Amor de Salvação - 01

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AMOR DE SALVAÇÃO
POR
CAMILLO CASTELLO-BRANCO
A heavy price must all pay who thus err,
In some shape; let none think to fly the danger,
For soon or late Love is his own avenger.
BYRON--_Don Juan, c. IV. est. 73_.

L'amour n'a point de moyen terme: ou il perd, ou il sauve.
V. HUGO--_Les Misérables_.


PORTO
EM CASA DA VIUVA MORÉ--EDITORA
PRAÇA DE D. PEDRO
A mesma casa em Coimbra, rua da Calçada.
Casa de Commissões em Paris, 2bis, rua d'Arcole.
1864

PORTO--TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
Cancella Velha, 62


A JOSÉ GOMES MONTEIRO

_Meu amigo_
_Peço licença para inscrever o seu nome na primeira pagina d'este livro.
Esta fica sendo para mim a mais prestante da obra. As outras são
futilidades; por que lagrimas e alegrias de romance é tudo futil._
_No Minho, em 1864._
_Camillo Castello-Branco._


OBSERVAÇÃO

O leitor folhêa duzentas paginas d'este livro, e o amor de felicidade e
bom exemplo não se lhe depara, ou vagamente lhe preluz. Tres partes do
romance narram desventuras do amor de desgraça e mau exemplo. A critica,
superintendente em materia de titulos de obras, querendo abater-se a
esquadrinhar a legitimidade do titulo d'esta, póde embicar, e
ponderar--que o amor puro, o amor de salvação vem tarde para desvanecer
as impressões do amor impuro, do amor infesto.
Respondo humilimamente:
Amor de salvação, em muitos casos obscuros, é o amor que excrucia e
deshonra. Então é que o senso intimo amostra ao coração a sua ignominia
e miseria. A consciencia regenera-se, e o coração, rehabilitado,
avigora-se para o amor impolluto e honroso. Assim é que as enseadas
serenas estão para além das vagas montuosas, que lá cospem o naufrago
aferrado á sua tabua. Sem o impulso da tormenta, o naufrago pereceria no
mar alto. Foi a tempestade que o salvou.
Além de que a felicidade, como historia, escreve-se em poucas paginas; é
idyllio de curto folego: no sentir intraduzivel da consciencia é que
ella encerra epopeas infinitas;--em quanto que a desgraça não demarca
balizas á experiencia nem á imaginação.
Para o amor maldito, duzentas paginas: para o amor de salvação as poucas
restantes do livro. Volume, que descrevesse um amor de bem-aventuranças
terrenas, seria uma fabula.
O AUTHOR.


AMOR DE SALVAÇÃO

I
Estava claro o céo, tepido o ar, e as bouças e montados floridos. O mez
era o de Dezembro, de 1863, em vespera do Natal.
A gente das cidades pergunta-me em que paiz do mundo florecem, em
Dezembro, bouças e montados.
Respondo que é em Portugal, no perpetuo jardim do mundo, no Minho, onde
os inventores de deuses teriam ideado as suas theogonias, se não
existisse a Grecia. No Minho, ao menos, se buscariam aguas lympidas para
Castalias e Hipocrenes. No Minho, a Cythéra para a mãe dos amores. Nos
arvoredos d'esta região de sonhos, de poemas, e rumores de conversarem
espiritos, é que os satyros, as dryades e os sylvanos sahiriam a
cardumes dos troncos e regatos: que tudo aqui parece estar dizendo que a
natureza tem segredos defesos ao vulgo, e como a entreabrirem-se á
phantasia de poetas.
Mas que flôres... quer o leitor saber que flôres vestem os calvos e
denegridos serros do Minho, em Portugal. São flôres a festões, cachos de
corolas amarellas, viçosas, e aveludadas como as dos arbustos cultivados
em jardins: é a florescencia dos tojaes, plantas repulsivas por seus
espinhos, alegres de sua perpetua verdura, unicas a enfeitarem a terra
quando a restante natureza vegetal amarellece, definha, e morre. E
d'esse privilegio como que o agreste arbusto se está gozando
soberbamente; pois que vos amostra as suas pinhas de flôres, e com os
inflexiveis espinhos vos defende o despojal-o d'ellas.
E n'aquelle dia 24 de Dezembro de 1863 andava eu no Minho, por aquella
corda de chans e outeiros, que abrangem quatro leguas entre Santo
Thyrso, Famelicão e Guimarães.
