Amor de Salvação - 10

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Se eu morrer--e ainda bem!--antes d'esse dia (dia, talvez, inevitavel!)
deixarei dito a Mafalda que seja sempre o que tua mãe e eu fomos para
ti: o coração devotado sem condições. Adeus. Quando tiveres vagar,
escreve-nos de Paris--Teu tio _F. de Teive_.»
«Alegrou-me a nova da ausencia de Palmyra de Lisboa. O dragão do ciume
desencravou-me as garras do peito. Que estupida alegria! A suspensão da
perfidia que importava ao desaggravo do meu orgulho? Quão lastimaveis e
ridiculos somos, se uma vez perdemos o norte da legitima, da decente
probidade! Nenhum liame da sã moral resiste ao cancro do coração. Até o
regenerarmo-nos tem para nós um certo ar de baixeza de animo, scena de
comedia que faz rir o mundo.
«E eu, ancioso de um mundo novo, fui para França. Que cuidas tu que eu
ia procurar em França?
--O methodo mais facil de gastar os trinta mil cruzados--respondi eu.
--Não me lembravam os trinta mil cruzados: ia procurar uma mulher; ia
procurar o amor de salvação.
--E encontraste-o em França?
--Encontrei.
--Vejamos.

XX
Ao oitavo dia de residencia em Paris, Affonso de Teive não sabia que
fazer da sua pesada inercia. Fechado no quarto de um hotel, ouvia os
estrondos da Babylonia, e suspirava pelos silencios da sua aldêa.
Apresentára as cartas de cavalheiros de Lisboa na embaixada portugueza,
recebera a visita dos compatriotas distinctos em Paris, e convivera nos
primeiros dias em bailes, theatros, e jantares. Saciou-se prestes
aquella contrafeita sofreguidão de vida, e logo uma subita e glacial
atonia lhe ennegreceu os prazeres, almejados de longe, como iniciação
para outros, que inteiramente lhe obliterassem da memoria as dôres
passadas.
E, no termo de oito dias, uma consolação unica lhe restava: era o
ante-gosto de voltar á casa deserta de Ruivães, e esperar alli ao lado
do jazigo de seus paes o breve termo de sua irremediavel tristeza.
Affonso, porém, tinha vinte e quatro annos. A natureza contramina estas
renunciações intempestivas. Uns repentes impensados sacodem a alma de
sua modorra, e a sobre-excitam a desejos vagos, bem que ephemeros. A
materia não é um impassivel envoltorio de corações entorpecidos. É
preciso que a vida sensitiva se amorteça antes da actividade moral para
que as paixões mallogradas vinguem o total quebranto do homem.
Entrou Affonso na sociedade, levado pela mão da esperança, que promettia
guial-o ao pé da mulher salvadora. Mal encaminhado ia aos salões de
Paris. Os conhecedores d'aquelle «mundo» contaram-lhe as historias de
cada mulher, que tinha ares de poder salvar alguem: no geral eram
creaturas, que procuravam quem as salvasse das incertezas do futuro pelo
casamento justificado e santificado com algumas centenas de milhares de
francos. Estas eram as filhas dos generaes do imperio, as filhas dos
estadistas em começo de fortuna, as filhas dos gentis-homens cujos
appellidos contavam sua antiguidade de Carlos Magno para além. E todas
estas meninas, esperançadas em salvação, e em requesta de salvadores,
quando encaravam no vulto melancolico de Affonso de Teive, imaginavam-no
um galante moço que, ao contemplal-as, dizia magoadamente entre si: «Se
eu fosse rico!...» E ellas, olhando-o de soslaio com discreta reserva,
diziam: «Se tu fosses rico!...»
Quando Affonso tomou a peito rectificar este juizo dos seus amigos,
avisinhou-se das mais aureoladas do azul-celeste da innocencia, e
averiguou que as mais singelas á vista eram as que mais a ponto
fallavam, em termos rigorosamente arithmeticos, de fortunas
deslumbrantes, de casamentos projectados. E, se elle, com a portugueza e
bemdita poesia dos nossos amores de sala, aventurava algumas phrases de
idyllio sobreposse, as ligeirissimas creaturas ouviam-no distrahidas,
como, no theatro, ouviriam musica de Donizetti, e encheriam de melodias
a alma, em quanto assestavam o binoculo no filho do banqueiro.
