O Inferno - 04

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mesmo,--crêl-o-eis?--é que está, segundo elles, a sua superioridade
sobre a irmã da caridade, cujo coração virginal arfa como coração de mãe
ao grito da criancinha[4].
A carmelita não pensa, nem tem que pensar senão em sua propria salvação,
e tal pensar é um manancial das commoções que unicamente lhe são
permittidas. Bem que ella viva dez, vinte, cincoenta annos sob o
veo, fará todos os dias, á mesma hora e da mesma maneira, a mesma coisa
sem poder por seu arbitrio alterar-lhe o minimo. São-lhe pautados os
movimentos, e contados os passos. Em todo o curso de sua vida não ha a
menor surpreza, o minimo abalo, o imprevisto, a menor liberdade, ou
elevação espontanea das faculdades moraes. Estão definidas e immutaveis
as suas relações com todas as coisas animadas ou inanimadas que a
cercam: não se afeiçoa, não escolhe, não se decide. É-lhe prohibido
ganhar affecto a coisas e a pessoas. A abelha é mais livre do que ella
em sua colmeia, e menos inflexivel que as regras monasticas é o
instincto que a dirige. Uma communidade de freiras parece-se a um povo
de automatos e não a um enxame de seres viventes. E essa é que é a
condição pela qual a harmonia subsiste. N'estas sociedades contra
natureza, é prudente que a natureza seja algemada; pois, se lhe dessem
folga, ella se revoltaria; e por tanto é forçoso esmagar a liberdade
como cautela para que a licença não vingue. É pois a carmelita em todos
os seus actos mera machina. Tem alma para obedecer e trabalhar na sua
interior perfeição, destruindo em si, cada vez mais, vontades, desejos,
e individualidade até ás raizes. Onde está a lucta está a vida. N'esse
immutavel centro, solitario e silencioso, onde se caminha sem mudar de
piso, passa a adolescencia sem curiosidade, e a velhice sem experiencia
nem memoria. Ahi nada se renova; o dia que chega nada promette; o dia
que finda nada deixa; é a vida um livro, cujas paginas em vão se
folhêam: sobre essas paginas brancas ha uma só phrase, do começo ao fim,
sempre a mesma: «pensa em ti, pensa na eternidade.»
Ahi vem agora com que espancar o tedio do mosteiro. Á mingoa de grandes
e formidaveis combates do lar domestico e da sociedade, isto é, da vida
real qual Deus a fez, a ociosa carmelita pugna heroicamente contra sua
razão, contra seus sentidos, imaginação, e faculdades inactivas. Crê
resistir ao diabo, resistindo á necessidade de operar, de amar, de
saber, e ser util: estafa em puerilidades a sua virtude. Se durante o
officio, uma mosca lhe pousa no nariz, é um caso, é uma provação. Se
está distrahida, assalteam-na remorsos; se impaciente, vai confessar-se
d'isso. Uma pulga é outro inimigo terrivel, outra occasião de grande
queda ou de grande victoria! Um alfinete mal pregado, um vêo
descomposto, uma lembrança, um gemido, um pensamento clandestino, o
rastilho d'um rato atraz do armario, um _Ave_ esquecido, ó cathastrophe! ó
remorso! ruina de Sião! prantos de Job! brados de Rachel! transportes de
Jeremias! Qualquer bagatella a alvoroça como materia de peccado mortal;
qualquer futilidade lhe avulta com proporções monstruosas; pesa grãos de
areia, e mede os atomos.
Pois se ella conseguiu esquecer sua familia, seu paiz e o mundo, não a
cuideis completamente impassivel como se vos figura: o que ella fez foi
concentrar em si e para si o amor e piedade que nega aos outros.
Idolatra-se, não ao modo dos sybaritas, mas por um theor que, posto não
seja sensual, não é menos egoista: absorve-se em contemplação de sua
alma; no proprio coração preenche o vacuo de familia e de amigos, e de
quantas creaturas de lá expulsou. Contempla-se sósinha, entre o inferno
e o céo, a tremer perante um tal espectaculo, e sempre fluctuando entre
estes abysmos, ora nas alturas, ora nas profundezas, passa de um delirio
a outro, e das palpitações do terror ao extase dos seraphins.
Eu por mim não sei se Deus sorri a taes futilidades, a tal vida que não
é viver, e a tal morte que não é morrer; mas os theologos affirmam que é
n'isto que a perfeição consiste.
