Amor de Salvação - 09

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nossa infancia, ora por mim, dá-me a tua piedade, que nenhuma outra me
dá este mundo. Escreve-me, diz ao teu veneravel pae que me escreva.
Lembra-lhe os pardieiros das Taipas... Diz-lhe que o neto de Christovão
de Teive sente já no coração o corroer das ulceras que carcomeram a
pelle do emparedado. Amai-me ambos, defendei-me de mim proprio, que o
esteio da religião não póde com o peso de meus desatinos. Teu primo,
_Affonso_.»
Mandou Affonso lançar a carta na caixa postal. Um quarto de hora depois,
entrava Palmyra, fremente de raiva, com a carta aberta, exclamando:
--Isto é uma grande miseria, e uma grande infamia, snr. Affonso de
Teive! A minha dignidade vem pedir que esta affrontosa carta seja
reformada.
Affonso lançou mão da carta, e recuou horrorisado da villania de
Palmyra. Seccou-se-lhe a garganta e labios ao queimar d'um halito de
colera que lhe calcinava o peito. Não pôde fallar. Sahiu do quarto,
chamando a brados o criado a quem incumbira a remessa da carta. Já não
era criado de Affonso o miseravel que vendera o sigillo de seu amo pelo
ouro d'elle mesmo: fugira bem remunerado. No entanto Palmyra esbravejava
de sala em sala, soltando gritos pavorosos. Affonso, congestionadas as
fontes de sangue, e o coração em arrancos no peito, fincava os dedos nas
carnes da face, tapando os ouvidos para não ouvir os clamores da mulher
cuja furia recrescia á proporção do desprezo com que os proprios criados
lh'a escutavam.
Affonso de Teive sahiu aforrado como quem foge; foi lançar a carta por
sua mão; divagou horas no mais desfrequentado dos arvoredos do Campo
Grande. Ahi sentiu orvalhos do céo esfriar-lhe o afôgo da febre. Olhou
ao céo com mãos erguidas, e disse: «oh minha mãe!» Ao cahir da noite,
voltou a casa, e viu no pateo o _gig_ de D. José de Noronha. O seu
lacaio particular, antigo criado de sua mãe, acercou-se cautelosamente
d'elle, e disse-lhe:
--Fidalgo, não se afflija... Tenha animo, fidalgo, e não deixe fazer o
ninho atraz da orelha.
O chulo da phrase offendeu-o, e a intenção mysteriosa ainda mais.
--Que queres dizer, animal?--perguntou Affonso.
O criado coçou-se fechando os olhos, e respondeu:
--Lá em cima está o snr. D. José de Noronha.
--Que tem isso? não o tens aqui visto tantas vezes? Responde.
--Tenho, tenho, e Deus sabe se cá por dentro me não tem dado guinadas de
lhe partir na cabeça o _gig_.
--Por que? Vem cá... Entra n'esta loja commigo... Falla claro!--dizia
Affonso com suffocativa vehemencia--Que desconfias tu de D. José?
--Desconfio, fidalgo, que a snr.ª D. Palmyra não é fiel a v. exc.ª
--Mentes! mentes!--bradou Affonso--Prova-m'o, senão mato-te.
--Não ha-de matar, se Deus quizer, senhor morgado--volveu
tranquillamente o Tranqueira, nome que merece lembrado.--Faz favor de
tomar ar, e ouvir com socego. Estes negocios não vão assim de
afogadilho. Dê tempo ao tempo.
--Não é tempo ao tempo, é já, já, immediatamente. Diz o que sabes,
Tranqueira, que se me fende a cabeça.
