O Inferno - 11

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natural é--todos os homens que, desde o principio do mundo, haviam
desparecido de sobre a terra; não só patriarchas e prophetas, senão
todos os judeus; não só todos os judeus, mas todos os gentios. Eis aqui,
entendidas ao natural, o que dizem as palavras: «Desceu aos infernos, e
habitou trez dias com os _mortos_.» Quereis dar áquellas palavras
uma accepção espiritual? Temos ainda mais. luz na questão. Os mortos
espirituaes são os condemnados, os que eram considerados em perpetua
privação dos resplendores eternos. Não são os prophetas, os patriarchas,
os eleitos, os santos, nem ainda alguns d'esses que por peccados haviam
merecido as penas temporarias, por que não estavam espiritualmente mas
só carnalmente mortos, crendo, esperando, amando, vivendo. Seja qual for
a interpretação adoptada, leva-nos a concluir o inverso do que os
theologos affirmam. Do citado trecho do _Credo_ colhe-se que Jesus desceu,
não só ao limbo, mas tambem ao inferno, não só aos patriarchas que
esperavam sua vinda,--explicação acanhada e violenta dos hebreus
conversos e dos christãos judaisantes--mas aos mortos de todos os tempos
e paizes, aos peccadores que a lei antiga e antigas crenças haviam
ferido de morte espiritual, eterna, incuravel, da verdadeira morte. O
Redemptor, o Crucificado, o Messias visitou-os, mostrou-se-lhes, e elles
rejubilaram ao verem-no e choraram lagrimas d'amor d'aquelles olhos
aridos. Jesus não destruiu o inferno; converteu-o em purgatorio. Do
inferno judaico e gentilico fez o inferno christão, inferno que corrige,
inferno onde ha o chorar sem blasphemar, onde ha o soffrer sem
desesperança nem rancores.
Outras luzes póde dar o symbolo dos apostolos ás almas piedosas. Mais
abaixo, diz: «Creio na vida eterna» mas não diz: «Creio na morte
eterna.» Este horrivel dogma não se lê no credo apostolico. Se ahi
se falla em infernos é para nos ensinar que Jesus Christo lá foi,
e de lá sahiu, mas como devia sahir, vivo, glorioso, triumphante e
bemdito.
Diz finalmente o _Credo_ que Christo subiu ao céo, onde está sentado á
dextra do Padre, d'onde virá a julgar _vivos e mortos_.
Quaes vivos? os justos? Quaes mortos? os peccadores, os ultimos
povoadores da terra e os antigos habitantes d'aquellas tenebrosas
mansões onde a esperança radiou com o Christo quando tudo foi consummado
na Cruz? Não é possivel que uma só palavra tenha dois sentidos com tão
breve intervallo. Quereis que os mortos d'entre os quaes resurgiu ao fim
do terceiro dia sejam os antigos reprobos? Tambem eu quero. Quereis
antes inferir de taes palavras que os nossos avós judeus e os pagãos,
quantos então eram mortos, viveriam, n'outra parte, jubilosos ou
suppliciados? Tambem eu quero. Adoptai um sentido, ou outro, ou ambos
juntamente, que a mim não se me dá d'isso. O que ha de sempre
forçosamente reconhecer-se é que a phrase representa a mesma idêa
significada uma ou duas linhas abaixo. Será, conseguintemente, preciso
confessar que os mortos visitados por Christo são os mesmos que elle
virá julgar quando julgar os vivos. Direi pois logo que na descida aos
infernos, Jesus morou trez dias não entre os justos esperançados, mas
entre os condemnados á desesperação para os ungir de seu sangue,
consolal-os e salval-os. E, senão, para que os visitou?
Faz-se mister prescindir de entender qualquer palavra divina ou humana,
se do _Credo_ se colhe o dogma das penas eternas. Não está lá: o contrario
é que está. O veneravel texto é mil vezes mais luminoso que todas as
glosas dos doutores.
[9] Conta-se que os apostolos, antes de se apartarem para levar aos
gentios a boa nova, trez annos pouco mais ou menos depois da morte
do divino Mestre, se reuniram e compozeram o _Credo_, elenco das
verdades cujo ensino lhes fôra confiado. O Evangelho ainda não
corria escripto. Só depois da separação, é que foi composto o de S.
Matheus, que antecede a todos. O symbolo da fé apostolica tambem não
andava escripto; mas ensinava-se de cór aos fieis, e por isso longo
tempo se conservou na Egreja, bem como a tradição egualmente oral da
sua origem.

