O Inferno - 09

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diminuir, o meu supplicio augmenta. Soffro com quantos de longe
molestei: tenho fome com os que eu poderia fartar; tenho frio com os que
eu poderia vestir; peza sobre mim a cada hora e cada vez mais
esmagadora a carga de males que fiz pezar sobre outros. Multiplicaram-se
as minhas offensas como a herva sobre a minha campa esquecida, e as
minhas feridas sangram sempre, e as minhas chagas lavram sem cessar.
Isto é justo, meu Deus! Poderia eu ser feliz no céo, se visse o effeito
de minhas obras? Em quanto fructifica a arvore fatal que plantei na
terra, puni-me, Senhor! Mas não me tireis a esperança! O pouquinho bem
que fiz na vida não germinará nem cobrirá, se o permittirdes, os
vestigios das minhas iniquidades? Oh! quando nenhum ente vivo, n'algum
logar do mundo, já não podér imputar-me seus soffrimentos, tende então
piedade de mim, meu Deus!
E todas as almas peccadoras, unindo-se em um brado de misericordia,
repetiram juntas, lá das reconditas profundezas: Tende piedade de mim!
Tende piedade de mim!
Esta supplica em commum era a um tempo tão suave e dilacerante que eu
imaginei que o ceo se abriria. Mas a noite que me envolvia espessou-se
mais glacial; e o abysmo emmudeceu; e, apoz um instante de esperança,
continuou a lamentar-se, correndo como o oceano nas fragarias da costa.
Ai! ai!--conclamavam os gritos que se extinguiam soluçando--é surdo o
céo! é surdo o céo!
Nunca! nunca!--diziam outras vozes--Nunca! nunca! Meu Deus, que resposta
á dôr! Nunca! nunca!
Descançai, filhos!--bradou um condemnado, que se me figurou, no tom de
voz, ser um dos patriarchas do abysmo--Não profirais essa palavra
horrida. Ahi sôa em vossos pobres seios um ecco das maldições da terra,
e não palavra descida do céo. Ha mais de mil annos que padeço, e oro, e
escuto o céo, e não ouço a resposta. Oremos, oremos sempre!
E o ancião entoou um cantico; e, ao primeiro versiculo, parou e
debulhou-se em lagrimas.
Ai!--ressoavam ao longe milhões de almas gementes--Ai! o céo é surdo! o
céo é surdo!
N'este lance, uma voz sobrelevou a todas, dizendo:--Ensinai-nos, ao
menos, Senhor, a utilidade dos padecimentos. Se nos perdoasseis, acaso a
vossa gloria padeceria com isso? A felicidade dos justos soffreria
diminuição? Revoltar-se-hiam elles contra vós? Logo que as creaturas
entraram á vossa presença, não se lhes acrisolaram os sentimentos de
piedade? O padre que me estendia a mão quando era mortal e sujeito ao
peccado, a esposa que eu amava, a mãe que me gerou, os amigos que me
trahiram e aos quaes perdoei, os pobres que soccorri, e uma filha
ingrata e amada a quem eu daria a comer o meu coração em ancias de fome,
nem essa, ninguem vos intercede por mim? Hontem oravam elles quando eu
me rejubilava nas culpas; pranteavam-me vivo e oravam por mim; e hoje
esquecem-me, pendem para o crime, fogem da dôr; o amor a quem soffre e
geme é sentimento ephemero, que vai mal para entes bemaventurados.
E a voz que fallava assim ergueu-se ainda para amaldiçoar, mas
falleceu-lhe a força, e á maneira do vagalhão que rossa a nuvem
rugindo, subita recaiu e expirou em prolongado gemido.
Mas logo um brado novo retumba mais estridente ainda, e, eu, ouvindo-o,
não distinguia se era oração, se blasphemia.
E bradava:--Creio na vossa justiça, meu Deus; mas deixai-me crêr na
vossa misericordia. Não é ella tão infinita como a vossa justiça? Não é
eterna? Se me perdoaveis quando eu estava na terra, porque não me
perdoais aqui? Se eu sou o mesmo peccador, não sois vós o mesmo Deus? E,
se a morte me mudou, pôde a morte d'um ente como eu mudar a vossa
immutavel natureza? Cansou-se acaso a vossa bondade? Exhauriu-se? Sois
vós susceptivel de cansaço? E, se alguma de vossas virtudes é
transitoria, de circumstancia e occasional, é forçoso que seja a
bondade, aquella ineffavel bondade que nós ignorantemente consideravamos
lá em cima a mesma essencial e inalteravel virtude vossa! Se assim
é--proseguiu a voz desesperada--anniquilai-me, Deus Omnipotente! Esta
existencia é inutil; sou de mais no universo. Que lucraes com as minhas
dôres? Tendes precisão d'ellas? Retomai esta vida de que sem duvida
abusei, e esta intelligencia que perverti; apagai em mim esta luz, visto
que principiam a rasgar-se os veos que a escurentavam.
Tirai-me a lembrança do céo, a ancia de ser feliz, a necessidade d'amar,
a necessidade de saber; tirai-me, sobre tudo, por piedade, o sentimento
da justiça, porque eu não sou Deus, e a vossa justiça é um
mysterio, e contra minha vontade, a blasphemarei. Deixai-me morrer, ó
Deus! Deixai morrer quem soffre! Matai o peccado incuravel e a dôr
esteril, a fim de que na creação não haja um só atomo que não palpite de
reconhecimento e alegria, ao ouvir o vosso nome santissimo.
E um clamor horrendo abafou a voz que fallava; e, d'um angulo a outro do
abysmo, todas as almas em tortura escabujavam, rogando a Deus que as
deixasse morrer. E pediam a morte como os famintos mendigam pão;
chamavam-na com os gritos da mulher em angustias de parto do seu
primogenito, com a dôr da victima na fogueira, com o rugido da leôa que
perdeu os cachorros, com o balido do cordeirinho que procura a mãe. E eu
tambem a chamava, e me pareceu vêl-a aproximar-se, e beijei-lhe a mão
glacial; e, quando me sentia morrer, despertei.