Eu, homem sem familia, sem mão amiga n'este mundo, ha trinta annos
sósinho, sem reminiscencias de caricias maternaes, bem-quisto apenas
d'uns cães, que pareciam amar-me com a clausula de eu os sustentar e
agasalhar; eu, que, n'aquelle tão festivo dia da nossa terra, não tinha
colmado onde me esperasse um amigo pobre para me dar entre os seus um
lugar no escabello, nem parente abastado, que de mim se alembrasse á
hora dos brindes com generosos vinhos em lucidos crystaes, eu, vendo-me
com lagrimas em minha sombra, assim me fôra a contemplar a felicidade
alheia pelas chans e outeiros do devoto Minho.
Eu caminhava a pé, guiando-me ao sabor da imaginativa idéa, que se
deleitava em vestir de folhagem a arvore nua, e tristemente inclinada
sobre o colmado do casalejo. Parava em frente de cada choupana, e
meditava, e escutava o rumor das vozes que lá dentro, ou no ressaio da
horta, se misturavam em dizeres alegres ou cantilenas allusivas ao
nascimento do Deus-menino. Diante dos portões gradeados do proprietario
rico é que eu não parava, nem meditava. Se lá dentro de suas salas iam
alegrias, como em casa do jornaleiro, não sei: o certo era que as
paredes da habitação opulenta não deixavam sahir uma nota para o hymno
geral de graças e jubilo com que a pobreza saudava o Emancipador dos
desherdados, o Senhor dos mundos, nascido e gasalhado nas palhinhas de
um presepio.
O sol, desnublado de vapores, como nas tardes serenas de Julho,
oscillava nas montanhas do poente, e azulejava as grimpas dos
pinheiraes, d'onde eu, a contemplal-o, me esquecera da distancia a que
me alongára da casa hospedeira d'aquella noite. Transmontado o sol,
desceu das cumiadas um toldo pardacento a desdobrar-se pelos plainos, a
confundir-se no fumo das aldêas, a identificar-se com o escuro dos
arvoredos. Fez-se um silencio progressivo e rapido em redor de mim.
Começava a noite sem bafejo de vento. Nem já a rama dos pinhaes
rumorejava aquelle seu saudoso sonido, que se me figura sempre a
inarticulada toada de mui remontadas e remotissimas vozes de mundos que
giram nas profundezas do espaço.
Tirei-me do meu enleio contemplador, e retrocedi pelo mal sabido atalho,
antes que a cerração completa me tolhesse de enxergar ao longe o alvejar
da casa, entre dous outeiros. Não valeu a precaução. Ás abas do
declivoso montado, eram muitos os caminhos a cruzarem-se. Segui um á
sorte; e, como prova de que a sorte nem em escolha de caminhos deixou de
ser-me sempre boa, segui o peor e o mais transviado de todos. Por volta
de sete horas, depois de dobrar uns serros inhabitados, achei-me n'uma
póvoa, onde me disseram que eu, por aquelle caminho, chegaria mais cedo
a Roma que ao local onde me destinava.
A pessoa, que respondeu assim á minha pergunta, fallou-me d'uma janella
envidraçada, e acrescentou:
--O senhor, se não sabe o caminho, como de facto não sabe, pelo tino é
incapaz de acertar. O que eu posso fazer é mandar alguem ensinal-o; mas,
se não é força ir hoje, pernoite n'esta casa, e amanhã irá. Verdade é
que, n'esta noite, custa muito a ficar em casa estranha; porém...
--Todas as casas são estranhas para mim...--respondi eu.
--Pois então, aceite esta que se lhe offerece da melhor vontade. O
portão está aberto. Lá vou abaixo recebel-o.
Entrei n'um vasto pateo, contornado de arcadas semelhantes ás da
claustra monastica. Logo em seguida, o hospitaleiro senhor do magnifico
edificio sahiu do escuro da arcaria, e disse-me antes de me vêr de
perto:
--Eu já sei quem recebo em minha casa, e o meu hospede, se tiver memoria
dos seus relacionados de ha quinze annos, tambem me vai conhecer.
--Pela voz ainda não--disse eu, encarando-o, sem vislumbres de vaga
recordação.
--Alli temos luz--replicou elle--Muito velho e desfigurado devo estar,
se nem á candêa me reconhecer vossê!...