Comprehendeu logo Affonso de Teive que não servia á alta sociedade
parisiense. Um forasteiro, que vai a Paris com trinta mil cruzados, e
deixa na patria uma quinta, que valeria menos de metade d'aquella
quantia improductiva, deve contar que no caminho do hotel aos theatros e
salas, aos festins e concertos, em menos de dous annos, com alguma
parcimonia nas despezas, se lhe hão-de escoar as ultimas mealhas. Os
haveres de Affonso, postos á disposição da filha do marechal do imperio
ou do marquez decahido com os Bourbons, dariam uma dezena de _toilettes_
da esposa. Esta dura verdade calou-lhe no animo, afastando-o do concurso
de mancebos, que malbaratavam cada mez fortuna sobreexcedente á d'elle.
Penoso desengano ás portas do grande mundo onde elle tencionára
retemperar o coração ao bafejo das primeiras mulheres da época, e da
França. Tinha, por tanto, que descer ás inferiores camadas, abaixo mesmo
da media. N'esta mais difficil lhe seria o escolher um rosto distincto e
uma alma no estado da innocencia do anjo: trancava-lhe as portas a
cobiça que lá vai dentro, imitando-as a elevarem-se até emparelharem com
as invejadas mulheres da classe alta. Elle, cuja razão se alumiára á luz
do facho do universo, á luz de Paris, viu-se qual era, correu-se da sua
comparativa pobreza, e refugiu dos bailes, das cêas, e dos concursos em
que o seu peculio se ia desnervando á custa de sangrias inevitaveis.
Madrugou, um dia, Affonso de Teive ambicioso de riqueza. N'esta hora, e
pelo tempo fóra de oito mezes, fez-se em seu coração um quietismo
espantoso! Descuidou-se do esmero no trajar; era-lhe já como
indifferente o reparo da mulher. Vendeu o tilbury e o cavallo. Mudou
para hotel menos dispendioso. Traçou plano de batalha á fortuna, e
entrou no jogo de fundos, onde os felizes, a um relanço de olhos da boa
fada, accumulavam enormes cabedaes, facto demonstrado por milhares de
exemplos.
Foi feliz nos ensaios timidos, e em pouco. Prosperaram-lhe outros de
maior risco. Cuidou-se bemfadado para emprezas maiores. Vieram as
alternativas, equilibrando-se. Começou Affonso a estudar seriamente os
mysterios d'aquelle jogo, com enthusiasmo e absoluto menosprezo de tudo
mais. Dizia-se elle: « refaça-se a fortuna, que depois se reconstruirá o
coração. Dinheiro, muito dinheiro, para comprar uma alma pura em Paris,
onde a raridade tornou carissimo o genero!»
Sossobrado por um revez, perde metade do seu capital. Desanima, e
esmorece em força moral. Vai a medo á barra do Potosi, e crê que está
alli um abysmo a tragar-lhe o restante, e depois a elle. Que fará
empobrecido no extremo? Venderá a casa, a quinta, a capella, e o tumulo
de sua mãe? Lembra-lhe a mãe, e invoca a alma santa a coadjuval-o na
empreza immoral. A santa infunde-lhe uma insuperavel desanimação diante
do perigo. Associa-se a jogadores felizes. Balancea-lhe a fortuna entre
pequenos desastres e pequenos lucros. Ao fim de oito mezes, a sociedade
quebra, e Affonso de Teive tem de seu algumas libras, e cincoenta que o
Tranqueira delicadamente lhe introduz na sua gaveta, os seus ordenados e
economias de muitos annos.
