Amor de Salvação - 08

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Salvação_--concluirei a historia, e irei depois purificar meus labios no
rosto de meus filhos.
--Theodora--continuou Affonso--quando quiz abrir os olhos, arrancou-se
dos meus braços, exclamando:--Repelle-me, que eu sou indigna de ti.
Agora reconheço a minha miseria, agora que te vejo, ó Affonso, ó anjo da
minha infancia, que eu deixei fugir para o seio da mulher digna, da
mulher pura, da creatura perfeita para quem tu nasceste!...
--Ha ahi muito estylo--interrompi--A mulher compunha! Vê-se que leu e
aproveitou. O deputado de Braga é que tinha olho de D. João de Maraña
para as mulheres de letras. E depois?
--Eu venci o espaço que ella deixára recuando e abracei-a. N'este
movimento, senti nas faces o contacto dos caracoes desfeitos. Osculei-a
na fronte...
--Gosto--atalhei--do comedimento honesto da palavra... _Osculei-a_...
sim, senhor... Assim é que um pae de oito filhos conta a historia dos
seus beijos. E ella tambem te osculou?
--Sofregamente, doudamente, segurando-me a face pelos cabellos.
--Isso tambem é de rigor theatral. A mulher conhecia a scena!--perdôa as
interrupções. De proposito as faço para te dar azo a inspirares fôlego
novo, visto que já te afadiga o conto. E vai depois...
--Rebentou-me a bolhões do peito a eloquencia da paixão. Era uma alma
virgem que se abria. Abria-se um thesouro intacto, d'onde nem sequer
tirára uma palavra para mentir a outra mulher. Ella entrecortava-me,
sorvendo-me as expressões nos labios, ou abafando-m'as no seio
palpitante e ardente como o arquejar estuoso do vulcão. Este lance
febril, de minutos no viver de meu espirito, absorvêra uma hora, segundo
a vida do tempo...
--E depois--acudi eu--começaram a tratar de assumptos circumspectos com
discreta serenidade.
--Contou-me ella que o marido, com ar de _tyranno tolo_...
--A phrase é d'ella, _tyranno tolo_?--perguntei.
--É. Desgostar-me-hia o tom zombeteiro com que me ella fallava do pobre
homem, se eu não estivesse...
--Corrompido--conclui--Querias dizer isto?
--Era isso verdadeiramente. Dizia, pois, ella que o marido lhe fallava
em correspondencias de Lisboa, mordendo o beiço, ou esgaravatando nos
pavilhões dos ouvidos, costume d'elle, quando os ciumes lhe faziam
prurido nas orelhas.
--Disse-t'o assim ella?--interrompi com a mais ingenua irritação.
--Disse-m'o assim, com pouca differença, mezes depois, quando eu estava
mais corrompido que ella para provocal-a ás originalidades da sua veia
sarcastica: do que me confesso em opprobrio meu. Delineamos o nosso
futuro. Foi ella quem o programmou. Iriamos para longe. Propuz Lisboa,
ou Madrid, ou Paris. Quiz Lisboa, no intento de requerer divorcio. A
fuga teria execução antes de oito dias. Eu ficaria em Barcellos,
disfarçado, occulto, durante o dia. Á meia noite apearia a um oitavo de
legua de Tibães. Theodora estaria no seu gabinete de estudo, e as
vidraças coariam a luz da sua lampada, companheira das lucubrações
intellectuaes, insuspeitas ao marido. Referendado o programma e
rubricado com um osculo (repara, que não me descomponho) ouvi estropeada
de cavallo na rua. Momentos depois...
--Querem vêr que chega Eleuterio!--atalhei com alvoroço e alegria
parvoa, senão cruel.
--Eleuterio Romão dos Santos, em pessoa, tropeando nas escadas que
subiam para a sala, onde nós estavamos tranquillos como Paulo e Virginia
(perdoai-me santas almas a comparação!) nos rochedos de S. Domingos!