Examinei-o á luz attentamente; e, como nem assim me acudisse á memoria
semelhança de tal homem, retorqui:
--O senhor talvez esteja enganado commigo. É provavel que nos vejamos
agora pela primeira vez.
--Então qual de nós é o romancista? Vossê que os anda a procurar, ou eu
que estou manso, quieto, e estupido em minha casa? Quererá vossê ir
dizer em alguma novella que encontrou n'um recanto do Minho um
visionario chamado Affonso de Teive...
--Affonso de Teive!--exclamei eu--Affonso de Teive... o senhor?! Essas
barbas... essa nutrição...
--E estes oculos...--atalhou elle.
--É verdade... esses oculos...
--E estes tamancos!...
--Pois, devéras, o senhor é Affonso de Teive... tu és Affonso... aquelle
que tinha em Lisboa...
--Uma casa no Campo Grande, e uma parelha de hanoverianas, e um
phaetonte, e uma berlinda, e cavallos arabes, e paixões ideaes, e muitas
paixões sem faisca de idéa... Sou eu! É este homem gordo, intonso, de
oculos, de tamancos, este lavrador, que aqui vês, possuidor d'um
thesouro que os reis do universo disputam ha dezenove seculos uns aos
outros, e as nações disputam aos reis, e os individuos disputam ás
nações, e cada individuo disputa e destroe em si proprio e com as suas
proprias mãos: sabes que thesouro eu possuo, homem?
--A paz?
--A felicidade.
--Isso é uma historia!--atalhei eu--Pois tu achaste a felicidade?... e
tu és realmente Affonso de Teive?... E estes dous pequenos?--perguntei
eu, quando vi dous meninos entre seis e oito annos a correrem em
direitura d'elle--são teus filhos de certo...
--São, e lá em cima não ouves o tropel que fazem os outros seis?
--Pois tens oito filhos?
--Espero o nono brevemente.
--E és...
Retive a palavra. Ia eu perguntar-lhe grosseiramente se elle era feliz
com oito filhos; pergunta desculpavel ao Affonso, que eu conhecera desde
1845 até 1851.
Eu tinha visto Affonso de Teive, em Coimbra, n'aquella primeira época,
matriculado no curso philosophico. Pertencia ao circulo de litteratos,
creadores da _Revista Academica_ e _Trovador_; e tambem, nas horas
furtadas ás palestras litterarias--quasi sempre controversias ácerca da
primazia de Lamartine ou Victor Hugo--pertencia á grande tribu dos
_trossistas_, gente arruadora e desatinada, para quem as saudosas
tradições do famigerado José Lobo não tinham ainda esquecido. Esta
dualidade em Affonso de Teive era uma distincção, que o tornava menos
agradavel aos litteratos circumspectos, e menos estimavel tambem aos
camaradas das assuadas e motins nocturnos. Affonso era poeta n'um genero
galhofeiro, quando queria; e dedilhava o alaude das elegias, se lhe dava
para lastimar-se, ou carpir saudades imaginarias de mulheres, suas
amadas, fugidas d'este lamacento globo para os plainos balsamicos do
céo. É o que me parecera a mim. Tinha dias de escrever jaculatorias em
verso, que dariam fama a um eremita da Thebaida; n'outros dias,
satyrisava a religião, os dogmas, e a propria divindade com os apódos e
dialectica d'um desbragado discipulo de Voltaire. E o mais para assombro
é que elle parecia sentir no coração o ascetismo de hoje, e a impiedade
de ámanhã: agora, iria de poz o pallio da extrema-uncção murmurando as
preces do povo, que não se peja de orar em publico e alta voz; e logo
bem poderia succeder que, encontrando o mesmo prestito, não levasse a
mão á fronte para tirar o gôrro. A um homem assim dotado de tão
contradictorios espiritos, facil seria agourar-lhe grandissimos
dissabores no trajecto da existencia: para os semelhantes d'aquelle
funesto modêlo, as estradas communs da humanidade não conduzem a paragem
nenhuma certa; nem o coração nem o espirito aceitam leis immutaveis; a
moral é um facto, cujas condições deve e póde infringir aquelle a quem
ellas não aproveitam; em summa, Affonso de Teive dava a prever um
desgraçado, a menos que em sua indole não sobreviesse uma das raras
revoluções, que inopinadamente transfiguram o homem moral, se não é o
abalo da mesma desgraça que opera esses prodigiosos reviramentos.