CAPITULO NONO
JUDAS ISCARIOTE

I
Eu escolheria d'entre os condemnados o mais desprezivel, se no inferno
existisse um miseravel maior do que Judas.
Este vivia na amisade de Jesus; ninguem lhe conhecia mais de perto a
innocencia; e, como elle fosse o particular distribuidor das esmolas
(_João_, c. 13, v. 29), ninguem lhe conhecia melhor a bondade. Não
obstante, vendeu-o; e, depois de o atraiçoar, voltou, ceou com elle, e,
ao escurecer, guiou os soldados que o prenderam; e, como os soldados o
não conhecessem, deu-lhes signal, abraçando-o. Eis aqui o crime
circumstanciado. Premeditação, cubiça, villeza, tem de tudo. Judas vende
o mestre e o amigo, o sabio e o justo. Vende-o sem colera, sem paixão,
por bom dinheiro de contado, como venderia na feira um jumento ou
um boi. Sabe que desejam matal-o; não importa! vende-o. E que será
depois da Mãe de Jesus? e dos doentes que elle curava? e dos ignorantes
que ensinava? Ah! que tem Judas com as lagrimas de mãe e com a
ignorancia e lastimas do povo? Negociou com todas essas dores como
mercadejou com a amisade, com a sabedoria, com a innocencia, com tudo
que ahi ha divinal n'este mundo. Embolsou o preço; e, a fallar verdade,
nem os phariseus nem elle avaliaram cara a mercancia: trinta dinheiros!
dez vezes menos que a libra dos perfumes de Magdalena.