--Fidalgo, ahi vai o que sei. O criado que fugiu esta manhã, sem que eu
lhe podesse pôr os dez mandamentos, foi cá mettido pelo lacaio da
senhora, e era lá muito collaço d'ella. Uns dias por outros, pisgava-se
do serviço o rapaz, e andava por lá quatro horas. Antes de hontem,
tirei-me dos meus cuidados, e fui-lhe na pista muito á socapa. Levei-o
d'olho até á rua de Santa Barbora, e lá esgueirou-se-me. Querem vossês
vêr que o diabo as arranja? disse eu cá c'os meus botões. Estará elle
mettido em casa do D. José de Noronha? Meu dito meu feito! D'ahi a menos
de tres credos sahia o malandro de casa do tal supplicante, e vinha anda
que anda por alli fóra. Sahi-lhe eu d'uma travessa, e disse: «Tu d'onde
vens, Antonio?» O patife engasgou-se, e nem p'ra traz nem p'ra diante.
Tate! disse eu, aqui ha tratantada. Se elle fosse a cousa boa dizia-o.
Puz-me a considerar no que havia de fazer. Eu se lhe digo que o vi sahir
de casa de D. José, espanto a caça, e fico por mentiroso, dizendo o que
vi a meu amo! Que hei-de eu fazer? Embucho o que sei; tomo á minha conta
espreitar a ama...--a ama! que a leve o diabo, que quem me paga é o
fidalgo!--espreito e se pilho a melgueira em termos, esbarronda-se o
negocio, e meu amo dá cabo d'este ladrão que o veio deshonrar a sua
casa.
Affonso, além da voz do Tranqueira, ouvia um zunido e fisgadas dentro do
craneo, como se lá se contorcesse e mordesse o cerebro um enxame de
vespas.
O criado continuou:
--Antes de hontem á noite appareceu aqui o D. José. Fui em palmilhas
atraz d'elle. Vi-o entrar na sala do tapete azul, e retirei-me assim que
vi v. exc.ª entrar tambem com a senhora. Desde então não tornou cá senão
agora; mas como lá está com elle outro amigo, acho que não tem duvida, e
por isso vim para aqui esperar o fidalgo. Aqui está o que eu sei, meu
amo. Bote lá as suas contas, e deixe-me dar uma carga de lenha ao tal
menino, se fôr preciso.
Affonso poz a mão direita sobre o hombro do Tranqueira, e disse:
--Obrigado, teu amo agradece-te os cuidados que tens com a sua honra.
Recommendo-te que não digas uma palavra a tal respeito. Ouves,
Tranqueira?
--Então isto fica em agua de bacalhau?--perguntou o criado, abrindo e
fechando as mãos.
--Já disse: nem uma palavra. Os teus cuidados agora passam para mim.
--Bem me fio eu n'isso!--murmurou o lacaio na ausencia do amo.
Affonso entrou no seu quarto; viu-se a um espelho: esperou que o rubor
da excitação se descorasse, compoz o semblante, e passou á sala onde
estavam Palmyra, D. José de Noronha, e um particular amigo d'este.
Palmyra, no sophá, tinha os braços em cruz sobre o seio, e a face
inclinada sobre elles. D. José de Noronha folheava sobre a jardineira as
_Mulheres de Walter-Scott_. O amigo estava sentado na poltrona contigua
ao sophá. Cortejou Affonso os dous cavalheiros, depois de estender a mão
a Palmyra, com tão demasiada ceremonia, que lhe não roçou as pontas dos
dedos. Esta acção, depois da lucta da manhã, pareceu naturalissima á
esposa de Eleuterio. Depois, achegou-se serenamente de D. José, observou
a _Flora Mac-Ivor_ do romancista escocez, concordou com D. José na
primazia da gentileza d'esta heroina, disse poucas mais palavras, e
pediu licença para recolher-se, obrigado por uma fortissima enxaqueca.
Tudo isto com um natural irreprehensivel.