Tal conheci em 1845 em Coimbra o meu hospedeiro minhoto de 1863.
Encontrei-o, depois, no Porto em 1848.
Achei-lhe a mudança que influem os salões nos espiritos, para assim
dizer, incultos da cortezania e graciosidade de que em geral carecem os
mancebos sahidos dos cursos escolares.
Affonso de Teive tinha fama de rico. Escutei o que diziam os almotacés
dos haveres de cada sujeito admittido á sociedade portuense--pessoas,
que á vista do zelo com que indagam os minimos valores do sujeito,
parecem habilitar-se para mordomisarem os bens de quem chega--e ouvi que
Affonso era natural do Minho, filho unico já orphão de pae, e senhor de
sua casa, estimada em cento e cincoenta mil cruzados. Em quanto a
costumes, dizia-se que o rapaz era dado ao namôro, borboleteava por
diversos camarotes do theatro de S. João, assoprava zelos e raivas entre
umas tantas senhoras nos bailes, e pouco mais digno de censura. De
escandalos, não rosnava cousa importante a opinião publica. A mocidade
do Porto, por despeito, ou por outro qualquer sentimento igualmente
natural que desculpavel, é que, no intento de deprimir o Tenorio do
Minho, divulgava, como quem diz muito secretamente a cousa, que varios
maridos andavam enganados com Affonso de Teive; porém, como acontecia
que os maridos indigitados se satyrisavam uns aos outros, observando e
censurando cada um a demasiada confiança do outro, é hoje cousa
difficilima de tirar a limpo se algum dos maridos se enganava, ou se
todos se enganavam, ou se não se enganava nenhum. Se o leitor considera
que seria curioso esquadrinhar o caso, eu de mim entendo que a
humanidade não ganha com isso nada, e por tanto n'este, e em muitos
outros artigos advenientes de moral duvidosa, ponho, e porei ponto,
quando não seja preciso á contextura d'este romance desvelar factos
censuraveis.
Affonso sahiu do Porto n'aquelle mesmo anno de 1848, com destino a
França, segundo uns, e á Turquia, segundo outros. Os d'esta opinião
diziam que elle, convencido de que tinha uma cara oriental, ia para
terra onde podesse vestir-se de modo que o rosto lhe sahisse melhor do
que entre uma gravata de laçarias portentosas e um canudo de felpo
lustroso. E certo era que o typo physionomico do cavalheiro minhoto era
sobremaneira arabe, por causa do nariz fino, dos olhos coruscantes, da
tez azeitonada, do espesso bigode negro, e do comprimento e magresa do
rosto. Se ajuntarmos a este composto de venturosas e aventureiras
feições o estar elle sempre fumegando por cachimbo turco, dir-se-ha que
os turcos é que propriamente, lá na sua terra, o andavam imitando a
elle.
Se foi á Turquia, é de presumir que rivalidades com o sultão, ou--peor
ainda--tentativas de invasão ao harem o obrigaram a voltar a Portugal,
onde os direitos de cada homem e de cada mulher estão muito mais
razoavelmente definidos e garantidos. A verdade é que eu, no fim do anno
seguinte, encontrei Affonso de Teive em Lisboa, cavalgando um donoso
alazão ao lado de uma amazona, cujo mursello fazia admiraveis gentilezas
de picaria. Deu-se este encontro no Campo Grande, n'uma tarde de
corridas equestres. Alguem cuidaria que a soberba cavalleira, d'uma
formosura invejavel na Circassia, devia de ser a esposa raptada d'algum
_gran-visir_; pessoas, porém, melhor informadas, disseram-me que a
esvelta dama era portugueza de lei, portugueza do Minho, dos arrabaldes
de Braga, onde os reaes sensualistas do Islam mandariam subornar as suas
sultanas, se soubessem que n'estas regiões as mulheres, que, por acaso,
sahem feias das mãos da natureza, aprendem a ser bonitas com as flôres.
Releve-se este orientalismo a quem está tratando de cousas asiaticas
como a cara de Affonso, e o garbo peregrino de Palmyra.
Palmyra me disseram que se chamava a gentil creatura.