Agora tu, Caliope, me ensina a contar o successo estranho!... Eleuterio
viu ainda o desencadearem-se os braços de Theodora do meu pescoço.
Parou, estacou, empederniu-se, estupidificou-se no limiar da porta.
--E Theodora? narra-me da esposa surprehendida; que fez ella?--perguntei
com inquieto empenho.
--Theodora, pendidos os braços, fitou Eleuterio com sobranceria, deu
dous passos, postou-se diante de mim, e disse, voltada para o marido:
--Que me quer? A minha alma é livre.
--Esperava outra cousa eu! Isso parece-me estupidamente immoral. É caso
novo e feio esse! E tu, que fizeste tu?
--Nada.
--Dos tres é quem andaste melhor. Parabens! E elle, o marido, que fez
depois? que respondeu á Panthasilea?
--Respondeu que lhe ia dar cabo da casta, e tirou uma luzente podôa de
dous gumes do bolso interior da judia.
--Uma podôa! Outra novidade! E arremetteu com ella?
--Quando elle sacou do ferro, passei para a frente de Theodora.
--Desarmado?
--Desarmado: as pistolas estavam no meu quarto. Mas a Panthasilea
virgiliana, como tu apropriadamente a denominas, repelliu-me com um
braço, e mostrou na extremidade do outro uma pistola abocada ao peito do
marido.
--Novidade terceira!--acudi eu, quasi suspeitoso da logração do
conto--Tu não estás inventando, Affonso?
--É inepta a pergunta; mas perdoavel. Não invento, meu amigo. Conto
verdades que me entristecem. Recordar-me agora do gesto consternado do
marido d'ella, punge-me devéras. Tremia-lhe o ferro na mão ameaçadora, e
já o rosto se lhe estava banhando em lagrimas. Desceu o braço
quebrantado por agonia mais lacerante que a ira, e fitou em mim os olhos
chammejantes. De mim, relanceou-os á mulher; e, desafogando a custo as
palavras, disse:
--Castigada te veja eu, e Deus me vingue!
--Não esperava eu que elle dissesse isso. Ha concisão e angustia suprema
n'esse appellar a Deus--reflecti eu condoido, não obstando têl-o visto,
como fica escripto, no arraial de S. Braz de Landim, annos antes, em
geito de muita felicidade, e grande frescura de animo e coração--E
continuei no meu impertinente interrogatorio, tendo em vista que o
leitor fosse bem informado:--Eleuterio, depois, sahiu, ou que fez?
--Chorou, embebeu as lagrimas no lenço, e disse: «Eu não te obriguei a
ser minha mulher. Se casaste foi por que quizeste. Se tinhas outra
inclinação, não dissesses a meu pae que me querias.»
--Que impressão fizeram em ti essas palavras tão simples e
sinceras?--perguntei.
--Má impressão!--respondeu Affonso de Teive--pessima impressão! Desviei
involuntariamente os olhos d'ella: a razão sahiu por momentos do seu
chiqueiro, e teve dó da alienação da minha pobre alma. Eleuterio, por
ultimo, rematou assim: «Não tenho mulher. Vou para minha casa, e vai tu
para a tua.» E sahiu. Theodora voltou-se para mim, atirando a pistola
sobre a mesa, e disse: «Estou livre. Aqui me tens, Affonso. Aqui está a
tua Palmyra, com o virgem coração que lhe conheceste, mais valioso do
que era, mais depurado dos instinctos maus, graças aos trabalhos que me
angustiaram a vida. Queres-me assim, Affonso?...
--Abraçaste-a fervorosamente, convulsamente--interrompi eu.
--Não: disse-lhe com uma falsa graça no rosto:--quero-te assim:
partiremos hoje mesmo para Lisboa. «E os meus fatos, as minhas
joias?--perguntou ella--Tenho brilhantes que eram de minha
mãe.»--Deixa-os. Terás brilhantes, se elles forem precisos á tua
felicidade--«A minha felicidade!--exclamou Theodora, ajoelhando-se-me de
mãos postas--a minha felicidade é uma choça comtigo, no ermo, no
isolamento de todos os prazeres da sociedade»--Ergui-a com amor.