O criado amigo, testemunha das lagrimas e das vertigens, ousa
aconselhal-o que volte para Ruivães, e se restaure limitando-se ao
rendimento de sua casa. Affonso enfuria-se contra o criado, exclamando:
«Sabes o que é a minha casa de Ruivães? São quarenta carros de pão cada
anno»--E vinte pipas de vinho, e uma de azeite--ajuntou o criado. «Que
vale tudo isso?»--perguntou Affonso. O Tranqueira fez a conta pelos
dedos, e respondeu:--Feitas as despezas do grangeio, vale seiscentos mil
réis. «E hei-de eu viver com seiscentos mil réis por anno!--clamou
Affonso--eu! habituado ao luxo, com vinte e cinco annos, com precisão de
aturdir a minha existencia nos prazeres, que só a muito dinheiro se
encontram em toda a parte do mundo!»
O criado encolheu os hombros, e disse entre si:--Valha-nos a alma de
minha santa ama e senhora!
Medita Affonso vender o resto de seu patrimonio; e para logo lhe
occorrem estas palavras da ultima carta de sua mãe moribunda: _Dos
desbarates e perdimento dos teus haveres, faz muito por salvar ao menos
esta casa onde nasceste, e a quinta que te dará abundante pão na
velhice, se Deus t'a der como tempo de merecer o céo. Aqui nasceu teu
pae, e muitas gerações de santas e honradas pessoas. Salva esta casa,
que tens n'ella a sepultura de teus paes e avós_.
Desfallece-lhe a sacrilega coragem de negar a sua mãe o derradeiro
pedido. Mas a necessidade atroz abriga-o a desviar os olhos d'um tumulo
para enxergar não longe a indigencia em Paris, a indigencia relativa com
as galas do passado.
Estas agonias são as supremas de sua vida. Palmyra, a memoria da mulher
fatal, nem por sonhos o perturba. Apparelham-se-lhe affrontamentos
maiores. A vergonha do pobre mostra-se-lhe mais aviltante que a vergonha
de atraiçoado. Pensa, sonha, contorce-se, alenta-se, desmaia,
recobra-se, sempre a scismar na rehabilitação pelo ouro, na reparação do
seu capital; porém, de que modo, sem capital nenhum?... Salvadora
idéa!...
Escreve ao tio Fernão d'este theor:
«Perdi-me, perdi o que trouxe de Portugal, estou pobre. Eis-me mais
castigado que o padecente dos pardieiros das Taipas. Elle refugiou-se
aos quarenta annos, ainda rico do mundo. Eu tenho vinte e cinco annos, a
honra perdida, a rehabilitação impossivel, aptidão para nada, o espirito
derrancado no gozo de infames delicias: e, para sustentar esta vida
corroida da lepra, resta-me a quinta de Ruivães. Eu sei que a fome não
iria lá bater-me ás portas, sei que ainda tenho de meu o talher na sua
mesa, meu tio, mas Affonso de Teive antes de estender a mão á piedade
mesmo dos seus ha-de esconder a sua ignominia n'um d'estes comoros de
terra, onde os sepultados não tem nome. Minha mãe pediu-me que não
vendesse a casa onde está o jazigo de meus avós. Os meus avós são os de
meu tio Fernão de Teive. Aqui venho eu offerecer-lhe a minha quinta.
Compre-m'a, meu tio, que a vontade de minha mãe está cumprida. Lá fica
Mafalda, o anjo, para ajoelhar diante d'aquellas lapides sagradas.
Compre-m'a, senão eu, de mãos postas, pedirei a minha mãe que perdoe ao
reprobo, que lhe vendeu os ossos, na vespera do dia da fome. Seu
sobrinho _Affonso_.»
Fernão, lida a carta, em presença de Mafalda, abriu os braços á filha,
que parecia finar-se n'elles. Das ancias e lagrimas sahiu ella com uns
gritos afflictissimos, pedindo ao pae que valesse a Affonso, sem demora.
Fernão, carecedor de ser consolado da desgraça do sobrinho, tinha de
aquietar o alvoroço da filha, promettendo e cumprindo logo tudo que
fosse da vontade d'ella, que era tambem um dever d'elle a cumprir já com
o parente, já com a memoria de sua irmã. Foi instantaneo o contentamento
de Mafalda.