Posto que eu, em Coimbra e no Porto, me houvesse relacionado algum tanto
intimamente com Affonso de Teive, ainda assim, azado o ensejo de
perguntar-lhe promenores d'aquella conquista--_conquista_ se diz
vulgarmente do que devêra mais de siso chamar-se, fartas vezes,
_derrota_--nada indaguei, visto que elle, com insolito resguardo, se
absteve de me dar ansa a esgaravatar-lhe cousas particulares da
vida--_particulares_, dissemos, para sustentar á palavra a fama que o
diccionario faz correr; sendo aliás de toda a evidencia que não ha ahi
cousa mais nua, mais publica e assoalhada que tudo quanto se chamam
_particularidades da vida privada_, mormente quando o divulgarem-se
torna e redunda em philaucia d'uns tolos celebres, que seriam
invejaveis, se as proprias corôas, com que cingem as frontes, lhes não
dessem muito que doer com os espinhos escondidos--quero dizer em estylo
espalmado: se as proprias mulheres, que lhes dão os triumphos, não
fossem os instrumentos com que a justiça infinita inflige aos
vangloriosos o castigo infernal do seu orgulho.
Foi-me preciso escutar os boatos correntes á conta da mulher que Affonso
de Teive me não apresentou. Observei que ninguem a julgava honestamente,
e assim mesmo ninguem lhe dava um epitheto indecoroso. A civilisação
beneficia assim as mulheres que não podem adjectivar-se publicamente
virtuosas, nem mesmo quando visitam com a esmola a mansarda do doente
desvalido. N'esta especialidade, o jornalismo comporta-se louvavelmente.
Quando um localista pregoa o donativo de alguns lençoes que opulenta
matrona, por variar prazeres d'alma, já cançada dos transitorios gozos
d'outra especie, mandou a um asylo de lazaros, e diz que a humanidade
abençôa a virtuosa senhora, não nos havemos de entalar com este decreto
de virtude: a humanidade manda que o engulamos. O localista tem razão: é
bom que a palavra _virtude_ sirva de piedoso visco á liberalidade de
pessoas, que desejam alguma vez, ao lerem-se _virtuosas_, experimentar a
satisfação de se verem ir á posteridade na secção do noticiario.
O _noticiario_! Ninguem, que me conste, aprofundou ainda o que esta
palavra encerra em si de humanitario! S. Paulo, todos os evangelistas,
as catecheses derramadas de angulo a angulo da terra, em materia de
caridade, não se avantajaram á missão do noticiario.
Se eu não tivesse de convicção minha que as acções meritorias dos gabos
do mundo, quando disparam em proveito geral, não podem desmerecer no
juizo divino, havia de cuidar que a mão, aberta em fontes caudaes de
ouro vertido, como balsamo, sobre as chagas sociaes, bateria ás portas
da região pavorosa, onde o peccado da soberba, alliado da vaidade,
soffre a condemnação prescripta nos codigos de todas as religiões. A
vaidade levanta o palacio em que se acolhem os desamparados d'um tecto
de palha e d'uma enxerga de folha. A vaidade doura-lhe os frontaes do
asylo, atapéta-lhe os porticos, ventila-lhe por janellas de luxuosa
alvenaria os dormitorios, tudo lhe magnifica e opulenta em pedra e
estofo: tudo lhe dá em desconto das dôres da velhice alanceada de
enfermidades; tudo, excepto o pão da alma, a doutrina da paciencia, a
communhão santissima, que refaz o espirito quando o corpo desfallece.
Tudo lhe dá, excepto um padre, um interprete do Christo, que dê vida de
amor ao seio traspassado, e palavra de pae aos labios roixos d'aquelle
crucificado, que lá do fundo do dormitorio contempla inertemente o
deslaçar-se fibra a fibra d'aquelles corpos, alli postos como prêsa
disputada, por mais alguns dias, á aniquilação...
--E não é isto o maximo quilate da beneficencia?
Que hei-de eu responder ao leitor illustrado, que me interrompe, assim
de golpe, um discurso que lhe havia de mortificar o folego, pelo menos?!
Peço-lhe que me deixe contar-lhe em cincoenta linhas, pouco mais ou
menos, como eu vi, n'uma terra d'estes reinos, crear-se, e prosperar um
asylo de pobres.
