Amor de Salvação - 07

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aspecto arguia tristeza.
Seguiu-se um brinde enthusiastico ao ditoso Affonso, que sobrepunha a
formosa minhota a quantas lisboetas de tez e olhos arabes lhe tinham
offerecido a alma n'um sorriso.
Affonso agradeceu, com gesto de mal dissimulado dissabor.
Reiteraram os convivas o pedido da carta. Affonso hesitava ainda. O mais
ebrio d'aquella mocidade patricia, representante dos mais illustres
appellidos da época heroica de Portugal, ousou tomar a carta de sobre a
mesa, e abril-a com estrondosos applausos dos outros. Affonso de Teive
estendeu impetuosamente o braço, e tirou a carta da mão do hospede.
--Isso é um insulto a todos!--exclamou D. José de Noronha.
--Não é insulto--replicou o de Ruivães--é preito a todas as mulheres, e
com especialidade ás desgraçadas.
Disse, e incendiou o papel na chamma do castiçal em que acendiam os
charutos.
O tom amargo d'aquellas palavras commoveu os convivas, que, por bom
acerto, se encontraram todos de indole sentimental, quando as vaporações
alcoolicas lhes ennublavam a porção intellectual, que era n'elles
diminuta, como de direito heraldico. D. José, compondo o rosto d'uns
vislumbres de rectidão e bom discurso, perorou ácerca da probidade de
Affonso, e, em nome dos communs amigos, agradeceu a lição, e levantou
novo brinde ao hospedeiro moço que tão digno era da estima dos homens
como da confiança das mulheres.
* * * * *
Este capitulo não dispensa uma nota illustrativa, respondendo
temporanmente á critica illustrada que me perguntar como pude eu pôr em
traslado uma carta queimada á luz do castiçal, minutos depois que
Affonso a lêra? É por que o rascunho d'esta carta, escripta com
entrelinhas, emendas, e borrões, escripta por Theodora, estava ainda em
poder de Affonso de Teive em Dezembro do anno proximo passado.
Opportunamente se dirá como Affonso de Teive se apossou do rascunho.
Então a critica verá que poucas cousas succedem na vida tão
naturalmente.
Relevem-me estas demasias de escrupulo: que eu difficilmente consentirei
que a má fé me apanhe em flagrante inverosimilhança.
Assim é que eu quizera que se escrevesse a historia patria, com este
timbre e rigor de verdade. Por mingoa de desvelos analogos na
averiguação dos factos historicos é que nós ainda não sabemos bem
quantos filhos bastardos fizeram os nossos monarchas: falha que desluz
algum tanto o panegyrico das virtudes dos reis portuguezes. Aprendam os
historiadores.

XIV
No mesmo dia, um deputado chegado do Minho, entregou a Affonso uma carta
de sua mãe, incluindo outra de Mafalda. A senhora de Ruivães felicitava
o filho por saber que elle procurava os passatempos da capital,
admoestando-o a que procedesse honradamente no gozo dos prazeres, para
que elles se não derrancassem em flagellos da consciencia, e infamia.
Mafalda, em poucas linhas, pedia-lhe que se não esquecesse d'ella, e
fosse fiel á promessa de estimal-a como irmã.
O deputado bracharense era sujeito que sabia as cousas para as dizer, e
saltava a quatro pés por cima d'isto que chamam delicadeza em assumptos
de coração.
Pelo que, o expansivo deputado fallou assim a Affonso:
--Ainda me lembro de v. exc.ª, quando rapazola estudava rhetorica em
Braga. Está certo de ser agarrado pelo regedor, quando foi ás Ursulinas
atacar as freiras? Pois fui eu quem, a pedido de sua mãe, lhe vali no
processo instaurado.
--Não sabia--atalhou Affonso--Aproveito a opportunidade para agradecer a
v. exc.ª...
--Não tem de que. Mas, com effeito--volveu o deputado, a rir de
esperto--olhe v. exc.ª o que fazem mulheres... ou mulherinhas... por que
a final a morgadinha da Fervença acanalhou-se até ir casar com um bruto
de Tibães... Soube isto v. exc.ª?
