O Inferno - 03

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de ir procural-os no novo mundo e entre as tribus negras da Africa, e
nas hordas barbarescas da Asia. A sociedade christã, com maravilhoso
instincto, sequestrou-se d'essas idêas de outra edade; e, com os olhos
postos na cruz, prosegue e anhela realisar em suas instituições e leis
um ideal menos imperfeito da soberana justiça.


CAPITULO SEGUNDO
A FÉ NOVA

I
Pater noster
Chamamos a Deus nosso pae e nos consideramos seus filhos. Um pae
condemnaria seus filhos a supplicios eternos? Que a questão seja de
ingratos e desobedientes, de rebeldes e de máos, embora: Deus é Deus, e
nós somos homens.
O mais sabio ancião n'este mundo é perante o Pae celestial o que diante
d'esse velho mortal, curvado ao pezo dos annos, é uma criancinha no
berço. Perante o Pae do ceo somos todos crianças balbuciantes que apenas
caminhamos com andadeiras. E a comparação é ainda muitissimo ambiciosa!
Ha mais proporção entre o menino que balbucia e os maximos doutores
theologos, do que entre os maximos doutores em theologia e o eterno Pai.
Cobertos de seus circumspectos barretes, aquelles doutores
tartamudêam, gaguejam, balbuciam freneticamente, não se entendem a si
proprios, descambam a cada passo, e movem á compaixão, se os compararmos
a Deus. Dado que elles ainda durassem e crescessem em saber, ao mesmo
passo que envelhecessem, nem por isso deixariam de estar como em
perpetua infancia confrontados com Aquelle que tudo sabe, porque é
infinito em sabedoria, em poder e bondade. Mas, d'outra fórma, a
criancinha hontem nascida podeis já affoitamente comparal-a áquelles
graves doutores; é um doutor que se aleita e entra em dentição: alguns
dias mais, e vêl-a-heis defender these e supplantar os professores.
Comprehendeis, pois, que, se o velho doutor em theologia fosse pae,
mettesse o filho em um carcere cheio de serpentes e ahi o deixasse para
sempre? Qualquer que houvesse sido a culpa do menino, julgareis justo e
discreto similhante castigo? Não vos pareceria o mestre mais louco do
que o discipulo, e o pae peior que o filho? O vosso primeiro empenho não
seria pôr o algoz no logar da victima? Não se levantaria toda a
sociedade contra esse sabio sem coração? Nossas leis, nossos tribunaes
consentil-o-hiam? Ah! castigos, sim, mas castigos que corrijam, e o
perdão a final: eis o que é justiça de pae. Não entendemos outra. Ao
chefe de familia não se consente poder arbitrario sobre os seus: a
esposa tem direitos; tem-os o filho, o servo, protegidos pela sociedade,
que para esse fim especialmente se constituiu. Se isto repugna ás
antigas tradições, nem por isso é menos racional, equitativo e
moral.
Ainda assim, por mais que fizesse este doutor atroz, seria menos cruel
que o Deus prégado por elle. Se a morte não viesse rapidamente
arrancar-lhe a victima, o officio de algoz cançal-o-hia. É difficil de
supportar, ainda mesmo a um mau pai, o aspecto das torturas que elle
exercita na pobre creatura que gerou. No coração humano tudo é mudavel,
tanto o amor, como, por feliz compensação, o odio. Um principe
morovingiano, chamado Charmne, revoltou-se contra Clotario; Clotario fez
queimar vivos seu filho, a nora e os netos; mas diz a historia que elle
se arrependêra. Se tal supplicio durasse uma semana sómente, de certo
elle os teria salvado. Que bom pai! Que excellente rei!
Que amavel é este Clotario de par com o Deus que nos pintam! Este Deus
quer que pensemos no inferno, mas não que se morra ahi; á imitação do
algoz das prizões feudaes, deixa viver os pacientes torturando-os e
disvela-se em lhes protrahir a agonia! Manda-os soffrer, ouve-os gemer
durante a eternidade, e procede sua vingança, sem fechar olhos, sem
tapar ouvidos, e por isso mesmo é que n'elle reconhecemos não um homem
variavel, mas o que elle é, um Deus.