II
Um dos primeiros effeitos da perfidia de Judas foi a defecção dos
apostolos. Em vez de seguirem o Mestre, falsamente accusado de sacrilego
e seductor, dispersaram-se: Thiago, Simão, Thadeu, que elle chamava seus
irmãos, João, o seu amigo dilecto, todos por egual covardes, não
cuidaram senão em salvar-se. «Conheces este homem?» perguntaram a
Pedro.--Não,--diz Pedro, o chefe, o mais corajoso de todos--não o
conheço.--Renegou-o trez vezes; trez vezes mentiu; trez vezes
testemunhou de falso em face dos accusadores: depois, chorou na
escuridão, e calou-se. Todos deixaram injuriar, calumniar, chibatar e
morrer Jesus, sem erguerem brado em sua defeza e duvidando que
fosse Deus, duvidando-lhe da missão, das promessas; bem que, para grande
opprobrio d'elles, certos de sua amisade, pureza de vida, e excellencia
da moral. Para se reanimarem foi preciso o milagre que o pae Abrahão
recusou ao rico avarento; nada menos que resuscitarem os mortos, e que
propriamente Jesus saísse do sepulchro, e que elles o vissem, e
conversassem e comessem em sua companhia, e que Thomé lhe tocasse as
chagas. Desde então é que prégaram com inabalavel fé a divindade de
Jesus.

III
O peccado dos apostolos, n'esta lamentavel historia da Paixão, é, na
essencia, egual ao de Judas, bem que não tanto odioso. Faltou-lhes a
todos a fé; porém, sendo a fé um dom sobrenatural, não devemos arguil-os
desabridamente porque não receberam o dom. O que do seu proceder nos
irrita é deixarem ir até final, sem publico protesto, a obra de Judas; é
que abandonassem o innocente amigo que os outros tinham vendido; é que
não dissessem a Pilato ou Herodes: «Não! este homem não é sedicioso;
quer que se dê a Cezar o que é de Cezar, e a Deus o que é de Deus; paz,
desinteresse, e caridade são a sua doutrinação.» Isto bem o sabiam
elles, e não o disseram, e deviam têl-o dito, sem medo, e não abafarem,
como fizeram, o grito da consciencia. Este é que é o crime dos
apostolos, crime natural, como o de Judas.
Bem se deixa vêr que, se Judas vendeu o seu Deus, não pensava elle que
vendia Deus: vendeu-o sem vêl-o, sem reconhecêl-o divino. O que elle a
sabidas vendeu e quiz vender era um homem, pelo mesmo theor que os
apostolos desampararam e quizeram desamparar um homem, mas o melhor e
mais sabio homem, e o mais carinhoso amigo.
Vender Deus! renegar Deus! É isso crivel quando se crê em Deus? Tal
crime, á força de disparatado, ficaria impune, como acto de sandice!
Judas foi ingrato, ladrão, egoista, traidor doble, fallacioso,
assassino; tudo isso foi e mais ainda; mas o certo é que, no intimo de
seu coração, Judas não se julgava deicida.

IV
Por mais infame que haja sido, Judas não o era tanto que não
comprehendesse a torpeza do seu acto. Tanto a comprehendeu que não se
pôde afazer á sua villania; e, em quanto os apostolos se escondiam, foi
elle--dolorosissimo acto!--confessar sua perfidia no templo, e restituir
o dinheiro aos compradores, dizendo: «Vendi o sangue do innocente.» Mas
ninguem se desata do seu remorso, como de um dinheiro que encrava
espinhos na consciencia; e, na bôcca de um traidor, o testimunho a favor
da innocencia perde muito de sua efficacia. Sentiu-o vivissimamente
Judas quando, apoz confessar-se do crime, os phariseus lhe responderam:
«Que se nos dá d'isso? Lá te avém.» Saíu então do templo, convicto de
que não estava em sua mão sustar as consequencias do seu crime, corrido,
desesperado, indo ao encontro da morte que merecêra, mas que ninguem lhe
dava, para que a sua penitencia fosse maior n'este mundo.