--Perfeitamente. Era impossivel que eu o não soubesse...--respondeu
attentamente Affonso.
--Eu conheço Eleuterio Romão dos Santos--continuou o informador--O homem
torce as grandes orelhas que tem, por que ella tem-lhe feito dar a agua
pela barbella. V. exc.ª ha-de saber isto...
--Não sei senão que Theodora é mulher de Eleuterio.
--Então eu lhe conto. A rapariga tem figados, e ninguem o dirá vendo
aquella lesma, que parece feita de manjar branco. Assim que entrou em
casa, e se viu com o sogro Romão e com a sogra Eleuteria deu ao diabo a
cardada, poz-se nas suas tamancas, e mobilou as suas salas e os seus
quartos á moderna. O Eleuterio quiz reguingar-lhe; mas ella, ás
primeiras testilhas, fallou em divorcio, ou cousa peor ainda, que era,
pelos modos, fugir de casa, e procurar v. exc.ª O marido poz as mãos na
cabeça, quando ouviu fallar em divorcio. A fortuna alli é quasi toda de
Theodora. Se ella se levantasse com o seu casal, o velhaco do tio, que
preparou semelhante desgraça de casamento, dava um estouro. Começaram a
fazer-lhe todas as vontades á moça. Para que lhe ha-de ella dar? Imagine
lá v. exc.ª para que lhe deu na veneta?
--Eu sei cá...--disse anhelante de curiosidade Affonso.
--Fez-se doutora!... Mandou comprar dous carros de livros ao Porto;
fechou-se no seu escriptorio, que parecia uma livraria de convento, e
começou a lêr de noite e de dia. Lá de dia passe; mas de noite, dava
isso que pensar a Eleuterio casado á face da igreja, e dono da mulher
pelos seus justos cabaes. Passado tempo, deu-lhe outra mania: fez-se
cavalleira, e rompia a galope pelo campo de Santa Anna em Braga, a
levantar poeira que parecia um esquadrão de cavallaria! Não parou ainda
aqui o desarranjo d'aquella cabeça! Tomou lacaio, deu-lhe libré avivada
de vermelho, e andava por essas estradas do Minho com o lacaio em
correrias de douda. Uma hora viam-na em Landim, outr'ora em Santo
Thyrso, depois em Lessa de Palmeira... Que novidades lhe estou
contando!...--concluiu sorrindo o narrador.
--E do procedimento d'ella que se dizia?--atalhou Affonso, vivamente
empenhado nas revelações do chanissimo legislador.
--Do procedimento d'ella a que respeito?--perguntou o deputado, com
suspeitoso sorriso.
--Amantes, quero dizer se a opinião publica lhe dava amantes.
--Eu lhe digo: quando v. exc.ª estava em Lessa com sua mãe, e a morgada
lá foi com o marido, alguem disse que o marido era um simplorio. Ora
isto parece-me que alguma cousa queria dizer...
O deputado espirrou uma risada de finura velhaca, e ajuntou:
--Depois, quando v. exc.ª esteve em Ruivães uma temporada, e Theodora
sahia para aquelles lados, já todo o bicho careta dizia que o adulterio
estava provado por todos os artigos do codigo, e por mais alguns que
esqueceram aos corpos legisladores.
Aqui deu o representante de Braga uma segunda risada, expressiva de
agudeza muito mais faceta. Affonso sorriu-se, e deixou-o esvasiar a
pojadura da verbosidade chula.
--Não se falla por lá de mais ninguem que eu saiba--tornou o
deputado--Mas o marido! aquelle palerma, que lhe não vai á mão, e a
deixa andar em filistrias de cavallo e lacaio, faz-me pena, sinceramente
lh'o digo, por que houve alguem que me affirmou que a mulher, quando
está fechada na livraria, não o admitte á sua presença, e até me
disseram que ella passa toda a noite a consultar os seus livros! Logo:
aquelle marido está n'uma posição critica, matrimonialmente fallando.