Ó Deus dos antigos, Bel, Teutates, Plutão, Eolin, seja qual fôr teu
nome, Deus das batalhas, Deus do gladio, Deus dos fortes, guerreiro
feroz, senhor irascivel, juiz sem entranhas, Deus dos eternos
rancores, tu não és o meu Deus! O Deus que adoro, o unico e
verdadeiro Deus, é o melhor dos Paes; apezar das minhas culpas, não me
trata como inimigo nem como escravo; conhece melhor a minha fraqueza do
que eu a sua força; e, até quando me castiga, não esquece que foi elle
quem me creou e que eu sou seu filho.

II
O purgatorio
É o purgatorio o logar incognito em que os mortos esperam, soffrendo, o
perdão das culpas commettidas na terra. Ha ahi o chorar e o padecer; mas
não se amaldiçôa Deus: bemdiz-se. Os soffrimentos ahi supportados são
salutares porque se comprehende a justiça d'elles; e corrigem porque a
esperança não é anniquillada.
Se tal logar existe, de que serve o inferno?
Deixar dizer que a eternidade é que apavora e refrêa o peccador. O
peccador não sabe o que seja a eternidade; porque é impossivel
absolutamente formar-se uma clara idêa do que seja isso. Se recuamos
perante nós um pouco que seja as balisas do tempo, a nossa imaginação e
razão se perdem; e cahimos nas prezas das mesmas angustias que
sentiriamos, se vissemos a verdadeira eternidade.
Para que o homem se aterre lhe basta imaginar o soffrimento de que é
capaz a sua natural sensibilidade, e qual o podem comprehender as
faculdades do seu entendimento. Para que iremos mais longe? Não é
bastante ameaçar os maus com castigos proporcionados ás suas faltas,
durante um espaço de tempo desconhecido ou incalculavel n'este mundo? O
que fôr mais do que isto é inintelligivel. Para lá d'estes limites, a
ameaça nada importa; a alma está refarta de justiça, oppressa de terror,
extenuada de padecer, dobra-se, cáe, aniquilla-se, adora, supplica
perdão, não póde comprehender senão a piedade, está surda e insensivel a
tudo o mais. O remate da justiça para nós é o perdão; e, se n'essas
extremas alturas onde a imaginação póde chegar, e onde o peccado roja
gemente, se em vez de perdão, nos mostraes o odio ainda flamejante, lá
vai tudo: o terror tocou o apogeu; turva-se a razão, idêa de justiça e
de bondade tudo se desfaz; a alma, que cahira crente, levanta-se
atheista.
Se o tal inferno existe, no outro mundo coisa comprehensivel ha uma só;
é o blasfemar dos condemnados.
Mas se tal inferno existe, de que serve o purgatorio? Pois os
protestantes não o aboliram discretamente? Para os que podem crêr em tal
inferno, que é cem mil annos de purgatorio? Este acaba e o inferno não;
seculos e milhões de seculos de penitencia não se contam, esquecem-se.
Em vista d'este sinistro inferno em que a misericordia é desconhecida,
inutil o soffrimento, e a justiça um enigma, o purgatorio é um paraizo.
Quem nos dera a certeza de lá ir! que os castigos ahi soffridos,
por mais demorados e rigorosos que sejam, não ha temel-os: desejam-se.
Por maneira que o mais terrivel castigo que imaginar se póde, o mais
equitativo e rasoavel, deixa de impressionar as almas pervertidas pelo
espectaculo d'uma punição sem siso nem justiça apparentes.
As pobres almas aterradas, aturdidas, estupefactas são impellidas
involuntariamente a offender a Deus de dois modos; primeiro temendo-lhe
a vingança, segundo não lhe temendo a justiça. A idêa dos castigos
inefficazes e dôres infructiferas, por muito monstruosa, odiosa e falsa
que seja, se humanamente a consideramos, torna inutil a idêa dos
castigos poderosos e dôres salutares, por muito bella, clara, natural e
divina que ella seja.

III
Necessidade do purgatorio
Quem quer que sejaes, senhor ou servo, rico ou pobre, esposo ou pai,
viuva ou noiva, não negueis as expiações da vida futura. Não conheceis
maus em prosperidade, cercados de respeitos, inaccessiveis á lei, e que
se deitam e levantam sem remorsos? Não conheceis innocentes opprimidos,
anciãos abandonados, orphãos desbalisados, pessoas honradas cuja vida é
toda padecer e que nenhuma lei feita ou por fazer defenderia de homens
ingratos e perversos? Se sois feliz hoje, sêl-o-heis amanhã?
