Amor de Salvação - 03

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raparigas da minha terra, que me procura com uma carta fingida de minha
mãe a pedir-me que receba a portadora como criada; cá no convento
ninguem póde impedir-me que eu a receba; a gente hade ter todo o cuidado
que se não descubra o logro; e... tu... que me dizes, Lóló!
Theodora acudiu com o rosto chammejante de alegria:
--Olha lá, Lili, o meu Affonso tambem tem cara de mulher, pois não
tem?!... Se elle viesse tambem para minha criada era tão bom!
--O peor é que elle é conhecido, por ter cá vindo muitas vezes--observou
Libana--O meu Alfredo é que só veio aqui no principio uma vez, e ninguem
o conhece... Não vamos nós botar tudo a perder, Loló!
--Que pena!--exclamou a morgadinha com os olhos no céo e a mão direita
sobre o coração latejante--Que pena que o meu Affonso não venha tambem
para cá!... Ó Libaninha, vê se inventas alguma cousa, se não a tua amiga
morre de tristeza!...
E, dizendo, escondeu o rosto, aljofrado de quatro lagrimas, no seio da
amiga.
Que lagrimas! D'onde veio ou para onde foi o anjo da innocencia, quando
um peito virgem tem d'aquellas lagrimas, e uns olhos, que ainda não
viram os hediondos espectaculos da farça do mundo, podem choral-as!
Fechou-se a noite. Já a sineta havia chamado as duas meninas rebeldes ao
primeiro e segundo aviso. Ergueram-se, deram-se o braço, e foram, na
cella de Theodora, continuar o recendente colloquio do jardim.
Theodora, a não poder ser feliz, exultava com as venturas da sua amiga.
Animou-a á temeridade de receber o atrevido rapazola de Tras-os-Montes,
idolatra d'um personagem de romance, unico que em sua vida lêra, o
_Lovelace_, de quem se propunha imitar o entrajamento de mulher. O tolo!
Ainda bem que as asneiras, copiadas dos romances, costumam ter, na vida
real, umas sahidas muito desgraçadas ou irrisorias! Ainda bem, para
desdouro dos livros desmoralisadores, e luzimento d'outros livros de san
moral, que só fazem mal ao publicador que os não vende.
Este Alfredo, que vivia occulto nas cercanias de Braga, applaudido por
Libana em seu projecto, foi á sua terra preparar os vestidos, e
ensaiar-se em tregeitos mulheris.
Libana tinha uns irmãos, oriundos do mesmo tronco de pae e mãe, os quaes
pelos modos, não tinham de que espantar-se do descomedimento e desatino
da filha e irman; d'onde vinha o serem elles grandemente avelhacados,
astustos, e espiões das tramoias de Alfredo.
A villa era pequena e de soalheiro. Correu logo por algumas boccas, até
aos ouvidos dos interessados, o estar-se fazendo roupinhas e saiotes, e
outros atafaes de mulher, afeiçoados ao corpo de Alfredo. Sem detença,
um dos irmãos de Libana sahiu para Braga; o outro ficou d'atalaia aos
movimentos do imitador de Lovelace. O que se escondera em Braga foi
avisado a tempo que Alfredo vinha de jornada. Uma engenhosa combinação
com as authoridades lançou a rede tão a ponto que o infeliz foi
capturado na portaria das Ursulinas, vestido de camponeza transmontana,
e d'alli, entre baionetas, e escoltado de rapazio, percorreu todas as
estações judiciarias desde o regedor até ás caricias do carcereiro.
As religiosas, conscias do escandalo, requereram ao prelado bracharense
a expulsão da reclusa que deshonrava o convento e contaminava de sua
desmoralisação as outras meninas. Foi, portanto, Libana entregue a seu
irmão, que a levou para casa. Esperava-se geralmente que esta donzella,
agourada para estremados desastres, tivesse um fim de exemplo a mulheres
desgarradas do trilho da virtude. Os prognosticos da opinião publica
erraram, como se ha-de vêr n'um futuro livro.