Parece-lhe isso, snr. Affonso?
Aqui expediu o sujeito terceira risada, que tinha idéa occulta, a meu
vêr, inconciliavel com o comedimento desejavel n'uma pessoa grave... de
mais a mais deputado a côrtes!
--E como está ella?--perguntou Affonso--Ainda é bonita?
--Agora é que ella está completa. Encheu muito de hombros, e tudo á
proporção. Está muito alta, e esvelta, que parece ingleza. E o garbo com
que ella sacode um cavallo... V. exc.ª está a mangar commigo?--perguntou
de subito o deputado, após um instante de reflexivo silencio?
--Se estou a mangar com v. exc.ª?! que pergunta!
--Sim! pois o snr. Affonso vem-me perguntar a mim se ella está bonita?!
Quem sabe melhor que v. exc.ª como ella está?!... Ora, meu amigo, vá
contar essas historias aos da Lourinhã. Cá para mim vem barrado!
--Dou-lhe palavra de honra--redarguiu Affonso--que a minha pergunta foi
sincera. Eu vi Theodora; mas tão de relance, que não pude reparar-lhe
nas feições.
--A sua palavra de honra tem para mim o peso d'um Evangelho,--tornou
gravemente o cavalheiro de Braga.--Pois, senhor, o mundo está enganado.
A voz geral dá v. exc.ª como amante de Theodora. Eu não me atrevia a
dizer-lh'o tanto ás escancaras; porém, chegadas as cousas a este ponto,
fique sabendo que ninguem acredita na sua innocencia, excepto o
Eleuterio, que é muito bom homem.
É escusado dizer que o individuo riu de novo, esfregou as mãos, e
exclamou abruptamente aguilhoado pelo instincto oratorio:
--Ainda ha quem case! Ainda ha victimas que espontaneamente se offereçam
no altar das mulheres! Chegamos a um tempo em que ninguem póde
sinceramente dizer que conhece seu pae. Os assentos dos baptismos estão
todos falsificados. Os mandamentos da lei de Deus, o nono sobre todos,
vai ser tirado do cathecismo. Vem ahi um tempo em que o artigo da lei
santa ha-de ser assim reformado: «Não desejarás a tua mulher para não
incommodar os direitos do proximo!» Onde irá isto assim parar, snr.
Affonso de Teive?
O deputado entre serio e risonho, prolongou por tres quartos de hora, em
estylo declamativo, um aranzel de lugares-communs, entremeado de
pilherias, com referencia á degeneração da sociedade, no capitulo
casamento. Affonso achava picante de grosso sal a iracundia comica do
legislador, e estimulava-lhe a veia. A final o deputado, contente de si,
foi para S. Bento, mais que muito persuadido de ser elle o predestinado
para levantar voz no parlamento decretando a moralisação das familias.
Affonso ficou pensativo. As revelações lisongeavam-no. O odioso do
caracter de Theodora desvaneceu-lh'o a impressão já magestosa, já
condolente do viver da morgada. Uma sublime desgraçada!--dizia elle
comsigo--Uma sublime desgraçada, que, ligada a mim, seria a mais sublime
das creaturas!
E, trabalhado por esta idéa que pertinazmente lhe martellou no animo,
Affonso de Teive arrependeu-se de ter queimado a carta recebida na manhã
d'aquelle dia. Queria relêl-a, mettêl-a a beijos na retentiva do
coração!
Á noite foi ao theatro, e entreteve-se largo tempo com D. José de
Noronha. Versou a pratica sobre o aceitar benignamente os
acommettimentos de Theodora. D. José mostrava-se já enfastiado da
imbecilidade moral do seu amigo, e, por tanto lhe pedia, que de todo em
todo esquecesse a mulher, e se portasse como rapaz de certa ordem; ou
obedecesse ao coração, aceitando a felicidade das mãos fosse de quem
fosse.