Convencei-vos de que negar a vida futura, seria o mesmo que negar a
immortalidade da alma, e logo sua liberdade e responsabilidade; e, por
consequencia, o mesmo seria negar virtude, direito, Providencia, e
constituir este baixo mundo um verdadeiro inferno, um sonho, um
pesadêlo, onde tudo seria horror e abominação, excepto o nada, tudo
injusto, excepto o crime victorioso, tudo absurdo, excepto a inveja, o
egoismo, a violencia, e a astucia que se roja. Ah! crêde na vida futura,
com suas expiações e recompensas. E, se ha quem exclua do ceo a piedade,
não vades vós, por uma irracional desforra, excluir tambem do ceo a
justiça.

IV
Mysterios
Não nos accusem os theologos de negarmos acintemente os mysterios.
Os theologos referem o que vae no inferno como se tivessem por lá
viajado. Pelo que elles dizem é paiz dos mais conhecidos: sabe-se o
caminho, quaes são os seus productos, e qual o modo de viver dos seus
moradores, bem como a origem, nomes e a gerarchia dos principes que lá
reinam. Em outro capitulo estudaremos as edificantes descripções que
fazem d'elle já physica, já moralmente.
Ácerca do purgatorio tem havido mais prudencia quasi nada se sabe
do que la se passa: é portanto mais mysterioso que o inferno. Todavia,
sem impedimento de ser mysterioso, que differença! Quanto mais
profundamos a eternidade penal, menos se acredita; ao invez, quanto mais
pensamos no purgatorio, mais nos sentimos compellidos a crêl-o. É o
inferno mysterioso como o diabo, como a noite, como a contradicção, a
confusão e o chaos. É o purgatorio mysterioso como Deus, como a alma,
como a consciencia, como a vida, como a luz que nos alumia, como a
materia impenetravel, como toda a natureza, como a verdade, como tudo o
que existe e de que nós apenas conhecemos em sombra a existencia e
apenas percebemos atravez de um veo, mas o bastante para não poder
duvidar. É elle tão certo como tudo o mais do mundo; assenta no intimo
de nossa alma sobre as mesmas bases da moral, do direito, do dever, do
respeito a outrem, piedade, liberdade, amor, e sentimento do infinito. É
por tanto o purgatorio, quanto á razão, o verdadeiro mysterio da justiça
divina, assim como a Incarnação e a Paixão, quanto á fé, são o mysterio
do Amor divino;--mysterio de justiça que, de mais a mais, se concilia
maravilhosamente com aquelles mysterios d'amor, dos quaes o inferno
perpetuo seria a negação.
Muitissimo nos espanta que os protestantes o não vissem. Quando tinham
que escolher entre dous dogmas inconciliaveis, um velho e outro novo,
sacrificaram, tanto em nome do Evangelho como da razão, um dos
dois que mais se harmonisava com as leis da razão e a moral do
Evangelho.

V
O paraiso
Os protestantes não conhecem termo medio entre paraiso e inferno; os
catholicos, porém, acreditam-no, e segundo elles é o purgatorio ceo
nubloso e triste, inferno onde se ora e espera, e que deve acabar.
Infelizmente os catholicos não enviam todos os mortos ao purgatorio,
crendo que se póde transpor aquelle meio entre ceo e inferno, sem ainda
lá pôr o pé. Á similhança dos protestantes, ensinam que muitas almas,
apenas despidas do seu involucro mortal, são despenhadas para sempre no
eterno abysmo, ao passo que outras almas, logo que despedem da terra,
alam-se direitas ao paraiso. Ensinam tambem, uns e outros, que o mais
abominavel patife, convertido á ultima hora, póde morrer contente: eil-o
vai absolvido como o bom ladrão; não tem mais que fechar os olhos e
acordar entre os anjinhos.
É isto possivel? É isto verdadeiro? Que é pois o paraiso, e que idêa
fazemos d'elle?
Pois que! verei eu do seio da bemaventurança, e na inalteravel
tranquillidade dos justos, verei sem remorso e sem afflicção,
encadearem-se a meus pés, já na terra, já no inferno, as tristes
consequencias das minhas iniquidades? Nas minhas noites de
libertinagem, matei; durante o somno de homens que valiam mais do que
eu, assassinei um aváro para o roubar, um amigo da minha infancia para
entrar no seu leito, uma mulher que eu havia seduzido e que morreu
beijando-me as mãos, pensando em mim, a louca, mais do que em Deus!