A gente não sabe ainda bem como este mundo está feito.

VI
O escandalo, que felizmente abortou á portaria do convento, poz de
sobre-rolda os paes de familia, que tinham meninas a educar nas
Ursulinas, e deu ás insomnes freiras um sexto sentido de observação.
Dentro do mosteiro reinava a opinião de que Theodora tinha bastante
capacidade para tomar criada, conforme o gorado systema de Libana. Além
d'isto, depois da expulsão da transmontana, a morgadinha, em vez de
quebrar de orgulho e reportar-se, enfuriou-se mais, e sahia com
invectivas e chacotas ás freiras velhas, clamando a vozes descompostas
que a mandassem embora, se lhes não servia assim. A communidade
offendida e esgotada de paciencia, consultado o tutor da educanda,
assumiu o uso ou o abuso dos antigos poderes monasticos, e encerrou-a no
seu quarto, com ameaças de a fecharem no tronco. Theodora esmoreceu
diante da força mixta das freiras e dos padres capellaens, que
promettiam supprir com o pulso a inefficacia da eloquencia persuasiva.
Vagamente informado da situação da sua amada, Affonso de Teive foi á
portaria do convento, no heroico proposito de ir arrancar a victima de
sobre as aras da theocracia despotica. A porteira, senhora de oculos e
de muita virtude, offereceu peito de martyr ás injurias impias do
acriançado amante. Porém, como quer que o acaso alli encaminhasse um
cabo de policia, quando Affonso gesticulava e vociferava um menos mau
improviso contra os conventos, o cabo, com as mãos atadas na cabeça,
correu ao regedor, e este acudiu no supremo lance, já quando o
allucinado alumno de rhetorica, estrondeava na porta valentes murros,
chamando Theodora a clamorosos gritos.
Travado pelos braços pujantes das authoridades, Affonso não pôde
resistir á surpreza do assalto. Escabujou e esbraveou em quanto as
forças da raiva o aqueceram; a final cahiu exanime nos braços da lei,
balbuciando ainda «Theodora!» Estava a instaurar-se-lhe processo, quando
a fidalga de Ruivães chegou a desfazer com a sua respeitavel presença, e
auxilio dos mais importantes cavalheiros de Braga, a criminalidade
pueril do filho.
Affonso, levado por sua mãe, foi para casa, deliberado a deixar-se
morrer. Cahiu de cama, e tresvariou em febres de mau caracter. Todavia,
os cuidados maternaes, cooperados pela robusta natureza dos dezeseis
annos, salvaram-no. Os olhos, durante a morosa convalescença,
choraram-lhe de continuo; os sonhos eram-lhe ainda supplicios de que
despertava em brados e soluços; não obstante, a cura do amor, que chora,
é certa: ferida de coração, onde possa chegar o agro e adstringente de
uma lagrima, cicatriza cedo ou tarde. Amores incuraveis são os que
desabafam em rancorosas explosões.
A parentela do illustre pimpolho, alvorotada pelas lastimas da fidalga,
reunira-se em conselho, e alvidrára que Affonso de Teive fosse completar
os estudos preparatorios em Lisboa, hospedando-se em casa d'um seu tio
desembargador. O moço obedeceu ás exhortações e rogos de sua mãe, depois
que a extremosa senhora lhe prometteu e asseverou que, a despeito de
tudo e de todos, Theodora, no praso de um anno, seria sua esposa.
Os parentes embicaram, resmoneando que o morgadio da Fervença o era só
em nome, sem vinculo, nem fôro em ascendente conhecido. Contra estas
razões se insurgiu Affonso em termos que fariam a illustração
democratica d'um botequineiro antes de ser cavalleiro do habito de
Christo. A fidalga, mais ufana de proceder do tronco dos primitivos
christãos, iguaes entre si e iguaes ante Deus, que vaidosa de
aparentar-se com os Pinheiros de Barcellos, e os Corrêas e Lacerdas da
Honra de Farelaens, votou com seu filho, dizendo «que na casa de Ruivães
sobejava a fidalguia e faltava a felicidade.»