N'esta mesma noite, o moço, vencido a final pela irresistivel
necessidade de ser semelhante a todos os homens, escreveu uma estirada
carta. Principiava nas recordações da infancia de ambos: devia de ser
alta e amoravel poesia, como o coração a trasborda, se d'um ponto negro
da vida os olhos rompem as trevas, e vão lá ao longe remergulhar-se no
pelago da luz, que mais não ha-de raiar em nossos dias. Tristeza mais
que todas magoativa!
Depois, memorava os dias de amor, desabrochado já o seio em plena
florescencia, com os seus desejos balbuciados em phrases todas alma e
enleio, dulcissima linguagem, que era ainda a das chimeras pueris, mal
desvanecidas no trajecto da infancia á adolescencia. Poesia ainda, flôr
sempre lustrosa e verdejante, porque a sua tige está continuo a medrar
em lagrimas, d'onde paixão nenhuma hedionda dos vindouros tempos lhe
ha-de extirpar a raiz.
Seguia-se o recordar as dôres atrozes do abandono d'ella, quando o moço
em Lisboa e Ruivães, duas vezes se atirára aos braços da morte,
aceitando o inferno, se o lembrar-se o condemnado da mulher que amou na
terra, não era lá o maximo tormento.
A final, após os queixumes, subia-lhe do coração aos olhos n'uma lagrima
o perdão. Perdão e amor: que não ha ahi, em alma humana, perdoar
ingratidões sem beijar a mão que nos alanceou. Esquecer, sim; mas
esquecer é desprezo, não é perdão.
Escripta e fechada a carta, sobreesteve Affonso no remettêl-a. Acaso
iria ella, sem desvio, ás mãos de Theodora? As injustas suspeitas não
poderiam ter Eleuterio de sobre-aviso? E, de mais, reatadas as ligações
de estima, iria Affonso, contra a vontade de sua mãe, para casa, e
sustentaria alli o cortejo á mulher casada?
Estes quesitos fallavam á razão; porém, a pobresinha da razão, estava já
escondida na consciencia, e a consciencia ensurdecera com a guisalhada
do baile carnavalesco em que seu dono a mandára estudar os costumes do
seu tempo.
Foi a carta com direcção a Braga. Era dia de feira quando ella chegou ao
correio: estava alli o marido de Theodora vendendo cereaes. Foi á lista
postal vêr se seu pae tinha carta de parentes do Brazil; e, como não se
entendia bem com os nomes maiores de tres syllabas, pediu que lhe lessem
a lista inteira. Quando o obsequioso leitor chegou a _Theodora Palmyra
Villar de Sousa_, exclamou Eleuterio:
--É a minha mulher! Ha-de ser carta do livreiro.
Convem saber que a morgada se entendia directamente com os seus
livreiros fornecedores.
Eleuterio foi tirar a carta, e deu-lhe nos olhos, afóra o lustre do
sobre-escripto, o lacre azul fechado com armas, e, mais que tudo, a
marca de Lisboa.
Não me atrevo a compôr o soliloquio de Eleuterio Romão. Sei que elle
andava com a carta ás voltas, entre mãos, e ás vezes esfregava entre
dous dedos o papel, como se pelo tacto podesse inferir do contheudo.
Estava com elle o regedor da sua freguezia, o mesmo que lêra a lista, e
lhe lia na alma agora.
--Que estás a malucar, Eleuterio?--disse elle--A modo que essa carta te
deu no gôto!...
--A fallar a verdade--respondeu o marido de Theodora--esta letra não na
conheço, nem estas armas reaes!... Minha mulher não conhece ninguem em
Lisboa, e estas letras, compadre, parece que rezam Lisboa.
--É como diz: _Lisboa_, sem tirar nem pôr. E então?... achas que ella...
--Estão-me a dar guinadas de abrir isto!... Que dizes tu, compadre?
--Eu cá, se fosse commigo, já a carta estava aberta. Mulher minha a ter
cartas, sem eu saber de quem!... Deus me defenda!