Entrou Affonso no gabinete de Palmyra. Havia alli uma secretária de
mogno, com espelhos, cravejada de gavetinhas moldadas pelo feitio dos
antigos contadores. Tiradas as gavetas da primeira serie, encontravam-se
uns _falsos_ de segredo, conhecido d'elle, que fôra o primeiro possuidor
da engenhosa alfaia. Instigado pela suspeita, tirou Affonso pelos botões
da gaveta central: estava fechada, e as duas lateraes abertas. Concluiu
que a do meio segredava uma revelação. Procurou um ferro geitoso com que
fazer saltar a fechadura: serviu-lhe a ponta d'um punhal. Cedeu a fragil
lingueta, estalando. Tirou Affonso a gaveta, que continha joias: levou o
dedo ao imperceptivel botão que abria o _falso,_ e tirou dous macetes de
cartas, e uma solta. Abriu esta, e leu as primeiras linhas. Uma sombra
de duvida seria estupidez maxima. Dizia: _É preciso cuidado com o lacaio
de A. Encarou-me hontem de certa maneira... Emprega o nosso Antonio na
espionagem d'alguma suspeita. Amanhã vai commigo o D. A. M. se fôr
propicia a occasião elle sahirá a tempo. &c_.
Passou Affonso ao seu quarto para deliberar meditando. Que lance para
meditações! D'ahi a pouco ouviu o rugir das sêdas de Palmyra. Lançou-se
apressado sobre o leito, com a fronte entre as mãos.
--Estás melhor?--disse ella maviosamente.
--Não.
--Cuidei que estarias deitado. Que has-de tomar, meu filho?--Volveu
ella, inclinando-se ao rosto de Affonso--Que tomas de ceia?
--Nada.
--Estás ainda muito irado contra mim?--replicou ameigando-o.
--Deixa-me, que me custa fallar. Vai á sala, se está lá gente.
--Irei, se de nada te sirvo aqui, e de mais a mais te importuno. Ainda
lá estão aquelles maçadores... Logo voltarei a saber de ti.

XVIII
Voltou Palmyra á sala, e, momentos depois, reappareceu no quarto
d'Affonso, perguntando se D. José de Noronha e D. Antonio Mascarenhas
podiam, não incommodando, visital-o. Affonso respondeu, sem alteração,
que lhes agradecia o cuidado; mas, confiado na amiga familiaridade com
que o tratavam e eram recebidos, esperava que o deixassem estar em
silencio, a vêr se assim a dôr de cabeça se mitigava. Palmyra entrou bem
assombrada na sala, e disse a D. José: «Não ha que desconfiar. São
saudades de Mafalda, rebuçadas nas saudades da mãe.»
Entretanto, Affonso, lançando-se do leito, examinava os fulminantes das
pistolas... Seja elle o narrador d'este indescriptivel trance:
«Ao tempo em que eu revocava toda a minha reflexão para bem definir os
actos sequentes ao homicidio, senti no coração uma rija pancada, e, para
assim dizer, quasi apalpei ante meus olhos desvairados o vulto de minha
mãe. Depuz as pistolas, e ajuntei as mãos. Ainda agora me maravilha a
passagem rapida da vertigem, em que a minha honra me impunha matar o
infame, para a tranquilla consideração sobre a inefficacia do homicidio
como vingança da perfidia. Attribuo esta mudança inverosimil, segundo a
logica das paixões, a mais forte poder que o da alma humana. N'esta
suspensão, pedi ao espirito de minha mãe que me acudisse com o conselho
salvador. Não ouvi resposta alguma, nem o meu entendimento concebeu
algum designio. O que vi foi a imagem de Eleuterio, na sala da estalagem
de Barcellinhos, no momento em que, lavado em lagrimas, dizia á mulher:
«Castigada te veja eu, e Deus me vingue!»
«Eis aqui a resposta da alma bemaventurada; eis aqui as indirectas
respostas da Providencia.
«Entendi que soára para mim a hora da expiação, annunciada pela visão do
marido, cortado de angustias, superiores á minha. Faziam-se acceleradas
transformações em meu animo; todas, porém, estranhas ao primeiro intento
de matar. Lembrou-me fugir a occultas de minha casa, e esconder da
infame e do mundo a explicação da minha fuga. Acudia-me logo outra idéa
argumentando contra a miseria d'aquella. Lembrou-me propor a Theodora a
separação, reservando a razão da proposta. Não sei quantos projectos
disparatados ou irrisorios se atropellaram na minha pobre cabeça. «Serei
eu um covarde?» perguntava eu logo á minha consciencia. Vinha então
outra vez Eleuterio postar-se ante mim, e dizer á mulher que o fitava
com desprezo: «Castigada te veja eu, e Deus me vingue.»