D'entre elles os peores que eu feri eram innocentes comparados comigo, e
eil-os mortos intempestivamente, sem terem tempo de se arrependerem;
eil-os engolphados na gehenna, com o coração roido pelo verme que não
morre, gementes, chorosos, amaldiçoando-me; e eu, seu assassino; eu,
peccador envelhecido na impiedade e agraciado por um milagre, louvarei
Deus eternamente, por me haver feito instrumento da condemnação
d'aquellas pobres almas!
Com as minhas delapidações, reduzi á miseria e a todas as tentações da
miseria, e a todos os desvios da desesperação aquella familia que lá
vejo em baixo: o irmão vende a irmã, a irmã vende a sobrinha, o pae
vende os seus juramentos, os seus amigos, o seu paiz; a mãe arranca-se
os cabellos; todos choram, todos soffrem, todos me accusam, e os seus
gemidos chegam até mim; e eu hei de vêr imperturbavel, sem remorsos, sem
dôr, aquelles fructos de meus crimes, aquellas ulceras, aquelles
prantos, aquelles opprobrios, aquellas perfidias, aquelles escandalos em
que eu tenho parte; e, pois que Deus se apiedou de mim, eu não terei
piedade dos outros, e o que na terra me affligia, quando eu
agonisava, não me ha de affligir depois da minha morte. Este deploravel
espectaculo, bem visivel a meus olhos, não impedirá que eu me saboreie
na felicidade dos escolhidos; convencer-me-hei que vae n'isso o influxo
dos designios do Altissimo, e que o homem, faça o que fizer, não tem que
vêr com o resultado das suas obras; e em vez de bater no peito a cada
sobresalto dos meus proprios crimes, a cada repercussão das minhas
proprias blasphemias, a cada reflorecer das venenosas sementes--vestigio
unico que eu deixei da minha passagem na terra--vestirei a alva tunica,
e beberei na taça dos anjos, das virgens, dos heroes, e dos martyres,
como se eu fosse um d'elles.
Na verdade é uma egregia doutrina esta da justificação do peccador, pelo
reconhecimento e pezar de suas culpas; levada porém áquelle grau,
similhante doutrina é tão incomprehensivel como a do inferno. De uma
demasia nasceu outra: n'uma parte encareceram a justiça; na outra
exaggeraram a piedade. Comtudo, entre o castigo infinito por um só
peccado, e o immediato perdão apezar de mil peccados, havia o que quer
que fosse que parece desconhecer-se: a justiça sem colera, a
misericordia sem pusillanimidade.
Salvam-nos como nos condemnam, com pouco custo ordinariamente, pois que
se com facilidade nos abrem as portas do inferno, com a mesma nos abrem
as do paraiso.
Considerem entretanto o purgatorio, não como meio entre o paraiso e o
inferno, mas entre a terra e o ceo, ponto que certas almas atravessam
rapidamente e quasi sem soffrer, e onde outros são condemnados a
padecimentos mais ou menos extensos e variadissimos, consoante a
natureza de suas culpas, e disposição no ultimo momento. Este purgatorio
com as suas penas indefinidas, proporcionaes, rigorosas, purificantes,
e, cedo ou tarde, coroadas pelo perdão, não seria um freio moral mais
rijo que o medo das penas eternas, temperado pela esperança da
misericordia na ultima hora, e pela reforma de vida na ultima edade?
Convenho que não haveria medo de ser condemnado sem remissão; assim é;
mas tambem ninguem presumiria de fugir ao castigo com um momento de
contricção, depois d'uma longa cadeia de crimes. D'esta arte, Deus
mostraria melhor o que é, justo, mas não cruel; bom, em vez de
tolerante. Que mal lhe viria d'ahi? Commiséravos o lastimavel ancião
coberto do sangue das extorsões e o tyranno abjecto que sopesou e
corrompeu milhares de homens; tendes d'elles piedade, quando morrem
chorando? tendes razão; mas apiedae-vos tambem de suas victimas ainda
palpitantes, d'essas creanças que elles definharam e ceifaram em flor, e
que vós condemnaes. Piedade e justiça para todos. Não desespereis os que
vagarosamente caminham sobre os abrolhos da penitencia, mas não lhes
encurteis a escada para os subir ao ceo. Sabei que na outra vida se
chora amargamente o mal feito ao proximo que n'este mundo nos sobrevive,
as desordens que se motivaram, as existencias que se transtornaram, as
quedas moraes que se occasionaram, e que o arrependimento na hora
extrema, posto que grandemente salutar, é apenas o principio, e não o
fim, das expiações d'uma vida culpada.