E forçoso é concordar que elles tem razão, se ha inferno. Se ha inferno,
a irmã da caridade é imprudente, e nós, os admiradores d'ella, somos
sandeus. O sequestro mais rigoroso é a consequencia legitima, natural,
necessaria e fatal d'este dogma selvagem. O alicerce, a porta e o tecto
do mosteiro é aquelle dogma, que desata as sociedades naturaes e
viventes avinculadas pelo amor; é elle o occulto liame d'aquellas
sociedades de automatos que não permaneceriam um dia, nem hora, nem
momento, se tal dogma fosse proscripto. Sem inferno, a vida claustral
não se percebe; com inferno, não ha imaginal-a mais a ponto, e é
obrigatorio confessar que, de feito, a perfeição está n'ella, visto que
a razão está com ella.
Não obstante, filhos do seculo, não renuncieis afogadilho de
seculo, que vol-o prohibem os theologos.
Ficai entre peccadores, no foco das tentações, dos escandalos, dos
erros, e das ciladas que vos tramam. Razoavel coisa seria fugir para o
porto seguro que vos offerecem; mas não vades; continuae a navegar entre
restingas, á mercê dos tufões, aos clarões dos relampagos. O convento
não vos quadra; porque não foi feito para muitos.
Entendo, direis, que o convento se abriu para os entes mais debeis, para
os incapazes não só de ajudar a outrem, mas tambem da mesma mente se
salvarem, sem se arriscarem ás tempestades. Faz-se mister ás almas
frageis e justamente timidas o estreito cenobio do claustro, a protecção
das gradarias, a escravidão, as regras, o véo sobre os olhos, a mordaça
nos labios; sem o que se perderiam. Em quanto os valentes combatem, vão
ellas esconder-se longe do inimigo.
No seu caminho se arrastam gemebundos alguns fugitivos, fallidos de
animo, cahidos por terra, feridos de suas proprias armas, e quem sabe se
alguns heroes alanciados no coração! Entendo, direis, que o claustro é o
refugio dos pusillanimes, o porto dos naufragados, o hospital dos
infermos, e aqui se mostra a apparente razão porque nem toda a gente lá
póde entrar.
Está enganado o duro leitor, que nada percebe dos mysterios theologicos.
Saiba pois que o claustro é o asylo dos fortes; e que só lá são
recebidos os athletas a primor, mais puros e intrepidos, a flôr da
juventude christã. Não soffre a menor duvida que é mil vezes mais de
perigo a sociedade onde os soccorros são muito menos do que os retiros
abençoados. Que nos faz isso! De logar abrigado e onde a graça
superabunda é que os poucos são repulsos, com quanto, ao primeiro
intuito, nos pareça creado para elles; ao mesmo tempo que do baluarte
das luctas angustiosas se retiram os fortes, com quanto pareça tambem
este o seu logar proprio.
Os coxos, os cegos e os inermes são postos na liça sanguinosa; os mais
aguerridos soldados enclaustram-se. Espantem-se e riam-se, que a coisa é
assim; e, senão, perguntem-no á Sorbonna.
E assim é preciso que seja, pois que a perfeita vida é a claustral, que,
no entender dos theologos, vem a ser a mais avêssa ás inclinações de
nossa natureza viciosa, e, por conseguinte, a de mais difficil
observancia; mas, porque é impraticavel na sociedade, não se lhe
dispensa de ser exemplo á sociedade; e, sem presumpções de lá chegar,
devemos propender para ella continuamente, visto que estamos tanto mais
á beira do inferno quanto longe d'aquella vida perfeita.
Que se hade fazer, pois? Eis o problema. Cada qual tem no mosteiro um
trilho feito, e o futuro certo, portanto está quite de cuidados que fóra
d'ahi seguem a pobreza, o trabalho, e até a riqueza, além das
responsabilidades que a toda a hora pendem dos actos de uma vontade
livre, n'um viver sempre fluctuante.
No mosteiro é tudo exemplos edificantes; e, posto que seja defezo ahi
grangear um amigo, em compensação não se adquirem inimigos.