Palavras mal eram ditas, que Eleuterio quebrou o lacre, e passou a carta
ao regedor, dizendo:
--Lê lá... ella é tamanha! parece uma sentença!... Vamos vêr isso, que
eu já me não sinto escorreito.
O regedor tomou o manuscripto de oito paginas entre as mãos, poz-se em
attitude abrindo as pernas em circumflexo, tossiu, tomou folego, deu
crena de saliva aos beiços, e leu engasgadamente: «D'onde vem esta
celestial harmonia, que a minha alma ouviu, quando o céo me bafejava a
infancia, e as delicias todas da existencia me eram prenunciadas nos
sonhos?...»
O regedor revirou os olhos pasmados a Eleuterio, e disse:
--Tu percebeste isto, compadre?
--Assim me Deus salve, que não percebi palavra,--respondeu Eleuterio
Romão esbugalhando os olhos sobre a escripta cabalistica.
--Portuguez acho que é!--tornou o regedor, consultando a opinião do
compadre.
--Isso é, lá portuguez é... Ora torna a dizer.
O leitor repetiu, e disse:
--Falla aqui em _alma_, e _sonhos_, e _delicias_. Sabes que mais? Isto,
seja lá o que fôr, não me cheira bem!... Aqui, Deus me perdôe, ha
maroteira d'aquella casta!... Deixa-me vêr mais um bocado a vêr se pesco
alguma cousa. E, continuando, leu:
«Sonhos de anjo, alumiados pela imagem lucida da filha da minha alma!
volvei, volvei, orvalhai a flôr requeimada, dai uma lufada de primavera
ao meu coração regelado pelos frios d'esta infinda noite... Oh minhas
donosissimas chimeras!...»
--E agora entendeste?--voltou o regedor--eu estou como a Felicia
d'Abrantes, peor que d'antes. Isto se não é latim, é o diabo por elle!
--Queres tu que se pergunte a alguem!?--acudiu Eleuterio--A gente ha-de
achar quem lhe explique isto cá em Braga... Falla-se ahi a um padre que
eu conheço, ao capellão das Ursulinas.
--Dizes bem... Tu não has-de ir para casa sem tirar isto a limpo...
Queres tu vêr que ahi vem o homem que nos explica o negocio?--perguntou
o magistrado administrativo--É meu compadre Fernão de Fonte Boa.
Era Fernão de Teive, conhecido por de Fonte-Boa, por ser lá o seu
morgadio. Com o velho fidalgo vinha Mafalda, apoiada no braço d'elle,
com doentio aspecto.
O regedor descobriu de longe a cabeça, e sahiu ao encontro de Fernão,
que o recebeu com o agrado dos antigos fidalgos.
--Que é feito de ti, compadre, que te não vejo ha cem annos?--disse o
velho--Desde que te fizeram regedor, acho que não cuidas senão em
fabricar deputados, e comer os salpicões dos recrutas passados pela
malha! Anda lá, meu homem, que em tempos melhores havias de ganhar o
posto de capitão-mór, que geito para comer os saudosos lombos tens tu.
Então que é feito, rapaz? quem é aquell'outro? Se me não engano, é o
Eleuterio do Romão.
--Para servir a v. exc.ª--disse Eleuterio com tres mesuras de cabeça
exageradas--Sou eu para servir a v. exc.ª
Fernão inclinou um olhar ironico sobre o hombro da filha, e disse com um
mal represo frouxo de riso:
--Aqui tens o marido da morgadinha da Fervença.
Mafalda escassamente lançou um olhar ao sujeito, e baixou os olhos com
gesto de notavel commoção.
E o regedor tirando a carta da algibeira, disse:
--Eu queria consultar o meu excellentissimo compadre a troco d'uma carta
que nem eu nem meu compadre Eleuterio entendemos. A gente, como o outro
que diz, o que sabe é de lavoura, e mal assigna o seu nome. O caso é
este: aqui o compadre achou no correio esta carta p'rá mulher. Teve lá
seus arrepios, e abriu-a. Começamos a lêr, mas nem p'ra traz nem p'ra
diante. As palavras parecem portuguezas, acho eu; mas nós não sabemos o
que ellas rezam. Se o senhor compadre fizesse favor de lêr isto...