Tocou-me o contraste d'aquella humildade com a arrogancia da resistencia
ao marido.
--A esta procella de commoções violentas, seguiu-se um intervallo de
silencio morno, concentração por ventura dolorosa em que os nossos
olhares mutuamente se interrogavam. Eu via minha santa mãe, e a
purissima imagem de minha prima. Theodora não sei o que via: póde ser
que estivesse lendo a pagina negra do seu destino, voltada pela mão do
Senhor. Eu de mim esforçava o contentamento no rosto: os olhos viam-na
embellezados; o ambiente escaldante que ella aquecia com o seu halito
coava-me lume até ás medullas dos ossos; mas o formidavel grito da moral
repercutia-me no senso intimo da minha queda. Desgraçadas e atrozes
ligações as que principiam assim! É que a sentença da justiça divina foi
já lavrada.
Theodora abriu a janella da sala e aspirou com força; encostou-se ao
peitoril, com os olhos cravados nos cabeços da serra da Tranqueira.
--Em que meditas, Palmyra?--perguntei-lhe eu.
--Em minha mãe, que era virtuosa como a tua--respondeu ella.
Esta dôr nobre, tão singelamente revelada, fez-me bem ao coração.
Commoveu-me aquelle dizer de _mulher_, no tom da maviosa feminilidade
que sôa tão brando e compadecedor nas almas de rija tempera, como era a
minha. Fallamos de nossas mães, e com tantas caricias de expressão
saudosa, que terminamos, beijando um do outro os olhos cheios de
lagrimas.
No mesmo dia, por volta da tarde, sahimos caminho de Lisboa.

XVI
Volvido um mez sobre os successos descriptos, Affonso de Teive e
Palmyra--que nunca mais se chamou Theodora--viviam n'um palacete ao
Campo Grande, por ser entrada a sazão estiva.
O interior esplendido da casa sobreexcedia o exterior magestoso. Nas
cavalhariças escarvavam, arrifavam e relinchavam os cavallos de trem e
de passeio. No pateo, os lacaios limpavam e bruniam os arreios, e as
equipagens. Sentia-se o respirar da felicidade, como escondida das
invejas do mundo, n'aquelle magnifico aposento. O dono d'ella gozava-se
da fama de opulento fidalgo do Minho; porém, o thesouro, que a publica
admiração mais lhe encarecia, era Palmyra.
Frequentavam a casa de Affonso de Teive alguns dos amigos, que D. José
de Noronha lhe dera, moços da primeira fidalguia. Ao verem a mulher, por
quem Affonso desprezava todas, acharam e disseram, sem lisonja, que elle
tinha soffrido e amado pouco. A espectativa de D. José fôra
surprehendida pelo excedente d'uma formosura, graça e talento, não
imaginados. Estes gabos, porém, proferidos a medo na presença d'ella,
eram tão respeitosos e aferidos no padrão do melindre palaciano, que
Affonso de Teive, nem por sonhos, aventou a possibilidade d'uma intenção
desleal do amigo. Palmyra, por sua parte, quando os seus hospedes e
convivas, no mais accêso dos brindes em lautos banquetes, lhe
balanceavam o incensorio dos louvores, baixava os olhos, inclinava a
cabeça, e mostrava aceitar resignada o incenso, em obsequio aos
thuribularios.
Era aquella a atmosphera inebriante dos anhelos da morgada da Fervença.
Lembranças de sua vida conjugal em Tibães afastava-as com repulsão.
A imagem de Eleuterio fazia-lhe vergonha de si mesma. Tornou-se
desnecessaria a leitura ao recreio das suas noites. Preferia, á falta de
theatros, passear a cavallo ao clarão da lua, ladeada de Affonso e de D.
José de Noronha, a mais intima e feliz testemunha dos prazeres de
Affonso. Tinham noitadas de estenderem a Cintra os seus passeios, ora
serenos e contemplativos, ora em correria vertiginosa, á vontade e
capricho de Palmyra, cujo cavallo negro ella denominára...