--E depois?--exclamava ella--E depois, meu pae, em se lhe acabando o
dinheiro da quinta, quem lhe acudirá?
--Nós--respondeu de alegre aspeito o pae.
--Nós?--tornou ella entre alegre e amargurada--mas não vê o que elle
diz?...
--Que diz elle, creança, que diz elle? Lê-me tu o que elle diz...
--Olhe, meu pae... _Affonso de Teive antes de estender a mão á piedade
mesmo dos seus ha-de esconder a sua ignominia num d'estes comoros de
terra onde os sepultados não tem nome._ O pae entende isto muito bem...
--Entendo; mas não me assusto. A gente ha-de pensar: primeiro, o
essencial, é mandar-lhe o dinheiro, e dizer-lhe que os tumulos de
Ruivães, e as casas, e as terras são d'elle, como até aqui.
--E aceitará?--replicou Mafalda--Tomará elle a dadiva como esmola?
--Ó mulher!--retorquiu o velho--tu estás uma argumentadora dos meus
peccados!... E o mais é que lembras com juizo essa especie!... O doudo é
capaz de rejeitar, se eu dou dinheiro e quinta! Pois bem: diga-se-lhe
que eu compro a quinta, e mande-se-lhe os quinze mil cruzados, que é o
valor da cousa. Vou ámanhã ao Porto. O dinheiro está ahi. Fico sendo o
proprietario de tres quintas de Affonso. Cá te ficam, menina. Tu,
depois, a teimares no proposito de morrer solteira, dá-lh'as, se elle
viver. Que mais quer a minha filha?
Mafalda ajoelhou a beijar-lhe as mãos. Ergueu-a o pae com muita ternura,
enxugou-lhe as lagrimas no lenço em que embebia as d'elle, e disse,
sofreando os soluços:
--Que esperas tu d'este rapaz, Mafalda? Quando virá Deus em auxilio
d'esse tão fraco e desventurado coração? Filha... estima-o; mas não o
ames assim com esse amor que te devora a mocidade! Que vinte e quatro
annos os teus tão desconsolados e estranhos ás menores alegrias de tua
idade!... E tu não cahes em ti, filha, não vês que Affonso está cada vez
mais longe de te avaliar!?
--Sei, meu pae--respondeu Mafalda com serenidade.
--E então?... sabes, e não te vences...
--Não posso vencer-me, Deus sabe que lhe tenho pedido auxilio, e nem
assim...--As lagrimas saltaram-lhe novamente, e logo os arquejos do
peito, ancioso de ar.
--Pois bem, meu amor--tornou o pae, duplicando as meiguices--Eu absolvo
a tua fraqueza, já que o Altissimo te não fortalece. Quem sabe, filha,
quem sabe os segredos do porvir? Ha milagres mais assombrosos. Póde ser
que elle ainda venha para ti com o coração purificado, e o tributo da
mocidade avaramente pago. Mais bom marido será então. Que te diz lá no
intimo a voz do teu anjo? Serei propheta, minha filha, serei?
Mafalda sorriu-se, e murmurou:
--E não podia ser assim, meu pae?! Ás vezes, sonho-o; tenho horas em que
me julgo louca, no meu contentamento sem causa, sem esperança!... Tres
cartas recebi d'elle em oito mezes, e que frias expressões! Quando eu o
considerava esquecido, por amor d'aquella creatura, é que elle me
escrevia mais amoravel; agora, que é livre, e de mais a mais infeliz,
parece que nem se quer me estima! E, ainda assim, meu pae, eu tenho
presagios, em meu coração, alegres como a sua prophecia.
--Pois então pede a Deus que me dê vida para que eu os veja
realisados... mas, filha, a realisação da prophecia, se vier, já me não
achará vivo...