É de crer que na Biblia e nos padres da Igreja isto se não encontre
escripto; mas está escripto nas consciencias. Limpem os oculos e leiam.


CAPITULO TERCEIRO
OS FRUCTOS DO INFERNO

I
O bem
(BEM NEGATIVO, MONGES, ANACHORETAS, ETC.)
Se a morte vos sobresaltêa antes da penitencia, diz-se que sois
condemnado por erro de espirito, por fraqueza dos sentidos, por um lance
d'olhos, por um desejo culposo, e condemnado, sem esperança, tanto como
se houvesseis sido um ladrão calejado, um parricida, um atheu. Lá vos
está esperando o Senhor da vida; e ahi ides enredado em vosso peccado
como ave cahida no laço. E tudo se acabou; tudo, sem que os vossos
longos serviços ao genero humano contrabalancem o peccado final!
Se, no entanto, comparaes tudo que se ha mister fazer para ganhar o ceo
ao pouco que basta para cahir no inferno, sereis forçado a reconhecer
que as probabilidades são dissimilhantes, e que o mais certo,
faça-se o que se fizer, é a condemnação.
D'onde procede nas imaginações vivas a dominante preoccupação de evitar
o inferno; e d'ahi, pelo conseguinte, e desde os primeiros seculos, uma
especie de singulares virtudes, mais espantosas que bellas, mais
extravagantes que insinuativas: virtudes falsas, sem utilidade do
proximo, bem que os theologos no'l-as inculquem por ideal da perfeição
christã. Tal é o retiro ao deserto, a renunciação propria, o morrer
antecipado, o fugir combates da vida, o desquite de deveres da familia e
da cidade, a ociosidade contemplativa e penitente, a maceração, o jejum,
o perpetuo silencio, a insulação, o odio ao mundo, a oração entre quatro
paredes. É, tambem, a santificação do celibato, como se a fecundidade
dos sexos houvesse sido amaldiçoada, como se fosse culpa continuar a
filiação de Adão, e virtude esterilisar em si os embriões da vida
humana.
E certo é que, admittido o inferno, e a queda original, e o ensinamento
que lhe anda annexo, que outra conclusão se colhe? Multiplicar os
homens, para que? para multiplicar os peccados? Se é tão duvidosa a
salvação! Se a condemnação é tão facil! Para que nos enlaçaremos á orla
d'um abysmo onde o esposo póde despenhar-se com a esposa e o pae com os
filhos? Bastantissimos mentecaptos se casam, e povoam terra e inferno de
desgraçados. Não seria melhor deixar acabar o mundo? Bemaventurados os
celibatarios! Os sabios são os reclusos, os anachoretas, os
eremitas. São como os viajantes que, em navio a pique, desamparam os
companheiros, e salvam-se a nado. Cuidam só do seu salvamento; cada qual
por si; soccorrer o irmão tem o risco de naufragio. Fazei como elles,
navegantes; deixae no navio em sossôbro mercadorias, thesouros, e vossas
mulheres, e mães, e vossos filhos, e fazei-vos ao largo: recresce a
borrasca; rasga-se a vela; quem poder salve-se.
Bemditos sejam pois esses foragidos do mundo, mortos ao mundo e seus
modelos, Simeão sobre a columna, João no muladar, esses desvariados
todos macillentos, sujos, comidos de insectos. Grande vantagem levam:
não tem que vêr com a terra, e já estão meios mettidos no ceo: o diabo
já mal os póde aprezar.
Não é, todavia, a perfeição dos ascetas aquella que o Filho do homem nos
exemplificou. Trinta e tres annos habitou Elle a terra, e quarenta dias
sómente ermou no deserto, não para nos lá attrahir; mas, a meu vêr, para
nos distancear, pois que foi no deserto, e ahi tam sómente, que o
espirito das trevas o tentou. Anteriormente havia Elle vivido trinta
annos com a sua familia; e viveu o restante entre peccadores. É para
notar que nas suas modestas occupações, sob o colmado do carpinteiro, e
mais tarde nos campos, nas cidades, nas tavernas, em meio do povo que
ensinou, curou e nutriu, não ousou o diabo tental-o!