--Eleuterio?!--perguntei eu, cuidando que adivinhára, quando o meu amigo
chegou a esta altura da historia.
--Não, nem tanto...--respondeu Affonso--chamava-lhe _Lucifer_.
--Que desprezo do monarcha do inferno! Parece-me que Palmyra não tinha
virtudes para zombar assim do personagem que provavelmente lhe ha-de
pedir eternas contas da nomenclatura do quadrupede!
Vamos no proseguimento d'esta celestial felicidade, em que o inferno
apenas lembrava em virtude do nome do cavallo.
No termo de um anno, Affonso de Teive tinha escripto, a largos prasos,
pouquissimas cartas a sua mãe. N'outro relanço viria mais bem cabido o
fallar-se da virtuosa senhora e da angelical Mafalda. A promiscuidade
faz-me susto de vituperal-as. Mas é preciso dizer que D. Eulalia, em
cumprimento da sua promessa, remettia ao filho as quantias avultosas que
elle exigia, e o producto d'uma quinta de sua legitima paterna, logo que
Affonso lh'o determinou. Fernão de Teive comprára a quinta
clandestinamente por intervenção do seu mordomo. O ouro entrava em
torrentes n'aquella voragem, d'onde retornava em carruagens, em
baixellas, em festins, em sêdas e brilhantes, em apostas soberbas no
jogo, em extravagancias de soada fama, em emprestimos aos commensaes. No
decurso dos doze mezes, apenas Fernão de Teive mandou um triste _memento
homo_ ao reboliço d'aquelles jubilos. Eram estas palavras unicamente:
«Lembra-te, Affonso, de teu tio-avô Christovão de Teive.» Affonso sorriu
e perguntou a Palmyra se lhe via signaes de lepra. A jovial creatura,
informada da intencional allusão, cascalhou umas risadas de que muito se
compraziam os ouvidos do amante, as quaes, no dizer de D. José de
Noronha, tinham uma alegria contagiosa, que faziam bem aos infelizes.
Affonso não respondeu ao velho de Fonte-Boa; mas, n'uma hora de solidão
em seu particular gabinete, sommou as parcellas hauridas de sua casa, e
espantou-se; calculou a quantia necessaria para vinte annos de vida, e
descobriu que no fim de dez annos devia estar morto, para não pedir
esmola aos parentes. Levantou-se pensativo d'esta operação arithmetica;
sahiu do gabinete; e encontrou Palmyra a lembrar-lhe a conveniencia de
arrematar um camarote de S. Carlos, que estava a lanços. Affonso
respondeu tristemente: «Pois sim.» Palmyra não viu linha alguma
extraordinaria no rosto do amante: beijou-lhe os olhos, e disse: «És um
anjo!»
Desde aquelle fatal dia dos calculos sobre as despezas de vinte annos,
Affonso scismava a miudo nos dez que restrictamente lhe offereciam os
seus presumptivos cabedaes, contando já com o fallecimento da mãe.
«Infame clausula dos meus calculos!» dizia elle com os olhos a reverem
lagrimas de remordente remorso, treze annos depois.
Palmyra, a final, deu tento da melancolia de Affonso; e ainda antes de
consultar-lhe a causa, perguntou se a não amava já. O interrogatorio
affligiu o moço. Reconheceu que faltavam n'aquella mulher as sérias
qualidades de espirito para lhe escutar o motivo de suas abstracções, em
meio dos favores da fortuna.
Manifestou Palmyra o seu insoffrido orgulho. Similou um recolhimento de
amargura cavillosa. Pranteou-se, perguntando ao céo, em attitude
tragica, se a expiação começava tão cedo. Affonso acariciou-a, já
condoido d'ella, e revelou, com desdem de seus proprios temores, a causa
mesquinha d'elles. Palmyra observou-lhe que a fortuna d'ella, a sua
parte, excedia o valor de vinte e cinco contos, e propoz-lhe requerer-se
divorcio, desde logo. O bizarro moço recusou a proposta, ajoelhando em
espirito, á generosa offerta de Palmyra.