Nem impeços, nem disputas, nem conflictos, males que a liberdade produz,
sendo que a servidão lhes esmaga os embriões. No exterior é tudo
recolhimento, paz, ordem, silencio, e esforço; perturbações, se as ha
lá, vem do intimo e do recondito do nosso ser. O unico inimigo que ahi
ha que recear é o diabo, tal invisivel e impalpavel adversario que todos
trazem comsigo, fracos e fortes, mundanos e frades; porém tal inimigo
perde no claustro boa parte das suas prerogativas; porque alli não está
elle como em sua casa, e no seu reino: são-lhe menos os ministros, os
vassallos, e os recursos. O recluso, afóra a pessoal energia de que é
dotado e lhe assignala a vocação, topa ahi de todos os lados conselhos e
amparos; e como quer que tenha em frente aquelle unico inimigo,
soccorre-se de mil auxilios, que faltam ao homem do seculo, e, máo grado
a sua fraqueza original, vence-os. Que fazemos pois n'este misero mundo
em que a infermidade nos algema? Ha aqui o rir, o chorar, o renhir, o
disputar, o abraçar-mo-nos, o odiarmo-nos, perseguirmo-nos, e o
aniquillar-se o homem contra homem: é uma reluctancia sem fim, e sem
regra, um retinir de espadas, um estrondear de martellos, de carros, de
machinas, de cantares, de gemidos, um cháos, uma desordem, da qual a
clausura não poderia dar-nos sombra de idêa. Aqui, são mil os objectos
em que a alma anda repartida; as diminutas forças que temos
dispersam-se. Acolá o inimigo identificado comnosco, traz escolta de
auxiliares, e a lucta interna de que ninguem se izempta, complica-se com
as luctas externas e inevitaveis. Cada homem tem de bater-se com uma
legião. Quantos cuidados! Quantos deveres! Quantas incertezas e
anciedades! Quantas encruzilhadas sem nome, sem pharol, sem sahida! Que
poeiras, e que sombras!
Considerae aquella mãe de familia a quem encareceis as virtudes da
carmelita.
É pobre, todos os seus parentes são pobres, os filhinhos rotos,
famintos, quasi sempre doentes, o marido alquebrado do trabalho, ou que,
desanimando, se envileceu e a espanca, um patrão, um proprietario,
credores, mestres, amos, amigos, e que amigos! conselheiros, mas
conselheiros de Job! Se tal mãe é rica, tem uma casa que reger, creados
a dirigir, os quaes nem fizeram voto de pobreza, nem de obediencia;
filhos a educar, sagrados interesses que defender, relações que receber,
um marido a contentar, quer seja honrado ou não, quer seja piedoso ou
impio. Com vontade ou sem ella está continuamente a braços com as
paixões alheias, com caprichos, interesses, vontades e affectos
contrarios; de continuo em face de circumstancias imprevistas, casos
litigiosos e incertos, onde lhe é forçoso resolver-se quando qualquer
resolução é perigosa, não o sendo menos os perigos, se se absteem. É
preciso que ella, se quer salvar-se, seja a um tempo economica e
caritativa; communicativa, mas discreta; umas vezes branda, e outras
inflexivel; expedita, mas reflexiva; previdente, mas conformada a todos
os sobresaltos da fortuna; que viva ao mesmo tempo em si, e nos outros,
para si, e para todos: missão indefinivel, cheia de contrastes, de
atravancos, de cruzes, mais ardua e mais difficil que a missão da
freira.
Digam embora que esta mãe de familia tem na sua miseria satisfações,
tranquillidade e jubilos que não goza a carmelita: depende isso de saber
se os jubilos de que fallam são comparaveis ás dôres que a freira
ignora. De mais, esqueceis que esses prazeres são um engodo e que se
prendem n'elle sem o conhecer, e se prendem tambem quando o conhecem. A
saciedade, o desgosto, e o cansaço são as naturaes barreiras da
voluptuosidade. Chegará até ahi a mulher christã? Não o permitta Deus.
Até onde irá? É ponto mathematico que separa o peccado do prazer licito;
e, quando o limite se procura, onde fica elle já? Raras vezes estamos a
sós com a serpente como Eva no Eden, e a freira na cella. Á mesa e em
toda a parte ha quem vos distraia, seduza e arraste; bebemos sem sêde;
está a bocca repleta, mas os olhos famintos; o gozo que satisfaz a
precisão aguilhôa o desejo. Quem houver de parar a tempo na ladeira onde
o aventurarmo-nos é permittido, ha de ter mil vezes mais vigilancia,
cuidado e poder sobre si, do que lhe seria preciso para lá não pôr o pé.