II
Viveu Origenes quasi coevo dos tempos apostolicos. Toda a gente ouviu
fallar da santidade de seu viver, pureza de costumes, alento nas
perseguições, vasta sabedoria e raro engenho. Pois ainda assim, aquelle
insigne doutor, e illustre confessor de Christo, negava as penas
eternas. Acaso receberia elle a verdadeira tradição dos apostolos, ou, á
força de reflectir, atinára com a genuina accepção do Evangelho? Não
sei. Todavia confesso envergonhadamente que ainda não li as poucas obras
restantes que tão assignalado sujeito escreveu sobre tal materia. O que
mais sei é que foi condemnado, muito tempo depois que morreu, por um
edito do imperador Justiniano, e anathematisado, com a porção da obra
relativa ás penas eternas, por o concilio ecumenico de Constantinopla,
anno 553.[10] Não se deram os bispos á canceira de provar que
elle era ruim logico; declararam-o herege, que era mais summario, e por
contagem de votos.
É muito para notar que o primeiro concilio ecumenico de Nicea, anno 325,
e o segundo de Constantinopla, anno 381, se abstivessem de decidir sobre
a doutrina de Origenes, ainda nova e florecentissima, e á conta d'isso
mais funesta, se por ventura escondesse perigo. Divergiam sobre o
assumpto as opiniões dos padres d'aquelle tempo? Recusariam não se
conciliarem? A questão confundil-os-hia? Inclino-me a crer que sim. O
mais notavel documento que os dois concilios nos deixaram, denota
indecisão de natureza a um tempo estranha e evidentissima: é uma
profissão de fé muito particularisada, a mesma que hoje se entôa aos
domingos na missa cantada nas egrejas do oriente e occidente.
O concilio de Nicea, ao redigir o symbolo da sua fé, desenvolveu em
certos pontos o symbolo dos apostolos; mas, quanto ao mais, abreviou
aquelle antigo symbolo, e o que mais espanta é a suppressão completa do
descendimento aos infernos.
O concilio de Constantinopla, adoptando o symbolo de Nicea,
aperfeiçoou-o, e additou-lhe alguns artigos, mas não lhe repoz a descida
aos infernos.
Que quer dizer esta eliminação? Desceu ou não desceu Christo aos
infernos? Se desceu, por que o não dizem? Acham que é insignificante o
caso? Não merecerá a pena relembral-o?
Felizmente o symbolo dos apostolos subsiste, e os de Nicea e
Constantinopla não vingarão desluzil-o.
[10] No anno 321, Origenes foi denunciado ao Concilio de Alexandria,
e interdicto do sacerdocio. S. Jeronymo attribue esta condemnação a
ciumes e invejas que inspirava a eloquencia de Origenes aos Padres
reunidos n'aquelle Concilio.