Passou a nuvem. Requintaram os gozos e as despezas. Projectaram-se
passeios ao estrangeiro. D. José de Noronha era grande parte e
conselheiro n'estes prospectos de recrescente felicidade. Lembrou
Palmyra a semana santa em Sevilha. Foram a Sevilha, detiveram-se por
Hespanha dous mezes até presentirem uns longes de fastio. Voltaram a
Lisboa no ante-gosto de planeadas excursões á Italia. Affonso de Teive
entrou no seu escriptorio, em busca de cartas, e abriu primeiro uma das
duas de Mafalda, antes que Palmyra o surprehendesse a lêl-as. Rezava
assim a primeira:
«Meu primo. A nossa mãesinha está muito adoentada, e causa receios ao
medico de Braga, que vem aqui todos os dias. Não me authorisou a
chamar-te; mas eu, depois de consultar meu pae, resolvi participar-te
isto, e pedir-te que venhas vêr esta santa. Ella não cessa de chorar e
rogar a Deus por nós. Vem pedir-lhe que, ao sahir d'este desterro,
continue a pedir no céo por ti, por mim, e por todos os infelizes. Tua
prima, _Mafalda_.»
Era datada esta carta em 6 de Abril de 1852.
A outra, datada em 18 do mesmo mez, continha o seguinte:
«Meu primo. Acaba de expirar tua mãe. São cinco horas da manhã.
Morreu-me nos braços. Dava tres horas o relogio, quando ella disse que
havia de expirar quando raiasse o dia. Assim foi. Fallou de ti até á
ultima, e ordenou-me que te mandasse uma carta, que ella escreveu no
segundo dia de sua enfermidade. Admirei que não me respondesses ao menos
á que eu te escrevi então. Deus sabe o que vai na tua vida. A santa lá
está no céo: ella conseguirá o que fôr melhor para ti, em conformidade
com os decretos do Altissimo. Aqui está meu pae a cuidar n'estes tristes
preparativos para o enterro. Já dobram os sinos. Não me deixam escrever
as lagrimas. Adeus, Affonso. Tua prima, _Mafalda_.»
Affonso, concluida a leitura d'esta segunda carta, bradou: «Meu Deus,
meu Deus!» e cahiu de joelhos, escondendo a face nos estofos d'uma
othomana.
Acudiu Palmyra aos gritos. Affonso ergueu-se, com as mãos no rosto, e,
abafando os soluços, pôde dizer: «Morreu minha mãe!»
--Chora, no meu seio--disse ella commovida--chora, meu querido filho!
Tens ainda este grande coração que te abriga na tua angustia.
Estas palavras alancearam mais a alma do meu amigo. Pareceram-lhe um
sacrilegio, uma injuria á memoria da mulher, cuja vida fôra uma enchente
de virtudes. «O coração da adultera a dar abrigo á dôr de um filho!» Era
a consciencia que assim lhe gritava, não era ainda o tedio. Era, talvez,
a repugnancia de se encostar ao seio da mulher por amor de quem deixára
morrer sua mãe, esquecida, desprezada mesmo, lembrada algumas vezes como
senhora mieira da casa, cujo herdeiro elle era.
Affonso pediu a Palmyra que o deixasse sosinho. Ferida em sua vaidade,
considerando-se inutil em consolar o homem fraco, o homem debulhado em
lagrimas, Palmyra cruzou os braços e abanou a cabeça. O atribulado moço
não vira aquelle gesto; mas ouvira as palavras que o denunciavam:
--Não basta o amor da mulher amante para consolar as saudades de uma
mãe. Eu tambem a tinha, quando te amava, e abriguei-me no teu coração.
Que differença!...