«Desligado da menor premeditação, assalteou-me de repente uma idéa, cujo
alcance e desfecho eu não curei prever. Tirei dos bolsos as cartas de
Palmyra, encontradas no segredo da secretária, e dirigi-me á sala. Ao
sahir da porta do meu quarto vi um vulto a sumir-se na extrema do
corredor. Estuguei o passo, e o vulto parou. Era o meu criado
Tranqueira. Perguntei-lhe o que fazia alli. «Estou de plantão» respondeu
elle. Ainda agora, ou agora verdadeiramente, é que eu posso rir da
resposta e admirar o homem que a deu. Inclinou-se ao meu ouvido, e
continuou: «Como dei fé que o patrão se deitou, não quiz deixar o
negocio ao Deus dará: é o que foi.»
«Entrei na sala a passo mesurado, e quasi a subitas. Estava D. José ao
lado de Palmyra na mesma othomana. D. Antonio folheava as _Mulheres de
Walter-Scott_. Palmyra estremeceu, ao vêr-me assomar debaixo do
reposteiro. D. José, embrutecido pela surpreza, não se moveu da posição
denunciante da extrema familiaridade. Em minha presença, nunca elle se
assentára a par de Palmyra no mesmo estôfo. Voltando a si da
estupefacção de momentos, ia levantar-se, quando eu lhe disse:
«--Não se incommode, snr. D. José de Noronha. Está bem. Os meus amigos
em minha casa são os donos d'ella.
--Essas maneiras exquisitas, Affonso...--tartamudeou D. José, em quanto
Palmyra, perplexa ainda, manifestava sua duvida no abrimento da bocca e
esgazeado das faces.
«Não respondi á banal reflexão de Noronha. Voltei-me para D. Antonio, e
disse-lhe:--O snr. Mascarenhas é de mais aqui. _Se fôr propicia a
occasião, elle sahirá a tempo_--diz a carta do nosso amigo D. José. V.
exc.ª devêra já ter sahido.
«Relanceei de revez um olhar a Palmyra. Vi-a sobresaltada e livida,
agitando-se em convulsos movimentos, sem todavia se erguer do sophá. D.
José erguera-se, apoiando-se ao espaldar de uma cadeira. D. Antonio
encarava-me com ares de pavor. Eu continuei:--A figura do snr.
Mascarenhas n'este quadro é de mais. Queira sahir.
--Eu vou com D. Antonio--disse o Noronha.
«--Elle que o espere na rua--respondi, voltando levemente a cabeça sem o
encarar.
«D. Antonio tomou o chapéo com presteza, abaixou a cabeça a Palmyra, e
sahiu, cortejando-me.
«A mulher da estalagem de Barcellinhos voltou ao corpo de Theodora.
Eil-a em pé, com a serpente da soberba a enfuriar-lhe os gestos.
--Que significa isto?--exclamou ella--Acabemos esta situação sem grandes
scenas! Que vem dizer-me o snr. Affonso?
«Confessarei que me senti pequeno diante d'este cynico interrogatorio!
Que havia eu de responder á mulher, que rebatera com escarneo e
arrogancia as moderadas aggressões do marido? Com que direitos ia eu
alli, deshonrado, pedir contas de sua e minha honra, a ella que estava
perdida? E, se a infamia era commum de ambos, por que ambos eramos
criminosos, que falsos brios tinha eu por mim a inspirar-me uma resposta
digna d'aquellas perguntas? Sómente assim posso agora dar-me contas de
minha mudez de então.
«E ella, acorçoada pelo meu espantado silencio, proseguiu:--Abjurei dos
deveres da honra, perdi-me, atirei-me cegamente aos seus braços, snr.
Affonso de Teive. Satisfiz os seus caprichos, favoreci-lhe o orgulho de
ter uma odalisca no seu palacio, prestei-me a enfeitar de falsos risos o
meu semblante, mostrei-me ao mundo com o ar alegre da escrava que
idolatrava a sua servidão, em quanto o snr. Affonso, enlevado nos ideaes
amores d'uma prima...
