a virtude de subsistir,
sem se dissolverem, na fornalha onde metaes se evaporassem. Diga-se
embora que a alma é algoz de si mesma, que Deus a não persegue, mas que
a desampara pelo estado desgraçado que ella escolheu: isso ainda póde
rigorosamente comprehender-se, posto que o desamparo eterno d'um ser
desvairado e padecente pareça pouco conforme á bondade do Creador; porém
o que se diz da alma e das penas espirituaes não póde por modo algum ser
dito a respeito dos corpos e das penas corporaes; que para eternisar as
penas corporaes não basta que Deus retire a sua mão; pelo
contrario, é forçoso que elle a mostre, que intervenha, que opere, sem o
que o corpo succumbiria.
Conjecturaram, pois, os theologos que Deus effectivamente opera, em
seguida á resurreição, o segundo milagre de que fallamos. Primeiro,
exhuma do sepulchro os corpos de argila que lá se haviam desfeito;
tira-os taes quaes lá tinham entrado com as suas nativas infermidades e
as degradações successivas da idade, da doença e do vicio, decrepitos,
infesados, gotosos, cheios de precisões, sensiveis á ferroada d'uma
abelha, cobertos das macerações que lhes fizeram o rossar da vida e da
morte: eis o primeiro milagre. Depois, a estes corpos alquebrados,
prestes a reverter ao pó d'onde surgiram, inflige uma propriedade que
não tinham: a immortalidade, o mesmo dom que n'um lance de colera, ou,
se o quereis, n'um lance de misericordia, elle tinha subtrahido a Adão
quando o expulsou do Eden: eis o segundo milagre. Quando Adão era
immortal, era invulneravel; e, quando cessou de ser invulneravel,
tornou-se mortal. Á dôr seguiu-se o morrer.
A resurreição, portanto, nem nos repõe nas condições physicas do homem
innocente, nem nas condições physicas do homem culpado; é uma
resurreição das nossas miserias sómente; mas com sobrecarga de novas
miserias, infinitamente mais horriveis; é, até certo ponto, uma
verdadeira creação, e mais maliciosa que imaginação alguma ainda
concebeu. Dir-se-ha que Deus reconsidera e varia, quando
accrescenta aos tormentos espirituaes dos peccadores tormentos corporaes
de duração infinda, e muda de repente as leis e as propriedades por elle
prescriptas ás composições da materia desde a origem d'ella. Resuscita
carnes doentes e corruptas, e, atando com indesatavel nó elementos que
tendem a separar-se, mantém e perpetúa, contra a ordem natural, aquella
podridão vivente, que é posta no fogo, não para se depurar, mas para ser
conservada qual é, sensivel, padecente, ardente e immortal.
Por amor d'este milagre é Deus arvorado em um dos algozes do inferno;
por que, se os condemnados só a si podem imputar seus males espirituaes,
tambem não tem a quem imputar os outros senão a Deus. Já não era pouco
abandonal-os, depois de mortos, á tristeza, ao remorso e a quantas
agonias sente a alma que perdeu o bem supremo; mas ha ahi peor: irá
Deus, no dizer dos theologos, procural-os nas trevas do seu abysmo;
chamal-os-ha por instantes á luz, não para allivial-os, mas sim para
vestil-os d'um corpo horrido, chammejante, immorredouro, e n'este acto
os abandonará definitivamente. Mas não será isso ainda abandono, pois
que céo, terra e inferno não subsistem senão por um acto permanente da
divina vontade sempre activa. É força, então, que Deus os tenha sempre
de sua mão, para obstar que o fogo se apague e os corpos se consumam, a
fim de que esses desgraçados immortaes contribuam, com a
perennidade de seu supplicio, á edificação dos predestinados.
Vem a ponto um episodio da historia da Egreja, que, máo grado nosso, nos
veio á lembrança. Seja-me permittido recordarvo-lo.

III
Os martyres de Nero
Foi Nero um poderoso imperador. Galardoava esplendidamente os escravos
que o serviam; e, ao mesmo tempo, incutia-lhes medo salutar com o seu
systema de tratar inimigos. Queimando Roma a fim de a reedificar mais
formosa, assacou o crime aos christãos, gente indocil que o não
bajulava, e cria em justiça mais amavel que a d'elle, e por esta e
outras razões desagradava á plebe idólatra. O processo foi summario; a
sentença de morte, e a execução espantosas, como vai vêr-se.