D. Elvira era uma dama casada, que não tinha por seu marido aquelle amor
que dá ao peito da boa esposa arnez de aço contra as frechas de um
cupido estranho. O marido, nimiamente confiado em seus direitos,
descuidou-se. Aqui está um mal enorme d'onde vamos vêr brotar uma
enchente de beneficios á humanidade. O paradoxo demonstra-se d'este
theor:
D. Elvira, desconfiada dos seus servos e servas, tomou como medianeira
dos seus illicitos amores, uma octogenaria, que tinha quatro irmãos
velhos, um marido velho, duas cunhadas velhas, e cinco sobrinhos velhos,
todos mais ou menos glutões que ella, e alguns muito mais ociosos e
patifes. D. Elvira occorreu por algum tempo ás precisões de toda esta
tribu de immoraes, em obsequio á interventora indispensavel. Uma vez, D.
Elvira orçou as despezas annuaes d'esta peccaminosa obrigação, e pasmou
do seu desperdicio. As avultadas esmolas, de mais a mais, eram secretas,
porque o descobrirem-se daria rasto á suspeita. Na terra havia dous
jornaes, e nenhum lhe tinha ainda chamado virtuosa, ao passo que a sua
presumida rival D. Benedicta por mais d'uma vez tinha sido abençoada
pelas gazetas; em nome do genero humano, em virtude de ter mandado aos
presos os sobejos d'um jantar dado no dia natalicio do marido, a quem
ella estimava tanto como a mim, quando souber que eu duvidei grandemente
da virtude que os jornaes lhe deram. D. Elvira despeitada, um dia que o
marido entrára d'ouvir o tocante sermão de um missionario ácerca de
caridade, commoveu-se, e prégou tambem sobre a mesma virtude theologal.
O marido maravilhou-se, enterneceu-se, e ouviu com lagrimas a proposta
da fundação d'um abrigo de velhos e velhas desamparados, com as
economias da esposa. Discutido o programma, escolhido o edificio,
orçadas as obras de pedra e madeira, chegou a noticia ás gazetas. No dia
seguinte, ambos os jornaes da terra retiraram os seus artigos de fundo
para darem a circumstanciada noticia do caritativo instituto da
virtuosissima senhora D. Elvira. Ambos os periodicos, á compita, lhe
deram estes regalados e maviosos nomes: Pomba de beneficencia; anjo da
caridade; sacerdotisa da lei de Jesus; mãe dos pobres; balsamo dos
afflictos; esteio da decrepidez; lampada do Evangelho!
Lampada não gostou ella que lhe chamassem, porque já a sua rival D.
Benedicta costumava, não sabemos bem porque, chamar-lhe lampadario;
seria talvez porque D. Elvira usava muito de vidrilhos na cabeça, os
quaes brilhavam e scintillavam á maneira de lustre. Seria isso; mas D.
Elvira aceitou os outros nomes com muita satisfação, e com grande faina,
em menos de tres semanas, recolheu os doze velhos que estavam no segredo
da sua caridade. O asylo tinha capacidade para vinte e quatro. Oito dias
depois o numero estava preenchido.
E vai depois D. Benedicta, ciosa da popularidade que a sua rival
vingára, combina-se com o marido, e delinea um outro asylo com
capacidade para quarenta e oito velhos. Os jornaes que tinham gasto com
a outra senhora os adjectivos, substantivos, e pronomes, empregaram em
honra de D. Benedicta as interjeições. O artigo d'um começava por _Ah!_
o artigo do outro jornal por _Oh!_ Fundou-se o asylo de D. Benedicta.
Como na terra não havia tanto velho, alguns marmanjolas de trinta annos,
inimigos do trabalho, ou encanecidos nas cadêas, apresentaram certidão
de idade de sessenta, e esconderam a sua bargantisse sob as azas
caritativas de D. Benedicta, a quem as gazetas chamavam _a santa_!
Aconteceu que passados quatro annos D. Elvira mudasse de residencia para
outro mundo, onde os necrologistas disseram que ella ia receber a palma
do triumpho. A caridade do viuvo esfriou, e veio a um accordo com o
marido da _santa_. Transformaram-se n'um os dous asylos, já abundantes
de esmolas d'outras senhoras virtuosas, e assim chegou este humanissimo
estabelecimento a um grau de prosperidade que não deixa nada a desejar,
segundo asseveram as gazetas da terra.
Agora queira o meu leitor curvar-se um pouquinho, e contemplar a raiz
d'esta arvore evangelica, que braceja tão ridentes frondes e tantos
fructos de benção! Veja que herpes, que podridão, que bicharia lá vai!
E com este episodio respondi á sua pergunta; e peço perdão de ter
ultrapassado as cincoenta linhas promettidas.