«--Infame!--atalhei eu--Se tem de citar nomes de mulheres no seu
arrazoado, procure-as, se as conhece, nas derradeiras paragens do
vicio!... Não suje o nome de mulher alguma; toda a mulher, não cahida na
ultima abjecção, impõe respeito á amante de D. José de Noronha,
hospedada em casa de Affonso de Teive.
--Bem!--exclamou ella--a amante de D. José de Noronha agradece a
hospedagem, promette mesmo pagal-a da altura da sua independencia, e vai
sahir, impondo silencio ao insultador.
«--Pois saia--tornei eu--mas leve comsigo o esterco com que sujou a
minha casa!--e, dizendo, atirei-lhe ao rosto os macetes das cartas.
«Palmyra, como se um aspide lhe mordesse um pé, deu um salto de fera
enjaulada. D. José de Noronha tremia.
«E eu continuei, voltado contra elle:--A infamia é assim: tem esses
desmaios de covardia, que desarmam o odio, e levariam á piedade, se o
nojo não estivesse áquem da virtude da compaixão. Snr.ª D. Palmyra, aqui
tem um paladino, que a não ha-de deixar corar sem desforço diante dos
seus insultadores. Siga-o. Tem uma sege ás suas ordens, se o seu pudor
lhe não permitte entrar no carro do amante. Em quanto ao snr. D. José de
Noronha, saia, e espere-a na rua.
Palmyra fugiu da sala em arremettidas de louca. D. José sahiu com o
rosto abatido sobre o peito. E eu cahi extenuado sobre uma cadeira,
cuidando morrer alli afogado de congestão de sangue no coração. D'ahi a
momentos ouvi o gritar estridente de Palmyra, e um grande reboliço no
pateo. Quiz debalde levantár-me. As pernas tremiam-me como se todos os
nervos me estivessem golpeados.
«Abaterei agora a linguagem tragica do successo para te narrar o que se
passava no pateo.
«O Tranqueira, posto de plantão, como elle dissera, não sahiu da sala de
espera, ou do proximo corredor. Momentos antes da sahida de D. José,
descera elle ao pateo. Quando o aturdido infame ia passando, sahiu
Tranqueira do seu quarto com a lanterna do serviço das cavalhariças.
Avisinhou-se de D. José, metteu-lhe a luz á cara, e disse-lhe: «O
fidalgo, se me não engano, leva a sua pontinha de febre!... Acho-o muito
vermelho; e não será mau refrescar-lhe a cabeça. «Disse, depoz a
lanterna, sobraçou-o pela cintura, fincou-lhe a mão esquerda no gasnête,
levou-o de borco sobre a cisterna do deposito d'agua para os cavallos, e
baldeou-o dentro, exclamando: «Ha-de ir fresco, ha-de ir fresco, seu
alfacinha!» Os outros criados ainda quizeram valer-lhe; mas Tranqueira
desfizera-se do jockey de D. José, rechaçando-o com um pontapé tangido
por furia, digna de melhor adversario. O desgraçado cahira de cachapuz,
e lográra logo romper com a cabeça á flôr d'agua; mas do pescoço abaixo
ficou empoçado, sem poder marinhar aos bordos da cisterna, á mingoa de
pega onde afincar as unhas. O instincto da vida vencera o da vergonha.
D. José gritava, e o Tranqueira, dando-lhe as boas noites, fôra para a
cavalhariça arraçoar os cavallos. Os brados chegaram aos ouvidos de
Palmyra, a tempo que o jockey se erguia do pontapé que o desintestinára,
para, muito a custo, acudir ao amo. Desceu Palmyra anciada ao pateo, no
momento em que o eleito de sua alma, na bocca da cisterna, sacudia as
bicas d'agua, e tiritava estalejando as maxillas.