V
Vida de opprobrio e remorsos é expiação. Judas deveria viver. Porque se
matou? Se elle cresse na divindade de Jesus, não se mataria, pois que,
matando-se, ía entregar-se nas mãos d'Aquelle que atraiçoára. Por que
se matou? O suicidio nada remedeia, e tira da contemplação dos homens o
salutar espectaculo d'um criminoso contricto. Procurava elle
anniquilar-se? A anniquilação ser-lhe-hia doce refugio: o nada não é
pena. Ora é certo que ninguem disse que Judas fosse atheu. Se elle
descrêsse de Deus e da vida futura, como explicar-lhe os remorsos? Que é
crime, quando se crê que tudo acaba comnosco? Se não cresse em Deus,
Judas guardaria os trinta dinheiros. Que temia elle? Como cumplices de
seu crime tinha todo Israel, os padres que o corromperam, os senadores,
Pilato, Caiphás, e a côrte de Herodes, e os proprios apostolos que
negaram a victima. Então por que se matou?

VI
No suicidio de Judas ha terrivel mysterio; mas tambem, n'este mysterio,
ha relance luminoso, e vem a ser que Judas, depois de confessar a
perfidia, na face dos tentadores, calcando o ouro recebido, vagando
loucamente pelas ruas de Jerusalem, valia tanto pelo menos como o senado
judaico que continuava deliberando friamente a morte do justo, como
Pilato que lavava as mãos, como Herodes e sua côrte que riam de tudo, e
como os covardes amigos cujo testemunho, n'aquella conjunctura, seria
muito mais importante que o d'elle. Tal monstro revertido a homem, de si
mesmo horrorisado, saiu da cidade, entrou aos campos por onde tantas
vezes estancára com o affavel Mestre, viu-se indigno de apertar a mão
d'um amigo, porque havia trahido o mais fiel de todos; viu-se indigno de
piedade por que a não tivera; e, por fim, desejou acabar. Nunca tinha
sentido como então, nem quando ouvia Christo, o nada das riquezas, a
vaidade do mundo, o desgosto dos prazeres, o horror dos vicios que os
seguem. Oh! se elle podesse retroceder, delir de sua vida aquella nodoa
de sangue, sacudir o pezo que lhe abafava o coração, quão diverso do que
fôra não seria! Como agora se lhe figurava formosa a innocencia! Como as
tentações lhe pareciam boas de subjugar! Ah! se elle podesse quebrar as
prisões de Jesus, e banhar-lhe os pés com suas lagrimas! Se
podesse offerecer a vida a trôco da que o povo ía sacrificar! Com que
prazer se deitaria na cruz, e ahi morreria em paz, se lhe fosse dado
perdão de seu crime com tal condição!... Mas, ao longe, estrugia a grita
da multidão enfuriada, bradando: «Crucifica-o!» Escutava o tropel dos
cavallos, o retinir das armas, e a pancada do martello que cravava os
pregos nas mãos bemfazejas do amigo que elle vendêra. Iriçaram-se-lhe os
cabellos, reçumou-lhe suor glacial ao rosto, mal se tinha nas pernas
como ebrio, sentia retrahir-se-lhe o chão debaixo dos pés. Oh! como
Jesus padecia! Mas Judas padecia mais, porque soffria como criminoso, e
não como justo. Os soffrimentos de Judas excedem todo o confronto. Não
ha ahi agonia que lhes compareis. Em um dia, n'uma hora soffreu mais do
que cem annos de penitencia no deserto, cem annos de vergonhas e
supplicios entre os homens. A sua alma era uma fornalha em chammas. Os
caminhos abrolhavam-lhe espinhos dilacerantes debaixo dos pés. Com os
proprios dentes lacerava os beiços. O sangue estuára-lhe nas veias.
Aquelle viver já não era vida de homem. Nem fome nem sede o espertavam
do lethargo horrendo. Fulgurava-lhe um só sentimento: o horror do seu
crime. O que elle levava pelos campos além era um cadaver já insensivel
á dôr; e esse vil cadaver é o que elle estrangulou pendente da arvore.
Fez mal. Melhor lhe fôra morrer ajoelhando, supplicando misericordia.
Ah! acaso sabemos como elle morreu? Por ventura, a dôr refinada
até aquelle extremo não será a mais eloquente supplica? Quem o sabe
n'este mundo?