Affonso irou-se; mas abafou a colera n'um gesto de impaciencia. Palmyra
comprehendeu-o, retirou-se, lançando os olhos ás duas cartas, que
estavam abertas. Encostou-se á mesa, e leu-as sem lhes pôr mão. Lidas,
sorriu-se, remexeu ainda na lingua uma ironia infame, não ousou
proferil-a, e sahiu. É que a mulher impura muitas vezes espumára o pus
do cancro do orgulho, que a roia, na face immaculada de Mafalda, que o
moço indiscreto algumas vezes, com fatuidade, relembrava como desgraçada
na sua amoravel dedicação.
Assim que Palmyra sahiu, Affonso, a tremer calefrios, deslacrou a carta
de sua mãe. Dizia assim:
«Meu filho. Muito ha que eu peço a Deus que me despene. Já me cançava a
vida com tão aturado padecer, e nenhuma esperança de remedio.
«Agora espero que a misericordia do Senhor me attenda; e, se me diz
verdade o coração, é chegada a hora de eu escrever umas linhas, que te
serão mandadas quando eu tiver passado.
«Bem sabes tu, meu filho, que eu, cheia de terror do teu peccado, voltei
para Deus a minha afflicção, e nenhuma palavra de censura te escrevi. O
que eu podia fazer para livrar-te estava inutilmente feito. Era tardio
tudo que fizesse depois. A infeliz creatura estava já comtigo. Ninguem
sem ordem do céo poderia remil-a de sua perdição. Á minha presença veio
o desgraçado marido de Theodora pedir-me que te movesse a influir no
animo de sua mulher o recolher-se n'um mosteiro. Consultei primeiro a
vontade divina, e depois a razão humana. As minhas orações, se podessem
com Deus alguma cousa, lá iriam ter á tua alma em abalo de consciencia.
O Senhor não quiz. As pessoas a quem pedi voto sobre escrever-te,
segundo o pedido do homem de Theodora, todas me disseram que eu ia
abaixar a minha dignidade n'um requerimento vão e desconforme á natureza
da tua desgraça. Abaixar a minha dignidade não me custava nem humilhava;
mas, sem esperança de te mover com as minhas pobres razões, antes quiz
orar, e orar sempre a quem tudo podia.
«Bem sabes, meu filho, que eu, nem mesmo ao remetter-te n'um anno o
rendimento de quatro, afóra o producto da quinta vendida, nada te disse
respeito á causa dos teus desperdicios, promettedora de tua inevitavel
pobreza.
«Conheci que eu, em tua vida, já nem sequer valia para amiga, muito
menos devia esperar respeitos e amor á minha authoridade de mãe. Disse
commigo que era irremediavel a tua desgraça, e esmoreci de todo em todo.
«Mandou o Senhor para o meu lado tua virtuosa prima. Choramos ambas; mas
o anjinho, mesmo em prantos, consolava a pobre que lhe via a alma em
grandissimas mortificações.
«Agora, meu filho sempre querido, é tempo de te abençoar, de te perdoar
as dôres que me déste, e rogar-te que me vejas aos pés do Altissimo, se
a sua misericordia me descontar as agonias nas muitas culpas de minha
vida. Não te mortifique o pezar de me haver deixado morrer, sem que a
tua vida se lavasse, pelo arrependimento, do deshonroso crime que a
disforma. A todo o tempo, se sentires o voluntario brado da consciencia,
escuta-o, remedea-te, e foge de ti mesmo para te encontrares na justiça
benigna do perdoador de crimes iguaes. Eu serei então em espirito
comtigo para te ajudar a reformar o teu animo, e alentar em teus
desfallecimentos.
«Dos desbarates e perdimento dos teus haveres, faz muito por salvar ao
menos esta casa onde nasceste, e a quinta que te dará abundante pão na
velhice, se Deus t'a der, como tempo de merecer o céo. Aqui nasceu teu
pae, e muitas gerações de santas e honradas pessoas. Salva esta casa,
que tens n'ella a sepultura de teus paes e avós.