XXI
Decorridos seis mezes, Fernão de Teive, perigosamente enfermo e
desenganado, dialogava assim com sua filha, ajoelhada sobre o estrado do
leito, com a face inclinada aos labios requeimados d'elle:
--Bem t'o disse eu, menina. A realisação da prophecia, se vier,
encontra-me sem vida.
--Não ha-de morrer, meu pae!--clamou Mafalda beijando-lhe a fronte.
--Não peças a Deus isso, que os meus padecimentos são incomportaveis...
Verdade é que te deixo quasi sosinha; mas ahi estão teus tios de
Barcellos que te levarão para sua companhia em quanto não poderes voltar
á casa onde morre teu pae. Não chores assim que me affliges, Mafalda...
Triste cousa que um moribundo não possa fallar aos seus com a presença
de espirito dos que esperam viver muito... E, a final, Deus sabe quem
vive e quem morre!... Póde ser que eu não vá d'esta... Pois então,
menina, que tem que conversemos placidamente?!... Bem... esse ar de
conformidade está bem ao rosto angelico de minha filha... Fallemos no
nosso Affonso... Inventa lá tu um meio de lhe mandar recursos. Se é
verdade o que soubemos por via do tio desembargador, o rapaz está mal. O
jogo dos fundos arruinou-o segunda vez, ou reduziu-o a muito pouco...
--Mas as cartas ultimas--atalhou Mafalda--não fallam em negocios...
--Pois isso é o que mais me persuade da informação do tio de Lisboa. Se
Affonso prosperasse, dizia-o; elle, que se cala, é que está desgraçado.
--Oh meu Deus!--exclamou a filha--diz bem, meu pae, Affonso está
desgraçado... Não o confessa para que lhe não mandem alguma esmola os
parentes.
--Isso mesmo; e por isso mesmo pensemos em remedial-o com todo o
melindre. Não te occorre nada, filha?
--Manda-se-lhe o dinheiro, peço-lhe eu muito que o aceite... elle ha-de
condoer-se das minhas palavras...
--Não gosto d'esse meio: desapprovo a invenção. Ahi vem padre Joaquim
dar-nos aviso.
Padre Joaquim era um modêlo de padres, capellão da casa, havia trinta e
cinco annos; padre que se me ia fugindo d'este romance por um
cabellinho: o que seria novidade nos meus livros. Quando eu poder
architectar uma novella sem padre, hei-de chamar-me romancista puxado de
imaginação. O mestre dos escriptores floridos, Almeida Garrett, segundo
disse e provou, tinha o vezo dos frades. Elle, e eu, cá muito no couce
processional dos seus discipulos, havemos de fazer amar os frades, e os
padres, pelo menos os padres-capellães bem procedidos e venerandos como
padre Joaquim, capellão da casa de Fonte-Boa.
Explicou Mafalda ao padre o motivo a cujo respeito se lhe pedia aviso.
O clerigo tomou rapé, reflectiu, consolidou o seu raciocinio com outra
pitada, e disse:
--A minha opinião é que a snr.ª D. Mafalda case com o snr. Affonso.
Fernão, fraco de peito para rir, tossiu uns frouxos de riso que
desconcertaram a gravidade do reverendo. Mafalda fitou os olhos em seu
pae, receando que o esforço o estivesse mortificando.
Padre Joaquim voltando-se á menina, disse no tom de quem dá satisfação:
--Dar-se-ha caso que eu dissesse algum desproposito?... Parecia-me que
sendo os dous contrahentes primos em primeiro grau, obtida a devida
dispensa, nada mais acertado para o fim de melhorar a situação apertada
do snr. Affonso...
--Não disse desproposito nenhum, padre Joaquim--acudiu Fernão de
Teive--Pelo contrario, aventou a mais moral e desejavel das sahidas
n'estes apertos. Mas o que nós queriamos era soccorrel-o sem que ninguem
casasse.
--Parece-me isso justo e exequivel. É mandar-lhe dinheiro por pessoa
capaz--respondeu categoricamente o sacerdote.
Fernão, com prazenteiro rosto, acudiu:
--Quer o padre Joaquim ir a Paris? Não temos outra pessoa que o iguale
em capacidade.