Embrearam-os de resina, amarraram-os a postes de ferro, cravados
distantes entre si nos bellos jardins de Sallustio, onde eram celebrados
então os jogos nocturnos. Era já noite, quando as portas foram abertas á
multidão. Eis que sôa o clangor das trombetas, e logo os verdugos
infileirados chegaram lume ás tunicas dos christãos. Callam-se as
trombetas; restrugem de todos os lados gritos estridentes. A subitas,
arvores, flôres, estatuas, escadozes marmoreos, tanques, repuxos,
tudo resplandeceu. Chega Cezar na sua carroça, escoltado de vistosa
côrte, derramando, por sobre as turbas aterradas e jubilosas do seu
sorriso, ouro e perolas. Servem-se banquetes. Dançam as filhas do
oriente, em quanto os tocadores de alaude e cantores confundem a dôce
melodia de seus concertos com os applausos do povo fiel e os derradeiros
arrancos dos christãos que vasquejavam em suas tunicas ardentes.
Pouco durou aquelle instructivo espectaculo. N'este mundo, as festas
mais bisarras são curtas. Felizmente para os martyres, Nero não era
Deus. Diz-se, porém: eil-os, os confessores de Christo apremiados, á
volta de um Deus que dá ares de Nero, e como contemplando, á maneira do
Cezar, em festa sem fim, milhares de creaturas humanas, estorcendo-se e
clamando nas lavaredas, tochas ullulantes, fachos inextinguiveis,
testemunho assás consolativo da superioridade do rei do céo sobre os
regulos da terra.
Haja paciencia, que ainda falta o mais essencial. Aquellas penas
corporaes são quasi nada. Repugnantissimas que ellas se nos figurem, são
essas, ainda assim, a menos repugnante cousa que o inferno
encerra.

IV
O inferno espiritual
Em que meditam esses pobres entes atormentados? Que sentimentos os
dominam? Que fazem elles, durante as suas inexpremiveis torturas, n'esse
tempo illimitado em que os segundos são seculos, e os seculos menos que
segundos? Os theologos tem investigado estas cousas; e, presupposto
perpetuo o inferno, não ha dous modos de resolver aquellas perguntas.
Uma breve reflexão vos dará a resposta que os theologos tem dado
perfeitamente conforme a todas as tradições.
Imaginai um lupanar de embriagados, um hospital de loucos, um covil de
assassinos, uma caverna de ladrões, um bordel immundo; soltai ao mesmo
tempo todos os moradores d'esses abominaveis logares, e tereis uma
optima pintura do inferno espiritual, isto é, o estado mental dos
condemnados. Novos e velhos, homens e mulheres, embaralhados todos,
apostrophando, jurando, blasphemando, eternamente ebrios, eternamente
vorazes, eternamente lascivos, eternamente invejosos e crueis,
eternamente impios, eternamente sandeus.
Como as sombras do Tartaro, choram o nosso sol, as sombras, as frescas
ribeiras, os pampanos dos nossos vinhedos, e todos os prazeres sensuaes
de que ávidamente estão sequiosos e privados. Os demonios, que os
castigam por seus passados prazeres, alimentam n'elles inuteis saudades,
e insensatos desejos, dos quaes nada póde distrahil-os, nem sequer as
dôres corporaes, e agudissimas de que são atormentados todos os seus
membros. N'isto, de mais a mais, os demonios o que fazem é executar as
sentenças do soberano juiz--sentença promulgada no céo, pela qual são os
reprobos intellectualmente torturados; pois diz Santo Agostinho no seu
_Commentario aos psalmos_: faz-se mister que tudo quanto deliciou os
homens, quando peccaram, se converta em instrumento do Senhor quando
castiga. O desejo saciado é, pois, punido com o desejo insaciavel.