VII
Seja, porém! Prosiga elle na outra vida o medonho supplicio que tentou
abreviar! Que esse incomportavel castigo redobre de hora a hora, de anno
a anno, de seculo a seculo. É justo. _Amen! amen!_
Conte-se e publique-se em todas as linguas da terra que ha dezoito
seculos Judas trahiu o Filho do homem, seu bemfeitor, seu amigo e
mestre, e que o seu castigo dura ainda. Maldito seja elle e todos os
seus similhantes! Maldito seja de pobres e ricos, dos filhos e das mães!
Padres de Jesus Christo, levai esta nova a todas as choças e palacios;
dizei-a a grandes e pequenos, aos que balanceam thuribulos, e aos que
floream gladios, aos que julgam a terra e aos que são julgados! Ai dos
hypocritas! ai dos ingratos! ai dos homens de duas linguas e duas caras!
ai dos servos e dos irmãos tredos! ai dos que antepõem a amisade á
justiça, e vendem sua alma ao sanhedrin, e contam as suas moedas em
quanto o innocente é atormentado.
Dizei isto a toda a terra, padres de Jesus Christo, que não haverá ahi
palavra que vos impugne.
Sim! Não ha ahi crueza de morte, e mormente voluntaria morte que expie
tamanho crime. Judas soffre ha dois mil annos, e d'aqui a quatro
mil soffrerá ainda, e em quanto o genero humano não terminar a sua
peregrinação terrestre, viverá em supplicio recrescente de tormentos
inauditos.

VIII
Entretanto, meu Deus, este mundo de provações, segundo dissestes e tudo
o confirma, ha de acabar. E, quando este mundo fôr destruido e renovado,
quando já não houver sol, nem berços, nem sepulchros, nem gerações de
peccadores, não perdoareis então a Judas? Quando elle apparecer á vossa
presença no dia do juizo, depois de tantos seculos de indescriptiveis
dôres, não vos lembrareis de que elle foi vosso amigo? Dar-se-ha caso
que Pedro, esquecido da sua culpa e do perdão que a disfarçou, diga
ainda outra vez: «Não conheço este homem?» João, Matheus, Thomé e
Thiago, voltarão o rosto indignado, como se não houvessem tambem peccado
e duvidado? Não vos dirá o côro inteiro dos apostolos: «Senhor,
apiedai-vos d'elle. Sem a vossa graça, o que não teriamos feito nós?»
Apiedai-vos d'elle, Senhor!--dirão todos os bemaventurados--que elle,
sem o saber, foi o instrumento e a victima da salvação dos homens. Feliz
culpa! dizia Santo Agostinho do peccado de Adão, feliz culpa que
grangeou para o genero humano situação melhor que a do Eden. Feliz
tambem, meu Deus, a culpa de Judas, pois era mister que, em
cumprimento de vossos decretos, fosseis trahido por um dos vossos
amigos. Horrendo, mas inevitavel crime, predicto muito antes pelos
prophetas; crime salutar, introito mysterioso da paixão; crime que foi
amaldiçoado e devia sêl-o, mas que hoje devemos perdoar e bemdizer, por
quanto, sem tal crime, ó dôce Jesus, nem vós terieis morrido, nem o
mundo estaria resgatado.
Apiedai-vos, pois, de Judas! Commiserem-vos seus remorsos, tormentos e
lagrimas! Compadeça-vos a cegueira d'elle! É bem de crêr que fechais os
olhos da alma aos culpados e esta milagrosa cegueira com que os affligis
é já per si um castigo. Mas tambem os castigareis por peccados e erros
commettidos com vossa licença, no seio d'aquellas vingadoras trevas que
derramastes no seu caminho? Não, não, meu Deus, vós o dissestes.
Lembrai-vos de vossas derradeiras palavras na cruz redemptora, quando
pedieis a vosso Pae perdão para os algozes, para os sacerdotes que vos
haviam comprado, para o amigo desleal que vos tinha vendido, para o
soldado cruel que vos cuspiu na face, para o povo desvairado que vos
injuriava no supplicio: «Perdoai-lhes, pae, que elles não sabem o que
fazem!»
E vosso Pae, que tudo vos concede, perdoou-lhes o sacrilegio, a
blasphemia, e tudo quanto em seu crime entendia com a vossa abscondita
divindade; perdoou-lhes o que a justiça e caridade querem que se perdoe
aos insensatos e aos cegos, e a quantos _não sabem o que fazem_. O que
ficou sobre elles pezando é o peccado contra a humanidade, por
que bem conheciam os peccadores a sua culpa no momento em que a
commetteram. Meu Deus, perdoai-lhes! Pedevol-o o genero humano ensinado
por vossas lições e exemplos, e resgatado por vosso sangue.