Conceder alguma coisa á natureza é contiçar o fogo que quizeramos
extinguir; é alimentar o leão que desejaramos estrangular. Das
delicias menos carnaes, toucador, conversação, emprego de teres e do
tempo, é ainda mais desconhecido o limite, maior a liberdade, e mais
temivel a responsabilidade.
Não me fallem de umas satisfações mentirosas que o terror empeçonha
quando se pensa n'ellas, e que o inferno corôa, quando se não pensa no
inferno. Por certo que é duro, mas o mais prudente é regeital-as. A
abstenção é uma lei simples, clara, e breve: é bastante que haja coragem
para a praticar sobretudo nos votos conventuaes. A freira, com o andar
do tempo, afaz-se á lucta; curva-se ao jugo; os sentidos privados de
excitações amortecem, até que, por fim, a coragem se torna tão inutil
quanto lhe foi em todo o tempo inutil o espirito de proceder. Mas, se a
lucta intima se prolongasse, a freira para evitar os desvios e as
fugitivas rebeldias do corpo e da vontade, careceria de ter até ao seu
derradeiro suspiro o inferno diante dos olhos, o cilicio na cintura, e o
terror na alma. Assim é, mas que importa? Comparado aos soffrimentos de
uma mãe, o que é o cilicio de uma virgem? Quem ousará comparar essas
duas existencias? Comparar receios pessoaes com receios generosos?
Combates sem testemunhas a combates exemplares? Trabalhos infructiferos
a fecundos suores? E fallando sisudamente, e na melhor fé, se uma
d'essas duas pessoas devesse copiar a outra, não é de certo a mãe que
deveria servir de modelo? A irmã da caridade não é já de si mãe? E
a esposa de José que trouxe em seu seio, e nutriu com seu leite o Filho
do Homem, e ao pé da cruz lhe recebeu o ultimo alento, não foi ella, em
sua amargura, a mãe adoptiva de João, o amigo d'Aquelle por quem
chorava?
Que jactancia é essa então d'um desprendimento de affectos e vontades?
Para que querem insinuar em nossos lares taes inquietações, terrores e
escrupulos, unicas occupações do claustro? E para que é, em nome do ceo,
sobrecarregar de jejuns e abstinencias a jornaleira, a camponeza, a mãe,
que já vacillam sob o fardo do padecer e trabalhar?
Vê-se que theologia e bom siso são coisas infelizmente contradictorias.
Vê-se que seria preciso abolir o inferno para que depois viesse a
renuncia das macerações, terrores e falso ideal que um claro
entendimento reprova.
Mas porque não se apaga o inferno? Extincto elle, brilharia o purgatorio
com luz mais viva e salutar. O inferno é que faz odiosa a liberdade,
rebaixando-a e vilecendo-a; o purgatorio volve-a estimavel,
realçando-lhe bellezas, dignidade e grandeza, sem lhe dissimular os
perigos e as penas. Quem crê no castigo eterno, enterra o talento para
que o Senhor lhe não toque. Quem melhor conhece o Senhor e sua justiça
faz render cinco talentos em casa do banqueiro, arriscando-se a
perdel-os. O purgatorio actualmente de que vos serve? Dizem que a pobre
carmelita se abalança a lá arder milhares de annos, por causa de
algum secreto estremecimento do seu corpo que ella tanto
disciplinou; por causa do captivo espirito que tão enfreado trazia, ou,
emfim, á conta do coração generoso, cujas pulsações tantas vezes
abafára.
O purgatorio deve aterrar principalmente a freira e os que vivem como
ella; ora os mundanos não tem razão de se affligirem, antes devem
consolar-se, pensando n'aquelle logar de supplicio. A nós, filhos do
seculo, não nos é racionalmente permittido aspirar áquella dolorosa
felicidade, que é castigo dos sanctos e o seu primeiro galardão ao mesmo
tempo. Em vez, porém, de o desejar, e desejar em vão, como nós o
temeriamos, se elle fosse a unica estancia em que se cumprisse a justiça
de Deus! Que mudança se faria em tudo d'este mundo! A perfeição e a
salvação não estaria na ociosidade em joelhos, no terror em oração, no
fugir ao proximo, no entregarmo-nos a algumas privações e dôres
corporaes, arbitrariamente substituidas ás dôres e sacrificios de uma
vida proveitosa. Então se entenderia que ha dous modos de abusar de
nossas faculdades, uma que está no desprezo d'ellas, com receio de as
usar inconvenientemente; outra que consiste em nos servirmos d'ellas
indiscretamente e ao avesso das intenções da Providencia que nol-as deu.