Fernão de Teive ia a tomar a carta já aberta da mão do regedor, quando
sentiu extraordinario peso no braço esquerdo, olhou em sobresalto, e viu
Mafalda a desmaiar, com o rosto banhado de suor. Chamou-a, e ella,
expedindo uns agudos soluços, quiz em vão pendurar-se do pescoço do pae.
Tomou-a o velho nos braços com tremente anciedade, e transportou-a para
dentro de uma loja, pedindo a brados um facultativo.
O regedor e Eleuterio seguiram Fernão, afflictos do successo. Na mão do
regedor estava ainda a carta. O velho, sem atinar com o motivo do
accidente, olhou machinalmente para o papel, e teve um repellão
intuitivo, sem ainda o comprehender.
Tirou com desabrimento a carta da mão do compadre, examinou-a pela
luneta, leu as primeiras linhas, desviou os olhos, meditou, lançou de
arremesso o papel ao chão, e disse:
--Deixem-me... não sei o que é... Vão-se embora...
Os homens iam sahir, quando elle os chamou com phrenesi, pediu a carta,
e desfêl-a em pedacinhos, exclamando:
--Isto não é nada, nada vale, podem ir com Deus.
Eleuterio estava assombrado, e o compadre abria e fechava a bocca em
signal do seu espanto e compaixão. Em boa fé, o regedor acreditou
atacado de demencia o velho, ao vêr a filha em trances de morte.
Afastaram-se em consultas, dando cada qual sua razão do caso, bem que
Eleuterio ia mediocremente satisfeito da rasgadura da carta.
Quando recobrou o alento, Mafalda levou as mãos ao rosto do pae, e
murmurou mui carinhosa:
--Perdôe-me, por quem é! Perdôe esta fraqueza da sua infeliz filha!
--Pobre anjo--balbuciou o velho--Que has-de tu fazer-lhe? Deus mandou-te
aquelle desengano... Recebe-o tu, reportada e humilde, de suas divinas
mãos. Precisavas d'isto, para em fim te convenceres.
Mafalda pediu ao pae que a levasse ao primeiro templo aberto. Ajoelhou
ao altar do Senhor dos afflictos, chorou, e viu as lagrimas do velho
ajoelhado á beira de ella. Ergueu-se com pacifico semblante e disse:
--Estou melhor, meu pae. Deus não falta aos infelizes sem culpa, nem
mesmo aos culpados... Tambem orei pelo primo Affonso.
--Eu não orei--disse o pae--mas rasguei o documento de sua infamia.

XV
Affonso de Teive contava os dias, e, no ultimo dia, a hora e instantes
em que devia receber carta de Theodora. Esperou uma semana em alvoroço,
e já, ao decimo dia a mallograda esperança o atormentava. A incerteza da
recepção alliviava-o por momentos; outros, porém, sobrevinham em que
elle se considerava desconsiderado pela caprichosa ou vingativa mulher.
O mais graduado oraculo do seu conselho, D. José de Noronha,
racionalmente, opinava que a mulher, authora de taes cartas, por força
devia responder; e do silencio concluia que se transviára a resposta
enviada. Chegou a confirmação d'esta hypothese, na seguinte pergunta de
Theodora:
«Instantemente rogo que no primeiro correio, me digas se me escreveste.
Sobejam-me razões para conjectural-o. Estou em ancias. Esta incerteza
martyrisa-me mais que o teu desprezo. Responde-me depressa. Dirige a tua
resposta--pedida com lagrimas--para Barcellos. Calculo o dia em que ella
deve alli estar. Irei pessoalmente recebel-a. T. P.»