Foi Affonso para Lisboa com o capellão. O tio desembargador gasalhou-o
nos braços, e as primas, filhas do bondoso magistrado, á mingua d'um
irmão, começaram logo a dizer que Deus lhes dera um, e, como tal, o não
deixariam voltar mais, sem ellas, á provincia.
Pouco montam tantas caricias para o contentamento de Affonso. Ralam-no
saudades, emmagrecem-no os jejuns, amarellece-o a tristeza. Nas aulas é
mau estudante; no circulo dos condiscipulos é um automato que ri por
comprazer, e vai sem saber que vai para onde o impellem; em casa com as
primas é um aborrecido, que nem ao menos as acha bonitas, nem scisma
sequer em adivinhar as charadas metricas, e logogriphos figurados, em
que todas são eximias, e sobre modo impertinentes.
A senhora de Ruivães recebe de todos os correios instantes cartas de
Affonso accelerando as diligencias para o casamento. A consternada mãe
já por terceiras pessoas mandou sondar as difficuldades que importa
combater. De Braga dizem-lhe que Theodora já sahiu do encerramento da
cella, e tem o convento todo por homenagem, salvo o palratorio e a
cêrca. Ajuntam as informações que o tutor da morgada frequenta
semanalmente o convento, e algumas vezes vai com elle um filho, rapaz de
figura absurda, com uma gravata vermelha, capaz de seduzir uma nação de
pretos, e uma casaca archeologica, de cabeção tão copioso que parecia
enrolar um capote.
A descripção poderia ser acoimada de desgraciosa; mas de hyperbole não.
Este sujeito chama-se Eleuterio Romão dos Santos, por ser filho de
Eleuteria Joaquina, e de Romão dos Santos, tutor de Theodora, lavrador
abastado, visinho do mosteiro de Tibães.
Eleuterio tem vinte e dous annos; quiz aprender a lêr com seu tio padre
Hilario; mas a natureza oppoz-se-lhe, logo que elle, apoz um anno de
canceira, entrou a soletrar palavras de tres syllabas. Vencido pela
natureza, padre Hilario desistiu, visto que lhe era vedado arejar o
cerebro do sobrinho por uma fresta aberta a machado.
O filho unico de Romão dos Santos recebeu em upas de alegria a noticia
da sua incapacidade para soletrar nomes de tres syllabas. No dia
seguinte, o pae mandou-o á feira dos nove com uma junta de bois. O rapaz
effectuou a venda dos bois com tamanha astucia e vantagem que logo
d'alli se deu a conhecer a sua vocação. Uma segunda mercancia
robusteceu-lhe o credito, que outras vieram confirmando, até que Romão
deu ordem illimitada de dinheiro a Eleuterio para poder negociar em
bezerros e vitellas.
Estava o rapaz n'este auge de glorificação propria, e inveja dos
visinhos, quando falleceu a mãe de Theodora. A orphan, apenas sua mãe
cerrou olhos, foi conduzida para casa de Romão, seu tio paterno. A
criança ia lagrimosa e carecida de meiguices e consolações de alguma
senhora, que lhe fallasse a linguagem polida á qual estava afeita. Em
casa de Romão havia sómente a snr.ª Eleuteria Joaquina, creatura chan,
que, a cada soluço da sobrinha, dizia quasi sempre:
--Não chores, pequena; que a morte é portêllo que todos temos de passar.
E, para não dizer sempre o mesmo, variava d'este theor:
--Isto, como o outro que diz, é hoje tu, amanhã eu.
Eleuterio, porém, menos versado em lugares communs de pezames aldéãos,
querendo consolar sua prima, tirou estas palavras do peito:
--Senhora prima, olhe que o chorar faz mal ás meninas dos olhos.