A doutrina do Evangelho não é doutrina de abstenção; é doutrina de
acção: causa porque o purgatorio lhe quadra melhor que o Evangelho.
Carecemos menos de frades que de christãos. Se o inferno refreia o mal,
tambem impede o bem. A ameaça seria salutar; mas ella faz mais que
ameaçar, empedra como a cabeça de Meduza quem a encara a fito. Tende a
supprir com uma especie de passibilidade estupida a livre e intelligente
actividade da alma. Não derime o egoismo, exalta-o a mais não poder, e
tal exaltação devidamente localisada no deserto, n'uma gruta, no
claustro, é medonha de vêr-se no seio das familias.
[4] Elles comparam as irmãs da caridade áquella mulher de Bethania
chamada Martha, a qual, vendo entrar Jesus em sua casa, se deu
pressa em lhe servir a ceia; e comparam a carmelita á Magdalena que,
em vez de ajudar Martha nas suas diligencias, lavava e perfumava os
pés do divino hospede, enxugando-os com os seus cabellos. Diz porém
o Evangelho que Jesus estava á meza quando Magdalena lhe abraçou e
ungiu de lagrimas os pés. Não ha palavra na relação dos apostolos,
d'onde possamos colher que é melhor orar pelos famintos do que
alimental-os. O contrario é que lá se diz; e quando Jesus nos faz
assistir de antemão ao julgamento do dia final, exclama: tive fome,
e vós me alimentastes; tive frio, e me vestistes. A scena de
Bethania, e o louvor dado a Magdalena, não desluz o claro ensino do
Evangelho. Este episodio prova sómente que não basta alimentar os
pobres, mas que tambem é mister instruil-os como filhos de Deus, os
melhores amigos de Jesus, e sua visivel imagem na terra: o que
rigorosamente fazem as irmãs da caridade, e não fazem as
contemplativas.

III
Discurso de uma mulher de sociedade que havia tocado
a perfectibilidade theologica
De que serve amar-se a gente n'este mundo? Acaso nascemos uns para os
outros?
Somos apenas companheiros de viagem que uma eventualidade ajuntou por
momentos, mas que breve se hão de apartar, e talvez para sempre.
Prestemo-nos de passagem alguns serviços, mas por amor de Deus, sem nos
ligarmos reciprocamente. Por que ha de a gente amar-se? Vós que me
ouvis, sabeis quem sou? E eu que vos fallo sei quem vós sois? Tendes um
ar angelical, ó meu irmão, mas o interior de vossa alma não o vejo; o
semblante do homem é enganador; a sua lingua é atraiçoada, as suas
proprias virtudes são perfidas.
N'este mundo é tudo armadilha e mentira. Que demencia o amar, quando,
com certeza, ninguem póde fiar-se d'outrem! Que injustiça querer um que
o amem, quando nem a si mesmo se conhece alguem, e a cada hora se
altera o genio, e ninguem póde fiar mais da duração de seus sentimentos
que da duração de sua vida! Viajamos mascarados, só conhecidos de Deus,
mas tão occultos a nós mesmos quanto aos outros. A que propendemos? Mal
o sabemos, tão fluctuante é a nossa razão. Se melhor nos conhecessemos,
a maior parte de nós se mutuaria rancores; em vez, porém, de se odiarem,
os homens se entre-buscam no seio das trevas, attrahidos pelo mysterio
que os innubla, e que devêra, se elles fossem discretos, afugental-os
uns dos outros.
Ah! não nos amemos, não nos amemos! Ai d'aquelle que dá seus amores á
creatura! Ai dos que se amam sobre a terra! É sombra que abraça a
sombra, é o nada que se une ao nada. Amavel é só o bem: o restante é
detestavel. Meu pai, honro-te e sirvo-te, por que vai n'isso um dever
meu, e porque podes ser, sem que eu o saiba, um santo; amar-te, porém,
não posso, porque, se n'este instante morresses, ninguem me certificaria
de que Deus te perdoára. Eu devo amar em ti, sómente o bem occulto que
ahi póde estar, e o amo em ti como nas outras creaturas, sem predilecção
por alguma; porque esse bem occulto não provém d'ellas; e, se em ti
existe--o que eu não sei, mas muito desejo--não procede de ti. Não te
julgo, meu pai. Se eu escutasse o sangue, creio que te amaria até
culpado, unicamente porque és meu pai, e eu me lembro de ter dormido em
teus braços. Mas estes momentos da natureza corrompida já eu
venci. Nada me és. Tracto da minha salvação servindo-te e
honorificando-te; mas amar-te seria perder-me, por que amar o homem em
si mesmo é amar o peccado. Na outra vida não ha maridos, nem esposas,
nem paes, nem filhos, nem familia. Pais e filhos, mães e filhas, irmãos
e irmãs serão separados no dia do juizo, desatados todos os vinculos.