Mal imita Christo quem foge o mundo que Elle procurava. O
sepultar-se um homem nos antros, a jejuar e a rezar por longo tempo, o
sequestro da sociedade, o silencio, corpos macerados mal enroupados em
pelles, exorcismos furiosos, luctas no vacuo, intrepidez baldada, e
tantissimos outros piedosos desatinos não recordam exemplos do Salvador,
mas sim as aberrações dos sectarios do oriente. Não póde ser isto a
perfeição que Jesus veio ensinar aos homens; que tal chamada perfeição
muitissimos seculos antes d'Elle já era conhecida dos pagãos idolatras,
que tinham seus corybantes e vestaes, e bem assim dos judeus, mormente
dos Essenios que a tinham aprendido dos magos da Chaldêa. Tal perfeição
praticavam-a na India fanaticos sem numero, cuja raça ainda subsiste.
Importamo'l-a dos mesmos paizes que nos mandaram a doutrina dos anjos
rebeldes e a da reprovação dos homens--doutrinas cujo natural fructo é
tal casta perfeição. Se o ideal da perfeição humana fosse isto, inutil
seria o christianismo; pois que já os brahmanes a tinham ensinado dous
mil annos antes do presepio, e os bouddhistas a tinham realisado mil
annos antes dos monges da Thebaida.
É certissimo que os bouddhistas não visam exactamente ao mesmo scôpo que
os monges catholicos: aquelles buscam em suas austeridades a morte
absoluta, a destruição de sua personalidade, o serem absorvidos no ser
universal, ao mesmo tempo que os monges, se renunciam ao seu _eu_ neste
mundo, é para o retomarem n'outra vida. É, comtudo, egualmente
certo que, sem embargo da diversidade dos fins, vigora em ambas as
seitas um principio commum, sendo que por identicas vias e praticas
procuram a eterna bemaventurança uns, e outros o perpetuo dormir, a
eterna insensibilidade. Só de per si o desejo do ceo não bastaria a
inspirar a uns o mesmo proceder que inspira aos outros o desejo da
anniquilação: pelo que, não é o desejo, senão o medo que povôa os
desertos. Os bouddhistas, por egual com os christãos transviados, temem
os soffrimentos infindos, os males sempre a renascer, se n'este mundo
não attingirem a vida perfeita; e tanto para elles como para os nossos
monges, vida perfeita é o absterem-se da vida, é a virgindade, o jejum,
a penitencia, a soledade, o extasis, o antecipar a morte, um complexo de
estereis virtudes, não filhas do amor, senão do mêdo.
Tal é, na sua mais elevada expressão, o bem que a crença do inferno
produz n'esta vida. Causa espanto que os protestantes hajam conservado
este dogma! É, porém, mais para espantar que elles, ao mesmo tempo que o
conservam, destruam os mosteiros e inpugnem o celibato. Não ha ahi
imaginar maior inconsequencia! A primitiva Igreja, que elles pretendem
resurgir, cria sem duvida nas penas eternas, é isto mais que muito
verdadeiro; mas pelo menos, operava em conformidade com sua fé.
N'aquelle tempo, os esposos, ainda em vigorosa mocidade, guardavam
continencia, sob pena de peccarem, durante o advento e quaresma, e nas
festas e dias de jejum, pouco mais ou menos tres quartas partes do
anno. D'elles alguns, para maior perfeição, não usavam nunca os direitos
conjugaes, e envelheciam sob o tecto nupcial, em voluntario celibato,
denegando-se as frias caricias que o irmão faz a sua irmã. Os ricos
empobreciam-se, despojando-se espontaneamente de seus haveres, e os
pobres lidavam para viver, mas descuidosos de amontoar, nem como
previdencias para a velhice e infermidade, nem para legarem a filhos.