CAPITULO DECIMO

Conclusão em fórma de parabola
O pae de familia dizia aos seus servos: Ide aos meus celleiros; tomai a
flôr do grão que eu mesmo escolhi e ensaquei á parte em saco novo, e ide
semear o meu campo. Não lhe mistureis o grão do saco velho; porque esse
embriaga o homem e não o alimenta, e só para os cevados é bom.
Cumpriram os servos as ordens do amo; deixaram, porém, por descuido,
cahir no saco novo os grãos malfazejos que o amo havia separado, e, logo
que se misturaram, não poderam extremal-os, e cegamente os atiraram á
uma para os sulcos.
Chegado o estio, um caminheiro que passava admirou a belleza das espigas
que medravam na seara, mas reconheceu entre as espigas as plantas
nocivas. Arrancava elle discretamente as que haviam germinado até
á beira da estrada, quando os servos, armados de páos, correram a
prohibir-lhe que tocasse na seara que era de seu amo. Perguntou-lhes o
caminheiro onde estava o amo, e soube d'elles que era fallecido, mas
lhes recommendára que vigiassem a messe preparada para seus filhos.
O caminheiro, ouvida tal resposta, contristou-se, e lhes fez vêr a
differença que havia entre o joio e o trigo. E disse-lhes: Acautelai-vos
de os mandar juntos ao moinho, e não façais pão que não seja de puro
fermento.
Os servos, não obstante, persuadidos da sabedoria do amo e do
cumprimento fiel ás ordens recebidas, desconfiaram do caminhante, e de
seus proprios olhos até, quando lhes apontava a differença das duas
plantas. Se isto é joio, diziam, não fômos nós que o fizemos rebentar.
Certo é que não--disse o passageiro--não fostes vós quem fez germinar o
trigo nem o joio, nem communicastes a cada um dos dois sua diversa
virtude, nem tão pouco lh'as podereis tirar; mas, se não sois quem os
fez crescer, fostes vós quem os semeou, depois de misturar os grãos que
o pae de familia havia cuidadosamente separado. Se amais os filhos de
vosso amo, fazei o que elle faria: não lhes deis a comer pão que
empeçonha, porque d'elle adoecerão, e outros hão de morrer.
Turbaram-se grandemente os servos com tal discurso. Um disse
entre si: «Póde ser que o homem tenha razão: aqui ha plantas que não
parecem eguaes; e é acertado não desprezar bons avisos, venham d'onde
vierem, porque, um dia, quem sabe se nos serão pedidas contas?» Outros,
no entanto, diziam: «Este homem póde ser um impostor. Quem sabe d'onde
vem ou para onde vai? Quem lhe deu direito de nos ensinar? E porque não
hemos de dar d'este pão aos filhos de nosso amo? Nós comeremos tambem
d'elle.»
Dizendo isto, abaixaram-se a apanhar pedras, e remessaram-as contra o
caminheiro que se affastou.