Não amemos ninguem, ninguem! Já póde ser que o inferno se esteja
escancarando para aquelle que amarmos, e quem sabe se nós não cahiremos
lá tambem empurrados pelo nosso amor? Nada de sentimentos cegos; nada de
sentimentos corruptores. A ternura do homem é um disfarce de odio; e
mais valera que elle nos odiasse francamente. Não amemos ninguem!
ninguem! Póde ser que por ao pé de nós andem condemnados, cujos nomes
ignoramos. Não amemos alguem, que nos não vá sahir algum reprobo.
Sou tua serva, ó meu esposo; servir-te-hei, obedecer-te-hei; e para te
agradar o dever me forçará a cumprir o que me pedires do coração, que
não é teu.
São doentes os nossos filhos? Por que te assustas? São hospedes que te
foram confiados, e que tu deves esperar vêr irem-se ao primeiro aceno de
quem t'os mandou. Eu que os trouxe no seio e os criei, vel-os-hei ir,
sem lagrimas. Quem sabe onde irão quando nos deixarem? Cumpria que lhes
vissemos o fundo d'alma para os amarmos. Praza a Deus que elles morram
na sua divina graça! É o meu mais ardente voto; e, se mais além eu
fosse, a minha ternura seria fraqueza. Se elles vão ao céo, hei de
eu chorar-lhe tamanha dita! E se são condemnados.... Não amemos ninguem,
ninguem, nem os nossos filhos sequer! Familia temos só uma: é Deus com
os seus anjos, e confessores e santos. Tudo mais não merece uma lagrima
nem um sorriso. Roguemos, por tanto, uns pelos outros, filhos do
peccado, mas nada de nos amarmos.

IV
Discurso de um mundano, após bastos estudos ácerca
da perfeição theologica
Em continuo pavor do inferno viveram os santos: orações, jejuns,
cilicios, meditar nas escripturas, vigilias ao pé da cruz, bençãos de
pobres soccorridos por elles, perpetua immolação, indigencia de cella,
ninhos de palha, alimento a pão e agua, nem com tudo isto socegavam.
Viviam como anjos, e temiam. Tremiam guerreiros, padres, doutores,
pontifices--Mauricio á frente da sua legião; Gregorio, o Grande, sob a
tiara; Agostinho, no pulpito; Jeronymo, em suas estudiosas viagens;
Antonio e Pacomio no reconcavo das penedias. Noites alvoroçadas de pavor
passava Thereza no claustro. Nem a innocencia da vida, nem a adoravel
castidade das almas, nem a tunica immaculada, nem as mãos impollutas,
nem o acerbo arrependimento dos penitentes, com o rosto sulcado de
lagrimas, nada, nada lhes aquietava o medo da colera divina.
Redobravam cada dia austeridades e sacrificios, persuadidos de que
não mereciam a misericordia que tão precisa lhes era.
Ah! se a alma só assim se salva, perdidos estamos todos, ó meus amigos!
Bem ouço o theologo que nos diz: Não é assim; a salvação ganha-se com
menores trabalhos. Deus não exige que todos os seus filhos sejam
egualmente perfeitos. Mas ao theologo respondo: Estás perdido como nós,
tu e tambem os teus mestres, e os teus discipulos, estaes perdidos
todos. Os exemplos que nos cumpre seguir são os dos santos, não são os
vossos. Mostrae-nos na Legenda um só santo que subisse ao céo pelo
caminho commodo que descobristes. Debalde hei buscado, com fim de o
imitar, um homem meio santo e meio peccador, servindo Deus e o mundo,
temendo, como eu, a miseria, a dôr, as humilhações, condescendente
comsigo proprio, almejando viver no coração de outra creatura, chorando
sobre as illusões esmaecidas como Pedro sobre o seu peccado. Não
encontrei tal homem. O mais que vi foi milagres de stoicismo, maridos
que deixavam as mulheres, mulheres que deixavam os maridos, filhos que
fugiam ao abrigo dos paes, ricos que todos seus haveres dispendiam,
bispos que fallavam verdade aos reis da terra, á custa da vida até;
ninguem que se contentasse de cumprir no rigor da palavra os preceitos
de Deus e da Egreja; por toda a parte almas ardentes de zelo
super-natural, tendo apenas de humanas os incançaveis escrupulos, os
inquietos terrores; justos sem socego, penitentes sem repouso,
virgens lagrimosas e anachoretas angustiados.