Não imaginem que no inferno haja uma só alma que deplore a sua
innocencia baptismal, e o céo promettido que ella perdeu, e a companhia
dos anjos, e a bemaventurança dos eleitos. Os precitos fogem de Deus,
não o procuram; viram-no no dia do juizo, tem-no presente sempre nos
tormentos que soffrem. De certo os angustia estar tão longe d'elle; mas
é angustia de raiva que não tem nada que vêr com as saudades e anceios
do amor.
Não pensem que entre as alegrias cuja perda lá nos dilacera o coração,
estejam os castos prazeres do lar, a pratica dos anciãos, as meiguices
das creanças, a ternura dos irmãos, a dôce confiança dos amigos, as
consolações do trabalho e as recompensas do estudo. Verdadeiras alegrias
eram aquellas de certo para os peccadores; mas os condemnados nem
as desejam, nem d'ellas se lembram; abasta-lhes a sciencia que tem; e,
pelo que toca ás affeições terrestres, mortas são todas: resta-lhes o
odio sómente. A mãe que está no inferno, se tem um filho no paraizo,
abomina-o, e elle a ella; se o tem no inferno, abomina-o tambem e é
correspondida por igual, e, se o tem vivo no mundo a choral-a, da mesma
sorte o abomina. Filhos, pae, marido, irmãos e irmãs, amigos, tudo lhe é
igualmente odioso.
O que os condemnados mais ardentemente desejam é coisa que se beba e se
coma, e além d'isso as delicias sensuaes e a bruteza do coito carnal.
São de tal sorte as suas disposições em meio de tantos soffrimentos que,
se um só d'esses condemnados podesse por um momento voltar á vida,
escandalisaria um alcouce. Entretanto, confessam a justiça da
condemnação que os fere; mas é para amaldiçoal-a; e, bem que não sejam
atheus, por que tal não podem ser em similhante lugar, são mais
scelerados, ignobeis, impudentes e perversos do que poderia sêl-o uma
nação de atheus. Uma nação de atheus, não sendo composta de immortaes,
temer-se-hia do nada como d'um objecto de medo ou esperança, e tiraria
d'ahi certas regras de proceder que bastariam a tornal-a menos miseravel
e brutal; mas no inferno não ha que temer nem que esperar. Ha ahi um
retouçar-se na dôr, em horrendos sonhos, que exulceram os appetites sem
os satisfazer. Ahi é tudo obscenidade, egoismo, opprobrio,
hediondez, a humanidade disforme, depravadissima, impudentissima,
sem piedade, sem consciencia.
A blasphemia é a unica distincção que separa os condemnados das feras
assanhadas, e que os levanta algum tanto acima dos porcos, dos lobos,
dos macacos, dos toiros, dos bodes e dos reptis. É logo a blasphemia o
unico symptoma de razão que se lhes deixa, a sua unica e ultima
grandeza! Os irracionaes nem quando soffrem blasphemam: a blasphemia é
um acto intellectual que n'este mundo degrada, e no inferno exalta. Um
condemnado que louvasse a Deus seria um santo, cujo supplicio cedo ou
tarde acabaria; mas, sendo interminavel o supplicio d'elle e impossiveis
os santos n'este abysmo, o condemnado que não blasphemasse seria um
bruto infecto.
É portanto de justiça que os façam blasphemar; d'isso inferimos que
elles tem alma; e d'esse modo a mostram na unica maneira que podem; e,
se não podem satisfazer a vil concupiscencia que os devora, desforram-se
saboreando a pleno peito o agro prazer de insultar o Deus que os pune
por tão singular maneira.

V
Continuação do inferno espiritual
Havendo só o inferno, já se vê que n'esta infame companhia os theologos
misturam, como iguaes, qualquer homem honrado que morra na incredulidade
dos mysterios. Isto lhe basta para ser condemnado. E com esse vae tambem
a viuva pobre, que, em vez de ir á egreja no domingo, remenda os
fatinhos das suas creanças: tambem não é preciso mais para ser
condemnada.
Tambem lá vão, á conta de não jejuarem, nossas mães e irmãs, mulheres e
filhos: pois não é bastante razão para ir ao inferno quem come um bocado
de pão com certo prazer?
Este inferno, povoado de patifes incorrigiveis, é uma escóla: ninguem
ahi se corrige, mas aprende cada qual a conhecer-se, e já não é pouco.