--Irei ao fim do mundo no serviço de vv. exc.as
--E se o primo Affonso--disse Mafalda--rejeitar o dinheiro?
--Se rejeitar o dinheiro, volto com elle para casa: signal é que lhe não
é preciso.
--Se o rejeitar por ser de condição independente, e tomar como esmola o
favor do pae?--replicou Mafalda.
--N'esse caso cito-lhe os meus authores nas materias vaidade, soberba e
orgulho: e hei-de convencel-o a aceitar o dinheiro.
--Vai o padre a Paris--disse Fernão--Ámanhã parte para o Porto: lá o
dirigirão. Prepara tu, Mafalda, a bagagem do snr. padre Joaquim. Tira o
necessario para o meu enterro, e manda tudo mais, que encontrares, a
Affonso.
--Enterro!--exclamou Mafalda, escondendo o rosto no seio do pae.
Ao escurecer recrudesceram os padecimentos de Fernão de Teive. Por volta
de meia noite, com toda a luz da razão, e clareza de voz pediu os
sacramentos, e conversou até ás duas horas. Ao amanhecer dormiu um somno
quieto, e acordou afflicto. Pediu a extrema-uncção, e respondeu durante
a ceremonia as palavras rituaes em irreprehensivel latim. Depois, chamou
a filha, beijou-a, deu-lhe a beijar o crucifixo, que tinha entre mãos,
reclinou-se para o hombro d'ella, dizendo:
--Sobre este hombro expirou minha irmã... Se alguma vez vires o filho da
santa mulher dá-lhe um abraço... e tu, filha... adeus até ao céo.
Mafalda rompeu em altos clamores. Fez-lhe o pae um gesto de silencio com
os olhos.
Foi este o derradeiro gesto d'aquelles olhos, fitos já na aurora da
eternidade, e fechados para sempre sob os labios de sua filha.

XXII
Eram atrozmente verdadeiras as informações communicadas pelo
desembargador Figueirôa sobre a desfortuna de Affonso de Teive em Paris.
Os quinze mil cruzados, producto supposto da quinta de Ruivães,
enguliu-os a voragem do jogo de fundos, á qual o allucinado moço se
atirou ás cegas, contando com a vicissitude favoravel, por ter sido
infeliz nas outras.
Resolveu matar-se. Esta deliberação contrabalançou as agonias da pobreza
desesperada.--Como via a morte no leve movimento d'um gatilho, deixou de
encarar o futuro. Que lhe importava morrer pobre?! Encheu-se de coragem,
e deu graças a Deus pela fortaleza que lhe dava. Ajuntou os objectos de
ouro e pedras que reservára para aquella hora premeditada. Chamou o
criado, e disse-lhe: «Vende isso que ahi está. Creio que o valor d'essas
cousas bastará ao pagamento do que te devo em dinheiro e soldadas: se
algum resto houver a maior, leva-o para te passares á tua terra.»
--E o fidalgo onde fica?!--perguntou o Tranqueira.
--Aqui!--disse Affonso.
--Pois tambem eu, patrão! Já agora, tenha paciencia; gastei a mocidade
em sua casa; a velhice por cá a levarei n'esta endiabrada terra, como
Deus fôr servido. Guarde lá o fidalgo as suas cousas, que eu não as
quero, nem lhe pedi nada. Para eu viver, basta-me uma carroça e um
cavallo estropiado. Arranje v. exc.ª a sua vida, que eu cá me irei
arranjando.
--Cumpre as minhas ordens, Tranqueira!--replicou Affonso com fingida
severidade.
--Perdoará, snr. Affonso...--volveu o criado--É a primeira vez que lhe
desobedeço. Eu não recebo nada em quanto o não vir com outro arranjo de
vida.
--Faz o que quizeres...--redarguiu o moço, embolsando a punhados os
objectos que offerecera ao criado, na intenção de sahir para vendel-os.