Vós, porém, que vos quereis salvar e salvar-nos com menos custo; vós,
que viveis regalados em quanto o Christo mendiga á vossa porta; vós que
tendes riquezas ao sol e riquezas á sombra, quando na vossa parochia
tantas familias laboriosas carecem do mais urgente; vós, que cubiçaes a
estola, a murça ou mitra; e achaes nas Escripturas louvores para outrem,
além de Deus, oh! quanto differentes sois d'aquelles heroes christãos
cujas imagens campêam nos nossos altares! Sois o que somos: haveis mais
pavor das praticas dos santos que do proprio inferno; espanta-vos e
desespera-vos a perfeição d'elles; a pesar vosso, amaes o que elles
aborreciam, e aborreceis o que elles amavam; as vossas virtudes são
mesmamente humanas, taes quaes as nossas, que não vem do alto, que se
enroscam nos nossos vicios e nos acorrentam ao demonio.
Ai! que perdidos estamos, ó meus amigos! Que lucramos em fechar os
olhos? Estamos todos condemnados! Que monta o desprezo proprio pregoado
pelos labios, se no intimo do coração tendes a propria estima sempre
desvelada? Que aproveitam as momentaneas conversões, seguidas de quedas
mais desastrosas? Que vos fazem certas privações associadas a tanto
regalos? Em verdade vos digo que estamos perdidos!
Ora pois, se assim é, se o abysmo está aberto e o cahir é irremediavel,
cerremos os olhos e não cogitemos mais em tal. Entre o céo inacessivel e
o inferno d'onde não ha mais sahir, resta-nos um momento só: gozemol-o,
ó meus amigos. Que é isto de estar a gente a empeçonhar, com terrores
vãos, prazeres, tão raros quão fugitivos? Não pensemos no que será;
pensar n'isso e desesperar é a mesma coisa: desesperar de entrar no céo,
e desesperar de sahir do inferno. Saboreemos o presente. Vivamos
terrenamente: aqui ha creaturas ridentes que nos alegram, fragrancias
que nos deliciam, e licores que atrophiam a memoria.
Quem é ahi o sandeu que falla em inferno? Não ha inferno, minha mãe!
Conclue em paz os teus dias extremos. Não contristes com visões
pavorosas essas creancinhas que te escutam, e que talvez falleçam antes
de nós. Ride, ó meus filhinhos: a vida vos será breve e repleta de
miserias, quando crescerdes.
Eu desejo, senhora, que a minha casa seja mansão de jubilos e não de
tedios: quero ser amado pelo que sou e não por caridade; quero ser
obedecido amorosamente e não com submissão de escrava; aliás, buscarei
quem me ame, e me corresponda. Engrinalda-te de rosas, minha bella! Não
ha inferno, e o paraizo tem-l'o ahi á mão. Enche-me o copo, e dorme
placidamente nos meus joelhos. Amar! amemo'-nos, até á morte; que da
morte para além começa o odio!
Ah! que bizarra invenção não foi esta do inferno! Um abysmo para onde
naturalmente nos inclinamos, attrahidos, impellidos por quanto ha,
cahidos em fim, e depois, o abysmo... fechado para sempre! Oh! primorosa
perspectiva para que façamos da terra uma estancia de delicias
peccaminosas!

V
O rebanho
Se não fosse preciso crêr na eternidade do inferno, e no pequeno numero
dos escolhidos, e na inevitavel condemnação da maior parte dos homens,
eu odiaria como vós os prazeres da vida; o sermão de Jesus na montanha
se me figuraria mais bello e intelligivel; eu entenderia a felicidade
das lagrimas, as delicias da pobreza e a doçura de todos os sacrificios.
Quando, porém, se me diz que não é bastante haver chorado e soffrido
muito n'este mundo para ganhar o perdão divino; quando se me diz que
nada vale affrontar a ira dos tyrannos, defendendo, a verdade que os
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