Lida a pergunta, Affonso abancou para responder. Posta a primeira
palavra, ergueu-se de salto. Chamou o criado da cavalhariça. Mandou
pençar os cavallos para jornada longa. Sentou-se a escrever a D. José de
Noronha. Cuidou seguidamente dos aprestos para a partida; e, duas horas
antes da sahida do correio, galopava na estrada do Porto. A meia jornada
fraquearam os cavallos. Affonso fez remonta em Coimbra, sem discutir o
preço das novas cavalgaduras, e chegou a Barcellos duas horas primeiro
que o correio.
Quando apeou na estalagem de Barcellinhos, encostou a cabeça esvaida á
borda d'um leito, e adormeceu. Rompia a manhã. A mim me contou elle que,
dormindo uma hora, acordára tranzido do horror de um sonho. Vira
Theodora em trajos de bacchante, revolteando umas walsas lubricas, e
atirando-se ebria, e torpe de impudicicia, aos braços d'um homem. Era um
sonho; mas, ao despertar, Affonso sentia abrir-se-lhe o coração a golpes
de arrependimento. A prostração era invencivel: adormeceu outra vez, e
sonhou que via sua mãe agonizante nos braços de Mafalda. Acordou
espavorido; ergueu-se arrancando a mãos freneticas aquella imagem da
fronte; o arrependimento era já lançada de remorso. Abriu o relogio: viu
que era ainda tempo de fugir... Diz elle que fugiria... ai! eu não creio
que elle fugisse, não! Chamára o criado para arreiar os cavallos... eis
que, ao cimo da rua sôa tropel de ferraduras, e faz-se rapida paragem á
porta da estalagem. Affonso descora, vai de encontro ás vidraças, e vê
apear a morgada.
O quarto d'elle era contiguo á sala commum. Já Affonso lhe ouvia os
passos escada acima, e logo a voz ordenando ao lacaio que amantasse os
cavallos e fosse receber as suas ordens. Foi elle manso e manso
espreitar pela fechadura. Respirava em arquejos ao visinhar-se da porta.
Curvou-se, inspirando sofrego o ar que lhe sahia a sacões do peito.
Viu-a. Estava com o braço esquerdo encostado á mesa central da sala, e a
face reclinada para a mão. Com a direita chibatava, como alheada do que
fazia, o pó acamado no roçagante vestido de casimira verde escuro. Verde
era o véo do chapéo, que, momentos depois, ella tirou com um rapido
movimento, e rojou ao longo da mesa. Levou ambas as mãos ás fontes,
afastando os anneis dos cabellos, que se encaracolavam rosto abaixo até
ás espaduas. Demorou-se momentos n'aquella postura. Ergueu-se
impaciente, e passeou d'um a outro lado da casa, vibrando o chicote, e
tirando com força pelo trancelim d'ouro do relogio. Volveu a sentar-se,
com o rosto voltado em cheio contra a porta, d'onde Affonso a observava.
«Poucos traços lhe vi então das feições menineiras com que a deixára--me
disse elle--Da menina admiravel o que ella ainda tinha era o ar
angelico; mas a belleza da mulher deslumbrava as reminiscencias da
creança.»
Venceu Affonso os impetos que o empuxavam para abrir a porta. Esperou,
sem saber o que: esperava o desencantamento, esperava o dom da palavra
retrahido ao coração.
Entrou o lacaio que ella mandou logo ao correio com um bilhete alli
escripto a lapis. Desde este momento, Affonso já sabia o que esperava:
queria vêl-a affligida com a falta da carta. No intervallo, Theodora
chamou o criado da hospedaria, e pediu café. O criado, ouvidas as
ordens, dirigiu-se ao quarto de Affonso: este viu-o, e afastou-se.
Aberta a porta subtilmente, perguntou o criado se s. exc.ª queria
almoçar. Affonso respondeu com um aceno negativo. Fechada a porta,
perguntou Theodora:
--Quem é que está n'aquelle quarto?
--Não sei, fidalga--respondeu o moço.
Affonso repoz-se á fechadura.
Chegou o lacaio.