«Se alguma vez voltares aqui, e tua prima fôr viva, estima-a, em paga
dos carinhos que lhe fico devendo, e do beijo de filha, que ella me
ha-de dar, quando eu expirar em seu seio. Aqui te lança sua derradeira
benção a tua boa mãe, _Eulalia_.»

XVII
Encerrou-se Affonso por espaço de oito dias, inconsolavel aos afagos de
Palmyra. Os amigos, seus socios de vida viciosa e soberba de sua culpa,
e contubernaes logrativos das dissipações, enfureciam-lhe o tormento do
remorso. Furtava-se á vista d'elles, fechando-se, quando vinham, com o
semblante composto de falso compadecimento, lembrar ao amigo, em lucto
de oito dias, que um homem de razão clara tinha obrigação de ser
superior a soffrimentos communs e naturalissimos, taes como a morte de
uma mãe. Palmyra ia ao salão receber os pezames, e combinava-se com os
cavalheiros admirados da pusillanimidade de Affonso. «Eu soffro
muito--dizia ella a D. José de Noronha alquebrando o rosto em
desconfortada pena--ao vêr que a minha solicitude consoladora nada póde
com Affonso. O coração da mulher, que renunciou á satisfação do dever, e
se immolou aos caprichos transitorios d'um homem, deve tambem renunciar
o poderio de desviar d'uma sepultura os olhos d'elle. Assim se é
castigada, quando se é culpada como eu.» A taes razões, proferidas com
os olhos no tecto, respondia D. José de Noronha:--Eu hei-de acreditar
que Affonso deixou de amar apaixonadamente v. exc.ª, quando elle se
confessar um monstro, e a honra fôr banida d'este mundo. Eu só
comprehendo o esquecimento da honra, quando é preciso sacrifical-a a uma
senhora como v. exc.ª Ainda bem que ha uma só, para se não abjurarem os
deveres sociaes.--Ora, o estylo de Affonso--digamol-o de corrida--era
muito mais lhano e correntio.
O filho de Eulalia, passado o primeiro mez de lucto, disse com suaves
maneiras a Palmyra que o seu animo estava passando por estranho
reviramento, no tocante a prazeres falsos do mundo;--que resolvia
diminuir as suas relações e as suas superfluidades;--que tencionava
occupar algumas horas na leitura, em que felizmente Palmyra o
acompanharia, revivendo a sua esquecida affeição aos livros;--que
aceitava como inspiração de sua santa mãe o desapegar-se de regalos
vãos, deleites de mera vaidade, que perdem seu sabor ainda antes de se
acabarem: finalmente, concluiu Affonso: «Vivamos como amantes que
dispensam serem admirados para serem venturosos.»
Palmyra sorriu, e disse:
--Bem sei... bem sei, Affonso.
--Que sabes tu? perguntou brandamente o moço--Diz o que sabes, minha
amiga.
--Comprehendo a mola occulta do teu novo programma de vida... É o
cansaço... Já me chamas _tua amiga_. A mulher, que ama, quando lhe dão
tal nome, sabe que é cousa de pouca monta para quem lh'o dá. Falla-me
claro: sentes o entojo de impressões novas? As cartas de tua prima é que
levantaram em teu espirito essas poeiras de tardia virtude? Nada de
refólhos, Affonso. A minha opinião é que nenhum de nós se constranja. As
pêas, impostas mesmo pelo dever, são um infortunio muito meu conhecido.
Fazes-me pena, se o experimentas. Amas tua prima, Affonso?
--Não amo minha prima--respondeu serena e pacientemente o moço--Se
amasse Mafalda, de certo não estaria ao lado de Palmyra. Estimo-a como
irmão; respeito-a religiosamente hoje, por saber que o ultimo alento de
minha mãe o recebeu ella nos labios... Porém, que tens tu com minha
prima? Que injustas referencias são essas que continuamente lhe estás
apontando? Que mal te fez a triste menina, que vive e morrerá sem outro
prazer senão o da sua virtude mal remunerada n'este mundo?...