Deixe-se de estar a suspirar, que não lhe dá remedio. Agora o mais
acertado é divertir-se pelas feiras. Vem ahi a de Villa Nova de
Famelicão, onde eu levo vinte e duas juntas de bezerros. Se a snr.ª
prima quizer, vamos comprar de meias algum gado, e deixe cá isso á minha
vigilancia, que eu, dentro d'um anno, prometto dar-lhe dinheiro de ganho
com que ha-de comprar um grilhão de duzentos mil réis, e umas arrecadas
de lhe chegarem aos hombros. O mais quem morreu morreu, é ditado dos
velhos.
--Quem morreu é rezar-lhe por alma--atalhou com má grammatica, mas com
piedosa intenção, o tio padre Hilario.
Theodora estava a rebentar de raiva, quando Eleuterio recolheu ao bucho
das cruas sandices outras muitas que já lhe ferviam nos gorgomilos.
Ahi está uma amostra de Eleuterio Romão dos Santos.
O conselho de familia deliberou o ingresso da orphan nas Ursulinas. A
menina acolheu agradavelmente a noticia, por se desentalar assim da
oppressão do primo alvar, e da tia, mais boçal do que racionalmente se
deve permittir á bondade de uma pessoa qualquer.
Logo que a mãe de Theodora morreu, o tio, que lhe conhecia o valor dos
bens, lançou contas ao futuro, e deu como realisavel um casamento, que
vinha a ligar as duas casas maiores da freguezia. Custou-lhe a ceder que
a pupilla se lhe distanciasse de casa; mas os votos dos outros membros
venceram, fundados na precisão de educar a menina, que fôra creada com
mestras, e de todo estranha á vida agricola.
Entretanto, Romão predispoz o filho a cuidar seriamente no _bonito
arranjo, que lhe sahia a talho de fouce_: estylo figurado e pittoresco
em que são inventivos os nossos camponezes, e em que Romão primava
sempre que tinha entre mãos algum _bonito arranjo_, o qual vinha a ser
sempre um arranjo feio para o proximo.
Eleuterio, ao principio, disse que a prima lhe parecia um arenque.
Fundava o desdenhoso a sua critica na magreza delicada e cortezan de
Theodora. Entre os galans da estôfa de Eleuterio mulher de encher olho
queria-se vermelhaça, alta de peitos, ancha de quadris, roliça e grossa
de pulsos, com os queixos tumidos de gargalhadas estridulas, e as
facecias equivocas, e os estribilhos patuscos sempre engatilhados nos
beiços grossos e oleáceos. Theodora era o envez de tudo isto.
Faz pena vir aqui a ponto o descrevel-a, quando o contraste lhe fica tão
de perto.
Theodora, aos dezeseis annos, era um modêlo acabado de formosura, como
raras se vos deparam nas raças patricias, que o concurso de
circumstancias, umas espirituaes, outras physiologicas, aprimoraram. A
pallidez era n'ella o principal caracteristico das bellezas de eleição,
á escolha de olhos onde parece que os nervos opticos vem da alma, e não
do cerebro a tecerem a retina. A mulher pallida é a que vem cantada em
poemas e estremada em romances: ora, quando a poesia e prosa conspiram a
dar a realesa do amar e padecer á mulher pallida, havemos de curvar-lhe
o joelho, na certeza de que ella se fará amante e martyr, por amor do
poema e do romance, ainda mesmo que a natureza lhe tenha temperado o
coração d'aço. Póde ser que semelhante clausula, no decurso d'este
livro, acuda á retentiva do leitor.