Quem quer que ahi desce, logo que ahi está, é igual aos devassos, aos
parricidas e aos traidores. Quem ahi se vê tão diverso do que se
imaginava n'este mundo, aterra-se de si proprio. O bom que cada qual
tinha em si quando vivia, com a vida se desvaneceu; e o mal que era
apenas uma imperceptivel mancha, lavrou como a gangrena, de tal arte que
alma e corpo é tudo uma chaga.
Que o homem se perdesse por um pomo ou por um imperio, por um beijo ou
por um homicidio, o resultado é o mesmo: ninguem é condemnado com
attenuantes. Não procureis no inferno um companheiro menos corrompido do
que os outros, que se respeite ou que seja respeitavel por qualquer
motivo; é coisa que lá não ha; ninguem conserva ahi vislumbre das
qualidades que na terra se respeitam. Ou vades para a direita ou para a
esquerda, para cima ou para baixo, girai em todas as direcções d'esse
abysmo, que não achareis germen, relampago, sombra de virtude. Aquelles
sabios cujas vigilias opulentaram os homens, e não deixaram dinheiro com
que os enterrassem; aquelles philosophos estoicos, legisladores,
magistrados, guerreiros illustres, e soldados obscuros mortos nas
fronteiras; aquelles rigidos protestantes que psalmodeavam nas
lavaredas, aquellas esposas extremosas, e as noivas cuja sepultura é
juncada de rosas brancas--todos esses que não morreram em graça--de
qualquer modo que pensassem e procedessem n'este mundo, os seus costumes
e pensamentos são forçosamente os do outro. Os que lhe sabem a historia,
e os amaram e lamentam, não hão de reconhecel-os. Eil-os preza de todos
os vicios, paixões, e desejos dos condemnados. Grandes homens, sabios
heroes, martyres, mães veneradas, donzellas castas, artistas sobrios e
modestos, eil-os em côro de impios, fallando como ebrios, cynicos e
assassinos. Abandonou-os Deus todos a um tempo, a um tempo os pune
todos; o mesmo ferro lhes abrasa os corpos e a mesma febre lhes
alanceia as almas.
Ahi está o inferno espiritual.

VI
Da immortalidade das penas espirituais do inferno.
É pois o inferno um máo logar, trescalando ao vicio e ao crime. Os
demonios, guardas d'este máo logar, e professos na corrupção, usam do
imperio que sobre os hospedes lhes é permittido, corrompendo-os
incessantemente e sem lucta nem obstaculo.
É propriedade d'elles a alma dos condemnados. Deus, entregando-lh'a para
que elles façam d'ella o que poderem, não lh'a disputa e bastantemente
sabe o que elles farão.
Se as adições espirituaes dos condemnados fossem sómente crueis, seria
isso bastante para nos auctorisar a duvidar da eternidade d'ellas; mas,
além de crueis, impuras, é um direito, é até um dever negal-as. É certo
que a natureza algumas vezes inflige ao homem esses impuros
soffrimentos; mas são transitorios: uns morrem, alguns curam-se, e
outros endoidecem: é outro genero de morte. Mas no inferno os furores
sensuaes, os appetites phreneticos não matam nem remedeiam, não são
venenos nem balsamos, são penas sem fructo e sem fim.
«Que condemnação, diz S. Bernardo, a da vontade amarrada á precisão de
crêr o _mal_ e não crêr o _bem_; por tal modo que de qualquer maneira
que se mova, é sempre _criminosa_ e miseravelmente! Não ha de gozar
jámais os prazeres _culpaveis_ que deseja; e as _privações_ que ella não
quer é as que ella ha de ter por toda a eternidade.»
Crêr o mal e não crêr o bem, é logo o resultado d'aquella condemnação.
Por sentença do juiz, e de que juiz! é que lá eternamente se anceiam
impudicos prazeres, ao mesmo passo que o espirito soffre a privação dos
sentidos. Montesquieu, que, a fallar verdade, não era padre da Igreja
nem monge, formava outra idêa da natureza moral das penas destinadas a
servir de sancção aos accordãos da justiça da terra propriamente. Lêde
no _Espirito das leis_ certo capitulo intitulado: _Da violação do pudôr,
no castigo dos crimes_. Assim começa o capitulo: «Ha regras de pudôr
observadas em quasi todas as nações do mundo: absurdo seria violal-as no
castigo dos crimes, o qual deve sempre ter em vista o restabelecimento
da ordem.»