--Virtude!...--interrompeu Palmyra franzindo os labios no sorriso da
ironia injuriosa--Sempre a virtude de tua prima em campo para contrastar
naturalmente os meus vicios!... Pouquissima generosidade é a tua
Affonso!... Terei eu de ouvir ainda de tua bocca o libello e a
condemnação das minhas culpas?! Póde ser, póde ser, e eu, envelhecida
pela experiencia de poucas semanas, não terei de que espantar-me.
--Offendem-me as tuas injustiças--redarguiu Affonso soffreando a
impaciencia--Que direito te dou para tanto?
--Direito? queres, por acaso, dizer-me que estou em tua casa?!
--Essa pergunta é aviltante, Palmyra!... Onde está a tua intelligencia,
a tua critica, e propriamente a tua vaidade?--redarguiu Affonso de
Teive--Desconheço-te, estás a descer sem impulso estranho...
--A descer da tua consideração?--acudiu ella resabiada.
--Quem o duvída? A mulher de alma nunca faz semelhantes perguntas a um
homem como Affonso de Teive. Queria eu dizer que não te dava direito, ou
causa a offender-me.
--Bem!--tornou ella amaciada a voz com falso accordo--Aceito a
explicação. Perdôemo-nos reciprocamente, e sejamos... sejamos...
_amigos_, sim?
--Como tu feriste ironicamente a palavra _amigos_!...
--É que me não tôa bem nos ouvidos do coração--replicou Palmyra risonha,
chegando a face aos labios do moço, que a beijaram friamente.
--Em quanto ao teu novo traçado de vida--volveu ella--queres que se
cumpra, em rigor, como está ordenado, sim?
--_Ordenado_, não é o termo proprio--Consulto-te, expuz em breve as
minhas razões; mas se te despraz...
--Apraz-me tudo que te contenta, meu Affonso. De hoje em diante
reformam-se os nossos costumes. Vendem-se os trens? trespassa-se o
camarote? vamos habitar uma casa modesta... Queres, Affonso? Tambem eu.
Não escapou a Affonso o tom ironico de taes perguntas. Cahiu em si de
repente, e viu-se em começos de castigo. Apagaram-se muitas luzes do
altar em que elle tinha o bello barro idolatrado. Fugiram-lhe para sobre
o tumulo de sua mãe os olhos d'alma, e viram Mafalda de joelhos na lagem
da capella com a face apoiada no marmore do jazigo. As luzes restantes
do altar ficaram para lhe amostrar o odioso da mulher de Eleuterio.
Ás perguntas retrincadas não respondeu Affonso... Ergueu-se, e sahiu do
seu quarto. Refugiou-se no mais recondito do palacio, para chorar a
salvo do opprobrioso sorriso de Palmyra. Depois, voltou ao seu
escriptorio, e escreveu a Mafalda esta carta, significativa de mudança
temporaria, senão fundamental, em seu espirito:
«Prima Mafalda. Vai ao pé do tumulo de minha mãe, e repete-lhe as
palavras d'esta carta. A justiça de Deus esmaga-me. Sou eu que vergo
debaixo do fardo de affronta que levantei da lama com minhas proprias
mãos. O arrependimento dos desvarios da mocidade não costuma atalhar tão
cedo a carreira dos grandes desgraçados. Fere-me Deus tão cedo! é por
que me quer desatar d'este jugo de infamia. Auxiliem-me as orações de
minha mãe, que eu sou fraco. Venham golpes de desengano, bem pungentes,
para que se faça o dia da razão em minha vida. A aurora d'este dia já
aponta; mas o meu coração ainda está envolvido em trevas, e cheio de
amargura. Santas devem ser as tuas orações, Mafalda. Eu dobro o joelho
ante a memoria de nossa mãe, ouso invocar a sua intercessão no céo; sei
que a alma bemaventurada não repelle o mau filho que a crucificou nos
ultimos annos, quando me ella pedia seio onde encostar as suas cans.
Mafalda, anjo solitario, que vês com os olhos puros as estrellas da
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