Relumbravam no alvor das faces de Theodora olhos negros, não vivos,
antes morbidos, como se a queda das longas palpebras, iriadas de veias
azuladas, lhes vedasse o raio de luz em cheio que rebrilha, aquece, e
regira os globos visuaes. Do nariz diremos que, n'esta feição, a mais
rebelde aos desvelos da natureza, tão extremada se mostrára ella, que
bastante lhe fôra aquella perfeição para desmentir os que a taxam de
desprimorosa. Em labios, não sei se me valha das figuras antigas--rosas
e coraes, romans e carmim--se me avenha com esta verdade prompta e
fluentissima que d'um traço copia como o pincel, e d'uma phrase exprime
tudo, como em phrases de Castilho: «era um osculo perpetuo de
innocencia.» Como isto sahe bem na musica da expressão; e que bello
seria o mundo, se as boccas formosas estivessem sempre absorvidas no
osculo perpetuo da innocencia! Ó Theodora, se tu então morresses, o teu
rosto trasladado em marfim, ainda agora nos seria a imagem dos labios
nunca despregados do beijo d'algum anjo, resabiado ainda da
voluptuosidade dos anjos mal-avindos com o candor celestial. Mas tu
cresceste, e deformaste-te, ó chrysalida! A tua essencia de céo vaporou
para lá no alar-se de alguma virgem, irman tua, que o Senhor chamou na
ante-manhã do primeiro dia nebuloso de sua vida; e o que de ti ficou foi
a formosura e a desgraça da mulher.
Mas, afóra a essencia pura do céo, que esvelta, que peregrina mulher cá
se ficou a ostentar as galas mundanas, esse opulento nada que desaba do
altar da nossa idolatria a um roer surdo de vermes e podridão!
Esta ultima palavra tolhe-me de continuar a descrever Theodora.
Esmoreceram-me os espiritos. Cahi da minha phantasia na lagôa fétida da
verdade. Achei-me como ás margens d'uma sepultura regélida do giar d'uma
noite de Dezembro. Parou-me o sangue no pulso, inteiriçaram-se-me os
dedos, e a penna desprende-se. Assobia o nordeste pelas arestas dos
jazigos, e remexe e sacode de sobre esta pedra umas corôas humidas de
orvalho, crystallizado em lagrimas; são corôas de perpetuas sagradas á
formosura, que se julgou immorredoura, á sexta hora do seu breve dia. Lá
vão as corôas no bulcão do vento; lá vão esgalhadas as frondes do chorão
e do cypreste; lá vai tudo; a memoria dos vivos lá se foge tambem d'esta
sepultura: tudo foi; só tu ficaste, ó Cruz!

VII
Belleza absoluta, de têlhas abaixo, ha uma só, que é a da mulher
formosa; e, na variada manifestação de belleza em diversidade de typos,
ha uma superior formosura, que constitue o bello universal, o bello que
prende e leva todos os olhos. A mulher, assim dotada, tanto impressiona
o espirito educado na visão e admiração das maravilhas da natureza e
arte, como o espirito desculto de toda a compostura e discernimento.
Dá-se o exemplo d'esta cousa formulada em these abstrusa na embriagadora
influição dos olhos de Theodora no animo selvagem de Eleuterio. A menina
de quatorze annos, que o lerdo vaqueiro comparava a um arenque,
appareceu-lhe aos dezeseis na grade do convento, e atordoou-o. O moço,
querendo exprimir ao pae a sensação recebida n'aquella hora, disse com
expansiva naturalidade:
--Quando ella me espetava os olhos, havia de dizer que a minha alma
estava fóra do corpo! Eu queria dizer-lhe alguma cousa, e a lingua
grudava-se-me ao céo da bocca. Quem me dera ser rei, e que ella fosse
uma pastora de cabras!
Se a linguagem fosse mais joeirada de plebeismos, a concisão da idéa
poderia attribuir-se a Shakspeare. A mais crystallina agua é a que
rebenta de penhascos ermos: assim, de espiritos selvaticos, resaltam por
vezes umas idéas limpidas, d'uma sensibilidade original, que faz pensar.