APPENDICE


CAPITULO PRIMEIRO
PROVAS MYSTICAS DO INFERNO

I
Da auctoridade da Biblia
Ninguem nega que a Biblia contém brilhantes verdades; mas essas
brilhantes verdades não nos encantam por estarem na Biblia; em qualquer
parte onde as vissemos, as amariamos por seu natural resplendor. Da
natureza d'ellas, as encontrais nos escriptos dos antigos sabios. São
taes verdades como a noiva dos Cantares: a sua belleza é toda sua, e não
reflexa, e todo seu imperio lhes promana da formosura.
Porém, a Biblia tambem encerra pensamentos que, pomposamente vestidos,
nos tocam o espirito por inverso modo. Quanto mais os examinamos tanto
mais os regeitamos. Afóra a visinhança, nada tem commum com as
sympathicas verdades, entre as quaes se nos deparam. É-nos, todavia,
prohibido de as distinguir, e confiar em uns com desconfiança
d'outros; dizem-nos que tudo é verdadeiro, e verdadeiro com o mesmissimo
titulo, não porque sejam umas cousas mais ou menos persuasivas que
outras, mas porque se acham escriptas n'aquelle livro.
Dispensam-nos de procurar na Biblia o cunho interior que Deus gravou na
verdade para que a reconheçamos. Caracteres naturaes e distinctivos do
erro podem guiar-nos em tudo; mas na Biblia não. N'outros livros é
facultativo discernir o justo do injusto; para o quê temos regras
certissimas, e instrumentos agudissimos; mas é peccado querer julgar a
Biblia. Cumpre-nos, lendo-a, desconfiar do nosso coração, do nosso
espirito, de tudo, salvo d'ella. Assiste-nos o direito de dizer, como
Platão que Homero ultraja a divina magestade, quando mistura o Olympo
com as paixões humanas; porém, quando a Biblia glorifica a perfidia de
Jahel, e a cavillação de Judith, e o roubo e carnificina dos chananeos,
e faz collaborar Deus em tantas traições e morticinios, não nos é
permittido o duvidar. Se Isaias nos figura o Salvador de Israel calcando
o povo como o vinhateiro esmaga a uva no lagar, foliando sobre elle e
sacudindo com selvagem alegria os seus vestidos aspergidos de sangue,
não seu, mas dos homens, devemos dizer: _Amen!_ eis aqui o bom pastor, o
cordeiro de Deus, a mansa victima do Calvario, o Christo na sua gloria!
E quando o psalmista comparar o Senhor a um homem embriagado do vinho
que lhe redobra as forças e lhe faz expedir pavorosos gritos,
devemos sem escrupulo responder: Assim seja! Claro é que nenhum de nós
quereria similhar-se ao vindimador sanguinolento nem ao guerreiro ebrio;
ninguem ousaria assim fallar de Atila recolhido á tenda, com receio de
ser ouvido; mas similhantes confrontos que envileceriam Jupiter e
offenderiam o rei dos hunos, prodigalisal-os-hemos ao nosso Deus, em seu
templo, attendendo a que os prophetas sabiam melhor do que nós quaes são
os elogios que lhe prazem. Taes sujeitos nada diziam do seu chefe: tudo
que escreviam era o espirito santo que lh'o ditava, desde os successos
até ás expressões significativas d'elles. Ora ahi está por que tudo é
sagrado quanto a Biblia contém, e por que tal pensamento, que n'outro
livro trescalaria a impiedade, é, na Biblia, uma adoravel coisa. Ha
n'isso mysterio não menos profundo que o do inferno, se tentarmos
esclarecel-o; e tal mysterio, com que se quer demonstrar outro, promove
discussões que o catholicismo impugnou sempre, servindo-se d'isso como
arma contra os protestantes.
O catholicismo diz aos protestantes: Como sabeis que a Biblia é divina?
Conhecestes Moysés? Quando Deus lhe fallou do cimo da montanha, estaveis