Ainda que Montesquieu m'o não dissesse, a cousa é evidente por si.
Satrapas em delirio, Cezares devassos, tyrannos corruptissimos, póde ser
que alguma vez enviassem uma rapariga desobediente mas honesta a um
bordel, e que, ajuntando calculadamente a indecencia ao castigo,
convertessem a excitação dos sentidos em supplicio legal, deshonrando a
lei para deshonrar o inimigo. Em todos os paizes civilisados
castiga-se para restabelecer a ordem material e a moral quanto
póde ser.
Cuida-se em esquivar o culpado ás seducções que o perderam; impedem-no
de ser nocivo a si e aos outros; privam-no de satisfazer as paixões, não
com o intento de lh'as irritar, mas de enfraquecel-as; sequestram-no da
companhia das pessoas de bem, não para que as odeie, mas para que as
chore; deseja-se que a sua maior afllicção consista em havel-as
offendido, e que o arrependimento o rehabilite para tornar ao seio
d'ellas; protegem-no contra a injuria; enviam-lhe a visita de caridade
que o instrue, consola e ás vezes restaura. Estas conversões são raras
certamente; quasi todas as nossas prisões são infectas; ahi a soledade
corrompe; e a promiscuidade é contagiosa. Sabem-no os legisladores, e os
juizes tambem. Não se diz, porém, que assim o querem juizes e
legisladores? E, na verdade, querem-no assim!? Que se nos depara ahi
senão o stygma da imperfeição das nossas obras, e a pequenez de recursos
em comparação dos desejos? Mas nem por isso nos sentimos descrer dos
intimos anhelos que nos incitam a buscar nas penas meio de restaurar a
ordem perturbada, onde quer que seja, e até na alma do criminoso. O que
a mesma imperfeição nos aconselha é que prosigam sem descanso no
intento, que será completamente realisado no mundo em que a justiça é
perfeita, e o poder do principe igual á sua justiça.
Não nos mostrem, pois, no inferno, uma galé immensa, repleta de
impudentes scelerados, porque vos será perguntado se Deus não póde, mais
que os homens, vencer corações rebeldes, ou se mais lhe praz exercitar
sua omnipotencia a perpetuar um feio espectaculo que nós, philosophos e
christãos, bem quizeramos que fosse banido.
Esta concepção do inferno, tão ignobil quanto atroz, data visivelmente
de tempos barbaros, em que a vida physica afogava a moral, e a justiça
não transparecia aos olhos propriamente do sabio senão atravez da nuvem
sanguinosa da vingança.
Punir eternamente o vicio com o vicio, a immoralidade com a
immoralidade! que projecto! e, na execução d'elle, que prodigio! Pois
não basta justiçar o homem no corpo? Será preciso que o aváro, durante a
tortura, arda de saudades dos thesouros que tantos cuidados lhe custaram
e tantas dôres grangearam? Ha de o comilão, deitado sobre grelhas em
brasa estar a pensar sempre na cosinha e na garrafeira? O voluptuoso,
comido de chammas e de bichos, ha de estar sempre a lagrimar pelas
parceiras? Acham isto possivel? Sendo assim, no inferno sabe-se melhor
do que na terra o que valem riquezas, prazeres, divisas, veneras,
medalhas, sceptro e arminhos. Ahi, ser-se-ha, de facto, blasphemo, e
intencionalmente devasso, adultero, usurario, despota, valido, mas tudo
isto sobre brasas? Havemos de confessar que o local não é dos melhores
para taes desejos, e que só por milagre, em tal sitio e por muito tempo,
possa haver similhantes delirios. Ora ahi vedes que se attribue a
Deus o milagre de fixar a alma dos condemnados sobre impuras imagens,
immobilisando-as em appetites que o offendem. É o peccado eternisado, e
eternisado por Deus. Não cabe a responsabilidade d'isso aos condemnados.
Não os accuseis; lamentai-os; que esses infelizes não são viciosos de
vontade propria: é a lei que os obriga.

VII
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