Romão ficou contente da resposta, decorou-a, e assim a pespegou a
Theodora. A menina, vesada á linguagem mais florida ou mais delicada de
Affonso, riu interiormente dos termos rusticos do primo, e de fóra
compoz o gesto para fingir que o não entendera. O tutor, porém,
instinctivo avaliador do capital do tempo, sem saber que os economistas
inglezes chamavam ao tempo capital, repetiu, já dilucidando-as, as
palavras de Eleuterio, aproando o discurso ao ditoso remanso do
casamento, que elle, na sua locução figurativa, denominava um _lindo
arranjo_.
A morgadinha ouviu anciada o tio, e respondeu com um ataque de nervos,
que era já o terceiro que a insultava; sympathica doença em meninas
pallidas, se é o amor contrariado que lhes desmancha o apparelho
nervoso. Theodora soluçava agudos gemidos, que iam reboando pelos
dormitorios. Acudiram algumas freiras, e transferiram-na á sua cella. A
prelada foi á grade averiguar do accidente, e sahiu convencida de que a
orphan era uma douda, a quem Libana, de impudíca memoria, ensinára a
fingir ataques nervosos. Romão dos Santos sahíra do convento no
proposito de consultar um egresso do Carmo sobre os tregeitos e feitios
que vira em sua sobrinha, para applicar-se-lhe a reza purgativa de
demonios, se o frade entendesse que ella os tinha no corpo. O zeloso e
invencivel demonifugo foi ao convento, avistou-se com a suspeita
energumena, mandou ás freiras que depozessem ácêrca das malfeitorias
attribuidas ao espirito immundo, e retirou-se capacitado de que a
morgada da Fervença estava possessa d'uma legião de travessos e
intrigantes diabinhos que usam, contra todo o natural, aninhar-se entre
religiosas, não as poupando mesmo, quando ellas tomassem o expediente
salvador do conhecido gallego da fabula de Almeida Garrett. Era
illustrado o egresso.
No entretanto, soubera Theodora que Affonso de Teive fôra para Lisboa.
Esta partida azedou-lhe a vaidade, sem embargo de ter sabido a
destemperada arremettida que elle fizera contra a porteira, e as
vergonhas e trabalhos que lhe ia custando ao pobre moço aquella façanha.
Porém, ninguem lhe dissera que dôres o pozeram á borda da sepultura, que
saudades o crucificavam em Lisboa, e que vans solicitações fazia a mãe
de Affonso para assegurar á filha da sua defunta amiga a certa
realisação do casamento.
Sobreveio ao despeito o enojo crescente, que mortificava a reclusa,
sempre espiada, e perseguida de velhas conselheiras, que tomaram á sua
conta salval-a. Ao despeito e ao enojo, acresceu o visital-a com mais
frequencia, e um pouco melhorado de figura, seu primo Eleuterio.
D'antes, a cabeça exterior do moço era horrida, toda escadeada da
tesoura habil em tosquiar rezes, tufada de grenhas, com umas rêpas
caracoladas sobre as orelhas, e aquelle todo lustroso de azeite. Depois,
appareceu Eleuterio com o cabello cortado á escovinha, e os caracoes
banidos. Depoz a casaca no gavetão-museu da familia, e envergou uma
judia, como se usava então, com matizes e florões nas costas, e borlas
de apertar no pescoço. A pantalona continuava-se em polaina até á ponta
do pé, e abotoava sobre meio palmo do artelho com botões de
madre-perola. Além d'isto, o pae deu-lhe o relogio avoengo, que, no
continente e conteudo de caixas sobrepostas, parecia a baixella d'uma
familia, desde a tina do banho até á bacia do lavatorio. Os berloques
d'este thesouro, que não regulava ha quarenta annos, eram placas de
differentes pedras, e sinetes periformes de tal tamanho, que pareciam
armas de defeza.