CAPITULO QUARTO
ADVERTENCIA FINAL

I
As idêas que empreguei no discurso d'esta obra andam por tantos livros
disseminadas, e prégadas de tantos pulpitos, e tão notorias e populares,
que me não temo de que m'as neguem. Diligenciei exprimir claramente os
dogmas, preceitos, maximas, opiniões sempre admittidas nas faculdades de
theologia, nos seminarios e conventos: era acto de boa fé e tambem de
prudencia; que toda minha argumentação claudicaria, se eu attribuisse
aos propugnadores do inferno linguagem que não fosse a d'elles.
Fui eu quem inventou a queda de Satan, o poder e maleficios da corte
infernal, o peccado do Eden, e a maldição dos homens? Fui eu quem
encerrou no claustro o ideal da perfeição christã? Fui o auctor
das sentenças desesperadoras fulminadas contra o mundo e contra os
affectos e luzes naturaes, contra o bom siso e contra a vida? Inventei
eu as devotas reflexões, azadas para mirrar os corações das mães e dos
filhos, e uns pensamentos afogueados que calcinam o cerebro como o
alcool, embrutecendo uns, e desvairando outros em devaneios
melancolicos? É culpa minha se o inferno parece coisa atroz? Não
suavisei eu em vez de encarecer as pinturas conhecidas? Se é immoral,
estava a meu cargo mudar-lhe a condição? Attribui eu ao padre Bohours
palavras alheias, ou a S. Bernardo coisa que elle não dissesse?
É verdade que eu muitas vezes poderia auctorisar-me com textos, e dizer
em grego ou latim, ou italiano ou allemão, em nome d'outrem, o que expuz
a meu modo. Mas que tinha eu a ganhar com esse systema? Nenhuma das
idêas que discuti pertence nominalmente a este ou áquelle theologo;
junta ou separadamente todas lhes pertencem: é dominio commum. Seria
apoucar e abater a questão conferir a uma crença tradicional visos de
opinião particular. Acato a virtude, admiro o engenho, onde quer que os
encontro, até nos mesmos que me ameaçam com as penas eternas; não
mal-quero por tanto a S. Gregorio, nem a S. Jeronymo, nem ao padre
Nicole, nem a algum theologo morto ou vivo. Não me estive a quebrar
lanças com personagens mais ou menos eminentes: que são apenas eccos de
doutrinas que vogaram muito antes d'elles. Se eu tivesse em cada pagina
citado um doutor, julgar-se-hia que os outros doutores, não
mencionados, depunham contra mim. Não aconteceu isso a Pascal? Nomeia
elle as suas testemunhas, transcreve-lhes litteralmente as proposições,
e vos remette ao volume e pagina d'onde as trasladou; pois
responderam-lhe que se as proposições que elle combate estão nos livros
d'onde as copiou, a culpa é dos auctores, e não da companhia que os
instruiu. Claro está que eu tenho por mim auctoridades muito mais
embaraçosas que os padres Petau, Penterau, Hurtado, Bille, Sanchez,
Suarez, Escobard, Bauny, Molina, Reginaldo, Tannero, Filicitius e Azor.
Tenho-as numerosissimas, a ponto de a mim mesmo me embaraçarem. Qual hei
de escolher entre tantas? Que mais vale uma do que outra? Um capuchinho
canonizado vale ou não vale um papa não canonizado, mas fallando
_ex-cathedrâ_? E de mais um só auctor, por extremo que fosse o gráo de sua
respeitabilidade, bastaria a tapar a bôcca aos altercadores? Quantos
textos seria preciso adduzir para authenticar certas phrases alcunhadas
de perigosas, levianas, absurdas e escandalosas? Quantos padres, papas,
bispos e doutores teria eu de dispôr em batalha a meu favor? Confesso
que não sei. Fui, pois, sobrio em citações, não por mingua do assumpto,
mas antes por excesso. Convençam-se de que não ha linha n'este livro á
qual eu não podesse cerzir, se me aprouvesse, paginas inteiras, senão
volumes de annotações justificativas, hauridas nas fontes mais puras,
mais frequentadas e veneradas.
Similhante lavor, porém, ainda que eu o compendiasse á essencia do
debate, cansaria a paciencia dos leitores, que se dispensam de tão
barbaro apparato para saberem ao que devem atter-se do que lhe ensinaram
desde o berço. Mas as provas de memoria as sabem; sobejam-lhes nas suas
livrarias; não carecem de folhear concilios, obras de santos padres,
bullarios, constituições de bispados, revelações de Santa Catharina,
Santa Thereza, e outras bem-aventuradas; não se lhes faz preciso
consultar Bossuet, Bourdaloue, Massillon, nem outros illustrissimos
oraculos que nem sempre nos estão á mão. Mais boas de encontrar são as
minhas provas: acham-se nos labios e nos ouvidos das creanças que
estudam o cathecismo; acham-se em mãos de nossas irmãs, esposas, e mães,
na sua _Imitação_, no _Quotidiano christão_, no _Combate espiritual_, na
_Vida dos Santos_, no _Livro d'ouro_, no _Pensai-o-bem_, e em milhares
de livrinhos d'este jaez, approvados pelos bispos e universalmente
manuseados.
Os paladinos do inferno, se os houvesse, não ousariam, talvez, atacar as
passagens d'este livro, de antemão atalaiadas d'uma guarnição formidavel
de batinas, de chapeos vermelhos e de barretes; mas quem sabe se
atacariam como abastardados, alterados, e erroneos os trechos que eu
desprecavidamente não defendesse? Em tal caso, nada me valeria amontoar
notas. Se m'as pedirem, eu lh'as darei em quantidade que lhes pareça de
mais. Convenho, se quizerem, em incommodar com ellas os adversarios; mas
tão sómente os adversarios; quanto ao publico, a minha intenção não é
adormecêl-o; antes eu quizera acordal-o, esclarecêl-o e agradar-lhe. Mal
andaria eu se, a proposito de taes polemicas, sacudia aos olhos dos
leitores a poeira dos meus livros traçados!