II
Sinceramente não sei corrigir-me do vicio das divagações. Ha quem
defenda e demonstre que o romance philosophico deve ser assim alinhavado
a exemplo de Balzac, Sainte-Beuve, Stael, etc. Na Alemanha então
dizem-me que as novellas são tractados de metaphysica. Se as minhas
derramadas e extraviadas divagações fossem ao menos metaphysica! Ser eu,
sem dar tino de mim, um escriptor subtil, imperceptivel, impertinente,
medonho, e, acima de tudo, serio! _Escriptor serio!_ quando se agarra a
fama pelas orelhas, e a gente a obriga a dar pregão da nossa seriedade
de escriptor, a gloria vai procurar os nossos livros serios ás estantes
dos livreiros, e lá se fica a conversar delicias com as brochuras
immoveis, em quanto a traça não dá n'elles e n'ella.
O universo, e a humanidade principalmente ganha muito com os romances
serios: exceptuam-se da humanidade os editores. Um meu amigo publicou
seis volumes de novellas de costumes moraes a ponto de toda a gente
dizer que não haviam taes costumes em Portugal. Recebeu muito abraço
d'umas pessoas que tinham ouvido contar que o meu amigo aconselhava aos
filhos a obediencia aos paes, aos proximos o mutuo amor, e á humanidade
o temor de Deus. As seis novellas eram glossas aos dez mandamentos.
Esperava-se a regeneração das velhas virtudes portuguezas, logo que o
espirito publico se balsamificasse da uncção dos seis livros. Volvidos
porém, uns dous annos, as estatisticas iam delatando em augmento a
criminalidade publica. Espanto no meu amigo author, e desanimação
melancolica nos editores! Não obstante, a gente grave continuava a dizer
que o meu amigo, continuando a escrever por aquelle theor e geito,
endireitaria o mundo. Os editores, porém, observando que o mundo se
entortava cada vez mais para elles, recommendaram ao escriptor moralista
que vendesse a elles romances, e a quem quizesse os sermões. Ora, deu-se
o caso de que este meu amigo era eu em pessoa.
Apesar dos baixios em que foram a pique os meus livros serios, teimo em
ir n'este rumo, discorrendo opportunamente ácerca das grandes cousas e
dos grandes factos como se viu do anterior capitulo.
Volvendo a concluir as reminiscencias que tenho do antigo Affonso de
Teive, resta-me ajuntar que o deixei em Lisboa no anno de 1851, e vim
para o Minho onde me disseram quem era Palmyra, fallando eu em Affonso
de Teive a um cavalheiro de Braga.
Em primeiro lugar, Palmyra tinha outro nome na sua terra. Fôra educada
n'um convento; sahira do convento para casar com o filho do seu tutor,
moço idiota e abominavel; e sahira de sua casa para a de Affonso de
Teive, o qual por um acaso a vira nos arvoredos do Senhor do Monte, e de
se verem á mesma hora em que ambos, embellesados no rumorejar d'arvores
e fontes, pediam ao céo, ella o homem, e elle a mulher do seu destino,
resultou amarem-se tanto que logo d'alli protestaram tacitamente immolar
aos deuses infernaes o marido idiota--destino miserrimo que não
descrimina entre idiotas e atilados. Estas informações sahiram-me com o
tempo inexactas em muitos accidentes.
Não adiantou mais nada o cavalheiro bracharense; e isto já não era pouco
para o meu espanto.
N'essa mesma época, occasionou-se-me conhecer o marido de Theodora,
melhorada em Palmyra. Andava elle na feira do S. Braz em Landim, a
tantos de Fevereiro, comprando bois, e vendendo cevados. Não lhe vi no
semblante leve sombra de dissabor, nem osso descarnado. Vi que elle
comia á tripa fôrra um chorumento jantar de carnes frias, em que
predominavam as galhinaceas. Á sua direita estava uma mocetona
espadauda, escarlate, alta de peitos, e refractaria a toda a idéa de
amor fino.
Disseram-me que esta moça apreciára devidamente o coração rejeitado por
Theodora, e assava com perfeição as louras galinhas de que o marido
abandonado hauria vigor com que resistia briosamente á sua desgraça. Vi
tudo isto; e fiquei satisfeito. A gente folga de vêr assim remediadas as
enfermidades da natureza. Quando em casos analogos, não ha victima nem
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