Theodora custou-lhe a reconhecer o primo Eleuterio, afóra mãos e pés,
que nenhuns outros podiam confundir-se com os d'elle, a despeito mesmo
das torturas em que os trazia entalados. O rapaz tinha conquistado de
sua prima uma admiração comparativa: era já grande salto dado para
dentro do coração da menina.
Li em algures, e estou convencido d'uma verdade que sôa como paradoxo: e
é que o espirito de cada pessoa tem muito que vêr com o modo como ella
está entrajada. A intellectualidade apouca-se e confrange-se quando o
sujeito se olha em si, e se desgosta da compostura dos seus vestidos. O
desaire do espirito como que se identifica ao desaire do corpo. As idéas
sahem coxas e esconças do cerebro; a expressão tardia e canhestra
denuncia o retrahimento da alma: ha o quer que seja phenomenal que eu
tivera em conta de desvario meu, se muitos sujeitos me não tivessem
confessado semelhantes segredos de psycologia, em que o alfaiate
exercita importante alçada.
Demonstrado isto, explica-se o atavio de palavras com que Eleuterio se
sahiu no palratorio, no dia em que se mostrou desfigurado a Theodora. De
vez em quando, o moço baixava modestamente os olhos requebrados sobre os
berloques, e ao levantal-os para sua prima já nos beiços lhe borbulhava
alguma idéa bonita. Igual fortuna o bafejava, quando, acaso ou por
acinte, se via de polainas, abotoadas tanto ao justo da canella, que se
ficava algum tempo narcisando nos pés.
D'este primeiro colloquio sahiu a morgada pensativa. Algumas senhoras,
grandemente e astuciosamente admiradas, entraram na cella da menina a
perguntar-lhe se era, em verdade, seu primo Eleuterio o paralta que a
visitára. Theodora respondia que sim entre ufana e desdenhosa. As
freiras benziam-se, e exclamavam:
--Que perfeito rapaz elle se fez! Ninguem havia de dizer o que sahia
d'alli! Em Braga não passeia outro que o valha, nem quem o exceda.
--Seu primo é uma figura que dá na vista!--ajuntava a mais maliciosa das
freiras para não ficar em peccado com a sua consciencia.
Theodora, quando acordou na manhã seguinte, viu duas imagens: uma a
ennevoar-se e esvair-se como sonho que a memoria não póde já reter: era
a imagem de Affonso; outra avultou-lhe completa nos menores traços,
radiosa, animada e animadora: era a imagem de Eleuterio Romão dos
Santos.
Ergueu-se alegre, abriu a janella do seu cubiculo, aspirou o ar do céo
que nunca lhe parecera de tão lindo azul, e invejou as aves que
volitavam mui serenas gorgeando, ou regirando umas jubilosas voltas, que
á menina se figuraram as delicias da liberdade.
Amava ella Eleuterio Romão?! Não amava, disse-o ella, e eu juro nas
palavras de Theodora. O que ella amava era a liberdade; os anhelos de
sua alma anciavam sofregos um viver, que o temperamento lhe estava
pedindo a gritos, gritos que a sociedade não escuta, não acredita, e não
perdôa. O que ella via em Eleuterio era o homem já desfigurado da
repulsão primeira; o homem aceitavel como libertador de um seio que quer
encher-se de perfumes, sem se dar em servidão ao homem, que lhe vai
descancellar os adytos do mundo. Assim é que muitas mulheres tem amado
aquelles que as salvam; d'este amor, assim chamado por não haver mais
elastico epitheto que dar á cousa, é que surdem os irremediaveis
infortunios, os odios irreconciliaveis, e as affrontas que levantam as
campas, encerram algozes e victimas, e ficam ainda de pé sobre ás lousas
infamadas, pregoando o opprobrio dos filhos gerados no crime e
amaldiçoados na infamia de suas mães... Colho as vélas; que, n'este
rumo, ia varar em semsaboria encapotada em moralisação: cousa duas vezes
importuna.