II
Se não podem accusar-me de má fé na exposição dos principios que tentei
impugnar, não faltará quem me accuse de máo juiz em tudo o mais. Estejam
certos que não ficará aqui. O inferno tem seus devotos que não
sacrificam ás Graças, mas ás Eumenides. Bem os ouço gritar: impio!
incredulo! ignorante! detestavel pensador! monstro! scelerado! por que o
não prendem, e mandam ás galés! Ousar descrer das penas eternas! Que faz
o ministerio publico? Onde está o carrasco? Em França já não há lenha
para uma fogueira? Votamos pelo inferno, queremos que os nossos paes e
os nossos filhos sejam condemnados. Ao fogo com os selvagens, idolatras
musulmanos, judeus, indianos, herejes! Ao fogo com os peccadores
recalcitrantes! fogo eterno com os philosophos impenitentes! Não nos
esbulhem d'esta amavel crença. Que havia de ser da moral? Queremos
inferno e diabo, a maldição e o mal. Se muita gente se condemna, peior é
isso, mas a culpa é d'ella. Que ardam para sempre! É vontade de Deus. O
teu debil sopro, ruim pensador, não apagará as chammas salutares
que não corrigem os mortos, que pouco emendam os vivos, mas fazem tremer
as freiras nas suas cellas e alegrar os santos no paraiso. Viva o
inferno! Se se elle apagasse, haviamos de accendêl-o com os teus livros.
Queremos o inferno e seus supplicios, embora lá vamos cahir com as
nossas mães e com as creancinhas que riem no collo d'ellas. Sem inferno
não ha fé, nem Egreja, nem religião, nem lei, nem familia, nem
moralidade, não ha nada. Conservemos o inferno! É absurdo? mais um
motivo. _Crédo quia absurdum._ Parece-te isto injusto, incredulo, impio,
perverso que não queres acreditar que Deus creasse tantos entes fracos
para perdel-os sem missão! Imprudente! que ousas escutar a tua
consciencia, quando a tradição falla! Malvado! coração de pedra que não
dás dinheiro ao Papa para lhe redourar a thiara e vais dal-o a pobres e
proscriptos, e estás ahi a lastimar os billiões de creaturas que povoam
o abysmo. Ó sandeu! Ó miseravel! Algum proveito colhes atacando verdades
tão uteis. És como os malfeitores que quebram os lampeões. Se assim
vais, arrasarás os carceres. É bem de vêr, lá tens as tuas razões para
querer destruir o inferno; se fosses de melhor casta havias de crêr
n'elle.