Tranqueira desconfiou do intento suicida do amo. Apenas esta suspeita
lhe saltou de repente ao animo, atravessou-se á porta do quarto,
exclamando:
--O fidalgo não é homem, por mais que me digam! Ha Deus ou não ha Deus?!
Então sua mãesinha esteve a criar um menino na lei de Christo, para v.
exc.ª dar esta sahida! Pensa que eu não sei o que lá tem na cabeça? O
snr. Affonso quer dar cabo de si... Pois, ande lá por onde quizer, que
eu nem de dia nem de noite o largo mais... Matar-se, por falta de
dinheiro, um moço de vinte e cinco annos, que sabe lêr e escrever, e em
boa saude! Isso não o faz homem nenhum no seu juizo! Quem precisa
trabalha; se não é n'isto é n'aquillo. E os que perdem tudo o que tem
n'um fogo, ou no mar, matam-se? Ora, snr. Affonso, eu dos annos que
tenho ainda não topei homem tão desanimado!... Valha-o a alminha da
snr.ª D. Eulalia! Quer o fidalgo uma cousa? Eu vou vender algum d'esse
ouro que ahi tem, e vamos para Portugal. Seu tio desembargador mostra
que é seu amigo, e o snr. Fernão de Fonte-Boa morreu sempre por v. exc.ª
Não se lhe pede dinheiro nem cousa que o valha; pede-se-lhe que o
arranjem em algum emprego limpo. Trabalhar não é vergonha, é honra,
fidalgo!... Que me diz? que responde ao velho Tranqueira que o trouxe ao
collo, e aqui está de joelhos aos seus pés?
E abraçou-se-lhe aos joelhos, com os olhos inflados de lagrimas.
Affonso levantou-o nos braços trementes de grata commoção, e disse-lhe
com transporte:
--Trabalharei, meu amigo, trabalharei... Descança, que eu não me mato...
A desgraça me irá matando.
Com referencia áquellas chãs e firmes expressões do servo rustico, me
disse Affonso:
«Eu tinha lido na vespera d'aquelle dia uns livros de insinuante moral,
e consolação a desvalidos, pedindo-lhes crença que me esteiasse na
desesperada crise de homem, sem nenhum escape na cerrada negridão de sua
vida. Doutrinas e exemplos de evangelica uncção, factos tormentosissimos
de angustia e admiraveis de conformidade, desde Job até ao maior homem
do mundo na rocha de Santa Helena, nada me impressionára, nada me
demovera do suicidio. Vi uma restea de luz instantanea reflectida do
rosto de Mafalda! Pensei que era o anjo da santa melancolia a
despedir-se do precito, que o repellira. Ainda o apêgo á existencia,
exprimindo-se nas phrases positivas d'ella, me quiz mostrar a felicidade
possivel no casamento com minha prima. Afastei com tedio de mim proprio
este impudor d'alma envilecida pela desgraça. O homem rico não
reconhecera a virtude de Mafalda, senão para admiral-a; o homem
desvalido havia de ir depois pedir á virtuosa que o aceitasse como
marido!... Tive medo que outra vez me acommettesse o pensamento vil.
Dei-me então pressa em abreviar o termo da lucta! Depois d'isto, como é
possivel que as rudes palavras d'um criado me abalassem desde a
profundeza de minhas convicções ácerca da coragem do homem que se mata?
Como logrou elle o que os livros consoladores não vingaram, nem os
estimulos indecorosos a um casamento rico? Foram aquellas palavras:
_quem precisa, trabalha_, ditas pelo homem que as tirára da sua
consciencia, como se ellas lá descessem do céo, n'aquelle momento, para
me serem ditas, não pela pagina de um livro, mas pela bocca de quem as
dizia, chorando.»
Affonso de Teive, com mais coragem do que a necessaria para o suicidio,
dirigiu-se a uma casa de commercio de judeus de procedencia portugueza,
residentes em Paris. Conhecera Affonso um mancebo d'esta familia no
concurso das pessoas bem qualificadas. Procurou-o, e contou-lhe o seu
estado, offerecendo-se a trabalhar no escriptorio, segundo sua aptidão.