Conseguira, n'este tempo, a senhora de Ruivães que uma secular das
Ursulinas entregasse uma carta á morgada, carta de esperanças, alento, e
consolações, com miudas noticias dos padecimentos do filho em Ruivães, e
das penas e receios que o desesperavam em Lisboa. Terminava a carta
promettendo á menina que, antes de cumpridos dous annos, os votos de
todos se haviam de realisar diante de Deus, com tanto que Theodora
con-servasse firmeza, coragem, e constancia.
--Dous annos!--disse entre si a morgada--Esperar dous annos n'este
purgatorio!... Se Affonso me ama, porque não ha-de vir já roubar-me
d'este carcere? Dous annos! e viveria eu aqui tanto tempo á espera de
não sei que?! Eu captiva aqui dous annos, e elle em Lisboa a
divertir-se!... Se ao menos eu o esperasse em liberdade, os dias iriam
menos arrastados; mas, privada dos prazeres que elle está gozando,
esperar um futuro talvez duvidoso... é loucura! Quem me diz a mim que
Affonso, n'este espaço tamanho de tempo, se não apaixona por outra? Se
me elle ama, como dizia, e a mãe me diz agora, quem nos impede de
casarmos já? Se somos muito novos, lá virá occasião de envelhecermos. O
que eu tenho, meu é já; ninguem m'o rouba por eu casar contra vontade do
conselho de familia... Dous annos!...
E, n'aquelle dia e nos dous seguintes, Theodora, de cinco em cinco
minutos, dizia: _Dous annos!_ e ficava meditativa, até de novo exclamar:
_Dous annos!_
Respondeu a morgada á mãe de Affonso que a sua saude se havia perdido na
oppressão e dissabores d'aquella vida, em que tão contrariada se via.
Dizia mais que a precisão de se livrar de tal captiveiro a obrigaria a
dar-se como esposa a um homem que ella não amasse. Queixava-se da
ausencia e silencio de Affonso, e citava o namorado da sua amiga Libana
como exemplo de rapazes apaixonados. Concluia desejando a Affonso todas
as venturas d'este mundo, em quanto ella se deliberava a experimentar
todas as desditas.
A virtuosa de Ruivães, lendo o final da inesperada carta, acolheu-se á
sua capella, e longo tempo esteve em joelhos pedindo á Virgem que
defendesse Theodora dos seus funestos instinctos.
E, desde aquella hora, a mãe de Affonso, com quanta delicadeza de
admoestação e brandura affectuosa pôde, desviou o filho de pensar em
Theodora como futura companheira de sua vida. Affonso pedia
instantemente explicações de tal mudança no espirito de sua mãe; e ella,
podendo responder com o mais idoneo documento, que era a propria carta
da morgada, dilatava as suas razões para mais tarde. E, ao mesmo tempo,
escrevendo a Theodora, conjurava-a a ter mão de sua imprudente mocidade,
descrevia-lhe o quasi nada que conhecia do mundo, citava-a para diante
da virtuosa memoria de sua mãe; mas não mais lhe fallou de Affonso.
A morgada não deu peso a tal omissão, nem achou rasoavel o
sentimentalismo da fidalga; irritou-se mais por lhe não responderem ao
artigo essencial de sua carta, que era apressar-se o casamento, visto
que a sua saude corria perigo.
Eleuterio, cada vez mais assiduo na grade, já tinha uma outra judia côr
de alecrim, outras pantalonas apolainadas, um collete de veludo
escarlate, e um cavallo de marca, apparelhado a primor, e obediente ao
freio para todo o genero de upas e galões. Theodora gostou d'isto, por
que um dos anhelos era a equitação: sonhara-se muitas vezes cavalgando
selim razo, trajada em amazona, com as dobras do amplo véo ondulando no
phrenesi de desapoderado galope. O cavallo--faz pejo dizel-o! foi muito
no determinar-se a morgada a responder categoricamente ás timidas
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