«Fulminou-a o ridiculo! Só o ridiculo podia sossobrar aquella alma de
tempera, feita para reagir a todos os embates. Retrocedeu do portão para
o escuro do pateo. Nem a commiseração lhe deu alentos para se aproximar
do ensopado moço. Odiou-lhe talvez a covardia n'aquella hora. Odiou-se
talvez a si propria. Não sei. Avisaram-me que ella estava prostrada, e
sem sentidos, no lagêdo do pateo. Dei ordem ás criadas que a
transportassem ao seu leito. Minutos depois, abandonei a minha casa,
levando commigo o criado que me vira nascer, o unico homem diante de
quem eu podia chorar.

XIX
«No dia seguinte, mandei de Cintra o criado a casa, informar-se dos
successos decorridos... Quererias tu... agora penso que tu desejas saber
como foi aquella minha noite... Passei-a na ida para Cintra. Quer-me
parecer que parte de minhas faculdades moraes ia atrophiada. Volteavam
em redor de minha intelligencia uns corpos, ora negros como o recesso
dos abysmos, ora igneos como as fitas dos coriscos. Nem a memoria de
minha mãe se mesclava ao revolutear das minhas concepções
desconcertadas. Era a febre, a procella do sangue encapellada na cabeça.
O criado teve o instincto de comprehender-me. Raras palavras me disse
com resposta. Algumas vezes senti-me aferrado pelo seu braço; era quando
eu ia despenhar-me do cavallo, sem dar tento da vertigem.
Contava-me elle depois que eu, a intervallos longos, expedia gritos que
lhe eriçavam os cabellos, e vociferava insultos, esporeando
freneticamente o cavallo.
Aqui tens a minha noite: não tenho outras memorias. Apenas me recordo
que aos primeiros assomos da manhã se romperam os diques das lagrimas, e
chorei por muito tempo.
O criado partiu de Cintra com ordem de colher noticias. Voltou,
entregando-me um papel aberto, que o escudeiro lhe dera, escripto por
Palmyra. Era uma declaração de divida indeterminada, ou que havia de
fixar-se pela avaliação dos objectos de seu uso, que ella, ao sahir de
minha casa, levava comsigo. Deviam ser vestidos e joias. Palmyra, por
tanto, havia sahido na manhã d'aquelle dia.
Ao entardecer, quando a tristeza cahia do céo, como um lucto de almas
não já desditosas, mas ainda arraiadas do iris da esperança,
confrangeram-se-me em dôr ineffavel as fibras do coração, dôr de saudade
voracissima, saudade de Palmyra, desejo ardente de vêl-a não sei se para
cahir-lhe de joelhos aos pés, se para escarrar-lhe no rosto. Nenhum
allivio pedido a todas as potencias de minha imaginação, pedido a Deus,
e ao amor de minha mãe, nenhum conforto experimentei. Era a
desesperação, que pensa no suicidio. Deitei-me, confiado na esperança de
cahir em lethargia de sentidos. Revolvi-me sobre espinhos em incendio
febril. Se algum instante o sopor me desfallecia, pulava-me o coração
com tamanho impeto que eu espertava convulso, atirando-me do leito
contra a janella, em agonias de estrangulado. O maximo horror das minhas
visões era ella, nos braços d'aquelle miseravel, áquella hora. As
minimas circumstancias d'um espectaculo de devassidão, as mais secretas,
e lubricas minudencias se me traçavam patentes a uma claridade infernal.
A oração, esse divino desabafo de enormes afflicções, nem esse bem me
valia um relampago de socego á alma. Começava orando, a anciedade
recrescia, a fé desamparava-me, e então sobrevinha o desprezo de Deus, a
negação da Providencia, e um feroz deleite de blasphemar. Eu amava a
mulher abysmada, a mulher prostituida! Eu, santo Deus, com instinctos
tão nobres, educação tão religiosa, e respeitos tão profundos á
dignidade! Pensava-o eu assim; dava-me eu então os epithetos usurpados á
honra!... Eu que me infatuára perante o mundo de acorrentar á minha
vaidade a mulher formosa, em cuja fronte a moral escrevera um estigma,
que eu cobria de brilhantes e flôres, cuidando que a sociedade havia de
respeital-a assim, e humilhar-se diante da minha affrontadora opulencia!