Os commerciantes aceitaram-o como terceiro ajudante de guarda-livros com
ordenado de dous mil francos.
Vendeu Affonso as suas joias, e alugou uma mansarda, que mobilou,
consoante a escolha de Tranqueira, pobre e limpamente. O criado comprou
um cavallo, a que elle chamava um milagre, e uma carroça, com que
trabalhava de carrejão, nas horas occupadas do amo. Ás horas
convencionadas, o Tranqueira ia buscar em marmitas um jantar economico
para ambos, todavia aceado e abundante. Affonso passava em casa as
noites, estudando a lingua ingleza para poder adiantar-se na sua
carreira, até merecer os seis mil francos de primeiro adjunto ao
guarda-livros.
Se era feliz assim?
Oh! não: nem tudo que é honroso se ha-de crêr que seja felicidade. A
degenerada natureza do homem quadra violentamente com as mudanças assim
abruptas, com as quedas de tão alto! O magnificente amante de Palmyra, o
moço blandiciado nas salas do seu palacio do Campo Grande, reclinado por
sobre coxins de sêda, inventando regalias com que desanojar a sua ociosa
saciedade, certamente não podia escrever odes á fortuna amiga, quando
sahia de escrever cifrões no escriptorio mercantil. O reportar-se tambem
não é ser feliz; é, no maximo das vezes, um martyrio consecutivo de
triumphos obscuros; porém, martyrio sempre!
E, depois, Affonso entrava futuro dentro, phantasiando mudanças,
chimeras, paradoxos, que o volvessem a uma felicidade, que elle bem nem
mal sabia definir, ou estremar do que vulgarmente se diz que ella é.
D'estas vãs e ardentes consultas ao porvir, voltava o moço ao refrigerio
do trabalho, e assim o tempo ia derivando, branqueando-lhe os cabellos,
e quebrando-lhe os espiritos.
Em Lisboa era sabida a situação de Affonso de Teive, não que elle a
contasse. Escrevia ao tio Fernão raramente, sem de leve tocar em
negocios. Respondia ás cartas d'algum raro amigo, que o julgava ainda em
circumstancias de lhe não pedir emprestimo para se resgatar de Clichy.
N'este tempo, recebeu elle novas de Palmyra, não solicitadas. Dava-lh'as
assim um dos seus commensaes de Lisboa:
«...... A mulher surgiu aqui, vinda não sei d'onde, pompeando com tanto
esplendor e mais estupidez que no teu tempo, ou melhor direi, no teu
reinado.»
«Vi-a em S. Carlos, hontem, sosinha na friza. Disseram-me, porém, que
lá, no reconcavo do camarote, estava um homem gordo, de tez abronzeada,
e vista suina. Dizem que é brazileiro do Minho, outros diziam que era o
marido envergonhado. O D. José de Noronha, desde o banho da cisterna,
nunca mais se endireitou do espinhaço, e vai a tisico irremissivelmente.
Não ha memoria d'uma catastrophe assim nos fastos dos Lovelaces patifes
d'este nosso quintal do tio Lopes. O D. Antonio de Mascarenhas
assevera-me que Palmyra nunca mais teve uma palavra de consolação para o
derreado amante. O teu criado matou estes amores com tamanha ignominia,
que já não ha ninguem que queira amar mulher em casa onde haja
cisterna... Irei dizendo o que souber da Laiz minhota.........»
Affonso leu glacialmente a carta, e não respondeu ao noticiador.
--Que sentimento fez em ti essa nova?--perguntei eu.
Affonso encolheu os hombros, e disse:
--O sentimento da piedade. Não podia ser amor, porque não ha infamia
d'alma que desça até ahi. Odio tambem não, que o odio quer vingança, e
eu dava-me já por vingado da mulher a resvalar, no plano inclinado, não
sei até que ordem de abysmos. Era piedade o que eu sentia, e tanta que,
se me viessem dizer que Palmyra, dentro de um anno, perdera a formosura,
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