presente? Passastes a pé enxuto o mar vermelho, ou bebestes agua da
rocha de Horeb? Quem vos affirmou que aquelle homem era propheta? Que
provas vedes na Biblia de que não é toda ella obra de homens? Milagres?
Outros livros os contam, e vos fazem rir. Verdades? Outros livros as
encerram sem que as imputeis ao Espirito Santo. Obscuridades?
Coisa naturalissima, sendo tantas em todos os auctores, e nos vossos não
menos. Quem sois vós, para que vos acreditemos, quando nos affirmaes
inverosimilhanças? Não vos conhecemos. Que caução nos dais? Sois
inspirados? Fazeis milagres? Vejamol-os. Não basta dizer: a Biblia é
divina; é mister proval-o irrefutavelmente. O numero dos vossos
partidarios não faz nada á questão. O livro dos Vedas, que se gosa do
foro de divino na Asia, é tão antigo como a Biblia, e não tem menos
sequazes. Se a Deus aprouvesse, communicar-se aos homens por meios
naturaes, como dizeis, fal-o-hia por lances de bondade, com o fim de os
unir, como filhos do mesmo pae, por que, a par e passo que melhor se
conhece Deus, mais se conhecem a caridade e justiça. Como é pois que
tantas nações, presumindo possuirem taes oraculos, em vez de viverem
unidas, luctam discordes, erigindo altar contra altar, injuriando-se,
perseguindo-se, e votando-se reciprocamente ás chammas eternas! O que as
divide é as obscuridades da Biblia; não é as verdades naturaes que lá se
vos deparam. Quem alumiará a escureza em que dizeis está Deus involto, e
no seio da qual os homens se dilaceram, desprezando naturaes e
luminosissimas verdades? Os judeus entendem as prophecias diversamente
do vosso parecer; e, tão de boa fé as interpretam, que sustentam a sua
opinião em desterros, carceres, fogueiras, durante seculos, fugindo, e
deixando rasto de sangue por toda a parte do mundo. Qual seita
protestante não arrancou da espada contra a sua irmã? Todas tem
tido martyres e verdugos. Isso não nos parece prova da divindade da
Biblia. Nem sequer lhe podereis provar a authenticidade. Os originaes
d'esse livro miraculoso onde param? Perderam-se, comeu-os a traça, como
succede por tempo a tudo que é obra de homens. Porção consideravel
d'esse antigo monumento acabou ás mãos dos hebreus, depositarios d'elle.
O que nos resta são reliquias. Se capitulos inteiros, de que apenas
sabemos os titulos, já não existem, quem vos auctorisa a pensar que os
capitulos subsistentes não foram alterados? Estariam elles a melhor
resguardo? Por quem? Por que? E como? Quem os copiou? Quem os traduziu?
Quem abona a fidelidade de tantos copistas, e a intelligencia e sciencia
dos traductores? Por que signaes se conhece qual é a melhor entre as
copias antigas, e entre as differentes copias antigas? Em qual traducção
confiaremos entre tantas diversas? Reportar-nos-hemos ao livreiro, ao
impressor, ou ao editor? A quem? A mortos desconhecidos, a vivos
ignorantes, ou a sabios sem missão e cuja sciencia nos é ainda
problematica? Pois que venha ahi quem quizer, e mostrando um papel
rabiscado exclame: eis-aqui a palavra de Deus! E sem mais nem menos
ponha-se a gente de joelhos! Á vista d'isso ninguem póde ser accusado de
idolatria. Se não tendes á mão outras provas da authenticidade e
divindade da Biblia, todo o homem cordato regeitará a Biblia, sem salvar
o Novo Testamento. O christianismo foi prégado antes da redacção
dos evangelhos, ás multidões que não sabiam ler. Quando essas prégações
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