Eu, verme esmagado, ousar pedir contas a Deus da iniquidade do seu
arbitrio, e renegal-o como ente inutil ao remedio da minha desgraça!...
«Mal me entreluziu a manhã, fiz apparelhar os cavallos, e voltei para
Lisboa sem proposito feito. Durante a caminhada, o meu velho Tranqueira,
em quanto as cavalgaduras se desfadigavam, acercou-se de mim com os
olhos envidrados de lagrimas, e disse a medo: «Meu amo, vamos embora de
Lisboa; vamos para a nossa terra, que Deus e a Virgem Maria dará
remedio.» Não respondi; mas pensei. A quietação da minha aldêa
convidava-me; porém, entrando em espirito no interior da minha casa de
Ruivães, ouvia com pavor o som dos meus passos n'aquellas salas
desertas: faltava-me minha mãe alli: o anjo consolador fugira antes do
meu resgate. Acudia-me á lembrança a minha triste Mafalda, a irmã terna,
a meiguice da virgem compadecida; porém o meu coração, a porejar o
esqualor da sua hedionda chaga, rejeitava os balsamos d'um affecto
purificador.
«O tumulto das grandes cidades, com o seu engodo, attrahente da desordem
da vida, quadrava mais á minha alma sedenta de não sei que filtros de
lagrimas e sangue. Estava traçado o meu plano, quando cheguei a Lisboa.
Qualquer resolução sacode o mais paralysado espirito. Senti-me forte
para entrar em minha casa. Fui ao gabinete de Palmyra, e abri as suas
gavetas despejadas de todas as cousas d'algum valor. A minha razão
logrou um momento de lucidez: afigurou-se-me rasteira a indole de uma
mulher, que, em conflicto de tamanha vergonha, tivera animo para se
andar por suas proprias mãos enfardando vestidos e enfeites, no intento
de vestir as galas seductoras de amantes novos. Refugi como envilecido
dos aposentos de Palmyra. Fui ao meu quarto. Fiz encaixotar as minhas
roupas. Guardei a correspondencia de minha mãe e de Mafalda. Queimei os
restantes papeis, excepto as cartas de Theodora das Ursulinas. Por quê?
Nem eu sei. Queria aquellas memorias da creança que então morrera...
--«Chamei os criados, e despedi-os. Mandei fechar as portas ao meu
Tranqueira, e, n'esse mesmo dia, expedi ordens para a venda de
carruagens, cavallos, e mobilia. Alguns amigos conseguiram rastrear a
minha residencia obscura n'um hotel inglez em Buenos-Ayres.
«Procuraram-me, e eu não os recebi. A minha vaidade envergonhava-se
d'elles. Nem a despedaçadora curiosidade de saber o destino de Palmyra
pôde vencer o orgulho escarnecido.
«No fim de nove dias, recebi carta de Mafalda, respondendo á minha.
Eil-a aqui: «Ambos te queremos do coração, Affonso. Meu pae não diz a
teu respeito palavra de censura: chama-te infeliz, e mais nada. Quando
tua mãe dizia em ancias: «perdi meu filho!» o meu bom pae ajuntava
sempre: «elle virá, minha irmã, que a sua indole é boa.» Mostrei-lhe a
tua carta, e vi-o chorar; pedi-lhe que te escrevesse, e elle disse-me:
«escreve-lhe tu, com a benção de teu pae; diz-lhe que o amas sempre: eu
dou-lhe o amor da minha Mafalda, consinto que ella o ame; é o mais que
posso dar-lhe.» Estas palavras escrevo-t'as por sua ordem, e desconfio
que são inuteis para a tua felicidade. Ainda assim, em quereres a nossa
amizade, primo Affonso, nos dás grande satisfação.
«Vejo que vives muito amargurado, desde que morreu a nossa chorada mãe.
Se te mortifica o pezar de não ter vindo assistir-lhe á morte,
tranquillise-te a certeza de que ella te perdoou. Bem sabes que santinha
e que mãe ella era. Eu fui lêr á beira da sua sepultura a tua carta.