--Trazes?--exclamou ella como assustada.
--Não ha, minha senhora.
--Não?!--bradou ella batendo o pé--É impossivel! É impossivel! Deve lá
estar uma carta!...
--Saberá v. exc.ª que eu li a lista primeiro, depois fui dentro
perguntar ao homem que dá as cartas--disse o lacaio, e sahiu.
--Inferno!--clamou ella estorcegando os dedos que estalavam nas
articulações.--Maldita eu seja, que tão aviltada me tornei!
Sentou-se a arfar, e a chorar, e logo depois levantou os pulsos
comprimindo as fontes.
Pôz depois as mãos enclavinhadas junto dos labios, encostou a barba ao
pollex da mão esquerda, abaixou a cabeça, e meditou.
Entrava o criado com a bandeja. Theodora, estremecendo como atemorisada,
relanceou os olhos sobre o criado, e disse-lhe com desabrimento:
--Deixe ficar. Cá me sirvo. O lacaio que almoce, e apparelhe.
N'este momento Affonso abriu a porta, e disse com a voz convulsa:
--Um passageiro pede uma chavena do café de v. exc.ª
O leitor já sabe por todos os romances, por todos os dramas, e por todos
os actos da vida real, semelhantes, muito ou pouco, a este, o que
Theodora fez. Um _ah!_ ou dous, é o nariz de cêra para todas as
surprezas, fabricado desde Homero, ou mais de longe. Adão, quando viu
Eva, devia dizer: _ah!_ A Eva, quando viu a serpente, se não fugiu eu
vou jurar, sem menoscabo do historiador Moises, que mais ou menos
nervosa, exclamou _ah!_ A interjeição é coeva do homem, que nasceu cheio
de espantos.
Espanto, porém, igual ao da morgada, se o houve, foi o meu, quando
Affonso me disse que Theodora não expediu do seio interjeição nenhuma,
nem _ah!_, sequer.
--Pois que?!--perguntei eu com a respiração abafada--Que disse ella?!
--Levantou as mãos, ajuntou-as sobre o seio, postas em oração; depois,
cahiu em joelhos, ia cahir, quando eu, ajoelhado tambem, a recebi, a
desfallecer.
--Não disse nada, por tanto!... E desfalleceu sinceramente?
--Fazes-me essa pergunta como quem conheceu a mulher...--respondeu
Affonso--Asseveras-me que te estão contando factos ignorados?
--Pois eu podia saber o que se passou na estalagem de
Barcellinhos?!--repliquei--Eu ignoro d'essa mulher tudo, menos o que
toda a gente sabia. Vi Palmyra em Lisboa comtigo... mas, se tu crês que
um homem, acostumado a fazer romances, é uma especie de naturalista, que
só com um osso recompõe um animal desconhecido, admitte-me que eu tenha
adivinhado a alma inteira de Theodora com os poucos, mas caracteristicos
traços que me deste do seu caracter. Authorisado, pois, pela tua
pergunta, afouto-me a dizer que o desmaio da amazona foi menos de
theatral, por que nem sequer foi precedido da inevitavel interjeição.
Assim que me disseste, Affonso, que ella não desentranhou do intimo seio
um estridulo _ah!_ entendi que Theodora era mais artificial que o
proprio artificio, mais theatral que o mesmo theatro.
--A narrativa--redarguiu Affonso de Teive--vai perdendo a seriedade que
demandava o caso. Cansaço ou enojo, dir-te-hei que me sinto já
constrangido n'estas memorias. Acho-me um pouco identificado com a minha
vida passada; repassei o Lethes interposto, e olho com saudades para as
margens que deixei. Se, como diz o Dante, nada ha ahi mais triste que
recordar na miseria os tempos felizes, é, pelo menos nauseabundo
recordar em tempos felizes vergonhosas miserias. Todavia, como já agora,
inexoravel romancista, me não dispensas o remate d'este longo prologo do
capitulo final do meu livro--livro que eu chamaria _Amor de
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