III
Advogados do inferno, que sabeis a tal respeito? Sereis acaso mais
innocentes do que eu? É verdade que sou peccador. Se todavia as minhas
acções e as vossas fossem pezadas, talvez eu podesse estar a respeito do
futuro tão tranquillo como vós. Mas Deus não me ha de comparar comvosco
para absolver-me ou condemnar-me: será com o modêlo de perfeição que eu
tenho no espirito, e que eu devêra ter copiado no decurso de minha vida.
Não pratiquei--de mais o sei--todo o bem que podia; condescendi com
fraquezas que vós, por ventura, não conhecestes; mas talvez que eu, sem
que o soubesseis, me esforçasse e vencesse nos conflictos em que
succumbistes. Eu não vos julgo, ó crentes no inferno, que encaraes sem
impallidecer; eu, porém, que não creio no vosso inferno, não posso sem
pavor meditar no julgamento divino. Não desespero na bondade de Deus,
mas creio em sua justiça, e nutro viventissimo sentimento da perfeição
evangelica, e por isso mesmo sinto grandissimo pezar de minhas culpas, e
não me considero isento de expiação.
Oxalá que eu podesse dar de mim melhor testemunho! Podesse eu chegar
mais confiadamente ao tribunal do soberano juiz! Tivesse eu tão socegado
o espirito como inculcais o vosso, ou tão puro como vós imaginais
que o tendes! Quem me dera ser santo, não aos meus proprios olhos, como
dir-se-ha que sois aos vossos, mas aos olhos das pessoas de bem e das
multidões. Então impugnaria eu a eternidade das penas, não já com
melhores razões, nem com argumentos de mais justiça, mas com a
auctoridade que uma vida santa e reconhecida como tal imprime na palavra
humana. Ha ahi quem se não renda ao vigor de um discurso, e se docilise
á virtude ou ao renome de quem discorre.
Não discutamos, pois, a minha vida, que eu não tenho que entender com a
vossa. Em meu soccorro valho-me unicamente do raciocinio; desadoro outro
prestigio, e não me dobro a outro poder. Refutai-me, se podeis, com
razões tão claras como as minhas; mas deixemo-nos de insinuações
calumniosas; nada de injurias. Isso que prova? Quando fosse verdade que
todos sois pessoas virtuosas que vão direitas ao paraizo, e que eu sou
máo, e o peor dos homens, sêde francos, seria isso prova de que eu
argumento mal, e vós argumentais bem? Inferirieis d'ahi o que quer que
seja contra a infinita misericordia de Deus? A isto é que é preciso
responder, senhores. Eu por mim digo que a dôr, n'este e no outro mundo,
é meio de expiação; digo que a dôr, n'este e no outro mundo, acarêa a
piedade; digo que o castigo mais justo deve ter fim, e que o perdão é o
fim, a corôa, a perfeição e explendor das obras da justiça; que um
castigo infindo seria um castigo desarrasoado, sem escopo, sem
moralidade, inutil ao culpado, ás testemunhas e ao juiz;--um acto de
colera, de odio e furor--um feito sombrio e sinistro como transportes de
demencia incuravel. Digo que tal crença é mal cimentada, e assim funesta
em este mundo, como odiosa no outro; que nem o mal nem o castigo são
eternos; que eterno é só o bem, a omnipotencia, a bondade, a justiça e
misericordia de Deus, e que estas coisas, que separais, são inseparaveis
em Deus. Digo, conforme a S. Paulo, que ceo e terra hão de passar; que a
fé ha de passar tambem, e tambem ha de passar a Esperança, e que tudo ha
de acabar, salvante a Caridade.
Que vos parece isto? que redarguís? Ser-vos-ha mister mudar a
propriedade das palavras, crear linguagem nova, dirimir as leis da
razão, e cuidar em extinguir tanto em vós como nos outros as vivas luzes
da consciencia, se quereis impugnar estas proposições.

IV
Mas ninguem póde desluzir de seu espirito o reflexo que ahi lampeja a
verdadeira luz, se uma vez a entre-viu. Quando houverdes lido este
livro, ser-vos-ha aprasivel fechar os olhos, e injuriar-me; não
obstante, sentir-vos-heis alumiados, crentes na verdade a vosso pezar;
e, embora o negueis, é a vós mesmos que mentis. Negal-o-heis com a
bôcca; mas não com a consciencia.

V
Espero resignadamente as insolencias. Se m'as não disserem alto,
dil-as-hão baixinho. Este livro irá ao _Index_, e tal, que o não tiver
lido, se julgará abundantemente auctorisado a prohibil-o aos outros,
como livro pernicioso. Vedar-se-ha ao peccador inveterado, contentissimo
de sua recente conversão, de buscar aqui motivos para ser mais humilde;
vedar-se-ha á viuva lagrimosa de procurar consolar-se n'esta leitura.
Divulgar-se-ha que este livro é _tição do inferno_, que queima os dedos
que lhe tocam. E ha de haver muito quem o diga na melhor boa fé.
A Egreja não alenta curiosidades de espirito. Porquê? De que se teme?
Profunde-se cada vez mais a moral de Christo; que ella nos irradiará
cada vez mais formosa, mais salutar e verdadeira. Por si mesma se
justifica; dispensa pregões; nos labios d'um menino inflora-se tão bella
como nos discursos d'um sabio.
As leis moraes não são arbitrarias; não são caprichos divinos nem
tenebrosos decretos cuja sabedoria se esconde á nossa intelligencia. São
perfeitamente adequadas á nossa natureza e necessidades. Não ha uma só,
cuja inobservancia não surta graves desordens; uma só que não proteja a
dignidade humana, a liberdade, o direito, o debil contra o forte, o
innocente contra o cavilloso. São freio de paixões, luz e regras
das acções publicas ou clandestinas, particulares ou collectivas,
condição que influe no desenvolvimento de nossas faculdades, caução de
nosso repouso, e complexamente de todos os nossos actos.
A Egreja, n'este ponto, desconhece a sua força, se a discussão a
intimida; mas, por outro lado, cumpre confessar que ella desconheceria
sua fraqueza, se tolerasse discussão de certos dogmas, e em particular
do dogma das penas eternas. Se quer que haja crença no inferno com fé
egual á crença da redempção; se quer a mesma fé para a colera sem fim e
para o amor illimitado, imponha silencio a respeito de tudo, que é
prudente. Mas d'essa imposição de silencio o resultado é este:

VI
Resulta que os fieis creiam cegamente coisas profundamente
contradictorias--a verdade radiosa e o erro inintelligivel, Deus e
inferno. Tambem resulta que as multidões sempre a multiplicarem-se
rejeitem cegamente o inferno, e com o inferno os mais idoneos dictames
da moral, indiscretamente sumidos n'esse abysmo. Imaginam uns que a
mesma voz que ensina uma injustiça não póde ensinar uma verdade;
imaginam outros que a mesma voz que ensina consoladoras verdades, não
póde ensinar erros. A má educação, que, no rodar de muitos seculos, lhes
deram, torna-os a todos egualmente incapazes de discernir o que é
falso do que é verdadeiro, na mesma idêa: encaram-na a vulto, qual lh'a
offerecem, e ou a guardam ou rejeitam á tôa, verdade e mentira de
mistura, porque ambas as idêas estão identificadas em uma no espirito
d'elles.
Todavia todos os partidos são máos, e nenhum póde, relativamente á
questão presente, socegar a alma. Ainda não encontrei fiel que se me
confessasse impassivel ao horror das penas eternas, quando pensava
n'isso. E tambem não encontrareis incredulo que não haja confusamente
sentido a precisão de sobreviver a si proprio, e não haja suspirado pela
justiça do céo, vendo as iniquidades da terra. A verdade falla assim ao
coração de todo homem, alvoroçando-o até que elle a comprehenda.
O fiel diz de si para comsigo: «Deus é cruel»; mas, reportando-se á
Egreja, cuida que as inspirações de sua consciencia são suggestões
diabolicas, e vai aterrado rezar diante da cruz um acto de fé em um Deus
sem misericordia. Pelo contrario, o incredulo diz entre si: «Deus
existe; os máos serão castigados»; e, se em seguida se aturde e apaga no
intimo aquelle presentimento lucido da justiça divina, é porque lhe
estão sempre figurando o brazido inextinguivel e as atrocidades sem fim
que enterneceriam tigres e fariam chorar as pedras sobre o destino dos
condemnados.

VII
Tal é hoje em dia o estado das almas relativamente a um dos mais
importantes dogmas da religião. Fé cega, incredulidade cega, fé que
acceita um Deus vingativo e exclue do céo a piedade, incredulidade que
busca um Deus compadecido, e, por que não acha piedade no céo, exclue de
lá a justiça. E entre estes dois bandos de almas atormentadas, está uma
corporação docente, que se inculca infallivel, mas que, no intento de
proteger sua infalibilidade, anathematisa a razão humana e excommunga a
consciencia.

VIII
Eu tenho tido parte nas angustias da fé que, até de olhos fechados,
conhece que a transviam; e, se, mais tarde, abre os olhos afeitos á
escuridão, como os de Saul deslumbrado, nada vê, e caminha ás
apalpadellas. São passados esses dias de turvação; mas talvez n'este
livro negrejem vestigios d'elles.
Não achareis n'esta obra um tratado methodico cujas partes se encadeiam
e deduzem logicamente, desde a primeira até á ultima pagina. Em questão,
a um tempo, tão complexa e excitante, ser-me-hia custoso sujeitar-me aos
vagares do methodo. A tal qual ordem que trava as peças d'este
escripto, vem como compendiada no assentamento das reflexões e
meditações que a formam. Ninguem melhor do que eu sabe quanta
deficiencia desvalia o escripto. Não importa. Eu, por mim, rodeei o
alcaçar de Satan; e, se lhe não puz cerco segundo as regras da arte, não
lhe deixei parede nem pedra que não soffresse algum abalo. Não se faz
mister tempestade para lh'o baquear: um leve sôpro o fará cahir.

FIM
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