Li-a em voz alta, cortada de gemidos. Depois orei muito, e levantei-me
de ao pé d'ella tão desopprimida e satisfeita que tomei por instincto do
céo a minha alegria. Póde ser que esta carta vá encontrar-te no gozo do
allivio que eu senti então.
«Bom seria, meu primo, que tu mandasses cuidar um pouco nos negocios da
tua casa. Meu pae faz o que póde, e dirige o teu procurador; mas receia
de não zelar os teus interesses como queria por falta de saude, e pela
distancia em que vivemos de Ruivães.
«Adeus, meu querido irmão. Cuida em ser feliz, e lembra-te com amizade
da tua _Mafalda_.»
«Respondi logo a esta carta, participando a minha prima que ia sahir
para Pariz, no proposito de assentar alli a minha residencia. Expressões
affectuosas escassamente lhe disse as vulgares, as necessarias á
formalidade de relações entre primos que se estimam. É que eu via em mim
o aviltado homem que estava sendo, e de Mafalda mesmo tinha eu um certo
pejo, vaidade ainda, a vaidade do homem que se julga desapreciado aos
olhos de uma mulher, que o vê rejeitado d'outra, embora villissima,
embora repulsada da sociedade de mulheres aptas para honestamente
avaliarem o merecimento do homem desprezado. Eu não queria nem podia,
coberto de infamia por Palmyra, ir acolher-me ao amor de Mafalda. E
depois, e sobre tudo, meu amigo, bem que eu quizesse, não poderia amal-a
então como a teria amado quinze dias antes, insuspeitoso da lealdade de
Palmyra. Sabem os experimentados, poderás tu sabel-o, que é uma excepção
d'almas futeis a passagem rapida d'uma affeição a outra, quando nos pesa
o opprobrio d'uma perfidia. O coração está lanhado, a fronte não ousa
erguer-se para a mulher do amor de salvação, a dignidade geme sob um
peso de vilipendio, que cuidamos lêr nos olhares affrontadores de todo o
mundo, olhares que por vezes exprimem compaixão. Mas o que é em casos
taes a piedade, senão injuria?!
«Escrevi ao meu procurador ordenando-lhe a venda de todas as minhas
propriedades, salvando a casa e quinta de Ruivães. Na volta do correio,
avisou-me elle de que havia comprador prompto; e, poucos dias depois,
recebi ordens de pagamento de trinta mil cruzados. Com estas ordens,
vinha carta de meu tio Fernão de Teive. Dizia assim: «Tua prima está
enferma, por isso não te escreve; e eu tambem adoentado e tristonho mal
posso escrever-te. Recebemos a nova da tua mudança para Paris. Vai com
Deus, Affonso. Póde ser que a tua felicidade lá esteja. Folgo de te vêr
ir desligado da personagem que, segundo me dizem, foi a final o que era
rigoroso que fosse. Diante da mulher perdida todos os homens são iguaes.
Quereres tu o privilegio que o marido não teve, seria um absurdo do teu
orgulho. Theodora está em Braga promovendo o divorcio a fim de
levantar-se com o seu patrimonio. O Eleuterio, por intervenção de um meu
compadre, quiz que eu entrasse como ouvinte e conselheiro em suas
cousas. Aceitei o convite como quem tem pouco que fazer, e passa as suas
horas na cama a agasalhar a gôta. Sou o depositario do borrador das
cartas que ella te escrevia, seductoras em verdade, e dignas de irem á
estampa. Onde foi esta mulher aprender tanta palavra?! Estou em dizer
que anda aqui muito amor de diccionario; e os successos posteriores
levam-me a crêr que era ainda peor o amor da creatura. Aqui estou eu a
fallar comtigo á laia de rapaz! e o caso é que a dôr do calcanhar
esquerdo espalhou.
«O teu procurador avisa-me que vendeu as tuas quintas de Leiroz e
Gestal. Para te não dizer cousas tristes, e evitar que torne a dôr do
calcanhar, ponho aqui ponto. Mas sempre te direi, como irmão de tua mãe,
e teu amigo devéras, que, exhaurido o teu patrimonio, tens a minha casa.
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