Conta-se que desadoravam empregos publicos, e evitavam, como escolhos da
alma, as emprezas lucrativas nomeadamente as commerciaes. Nunca
espectaculos, nem jogos, nem dansas, nem folias. Sobriedade extrema,
vestidos nem apontados nem de preço, jejuns em barda, orar dia e noite,
lucta incessante e pertinaz contra a natureza. O seu distinctivo de
christãos era aquelle. Uma leve falta, acareava-lhes a excommunhão; e,
antes de absoltos, eram experimentados em seu arrependimento, por espaço
de mezes e annos, quando o não eram até morrerem. Em quanto durava a
penitencia, eram apontados, não só nos templos, durante os mysterios,
senão tambem no exterior e nas relações da vida civil; e, por cima de
ninguem os querer á sua meza, até as esmolas lhes regeitavam.
Diz com rasão Fleury que a vida dos nossos monges regulares corre
parêlhas com a do commum dos fieis da Igreja nascente, cuja continuação
é[2]. E accrescenta[3] que já entre aquelles fieis havia ascetas
d'ambos os sexos vivendo reclusos. Eram os mais perfeitos, e exemplares.
Taes ascetas, verdadeiros ascendentes dos monges contemplativos,
trappistas, cartuchos, carmelitas, claristas, etc., esforçavam-se por
imitar a vida de João Baptista no deserto e a de Elias no Carmelo.
Curavam elles pois, como já dissemos, uma perfeição diversa da de Jesus:
anhelavam a perfeição negativa, qual os judeus e os orientaes a
preconisavam; judaisavam sem darem d'isso tento, e os christãos seus
imitadores continuavam inadvertidamente a tradição, não já de Jesus, mas
de João Baptista e Elias, tradição congruentissima com o inferno. Já no
tempo das perseguições era povoada a Thebaida; não tinha então a Igreja
um tecto debaixo do ceo; e só depois que principiou a erguer templos é
que edificou mosteiros, sua primeira obra depois que sahiu das
catacumbas. É pois evidentissimo, em que peze aos protestantes, que o
catholicismo não se apartou do espirito dos tempos apostolicos, nem das
praticas de então, e que a vida monachal detestada por elles, é ainda
hoje em dia o que outr'ora foi, a mais bella flor, e o mais mimoso
fructo dos dogmas hebraicos, que elles tão piedosamente tem
conservado.
[2] _Costumes dos israelitas e christãos_, tom. II, cap. 53.
[3] _Costumes dos israelitas e christãos_, cap. 26.--Citei esta
excellente obra por que ella é manuseada por todos, e facilima de
consultar. De mais a mais, depara-nos a indicação das fontes onde o
auctor bebeu, dispensando-nos assim de as indicarmos n'este livro.

II
A carmelita ou o ideal da perfeição theologica.
Comvosco admiro as religiosas que, sob diversos nomes e com diversos
habitos, assistem ao genero humano, tanto com suas orações, com o seu
trabalho quotidiano, com toda a celeridade de seus pés, com toda a
agilidade de suas mãos, como com todas as forças de seu ser. Credes que
não é possivel seguir mais do que ellas os divinos vestigios do
Salvador. Ah! quanto vos enganaes! Quanto são baixas e eivadas de
heresia as vossas idêas! A perfeição não consiste na vida activa e
benefica das irmãs da caridade; onde ella está, segundo o ensinamento
dos theologos, é na vida contemplativa.
Se procuraes, senhora, o modêlo para vós e vossos filhos,
encontral-o-eis na carmelita, com preferencia á irmã da caridade.
Aquella morreu para o mundo, jaz no seu cubiculo como em um tumulo. Vá
quem quizer agasalhar orphãos, ensinar ignorantes, restaurar peccadores,
curar doentes, ensinar officios a servos, dar voz a mudos. Affronte quem
quizer o contagio de nossos vicios! Quem quizer que cure a nossa lepra!
Esses cuidados vulgares não os quer a carmelita para si. Aos pés do
altar, com os braços levantados ao Senhor, é o seu posto. Não se bulirá
d'alli, ainda que todo o paiz arda ensanguentado. Não lhe digaes: vosso
irmão está a morrer; vossos sobrinhos vos estão chamando. Não lhe
digaes: arde a peste na cidade; á vossa porta está a maca. Ha muito que
ella concebeu tedio do mundo; não lhes leveis novas d'elle, que
perturbarieis o seu socego. Quanto menos ella se inquieta d'essas
transitorias miserias, mais os theologos a admiram. N'isso
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Next - O Inferno - 04
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